Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
413/11.2TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: MURO
PRESUNÇÃO DE COMUNHÃO
ERRO
PROVAS
Data do Acordão: 04/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1371º, NºS 1, 2, 3 E 4 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Sempre que a decisão impugnada comporte vários fundamentos, a improcedência do recurso pode resultar da modificação, pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão.

II - A presunção de comunhão de muros divisórios, bem como a presunção inversa de propriedade exclusiva desses muros a favor de um dos proprietários confinantes só é aplicável aos muros que dividam prédios da mesma espécie ou afins.

III – Não funcionando uma tal presunção, também se não coloca o problema dos sinais que, do mesmo passo, excluem essa presunção e funcionam como presunção de propriedade exclusiva do muro a favor de um dos proprietários confinantes (artº 1371 nº 3 a) c) e 4 do Código Civil). É que estas últimas presunções – como a presunção de compropriedade – só funcionam quanto a muros que dividam prédios da mesma espécie ou afins.

IV - O autor da acção – confessória – na qual seja pedida a declaração da titularidade do direito real de propriedade está onerado com a prova diabólica, excepto se beneficiar de uma presunção legal, como, por exemplo, a derivada da posse.

V - O error in iudicando da matéria de facto pode decorrer de um erro na valoração da prova ou simplesmente de um erro sobre o objecto dessa prova.

VI - O réu que negue a existência do direito real alegado pelo autor, defende-se, não por excepção peremptória, mas por impugnação directa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

S… e cônjuge, M…, propuseram, no Tribunal Judicial de Nelas, contra C… e cônjuge, O…, acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, pedindo a condenação dos últimos:

a) a reconhecer que:

- O prédio rústico sito em … lhes pertence;

- O muro de granito com cerca de 1,20m de altura, que separa esse prédio do prédio urbano dos réus, também lhes pertence, e faz parte integrante do seu prédio;

b) A removerem os ferros e as chapas metálicas colocadas sobre o muro;

c) A pagarem-lhes a indemnização de € 5.500,00.

Fundamentaram estas pretensões no facto de serem proprietários daquele prédio rústico, que adquiriram, por compra, em 10 de Fevereiro de 1988, e por usucapião, prédio que confina, do lado poente, com o prédio urbano dos réus, existindo a separá-los um muro de granito com cerca de 1, 20m de altura, que lhes pertence, por também o terem adquirido por usucapião, de, em acção proposta pelos réus, terem sido absolvidos do pedido de que esse muro pertencia aos últimos, e de, no dia 3 de Dezembro de 2011, os réus terem feito nove furos junto à base dos tubos metálicos já existentes e soldado, a esses tubos, ferros e duas fiadas de travessas metálicas a que afixaram dezanove chapas metálicas, tudo apoiado no muro, causando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais.

Os réus defenderam-se alegando, designadamente, que o muro não pertence exclusivamente aos autores nem faz parte integrante do prédio destes, que os autores nunca o possuíram nem o repararam, tendo apenas rebocado as juntas das pedras da face do muro virada para o seu prédio, que o muro foi reparado, a única vez que careceu de reparação, a mando da antepossuidora do seu prédio, que a parede nascente da casa de habitação existente no seu prédio se encontra rematada e colada ao muro com cimento, passando, debaixo desse remate, canos daquela casa, com mais de 20 anos, que da parede nascente da casa sai um marco, que se projecta sobre o muro com cerva 0,20 cm, ocupando o espaço aéreo correspondente da largura do muro, que o muro tem 1,00m de altura a contar do solo do seu prédio e 1,38 a contar do solo dos prédio dos autores, sendo por isso um muro de suporte de terras do prédio dos autores, que as pedras irregulares do muro se encontram cravadas nas terras do seu prédio, evitando o seu desmoronamento, que o muro tem a face anterior aparelhada virada para o prédio dos autores e as costas, a parte posterior da pedra aparelhada, mais irregular, virada para o seu prédio, e que em 2005, autores e réus, colocaram, a expensas meias, uma rede de vedação sobre o muro.

Na sequência de convite judicial, os autores ofereceram nova petição inicial, na qual concretizaram a exposição da matéria de facto alegada, tendo os réus apresentado nova contestação, na qual reiteraram o conteúdo da anterior.

Tanto os réus como os autores reclamaram, sem êxito, contra a selecção da matéria de facto inserta na base da prova: os primeiros pedindo a inclusão, na base instrutória, dos factos relativos à ligação material do muro ao seu prédio, à existência de tubos, sobre o remate de cimento, e do marco, à cota e altura do muro, à sua função de suporte de terras do prédio dos autores, ao cravamento das pedras no seu prédio para evitar o desmoronamento das terras desse mesmo prédio, à localização das faces do muro, à reparação deste a mando da antepossuidora do seu prédio e à reparação, por ambas as partes, do seu lado do muro, e, os segundos, a eliminação, daquela base, dos factos nela insertos sob os nºs 1 a 7, 9 a 12 e a inserção, do quesito 1º nos factos assentes.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento - com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, a matéria de facto controvertida.

A sentença final, julgando a acção parcialmente procedente, declarou que os autores são donos e legítimos possuidores do indicado prédio rústico e que o muro de granito que separa a propriedade de AA. e RR. com cerca de 1,20 metros de altura que parte da Rua x... em direcção a norte, numa extensão de 27 metros em linha recta e com 0,30 metros de largura como integrando o prédio referido em A) em conformidade se condenando os RR. a retirarem os ferros e chapas metálicas colocadas sobre o mesmo.

É esta sentença, e subsidiariamente, o despacho que lhes indeferiu a reclamação contra a selecção da matéria facto, que os réus impugnam por via do recurso ordinário de apelação, no qual pedem revogação daquela sentença, ou subsidiariamente, daquele despacho, e a substituição deste por outro que defira aquela reclamação e anule os termos subsequentes.

Os recorrentes remataram a sua alegação com estas conclusões:

Na resposta, os apelados, depois de observarem, designadamente, que os recorrentes, por não terem reclamado contra as respostas à matéria de facto, se conformaram com elas, tendo-se também conformado, por o não terem impugnado, com o despacho de indeferimento da reclamação que deduziram contra a selecção da matéria de facto, concluíram, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O litígio das partes, na acção e no recurso, gravita em torno deste problema: a titularidade pelos recorridos do direito real de propriedade sobre o muro que, na zona de confinância, separa o seu prédio rústico do prédio urbano dos apelantes.

