Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
561/08.6TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
DEVER DE COLABORAÇÃO
BANCO DE PORTUGAL
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – TONDELA – SECÇÃO DE COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DEFERIDO
Legislação Nacional: REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS (RGICSF), APROVADO PELO DL N.º 298/92, DE 31 DE DEZEMBRO (ARTºS 80º, 81º-A, Nº 4 “A CONTRARIO” E 84º); ARTº 417º, NºS 3 E 4 DO NCPC.
Sumário: I – O segredo bancário não tem carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante.

II - Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

III - O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.

Decisão Texto Integral:
Decisão (Art.ºs 656º e 652º n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil):[1]

I - A) - 1) - No processo de inventário que, por óbito de E..., corre termos na Instância Local de Tondela – Secção de competência genérica, da Comarca de Viseu, sendo cabeça de casal G... e interessados M... e outros, vieram estes requerer que se solicitasse ao Banco de Portugal para que este oficiasse a todos os bancos a operar em Portugal, no sentido de saber da existência ou da inexistência, na titularidade do inventariado, de contas bancárias de depósitos à ordem, a prazo, de fundos de investimento imobiliário e de outras aplicações financeiras nas referidas instituições de crédito, com excepção do Banco … e da C...

2) – O Banco de Portugal, por ofício junto a fls. 645, veio, invocando o segredo profissional, escorado, entre outras, nas normas dos artºs 80º e 81º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), escusar-se a aceder ao solicitado.

3) - No Tribunal de 1ª Instância foi proferido o despacho de 29/01/2015, no qual, considerando estar em causa a determinação dos bens que integram a herança dos clientes dos bancos, entretanto já falecido, sendo a informação solicitada assaz relevante para a tal, se suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação, com vista à quebra do dever de segredo invocado pelo Banco de Portugal, nos termos “do disposto no artigo 135º, nº 3 do Código de Processo Penal”.

II- O Tribunal é o competente, inexistindo nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.

III - a) O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.

b) - Em face da factualidade acima descrita, a questão que se coloca é a de saber se deve ou não ser determinada a quebra do sigilo bancário invocado pela identificada instituição bancária para não prestar as informações solicitadas.

c) - Salvo o devido respeito, parece não haver dúvida de que o solicitado ao Banco de Portugal, nas condições em que o foi, se encontra abrangido pelo “dever de segredo” contemplado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro (cfr. v.g., os artºs 80º, 81-A, nº 4 “a contrario” e 84º).

Efectivamente, não obstante a atenuação delimitada que o segredo bancário conheceu com a Lei n.º 36/2010, de 2/9, e o DL n.º 157/2014, de 24/10, ainda existem restrições impostas por tal segredo, mesmo no que concerne ao solicitado pelas autoridades judiciárias, excepcionados o foro penal (nº 2, d), do artº 79º) do citado DL n.º 298/92 e, em determinadas condições, noutras áreas da justiça, como, por exemplo, na acção executiva - nº 2, f), do citado artº 79º, artº 749, nº 6, do NCPC - e na Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais n.º 34/2004, de 29 de Julho - artº 8º-B.

E o facto de a informação sobre as contas bancárias em nome de pessoa falecida ser solicitada a pedido de herdeiro desta, não modifica, quanto a nós, o entendimento atrás expendido, excepcionados os casos do sucessor universal devidamente habilitado, ou do herdeiro que, na sequência da partilha, viu o seu quinhão preenchido com tais “bens” (cfr. Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/11/2011, processo nº 134/09.6TBVLN-A.G1, e de 25/06/2003, processo nº2112/10.3TBVCT-A.G1)[2].

Importa, efectivamente, para além das condicionantes impostas quanto à utilização de informação constante na Base de dados de contas (artº 81-A), ter presente o disposto nos art.ºs. 80º, n.º 2 e 84.º do mesmo RGICSF, sendo que, no primeiro deles se preceitua que “Os fatos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.”.

Embora se estabeleça - citado art.º 84º - que “...Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal.”, haverá que considerar não ser ilícito “…o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.” (art.º 36º, nº 1, do CP).

Por outro lado, o art.º 417 do NCPC, embora prevendo no seu n.º 1, como princípio, a obrigatoriedade de todos (ainda que não sejam partes na causa) terem “o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”, excepciona no seu n.º 3, entre outras, as situações em que a obediência à cooperação solicitada importa violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado (alínea c)).

Isto, porém, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que refere: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”.

O segredo bancário não tem, assim, carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante.

Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.

O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.

Assim, deduzida que seja a escusa, v.g., com fundamento na previsão do aludido 417º, n.º 3, al. c), será aplicável, “ex vi” do referido n.º 4, desse artigo, com as adaptações que a natureza dos interesses em causa impõe, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da recusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

Reconhecida a legitimidade da escusa, será, pois, suscitada a intervenção do Tribunal Superior, para que este, de acordo com o disposto no citado artºs. 417º, nº4, e no artº 135º, nº 3, do CPP, procedendo à ponderação dos interesses em confronto, decida se a quebra do dever de sigilo é, no caso, mais importante do que a manutenção desse dever.

Caberá “in casu” fazer uma tal ponderação e, concluindo-se ser caso disso, ordenar àquela instituição bancária a quebra desse segredo profissional, por se entender esta como justificada, face às normas e aos princípios aplicáveis, designadamente, tendo presente o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Do acervo hereditário fazem parte, como é sabido, todos os bens do “de cujus”, bem como os direitos e obrigações de que este era titular e que em consequência da sua morte não devam extinguir-se, em razão da sua natureza ou por força da lei (cfr. art.ºs 2024 e 2025, n.º 1 do CC).
O processo de inventário tem como escopo, em casos como o presente, conseguir o rigoroso apuramento - para lograr obter a sua subsequente distribuição de forma fiel e equitativa - dos bens que constituem o acervo patrimonial hereditário, sendo que, para esse rigoroso apuramento torna-se indispensável que o Banco de Portugal satisfaça o solicitado pelo Tribunal da 1ª Instância.
Contrapondo os dois interesses aqui em jogo - o da tutela do dever de segredo invocado pelo Banco e o do dever de colaboração com a administração da justiça - ponderados os mesmos, no caso “sub judice”, de harmonia com princípio da prevalência do interesse preponderante e com um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, (18º, n.º 2 da CRP), a conclusão a que se chega é a de que, a não satisfazer o solicitado pelo Tribunal, poderão ficar gravemente prejudicados os legítimos interesses que o processo em causa visa satisfazer, sendo certo que não se pretende, manifestamente, com tal solicitação, devassar a vida económica e financeira de quem quer que seja.

Resulta, assim, do exposto, ser de concluir pela prevalência do interesse público da administração da justiça, como justificação para a quebra do dever de segredo invocado pelo Banco de Portugal.

IV - Nestes termos, ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se dispensar o Banco de Portugal do cumprimento desse dever de segredo que invocou e, consequentemente, determina-se que esta Instituição preste, no âmbito do processo em causa, a colaboração e as informações que lhe foram solicitadas pelo Tribunal de 1ª Instância.

Sem custas.

Coimbra, 10/03/2015

            Luís José Falcão de Magalhães


[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC. 
[2] Ambos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase.