Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA PILAR DE OLIVEIRA | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGÊNCIA ACTO MÉDICO IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO | ||
Data do Acordão: | 11/19/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (2.º JUÍZO CRIMINAL) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 148.º, N.ºS 1 E 3, E 144.º, ALÍNEAS A) E C), DO CP | ||
Sumário: | I - Para a imputação objectiva do resultado ao agente, é bastante concluir que, com a acção omitida, se teria diminuído o risco de lesão, de ocorrência do resultado danoso. II - Tendo o ofendido sofrido perfuração de um dos olhos por corpo estranho que continha o risco de perda desse órgão, o que veio a ocorrer, e sendo esse risco menor se, no momento em que aquele foi observado pelo arguido, médico oftalmologista, este tivesse constatado a existência do referido elemento exógeno, realizando exame adequado e, se necessário, intervenção cirúrgica imediata, estão presentes os pressupostos indispensáveis para a imputação do resultado à omissão do dever de cuidado que era idóneo a diminuir o risco da ocorrência do resultado verificado. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório
O ofendido, C..., deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia global de €70,000,00 (setenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida da quantia a título de danos patrimoniais futuros ou lucros cessantes que viesse a reclamar depois de conhecida a IPP que lhe seja atribuída em resultado do exame médico-legal, bem como juros, à taxa legal, desde a data da prática dos factos até efectivo pagamento. Mais peticionou a condenação do arguido no pagamento de todas as despesas que vierem a ser suportadas pelas instituições de saúde que lhe prestaram assistência médica ou quaisquer outros serviços em consequência das lesões sofridas. Posteriormente ampliou o pedido, requerendo a condenação do requerido no pagamento da quantia de €120.000,00 a título de lucros cessantes – danos patrimoniais futuros. (ampliação admitida).
A Companhia de Seguros B..., S.A. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia global de €34.478,34, posteriormente ampliado para €42.482,72. Posteriormente ampliou o pedido para €42.482,72. (ampliação admitida)
O arguido A... requereu a intervenção da Companhia de Seguros D..., Companhia de Seguros E...a, S.A. em virtude de ter celebrado com aquela um contrato de seguro através do qual transferiu a sua responsabilidade civil profissional. Foi admitida a intervenção.
A Companhia de Seguros B..., S.A. e C... requereram a intervenção principal provocada do Hospital de Y..., E.P.E, actualmente Centro Hospitalar AA..., E.P.E.. Foi admitida a intervenção.
Realizada a audiência de julgamento, em 27 de Fevereiro de 2013 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: Em face do exposto, decide-se: a) Condenar o arguido A... como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punível pelo artigo 148º n.º 1 e n.º 3 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros); b) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pelo demandante C... e condenar o demandado Centro Hospitalar AA..., E.P.E. no pagamento àquele: · Da quantia de € 50,000,00 (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a sentença até efectivo e integral pagamento; · Da quantia de € 88.305,78 (oitenta e oito mil trezentos e cinco euros e setenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais, pela incapacidade para o trabalho, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a sentença até efectivo e integral pagamento; · Absolvendo-o do demais peticionado; c) Julgar o arguido/demandado A... e a Companhia de Seguros D..., Companhia de Seguros, S.A. partes ilegítimas para intervir nos pedidos de indemnização civil formulados e, em consequência, absolvê-los da instância; d) Julgar intempestivo o pedido de indemnização civil formulado pela Companhia de Seguros B..., S.A e, em consequência, rejeitá-lo; e) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 2 UC o valor da taxa de justiça devida, acrescida de 1 %, por força do disposto no artigo 13º n.º 3, do DL n.º 423/91, de 30 de Outubro e fixando-se ½ da taxa de justiça devida a título de procuradoria e nos encargos que a sua conduta deu causa (artigos 74º, 82º n.º 1, 85º n.º 1 alínea b), 89º n.º 1 alínea b) e g) e 95º n.º 1 e n.º 2 do C.C.J, 513º n.º 1 e n.º 2, 514º n.º 1 do C.P.P.).
Inconformado, recorreu o arguido A.... Na sequência desse recurso foi proferido acórdão nesta Relação, em 27 de Novembro de 2013, que declarou nula a sentença recorrida por valoração de meio de prova proibido, ordenando a prolação de nova sentença pela Mmª Juiz que proferiu a primeira, expurgada de tal vício (valoração do depoimento da testemunha I...).