Trata-se, aliás, de questão que já foi objecto de acção anterior, que correu entre as mesmas partes, na qual se julgou improcedente, por sentença passada em julgado, o pedido, formulado pelos apelantes - ora réus e então autores – de declaração de que eram eles os titulares, por o haverem adquirido por usucapião, do direito real de propriedade sobre esse mesmo muro.

Tendo os apelantes pedido, na acção anterior, contra os apelados a declaração de que são proprietários do muro e perdido, por virtude do caso julgado material que se formou sobre a sentença correspondente, ficou assente que os apelantes não são proprietários daquele bem. Mas por força dos limites a que o caso julgado está submetido, esta proposição só é indiscutível enquanto se baseia na mesma causa de pedir invocada anteriormente pelos apelantes; nada obsta, portanto, a que os recorrentes, fundados noutra causa petendi, voltem a afirmar-se, mesmo contra os apelados, proprietários daquele muro (artºs 498 nº 1, 671 e 677 do CPC)[1].

Na espécie do recurso, os apelantes não alegaram, porém, que são eles os titulares do direito real de propriedade sobre o muro – nem muito menos deduziram tal pedido – tendo-se limitado a negar a titularidade pelos apelantes desse mesmo direito, admitindo, quando muito, que uns e outros são comproprietários dele.

Os recorridos, apesar de no registo predial se encontrar inscrito, a seu favor, um facto aquisitivo do direito real de propriedade sobre o prédio que aquele muro delimita, alegaram como causa petendi do pedido de reconhecimento de direito da mesma espécie sobre o muro objecto da discórdia, a usucapião.

E bem se compreende uma tal estratégia processual.

O registo tem por finalidade conspícua dar publicidade às situações jurídicas prediais, através da inscrição dos factos que lhes tenham dado origem. Face à fé pública de que é dotado, o registo permite presumir que o direito pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o define (artº 7 do Código de Registo Predial).

Todavia, este fundamental efeito substantivo presuntivo do registo, por virtude da impossibilidade de assegurar a fidedignidade da descrição, não se estende aos elementos indentificadores do prédio, como por exemplo, as áreas, confrontações e composição. De resto, a base da nossa ordem jurídica imobiliária não é o registo – mas a usucapião[2]: a situação registral nada pode contra a usucapião e a esta – que constitui a ultima ratio na solução de conflitos entre adquirentes de direitos reais - é de todo indiferente àquela.

E isto é exacto ainda que exista assente na lei, no tocante ao bem litigado, uma presunção de comunhão, rectius, de compropriedade.

Assim, relativamente a muros divisórios, dada, de um aspecto, a dificuldade de fazer a prova da comunhão e, de outro, a probabilidade da sua existência, em face da homogeneidade de interesses dos proprietários confinantes, a lei presume, meramente iuris tantum, que pertencem em comum aos proprietários cujos prédios divide (artº 1371 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Mas no caso do recurso não há sequer que lidar com uma tal presunção. É que ela só se mostra estabelecida quando o muro divida ou separe prédios da mesma natureza ou afins: na ausência da identidade ou de afinidade dos prédios falta o pensamento que está na base da presunção - a comunhão de interesses dos proprietários confinantes[3].

No caso, de harmonia com a decisão da matéria de facto, que neste ponto não é objecto de impugnação, como o muro que constitui o nó górdio do dissídio separa ou estrema um prédio rústico – o dos apelados – e um prédio urbano – o dos apelantes, a presunção não funciona[4].

E não funcionando uma tal presunção, também se não coloca o problema dos sinais que, do mesmo passo, excluem essa presunção e funcionam como presunção de propriedade exclusiva do muro a favor de um dos proprietários confinantes (artº 1371 nº 3 a) c) e 4 do Código Civil). É que estas últimas presunções – como a presunção de compropriedade – só funcionam quanto a muros que dividam prédios da mesma espécie ou afins, o que, comprovadamente, não é o caso do recurso.

De resto, como tanto a presunção de comunhão como a de domínio exclusivo a favor de um dos proprietários confinantes, são simplesmente iuris tantum, sendo por isso susceptíveis de prova em contrário, qualquer dos proprietários limítrofes é admitido a demonstrar a sua titularidade exclusiva, quer contra a presunção de comunhão, quer contra a presunção de domínio exclusivo a favor do outro proprietário confinante (artº 350 nº 2 do Código Civil).

E, no caso do recurso, a sentença impugnada, por constatar que os factos adquiridos durante a tramitação da causa patenteavam o exercício, pelos apelados, sobre o muro, de uma posse boa para usucapião, declarou que os apelados são, por virtude desse facto aquisitivo, titulares do direito real de propriedade sobre ele e tirou dessa declaração os efeitos meramente consequenciais relativos à ilicitude da obra realizada pelos apelados nesse muro.

Simplesmente, uma tal conclusão – alegam, com veemência, os apelantes – ficou a dever-se ao error in iudicando da matéria de facto em que incorreu, na fase da selecção da matéria de facto e da audiência, o decisor da 1ª instância.

Maneira que, tendo em conta os parâmetros de cognição definidos pelas decisões impugnadas e pelas alegações de ambas as partes, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se, realmente, aquelas decisões estão maculadas com o apontado erro.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, à ponderação dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto e dos pressupostos da aquisição do direito real de propriedade por usucapião.

A matéria de facto e a matéria de direito estão entre si numa relação de interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência, para a obtenção da decisão num caso concreto. Dada a patente delimitação da matéria de facto em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados nos acontecimentos naturais e sociais segundo a sua relevância jurídica – justifica-se que a exposição posterior se abra com a discussão do problema da repartição do ónus da prova e com o exame, ainda que leve do instituto em contacto com a situação jurídica objecto do litígio – a usucapião.

No julgamento do recurso importa, contudo, ter presente que sempre que a decisão recorrida possa comportar vários fundamentos, a improcedência do recurso – e a consequente confirmação daquela decisão – pode resultar da modificação, pelo tribunal ad quem, do fundamento dessa mesma decisão. Quer dizer: o tribunal de recurso pode aceitar a procedência da impugnação – mas encontrar um outro fundamento distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão recorrida.

3.2. Repartição do ónus da prova e usucapião.

A leitura da petição inicial mostra que aos recorridos deduziram, em cumulação real, contra os apelantes vários pedidos, i.e., cumularam contra os demandados uma pluralidade de acções ou pretensões (artº 470 nº 1 do CPC).

O primeiro – e fundamental - desses pedidos é este: a condenação dos réus no reconhecimento de que o muro de granito que separa os respectivos prédios lhes pertence e faz parte integrante do seu prédio, melhor se diria, a declaração de que são titulares do direito real de propriedade sobre aquele muro.

Este pedido reconduz-se claramente à acção confessória - que à semelhança da acção negatória, não constitui, no nosso direito, uma acção real típica[5] - e pode ser definida como aquela em que o autor ou o réu reconvinte pretende afirmar contra o réu ou contra o autor reconvindo, respectivamente, a existência de um direito real menor que o demandado não aceita.

A acção confessória é uma acção de simples apreciação em que a causa de pedir é, para quem entenda tratar-se de uma acção real, o facto jurídico constitutivo do direito, ou, para quem sustenta entendimento diverso, a relação jurídica real (artº 498 nº 4 do CPC).

A prova do facto de que emerge o direito real menor cabe aquele que se arroga a titularidade dele. A prova exigível é semelhante à prova diabólica: desde que se invoca a titularidade de um direito real sobre a coisa, tem que se provar o acto aquisitivo correspondente, se necessário reconstituindo a cadeia de titulares anteriores até uma aquisição originária.

Na sua configuração usual, na actio confessoria, o autor pretende apenas afirmar contra o demandado a existência de um direito real menor que o último não aceita. Nada obsta, porém, que se faça compreender no seu perímetro, a declaração de existência do direito real de propriedade, quando o autor não pretenda obter a entrega da coisa pelo réu, mas simplesmente ver reconhecida judicialmente contra ele a titularidade daquele direito real maior[6].

Do ponto de vista estritamente adjectivo, trata-se nitidamente de uma acção de simples apreciação positiva (artº 4 nº 1 a) do CPC).

O autor tem, pois, que fazer a prova do seu direito, que o adquiriu em consequência de facto válido e eficaz. É, dada a dureza dessa prova, a chamada probatio diabolica.

Esta prova é feita nos termos gerais. Se o autor beneficia de uma presunção legal, o ónus dessa prova inverte-se, ficando o demandado onerado com o encargo da demonstração de que o autor não é titular do direito invocado (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil). As presunções mais relevantes neste domínio são duas: a derivada da posse; a assente no registo predial (artºs 1268 nº 1 do Código Civil e 7 do Código de Registo Predial). Se não beneficiar de uma presunção legal, e caso o demandado tenha contestado a titularidade pelo demandante do direito real invocado, este tem de se libertar do ónus da prova dessa titularidade. Sendo o facto aquisitivo meramente derivado, a prova dessa titularidade faz-se através da reconstituição da cadeia dos adquirentes anteriores até a uma aquisição originária: o autor tem de provar a validade dos factos translativos do direito até ao seu, quer dizer, a titularidade do direito na esfera jurídica dos transmitentes anteriores, até àquele que lhe transmitiu o seu direito.

Como é bem de ver, a actividade probatória que o autor da actio confessoria tem de desenvolver é extraordinariamente pesada, mas tem como limite uma aquisição originária. Demonstrando-se um facto aquisitivo originário – v.g., a usucapião – não há que recuar mais atrás, dado que esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor. Isto só não é assim se o autor puder, ele mesmo, invocar um facto aquisitivo originário: neste caso, tudo se resume à demonstração do facto invocado como aquisitivo do direito real de gozo alegado.

É indiscutível que o direito real de propriedade pode, naturalmente, ser adquirido por usucapião (artº 1316 do Código Civil).

A usucapião é, sabidamente, a constituição do direito real correspondente a certa posse, desde que esta se prolongue, com certas características, pelo período legalmente fixado. A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais: quando opere, é indiferente a anterior titularidade da coisa, bem como quaisquer outros ónus que o titular legítimo anterior teria de suportar.

A usucapião requer: uma posse pública e pacífica; correspondente a um direito usucapível; por um período de tempo legalmente bastante. A usucapião não é automática, antes assume um funcionamento potestativo. O beneficiário da usucapião terá de a invocar.

Exige-se, portanto, um posse de boa fé – quer dizer, uma posse que, não sendo na sua origem violenta, se constituiu pensando o possuidor que tinham ele próprio, v.g., o direito real de servidão – pacífica – i.e., adquirida sem violência – pública, portanto, exercida de modo a ser conhecida por qualquer interessado, e contínua, o mesmo é dizer, sem ter conhecido qualquer causa de extinção (artºs 1257 nº 1, 1260 nºs 1 e 3, 1261 nºs 1 e 2 e 1262 do Código Civil).

Essa situação possessória, desde que seja pacífica e pública, é boa para usucapião, quer dizer, para a constituição ou aquisição originária, facultada ao possuidor, do direito real correspondente a essa posse. E caso essa situação possessória dure, sem qualquer interrupção ou suspensão, pelo lapso de tempo marcado na lei, segue-se a aquisição, originária, daquele direito (artºs 1287, 1289 nº 1, 1292, 1296 e 1316 do Código Civil).

Como a usucapião opera com efeitos retroactivos, reportados ao início da posse, considera-se que o direito real constituído o foi no momento em que se iniciou a posse boa para a usucapião invocada (artºs 1288 e 1317 c) do Código Civil).

A usucapião é, pois, a constituição – verdadeiramente potestativa - facultada ao possuidor do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei (artº 1287 do Código Civil).

A usucapião tem sempre, na sua base, uma situação possessória. Só a posse e não a mera detenção pode conduzir à usucapião. Essa posse pode ter sido constituída ex-novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor do beneficiário, de posse anterior.

A posse pode constituir-se pelo apossamento, i.e., pela apropriação material de uma coisa, e pela inversão do título da posse, e transmite-se pela tradição, material ou meramente simbólica da coisa, efectuada pelo antigo possuidor, e pelo constituto possessório (artº 1263 a) a d) do Código Civil).