Em 14 de Fevereiro de 2014 foi proferida na 1ª Instância nova sentença que reproduz o dispositivo anterior.
Inconformado recorreu o arguido A..., condensando a respectiva motivação as seguintes conclusões: 1. A douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, é, salvaguardando o respeito devido, nula, na medida em que não cumpre satisfatoriamente a injunção contida no artigo 374º, 2, do CPP, designadamente no segmento em que tal inciso legal impõe que a decisão proceda ao exame crítico da prova. 2. Na verdade, como resulta dos autos, a douta sentença de que se recorre emerge como "remake" de outra anteriormente exarada pela mesma Mma. Juíza. 3. Todavia, no que tange a tal primeira decisão, foi julgado em Acórdão proferido por esta Relação que a mesma usava meio de prova cuja cognoscibilidade lhe era vedada por consubstanciar "depoimento indirecto", nos termos do artigo 129° do CPP, e ordenada a feitura de nova decisão, expurgada desse depoimento. 4. Todavia, a sentença agora em recurso é em tudo idêntica à anterior - dela constando ainda o resumo do depoimento julgado indirecto - só acrescentando que tal depoimento não foi valorado porque considerado ilegal. 5. Ora, assim sendo, fica sem se perceber, paradigmaticamente, em que medida os diferentes meios probatórios percutiram o espírito da Mma. Juíza ... 6. Com efeito, não é possível ultrapassar uma evidente aporia: se o referido depoimento era inútil para a formação da convicção por que razão foi o mesmo usado na primeira decisão? 7. E se, afinal, o mesmo contribuiu para a formação da convicção da julgadora, em que elementos remanescentes se colheu a lacuna que a sua necessária desconsideração imperativamente provocou? 8. Ou seja, o esforço decisório não esclarece como os meios probatórios - efectivamente - percutiram ( ou deixaram de percutir) o espírito da Julgadora ... 9. E em que medida se revelaram determinantes para a assunção factual efectuada. 10. Ora tal espécie de actuação é proscrita pela lei - nulidade do artigo 379°, 1, a) do CPP - e pela CRP - art. 205°/1. 11.Na verdade, ao bastar-se com alusão tabelar a que o meio de prova em causa não foi considerado e sem especificar e examinar criticamente a forma como a prova restante permitiu suprir a lacuna criada incorreu-se na nulidade plasmada na al. a) do n." 1 do artigo 379º do CP Penal.
Sem prescindir, 12. Também no segmento do julgamento de facto, a douta decisão não se mostra imune a um discurso crítico. 13.Assim, no que tange ao cumprimento do estatuído no artigo 412°, n.º 3 do CP Penal, consideram-se incorrectamente julgados os pontos de facto provados sob os números 4, 19, 20, 21. 27, 28, 29, 30, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 e 47, 14. Na verdade, no que respeita especificamente aos pontos 4 e 19, o Tribunal valorou integralmente a versão da consulta transmitida pelo demandante, 15. Omitindo que o arguido desenvolveu narrativa completamente distinta do mesmo episódio, unicamente vivenciado e presenciado por ambos. 16.Assim, o depoimento do ofendido surge também como ferido por incontornável aporia. 17. Na verdade, confrontado o ofendido com a queixa constante de fls. 2 - cuja leitura foi autorizada em julgamento - constata-se que ele aí apenas refere que estava a trabalhar e sentiu uma forte dor no olho. 18. Ou seja, na narração inicialmente efectuada pelo ofendido precisamente na peça que despoletou o processo penal em causa nada foi dito quanto ao facto de se martelar aço com aço e do material atingido se ter estilhaçado, com penetração ocular de parte do(s) estilhaço(s). 19. Ou, muito menos, se narrou que tal incidente foi, dessa forma, narrado ao recorrente. 20. Ora, confrontado com esse facto, o ofendido não deu qualquer explicação em audiência de discussão e julgamento, limitando-se a dizer que "Na altura, na altura quando fui fazer a queixa, quando me puseram a fazer, pronto, eu li mas pensei que isso batesse a mesma coisa, mas sei lá."; e a pergunta do signatário: Então a sua explicação para isto é que o Sr. efectivamente contou o mesmo que nos contou aqui e que terá sido o transcritor que omitiu e deixou de fora essa sua referência, respondeu "De certeza". (minuto 40, segundo 37, a minuto 41, segundo 35, do respectivo depoimento. 21. Ou seja, fica por esclarecer a razão para que a queixa apresente uma versão minimalista, comparada com aquela narrada na audiência de julgamento, 22. Contrariando, manifestamente, as regras da experiência comum que o funcionário receptor ousasse resumir, deturpando radicalmente, a queixa efectuada à singeleza com que a mesma vem expressa ... 23. Ora, a versão da queixa é coincidente com a narração feita pelo arguido na audiência de discussão e julgamento. 24. Na verdade, do depoimento do recorrente, sessão de 6 de Dezembro de 2012, ficheiro 201 212 061 023 30 1 929 45 6 5354.wma, das 10:23:31 a 11:31:24, com a duração de 1h.07.52 resulta que este narra versão radicalmente diferente da sustentada pelo lesado. 25. Na verdade, refere que o ofendido apenas lhe disse que apertava um objecto com um instrumento de metal, que este resvalou e lhe atingiu o olho, 26. Em momento algum admitindo que o ofendido lhe tivesse dito que martelava aço, que este se desfez e que teve a sensação de entrada de um estilhaço no olho! 27. Tal, de facto, ajusta-se à participação efectuada que apenas refere "trabalho" e sensação de "dor forte", sem qualquer menção a martelar e a aço desfeito ... 28. Neste conspecto, resulta incompreensível que se crisme a versão do arguido de inconvincente e convincente o do ofendido. 29. Mais a mais, quando o ofendido não logra explicitar a razão de duas versões dos mesmos factos por ele carreadas aos autos. 30. É certo que se esgrime que o arguido construiu tese favorável à sua defesa, mas, salvo o devido respeito, o argumento é reversível: 31. Também a tese do ofendido é favorável à pretensão indemnizatória que intentou ... 32. Mais a mais, a assunção factual aqui efectuada sacrifica - inexoravelmente - o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República portuguesa. 33. Desde logo porque uma decorrência desse matricial princípio, exactamente naquela que impõe que nenhum arguido está onerado com a obrigação de demonstrar a respectiva inocência. 34. Por outro lado, o princípio agora chamado a terreiro também se mostra desconsiderado numa sua outra indiscutível vertente; 35. A de princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo. 36. Postulado que impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos (apenas consubstanciada na versão do ofendido veementemente contrariada pelo recorrente) fosse valorada a favor da posição processual do arguido, 37. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente. 38. No que tange aos factos elencados a 20, 21, 27, 28, 29, 30, 38, 39,40,41,42, 43, 44, 45, 46 e 47- i. é, todos os que estabelecem um nexo de imputação objectivo entre a alegada conduta do recorrente e os danos sofridos pelo ofendido - estes contrariam a prova pericial existente nos autos. 39. Na verdade, de fls. 485 dos autos, resposta ao "quesito" 1. 2., (Se acaso o utente tem sido, desde logo no dia 22-06-2006 intervencionado, poder-se-ia ter evitado aquela consequência danosa para a sua visão) lê-se "Se o corpo estranho já existia no dia 22-06-2006, um atraso na sua detecção e remoção é susceptível de agravar o risco de complicações, nomeadamente infecciosas. No entanto, não é possível afirmar se uma intervenção precoce melhoraria significativamente o prognóstico final, já que este depende de muitos outros factores. Em geral, o prognóstico visual final em casos de corpos estranhos é pobre, assim como em cerca de 3 a 12% dos casos se observa uma perda do globo ocular, mesmo em casos de intervenções cirúrgicas precoces" . 40. E, a fls. 107, noutro laudo pericial efectuado por perito distinto, afirma-se "Quanto mais precoce e adequado for o tratamento, melhor será o resultado final. Apesar disso, podemos afirmar com base na literatura internacional que, em média, 3 a 12 por cento dos casos acabam por ficar sem o globo ocular, 3 a 6 por cento ficam cegos, 16 a 23 por cento ficam sem visão útil, e apenas 60 a 70 por cento ficam com visão superior a meio décimo". 