O constituto possessório é uma forma de aquisição derivada da posse. A transmissão da posse por constituto possessório ocorre quando um titular de um direito real que esteja na posse da coisa, transmita esse direito a outrem, ficando com a detenção dela (artº 1264 do Código Civil). Trata-se, nitidamente, de uma forma de tradição simbólica, portanto, de entrega da coisa, sem alteração no seu controlo material.

Para que haja transferência da posse é, evidentemente, necessário que o transferente seja possuidor e deixe de o ser; se não era possuidor, não pode naturalmente, transferir o que não tinha; se depois continua a sê-lo é porque a transferência não operou, seja qual for a razão.

Quando a sucessão na posse opere por título diverso da sucessão por morte, o transmitente pode valer-se da acessão da posse e, portanto, juntar à sua a posse do antecessor (artº 1256 nº 1 do Código Civil).

Mas a acessão não representa uma modalidade de transmissão da posse, como logo decorre do seu carácter facultativo. A transmissão resulta dos princípios gerais: o que lei estabelece é, pelo contrário, a possibilidade de o transmissário invocar apenas a sua própria posse, essencialmente para efeitos de usucapião. A acessão na posse tem efectivamente que ver com a matéria da usucapião, e não com a da transmissão da posse[7].

A posse pode definir-se como a afectação material de uma coisa corpórea aos fins de pessoas individualmente consideradas (artº 1251 do Código Civil)[8].

A posse arranca sempre do controlo material duma coisa corpórea. No entanto, nem a doutrina nem a jurisprudência são inteiramente acordes sobre os elementos que a integram. Para a doutrina subjectivista, a posse é constituída pelo corpus - controlo de facto da coisa - e pelo animus - ou intenção de ser proprietário - animus domini - de ser possuidor - animus possidendi - ou de ter a coisa para si - animus sibi habendi; para a teoria objectivista a posse derivaria do corpus com o animus, incindíveis, e a detenção do corpus e do animus, a que se juntaria uma disposição legal que retiraria a qualidade de posse[9].

Como quer que seja, mesmo para uma concepção puramente subjectivista do instituto e que, portanto, exige para que haja posse, corpus e animus, deve notar-se que a lei facilita a prova do animus possidendi, visto que estabelece que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto (artº 1252 nº 2 do Código Civil)[10]. Traduzindo-se, na lógica daquela concepção, o animus possidendi num elemento de natureza psicológica, é evidente a grave dificuldade da sua prova. Aquela presunção, ainda que meramente iuris tantum, tem por isso a maior importância.

A posse que faculta a aquisição originária do direito real deve ser pacífica e pública, i.e., uma posse que tenha sido adquirida sem violência e que seja exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artºs 1261 nºs 1 e 2 e 1262 do Código Civil). Note-se que a violência referida tem de ser exercida sobre as pessoas e não apenas sobre coisas que constituem um obstáculo à privação da posse e que para qualificar a posse o que interessa é o momento da aquisição desta (artºs 255, ex-vi artº 1261, 1267 nº 2, in fine, e 1297 do Código Civil).

Só uma tal posse é boa para usucapião, visto que a primeira condição para que esta opere é a de que haja posse com as características da pacificidade e da publicidade; faltando estas qualidades, os prazos para a usucapião não se contam (artºs 1297 e 1300 nº 1 do Código Civil).

A posse faculta ao possuidor a aquisição do direito nos termos do qual aquela posse foi exercida. O direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base – tantum praescriptum quantum possessum.

A posse faculta ao possuidor a aquisição do direito nos termos do qual aquela posse foi exercida. O direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base. Estando em causa a usucapião do direito real de propriedade, é claro que não é suficiente que alguém se apresente como exercente dos actos de posse para que beneficie da aquisição daquele direito. É ainda necessário que essa posse seja actuada a título de dono: o possuidor que pretenda usucapir a propriedade deve actuar nas vestes de proprietário.

Mas é o que sucede, quando um dos proprietários confinantes, faz, por exemplo, reparações no muro, o alteia ou constrói sobre ele, dado que procede como normalmente procederia um proprietário no gozo dos direitos de fruição e transformação: tais actos são suficientes para constituir o corpus do direito de propriedade, dado que denunciam invariavelmente, naquele que os pratica, a intenção de possuir como proprietário.

O titular do direito real de propriedade dispõe de uma permissão normativa plena ou total de aproveitamento das utilidades da coisa corpórea atingida por ele (artº 1305 do Código Civil). Além da plenitude, o direito real de propriedade é ainda dotado de uma outra qualidade: é exclusivista em relação a coisa. O direito real de propriedade não admite, no tocante à mesma coisa, a concorrência de outro direito de conteúdo igual.

Em vista desta característica, demonstrado que uma pessoa é titular do direito real de propriedade sobre uma coisa, segue-se, como corolário lógico, que não pode ser recusado, que nenhuma outra pessoa pode ser titular desse mesmo direito.

Correspondentemente, uma posse exercida nos termos do direito real de propriedade é também, necessariamente, uma posse exclusiva, uma posse que exclui qualquer outra posse por parte de outrem.

A posse que dá lugar á aquisição, por usucapião, do direito real de propriedade deve, por isso, ser exercida de modo exclusivo: o possuidor, declara a lei, deve actuar de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (artº 1251 do Código Civil).

Se o exercício dos poderes de facto sobre a coisa não for exclusivo, para uma concepção subjectivista da posse faltaria a esta o animus, que consistiria, no caso, na actuação dos recorridos e dos seus antecessores como únicos proprietários do muro[11]. Parece mais exacto, todavia, assentar em que, não havendo uso exclusivo, a não haver composse, falta simplesmente o corpus: não há uma actuação de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade[12]. Em qualquer dos casos, seja por falta de animus seja por falta de corpus, a falta de exclusividade da posse torna esta inábil para a aquisição por usucapião.

Para haver posse titulada são necessários dois requisitos: um positivo, representado pela legitimação de um titulus adquirendi do direito em termos do qual se possui; outro negativo, que se revolve na inexistência de vícios formais nesse mesmo negócio (artº 1259 nº 1 do Código Civil).