41. Ou seja, os Senhores Peritos, nos relatórios que efectuaram, são extremamente cuidadosos na forma como se expressam, dizendo da dúvida insanável que os assalta quando chamados a pronunciarem-se sobre se a detecção imediata e subsequente intervenção médica sobre o corpo estranho evitaria as consequências danosas sofridas pelo ofendido. 42. Na verdade referem que isso depende múltiplos factores e que o mesmo é pobre, sendo certo que o Sr. Perito que elabora o relatório de fls. 107 a 108 refere que só em 60 a 70 dos casos o prognóstico é de visão superior a meio décimo, mesmo com detecção e intervenção precoces. 43. E, é certo, em esclarecimentos prestados em audiência de discussão e julgamento o Sr. Perito Prof. Doutor U... enriqueceu essas primitivas abordagens. 44. Na realidade, entre o minuto 34.50 e o minuto 36.43, o Sr. Perito, a perguntas feitas, afirma: Pergunta: Sr. professor, a primeira pergunta que eu lhe queria fazer, se o Sr. professor me poder efectivamente responder era a seguinte: o que é que pode determinar que uma intervenção atempada e adequada, não obste à enucleação em 88 a 97% dos casos? Ao contrário, em 3 a 12% dos casos, peço desculpa ... Perito: A infecção nem sempre acontece. Pergunta: Portanto, ou seja, efectivamente o que pode causar efectivamente a enucleação será a endoftalmite advinda ... Resposta: Exactamente. Pergunta: ... da infecção do metal. Resposta: Exacto ( ... ) Do corpo estranho. ( .... ) Que introduz bactérias dentro do olho. ( ... ) Mas isso, isso, não acontece em todos os casos. Há casos que não terminam em endoftalmite. Pergunta: Certo, certo, será, efectivamente, só 3 a 12% dos casos? Resposta: Exacto. ( ... ) E depende até do tamanho do corpo estranho. Quanto mais pequeno for menos probabilidade de infecção. Pergunta: Sr. professor, examinou este corpo estranho concretamente, para poder dizer-nos o tamanho, a probabilidade do (imperceptível) local afectado. Resposta: Não. ( ... ). Não Sr. Dr." 45. Ou seja, o Senhor Perito afirma que quanto maior for o corpo estranho, maior será a probabilidade de se contrair endoftalmite que potencie um prognóstico de cegueira e enucleação. 46. Diz, ainda, que se o corpo for portador de bactérias maior será a probabilidade de infecção, subsequente endoftalmite que degenere em cegueira e perda do globo ocular. 47. Reconhece que não examinou o corpo estranho que entrou no olho do ofendido, desconhecendo o seu tamanho e era bacteriologicamente puro ou impuro, 48. Ou seja, o Senhor Perito não sabe se o aço estava contaminado e se estava já infectado (ou se nele concorriam ambas as características indesejáveis), pelo que nunca poderia afirmar se neste caso as lesões se verificariam ou não, independentemente da imediata detecção e intervenção! 49. Não obstante, a Mma. Juíza dá como provados os factos agora impugnados, esquecendo o estado de dúvida insanável do Senhor Perito. 50. Assim, deve frisar-se, que a actuação descrita é credora de crítica, na medida em que valora erradamente os dados fluentes dos contributos periciais. 51. Sendo certo que tal valoração imperfeita em que se incorreu irrompe, manifestamente, "contra legem". 52. Efectivamente o artigo 163° do CP Penal subtrai a prova pericial à livre convicção do julgador, 53. Sendo certo que o nº 2 do mencionado inciso normativo taxa um especial dever de fundamentação quando, malgré tout, existir essa referida divergência. 54. Ora, face ao teor da douta peça em recurso, indubitável é a constatação de que a divergência existiu não sendo detectável qualquer exercício de fundamentação de tal dissídio, especial ou normal. 55. Ora as mencionadas alterações factuais - impostas face ao que supra se adiantou - não deixarão de reconhecer importantes refracções na decisão. 56. Com efeito, deixará de existir razão para a emergência da condenação do arguido como autor do crime previsto e punível pelo artigo 148, 1 e 3, do CP. 57. Na verdade, deixará de se verificar quer a "omissão do cuidado devido", quer qualquer vínculo entre a putativa omissão e o resultado danoso. 58. Com efeito, a construção normativa de tal preceito permite afirmar que para a respectiva verificação típica é necessário intercorrer um nexo de imputação objectiva entre a conduta e o resultado - necessariamente a lesão (aqui "grave)" na integridade física de uma pessoa. 