Os vícios não formais do negócio ou titulus adquirendi não afectam, em regra, o título da posse; os vícios de forma, resultantes da inobservância de formalidades ad substantiam é que, sem dúvida, determinam a falta de título da posse (artº 1259 nº 1 do Código Civil). Portanto, o título não é prejudicado por vícios substanciais do negócio jurídico. Mas a lei não abstrai da validade formal daquele negócio: se este for formalmente inválido, haverá posse – mas essa posse é não titulada. Para que seja titulada a posse tem, assim, que ter origem num facto jurídico abstractamente idóneo para provocar a aquisição do direito real, que não seja formalmente inválido.

Contudo, a posse que faculta ao possuidor a usucapião não tem que ser titulada: a ausência de título apenas importa o alargamento do prazo necessário para que aquela possa ser invocada (artºs 1294 e 1296 do Código Civil).

A posse diz-se de boa fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem (artº 1260 nº 1 do Código Civil)[13]. Desta noção de boa fé, resulta, naturalmente, como seu reverso, a noção de má fé.

Discute-se se a boa fé possessória é ética ou puramente psicológica[14]. Quer se trate de um conceito puramente psicológico e, portanto, puramente fáctico, quer se deva entrar em linha de conta, com um padrão ético-jurídico, a verdade é que a prova da boa ou da má fé – sobretudo quando entendida numa acepção psicológico-empírica – é extremamente difícil. Pressentindo a dificuldade, a lei recorre a presunções, determinando que a posse titulada se presume de boa-fé, e a não titulada de má fé (artº 1260 nº 2 do Código Civil).

A atitude da lei compreende-se: se a existência de título não é suficiente, de per se, para fundamentar a boa fé, constitui, no entanto, um sério indício de que se julgou adquirir o direito e, por conseguinte, de que a posse se julgou adquirir sem prejuízo para outrem; a falta de título indicia fortemente o contrário.

Dado, contudo, o carácter falível dessa base, é evidente que qualquer das presunções é meramente iuris tantum, ou seja, elidível mediante prova em contrário (artº 350 nº 2 do Código Civil).

Como todos os caracteres em exame, a boa ou má fé avalia-se no momento da aquisição e, como o título ou não título, é uma característica permanente da situação possessória. À alteração superveniente – de boa fé em má fé, dado que o inverso é inverosímil – atribuem-se, excepcionalmente, consequências jurídicas em dois pontos: quanto ao regime dos frutos e em resultado da interrupção do prazo da usucapião, por aplicação, por extensão de regime, das regras da prescrição (artºs 1270, 1271 e 323 e ss. do Código Civil e 481 a) do CPC).

 A distinção entre a posse de boa ou de má fé releva naturalmente para efeitos de usucapião. Não – insiste-se - com o significado de que só uma posse de boa fé é susceptível de facultar a usucapião, mas no sentido de exigência, no tocante à posse de má fé, de um prazo mais largo para possibilitar ao possuidor a invocação dessa usucapião (artº 1296 do Código Civil).

A conservação da posse – e, portanto, a sua continuidade – é dada pelo exercício efectivo dos poderes correspondentes ao direito que marca a existência e a duração da posse. Todavia, para que a posse se mantenha não é necessária a continuidade do seu exercício, sendo suficiente que uma vez principiada a actuação correspondente ao exercício haja a possibilidade de a continuar (artº 1257 nº 1 do Código Civil). Isto explica, por exemplo, que se conserve a posse de uma servidão de passagem, embora se não passe, se não houver impedimento em que o possuidor atravesse o prédio vizinho. Da mesma maneira, para que se seja possuidor de um muro divisório não é necessário que, periódica e repetidamente se proceda à sua reparação ou arranjo: é suficiente, para reconhecer um corpus que se proceda às reparações exigidas, em cada momento, para que cumpra a sua função delimitadora, mantendo-se a posse desde, por exemplo, que não haja qualquer impedimento ou obstáculo à execução das reparações ou dos arranjos.

O exercício de poderes de facto não tem, pois, de ser contínuo, dado que não só admite a existência de intervalos regulares de harmonia com o ritmo normal de utilização do bem, como admite interrupções de contacto com a coisa provocadas por circunstâncias anormais transitoriamente impeditivas dele, desde que não imputáveis a acto humano intencionalmente ordenado para a constituição de um poder antagónico ou conflituante sobre essa mesma coisa.

Em qualquer caso, por posse contínua, deve ter-se a posse não interrompida, i.e., a posse relativamente à qual, por força da extensão de regime, se não verificou uma causa de interrupção da prescrição (artºs 323, 324 e 325 ex-vi artº 1292, 1ª parte, do Código Civil).

É claro que se se estiver perante actos de mera tolerância, não há posse mas mera detenção (artº 1253 b) do Código Civil). Todavia, a mera tolerância traduz-se numa passividade perante a actuação alheia, num suportar de actos, quiçá abusivos, para que se não deu autorização: não há mera tolerância quando, v.g. o proprietário tomou uma posição activa na constituição desse estado, entregando por exemplo, a coisa ao possuidor; neste caso, há um acto jurídico que vale juridicamente como causa da situação, por contraposição ao nada que é representado pela inércia, dado que essa actuação activa é incompatível com a posição passiva característica da inércia.

Como é sabido, a posse pode diferenciar-se em posse causal e posse formal, conforme o possuidor é, ou não, em simultâneo, titular do direito real em cujos termos se processa o exercício possessório. Note-se que a posse causal não uma decorrência necessária da titularidade do respectivo direito; exige-se sempre algo que acresça a essa titularidade – o controlo material da coisa ou, pelo menos, uma forma juridicamente equivalente. A posse causal nem sequer se presume e, por isso, deverá ser objecto de invocação e comprovação autónomas. Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que uma posse meramente formal – ou seja a posse desligada do direito real nos termos do qual é actuada – é uma posse boa para usucapião, desde que no caso concorram os demais requisitos apontados.

3.4. Poderes de controlo da Relação sobre a decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto.

A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância. Pela sua própria índole, a Relação tem competência para apreciar e conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto. O recurso de apelação é precisamente aquele que, segundo a sua natureza de recurso amplo, deveria ter eficácia e alcance para submeter à consideração da Relação toda a matéria da causa.

A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.

O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas.

Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem. É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento ou a sua transcrição (artº 685-B nºs 1 b), 2 e 4 e 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[15]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[16].

Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.

De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição. Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[17]. Existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[18]. Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.

A decisão da matéria de facto respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[19] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva. As dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.

Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada num audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[20].

Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros. Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.

O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.

Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos. Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso. Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[21].

Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[22].

Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[23].

As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta [24].

Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado. É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil). Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC). Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[25].
Constitui património comum dos operadores judiciários a extraordinária cautela com que deve ser manejada a prova testemunhal, dado o perigo da sua infidelidade, seja ela involuntária – v.g., por erro de percepção ou de retenção do facto – ou voluntária – por vício de parcialidade.
Dadas todas as possíveis causas de erro que actuam sobre a prova testemunhal, é natural uma atitude de desconfiança e desânimo por parte de quem se vê forçado a decidir sobre a base de semelhante prova e uma atitude de desconforto por banda de quem tem de controlar uma decisão assente numa prova a que se associa uma tão larga falibilidade. O desencanto é tanto mais lamentável quanto é certo que na prática dos tribunais a prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir.
Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado. De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a falsidade.
O depoimento, mesmo quando a testemunha não tem o propósito deliberado de mentir, contém quase sempre inexactidões mais ou menos graves. O quotidiano judiciário, dá-nos, realmente, este triste ensinamento: são excepcionais os depoimentos inteiramente exactos.
O depoimento é o resultado de dois factores: a percepção e a memória. Quanto mais perfeita for a percepção do facto e mais fiel a memória de quem observou – maior é a probabilidade de que a narração corresponda precisamente à verdade; mas é sabido que tanto a percepção como a memória estão sujeitas a numerosas causas de erro. Se o facto foi mal captado pela testemunha; se depois de captado a memória o não reteve, é claro que o depoimento, mesmo prestado com toda a espontaneidade – que é uma garantia de veracidade – não o representará com inteira exactidão. Mas se o juiz fechar a porta a todas as inexactidões dos depoimentos, frequentemente deixará a verdade – na rua.

 3.4.1. Reponderação da decisão da matéria de facto da 1ª instância.

Em absoluto remate: apesar da distância entre esta Relação e as provas e o modo como conheceu de algumas delas – através da audição do respectivo sonoro – há realmente razão para concluir que o Sr. Juiz de Direito, incorreu, na valoração das provas, num error in iudicando de alguns pontos de facto, por violação das regras da lógica e da experiência, e, portanto, para modificar, quanto a esses pontos – nos termos expostos – esse julgamento.

Simplesmente, essa modificação é insuficiente para julgar improcedente a acção e, correspondentemente para julgar procedente o recurso.

A sentença impugnada foi terminante na afirmação de que os recorrentes exerceram sobre o muro uma posse boa para usucapião – uma posse pública, pacífica, de boa fé durante mais de 20 anos – e que, portanto, adquiriram, por aquele título, constitutivamente, o direito real de propriedade sobre aquele bem imóvel.

Em face da matéria de facto, tal como se mostra reconformada em consequência da reponderação do julgamento correspondente, tem-se por certo que os recorrentes actuaram sobre o muro uma verdadeira posse e uma posse pública e adquirida pacificamente. É decerto uma posse não titulada que, por isso, se presume de má fé. Mas a matéria de facto mostra que os recorrentes procederam à ilisão dessa presunção, demonstrando a sua boa fé, que, de resto, só cessou com o acto da sua citação para a acção que correu anteriormente entre as mesmas partes (artº 481 a) do CPC).

O prazo mínimo exigível da usucapião é, por isso, de 15 anos, prazo que se interrompeu com a citação dos recorrentes para a acção anterior ou, caso essa citação não tenha ocorrido no prazo de cinco dias, posteriores a essa proposição, logo que decorreram esses mesmos cinco dias (artºs 1296 e 323 nºs 1 e 2, ex-vi artº 1292 do Código Civil). Embora o processo não documente nem a data exacta da proposição da acção anterior nem a data precisa em que os recorrentes foram citados para aquela acção, qualquer desses actos ocorreu necessariamente, em face do número do respectivo processo – 477/08 - no ano de 2008.

De harmonia com a decisão da matéria de facto – devidamente reconformada – a primeira actuação dos recorridos sobre o muro – a sua reconstrução – ocorreu há cerca de 10 anos, por referência à data da proposição da acção na qual foi proferida a sentença impugnada. É, portanto, irrecusável que à data da proposição desta acção o prazo da usucapião aplicável não se encontrava preenchido. Prazo que, de resto, no ano de 2008, pelas razões apontadas, já tinha sido objecto de interrupção, com a consequente inutilização de todo o tempo decorrido anteriormente e o reinício, a partir do acto interruptivo, de um novo prazo igual ao primitivo (artº 326 nºs 1 e 2 do CPC).

A esta luz, a alegação dos recorrentes de que a posse alegada pelos recorrentes não lhes faculta a aquisição do direito real de propriedade sobre o muro é inteiramente exacta: os recorridos não demonstraram, realmente, que a posse que actuaram sobre o muro tivesse realmente a duração exigida para a aquisição do direito real, nos termos do qual era exercida, por usucapião.

Mas é indubitável, em face da matéria de facto apurada, que os recorrentes eram possuidores do muro.

E sendo possuidores do muro, actuando sobre ele uma posse actual inteiramente correspondente ao direito real de propriedade, presume-se que são titulares desse direito real máximo (artº 1268 nº 1 do Código Civil)[26].

Uma tal presunção não foi objecto de ilisão (artº 350 nº 2). Ergo, os recorridos são titulares do direito real de propriedade sobre o muro.

Os recorrentes, porém, prevenindo um tal resultado, impugnaram, subsidiariamente, o despacho que decidiu a reclamação deduziram contra a selecção da matéria de facto, incluída na base instrutória, com fundamento na deficiência dessa selecção, e arguiram, também subsidiariamente, com fundamento na omissão de pronúncia, a nulidade da sentença final.

No ver dos recorrentes, de um aspecto, não foi seleccionado para a base da prova todo um conjunto de alegações suas relevantes para a decisão da causa, e, de outro, a sentença final da causa omitiu pronúncia sobre a questão da existência ou inexistência de um direito de propriedade pleno e exclusivo dos recorrentes sobre o muro.

3.5. Erro sobre o objecto da prova.

O error in judicando da matéria de facto pode, realmente, radicar numa causa diversa do erro na apreciação da prova: o erro na selecção do objecto dessa prova.

Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância não respeita à violação dos critérios de apreciação da prova – mas à infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto. Não se trata, portanto, de controlar a correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto – mas a exactidão da operação de selecção dessa matéria.

A selecção da matéria de facto desdobra-se em duas operações diversas: a primeira é a escolha, a partir do mole de factos articulados pelas partes, dos factos relevantes, i.e., dos factos que correspondem a todos os possíveis enquadramentos jurídicos da causa (artº 511 nº 1 do CPC); a segunda é a separação, no conjunto factos julgados relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, daqueles que devem considerar-se assentes e dos que se mostram controvertidos, i.e., dos que devem constituir objecto da prova e, como tal, devem figurar na base instrutória (artºs 508-A nº 1 e 511 nº 1 do CPC).

Esta selecção deve incidir sobre todos os factos que sejam relevantes segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção. Assim, qualquer facto não deve deixar de ser seleccionado, ainda que ele só possa ser relevante se, em relação a uma questão controversa na doutrina ou na jurisprudência, o tribunal vier a adoptar um determinado entendimento ou a preferir uma certa solução: ao juiz da causa não cabe, no momento da selecção dos factos relevantes, antecipar qualquer solução jurídica e, menos ainda, excluir da escolha os factos que não forem relevantes segundo esse enquadramento.

A decisão de selecção da matéria de facto pode encontrar-se ferida dos vícios da deficiência, excesso ou da obscuridade (artº 511 nº 2 do CPC).

Aquele despacho é deficiente quando omite factos relevantes para a decisão da causa, i.e., facto articulado controvertido pertinente à causa e indispensável para a resolver; sofre do vício oposto, i.e., do excesso, se versa sobre factos não articulados ou sobre factos alegados mas que não pertencem à categoria dos factos controvertidos; padece do defeito da obscuridade, quando se encontra redigido em termos tais, que suscita dúvida legítima sobre o verdadeiro sentido ou alcance dos pontos de facto objecto de selecção ou quando de todo em todo não se apreende o seu sentido ou aqueles se prestam a interpretações diferentes.

A cada um destes vícios corresponde um simétrico fundamento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, que é decidida por despacho. Mas o despacho que recai sobre essa reclamação não é autonomamente recorrível, só podendo ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC).

Ao despacho que decida a reclamação contra a matéria de facto não se associa, portanto, o efeito de caso julgado, que torne indiscutível, a exactidão do procedimento quer da escolha dos factos relevantes quer da sua repartição entre os que devem desde logo considerar-se assentes e os que devem reputar-se controvertidos.

Todavia, a impugnação do erro na selecção do objecto da prova não está sequer na dependência da dedução de reclamação contra o despacho correspondente, desde que qualquer dos vícios dessa selecção se repercuta no julgamento da matéria de facto, por se manterem no momento desse julgamento, seja pelo singular seja pelo tribunal colectivo.

A selecção da matéria de facto tenha ou não sido impugnada através de reclamação, não transita em julgado e, portanto, não impede o exercício, mesmo oficiosamente, pela Relação do poder de controlo da correcção do procedimento correspondente.

Esta patologia da decisão da matéria de facto, proveniente de erro na selecção da matéria de facto, pode dar lugar à alteração, pela Relação, daquela decisão ou à anulação mesmo do julgamento correspondente. No primeiro caso a apelação é julgada de harmonia com o modelo de substituição; no segundo, o julgamento desse recurso segue, nitidamente, o sistema de cassação.

Sempre que considere deficiente obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto ou quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto – por se ter omitido o julgamento de um facto relevante, designadamente por não constar da base instrutória – a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC)[27].

O julgamento do recurso de harmonia com o modelo de cassação justifica-se pelo facto de a decisão da matéria de facto se encontrar ferida de um erro de julgamento, mas de este erro não resultar de um erro na apreciação da prova - mas de um erro sobre o objecto dessa prova.

Este viaticum habilita, com suficiência, à apreciação deste fundamento da impugnação.

Como se notou já, os recorridos invocaram como causa petendi do pedido de declaração da sua titularidade do direito real de propriedade sobre o muro uma posse - e uma posse boa para usucapião. Observou-se já também, por um lado, que a prova dos factos integrantes dessa causa de pedir vulnerava os apelados, e, por outro, que, por força da diversa natureza dos prédios limítrofes, não é aplicável, ao caso, a presunção de compropriedade nem a presunção inversa de propriedade exclusiva do muro a favor de um dos proprietários confinantes.

Nestas condições, os únicos factos relevantes para a decisão da causa, segundo o único enquadramento jurídico possível do objecto da acção – a titularidade pelos recorridos do direito real de propriedade sobre o muro – são os factos principais alegados pelos apelados como causa de pedir da declaração dessa titularidade.

Segundo os apelantes, os factos que alegaram – e que não foram objecto de selecção para a base da prova – são extintivos/modificativos do direito real alegado pelos recorrentes. Mas não.

A defesa por excepção peremptória consiste na invocação de factos que servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, importam a improcedência, total ou parcial do pedido (artºs 487 nº 2, 2ª parte, e 493 nº 3 do CPC); a defesa por impugnação – directa ou de facto – consiste, por sua vez, na contradição pelo réu dos factos articulados pelo autor (artº 487 nº 2, 1ª parte, do CPC).

Assim, se o réu alega que o autor não é titular do direito real alegado, verifica-se uma impugnação directa e não uma defesa por excepção peremptória. É claro que o se o autor não demonstrar a causa de pedir de que emerge o direito real alegado – a acção improcede. Mas essa improcedência é simples consequência do não cumprimento do ónus da prova pela parte onerada – e não o resultado da prova, pelo demandado, de um qualquer facto extintivo do direito alegado.

Não se verifica, pois, o erro sobre o objecto da prova, acusado pelos recorrentes e, por isso, não há motivo para actuar os apontados poderes de cassação desta Relação.

Resta, por isso, o último fundamento da impugnação: a nulidade substancial da decisão final impugnada.

3.6. Nulidade substancial da sentença final.

Segundo os apelantes, este valor negativo da sentença impugnada tem por causa próxima uma omissão de pronúncia no tocante à questão da inexistência ou inexistência de um direito real de propriedade, pleno e exclusivo, dos autores sobre o muro. Mas esta arguição é exasperadamente infundada.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro está, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra (artº 660 nº 2 do CPC). A sentença deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e os pedidos formulados por elas, com excepção apenas dos objectos ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se mostre inútil pelo enquadramento jurídico ou pela resposta encontrada para outras questões. Quando isso não suceda, i.e., quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia, a decisão é nula (artº 668 nº 1 d), 1ª parte, do CPC).

No caso, a questão que foi submetida à atenção da sentença final era esta: a de saber se os recorridos eram ou não titulares do direito real de propriedade sobre o muro. E a sentença, depois de analisar os factos fornecidos pelo processo e o cumprimento do ónus da prova, concluiu que, realmente, estavam adquiridos para o processo os factos que conduziam à aplicação das normas jurídicas invocadas pelos autores e consequentemente, proferiu uma decisão favorável àquela parte, declarando, clara e terminantemente, que os apelados eram titulares do direito real de propriedade alegado sobre o muro.

Dizer-se, em face disto, que a sentença omitiu pronúncia sobre a titularidade, pelos recorridos, do direito de propriedade sobre o muro é, de todo, desacertado.

Apesar da modificação parcial da decisão da matéria de facto, recurso não tem, pois, bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente.

E, expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese que:

a) Sempre que a decisão impugnada comporte vários fundamentos, a improcedência do recurso pode resultar da modificação, pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão;

b) A presunção de comunhão de muros divisórios, bem como a presunção inversa de propriedade exclusiva desses muros a favor de um dos proprietários confinantes só é aplicável aos muros que dividam prédios da mesma espécie ou afins;

c) O autor da acção – confessória – na qual seja pedida a declaração da titularidade do direito real de propriedade está onerado com a prova diabólica, excepto se beneficiar de uma presunção legal, como, por exemplo, a derivada da posse;

d) O error in iudicando da matéria de facto pode decorrer de um erro na valoração da prova ou simplesmente de um erro sobre o objecto dessa prova;

e) O réu negue a existência do direito real alegado pelo autor, defende-se, não por excepção peremptória, mas por impugnação directa.

Os recorrentes deverão suportar, porque sucumbem no recurso, as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a complexidade do tratamento processual do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-C que integra o RCP (artºs 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro e 6 nº 5 do RCP).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-C, integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              José Avelino Gonçalves   

                                                                                                              Regina Rosa


[1] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil III, AAFDL, Lisboa, 1980, págs. 281 e 282.
[2] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª edição, Coimbra, 1983, pág. 367 e Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 34, pág. 43, Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1999, pág. 130 e Ac. da RC de 26.04.94, CJ, XIX, II, 34.
[3] Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, pág. 167, e António Carvalho Martins, (Direitos Reais), Paredes e Muros de Meação, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 43, nota 36, e Acs. do STJ de 10.07.08 e da RP de 04.04.13, www.dgsi.pt.

[4] Assim como se não aplica a muros de apoio, i.e., a muros que, em vez de exercerem uma função divisória, têm por finalidade conspícua evitar a desmoronamentos ou desprendimentos de terras de prédios situados numa cota superior àqueles com os quais confina.

[5] É, porém, discutível se se trata de uma acção real: em sentido afirmativo, José Alberto C. Vieira, cit. pág. 503; contra Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, pág. 280.
[6] Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra, 2007, pág. 280 e José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra, 2008, pág. 502.
[7] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1983, pág. 119.
[8] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1993, pág.
[9] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, cit., págs. 386 a 392. Para um entendimento subjectivista da posse cfr. Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1977, pág. 68, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, págs. 5 e 9, Mota Pinto, Direitos Reais, Coimbra, 1986, pág. 189; Defendendo uma concepção objectivista da posse, Oliveira Ascensão, num segundo momento, cit., pág. 92, Carvalho Fernandes, Direitos Reais, Quid Iuris, Lisboa, 1997 pág. 266 e Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, CDF, CEF, Lisboa, 1996, pág. 692, nota (6). Menezes Cordeiro, na obra citada, começou por defender uma orientação objectivista, concluindo, posteriormente, pela natureza mista do sistema português: A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Almedina Coimbra, 1999, págs. 63 a 65. A jurisprudência pronuncia-se, esmagadoramente, pela consagração, no Código Civil, da doutrina subjectivista. O Ac. da RL de 18.7.97, CJ XXII, IV, 270, acolheu, contudo, a orientação objectivista. Na prática, a diferença entre e outra orientação, não é tão marcada com se suporia á primeira vista, dado que as concepções subjectivistas apresentam, não raro, o animus como uma mera decorrência do corpus: cfr., v.g., Acs. do STJ de 12.02.87, 18.02.93, 26.04.84 e da RE de 23.05.96, BMJ nºs 364, pág. 855, e 424, pág. 678, e CJ, STJ, II, II, pág. 62, e CJ, XXI, III, pág. 268, respectivamente.
[10] Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 14.05.96, DR, II Série, nº 144/96, de 24.06.96.
[11]  Acs. do STJ 06.05.93, CJ, STJ, I, II, pág. 96, e de 12.03.87, BMJ 364/855.
[12] Menezes Cordeiro, A Posse, cit., pág. 67, nota 122, e pág. 68, nota 124.
[13] A ignorância do possuidor de lesar direitos de outrem não é, na verdade, um facto concreto – mas uma conclusão que se extrai de outros factos. Cfr. Ac. do STJ de 04.11.93, CJ, STJ, II, pág. 89.
[14] António Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., cit., págs. 95 e 96.
[15] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[16] Ac. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[17] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[18] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[19] Ac. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[20] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[21] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[22] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[23] Antunes Varela, RLJ, Ano 116, pág. 330.
[24] O standart da prova deve, portanto, ser o da probabilidade – lógica - prevalecente: entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se verdadeira a que conte com um grau de confirmação relativamente superior no tocante às demais; deve fazer-se prevalecer a hipótese much-more-likely-than not (mais provável que não), i.e., a hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
[25] Ac. da RC de 18.05.94, BMJ nº 437, pág. 598.
[26] Acs. da RL de 30.05.89, CJ, XIV, III, pág. 134 e de 10.11.93, CJ, XVII, V, pág. 5 e da RP de 13.05.96, CJ, XXI, III, pág. 196.
[27] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.