59. Ora, não obstante a Lei - artigo 10°, 1 do CP - tomar partido expresso pela ideia normativa da "causalidade adequada", a mesma nem sempre se revela susceptível de responder a todas as problemáticas suscitadas. 60. Na verdade, tal teoria coloca aporias insupríveis paradigmaticamente aquelas emergentes da necessidade do nexo de adequação se ter de aferir segundo um juízo de prognose póstuma e já não por um singelo juízo a posteriori. 61. Com efeito, adoptando esse prisma, atendendo à verificação inolvidável do resultado, nunca seria afastável a sua "previsibilidade" . 62. Por isso, a dogmática nacional - especificamente FIGUEIREDO DIAS - tem sugerido a teoria da conexão do risco. 63. Isto é, o nexo de imputação será passível de afirmação quando a conduta negligente tenha criado ou aumentado um risco proibido para o bem protegido e tal risco se materialize no resultado tipicamente proibido. 64. Ora, a factualidade em causa, não permite a assunção dessa imputação. 65. Efectivamente e desde logo - e independentemente do resultado do recurso estritamente factual - o relatório pericial elaborado pelo Distinto Professor chamado ao exercício de tais funções refere, assertivamente, que independentemente da intervenção médica devida e tempestiva em 3% a 12% dos casos de penetração de corpo intra-ocular de aço o resultado final é de cegueira e enucleação - exactamente o que ocorreu com o infeliz lesado. 66. Por isso, resulta incompreensível que a sentença tenha concluído que, in casu, a conduta do arguido tenha repercutido na saúde do paciente. 67. Com efeito, tal conclusão erige-se em aberta e flagrante colisão com o princípio in dubio pro reo, decorrente do artigo 32/2 da CRP, que implica que toda a dúvida seja decidida em favor do arguido. 68. Face ao exposto - designadamente ao que flui do relato pericial tal dúvida era insanável, atento o facto de ser impossível de afastar a hipótese do acidente que vitimou o órgão sensorial do ofendido ser irreversível. 69. De resto, os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em audiência, quando aludiu a que a "impureza" do objecto penetrante associado ao tamanho do mesmo seriam factores que potenciariam um prognóstico desfavorável, só adensam a dúvida para a tomar insustentável. 70. É que desconhecem-se - absolutamente - as características do objecto penetrante, nomeadamente a dimensão relativa dele e se estaria, ou não, infectado ... 71. Ou seja, a condenação do arguido/recorrente erige-se sobre a ignorância de questões de fundamental relevância para saber se a respectiva conduta aumentou o risco proibido para o bem jurídico protegido e se se materializou na lesão que o mesmo sofreu, 72 . Desprezando, no iter percorrido, o princípio do in dubio pro reo ... 73. E, mesmo que assim se não entendesse - hipótese que só uma excessiva cautela de patrocínio manda colocar - sempre a Mma. Juiz a quo deveria, ao abrigo do artigo 340/1 do CP Penal, ter envidado a actividade investigatória que lhe permitisse suprir a dúvida, maxime procurando fazer examinar o corpo estranho intra-ocular. 74. Ao não ter agido dessa forma está indubitavelmente ferido o aludido artigo 340/1 o CP Penal. 75. A douta sentença em recurso, no segmento da determinação da pena, ainda e sempre salvaguardando o respeito devido, viola o disposto nos art.s 148°, 1 e 3 e 70° do CP e 18°/2 da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, 76.Estabelecendo o primeiro dos normativos citados a punição, para quem incorrer na factualidade típica contida em tal preceito, de multa até 240 dias, a Mma. Juíza optou pela condenação na pena de 200 dias de multa - isto é, numa moldura equivalente a cinco sextos do limite máximo. 77. Ora, in casu, atento o tipo de crime assacado ao recorrente, bem como as novas concepções das prevenções geral e especial, está-se em crer que pena sensivelmente mais reduzida satisfaria a teleologia punitiva colocada pela hipótese concreta. De facto, 78. Tal condenação, e a valoração normativa que lhe está subjacente, colide com o disposto no n.º 1 do artigo 71 ° do CP, que por isso resulta violado. 79. A pena aplicada emerge, também, desfasada do preceito normativo constante do artigo 40° do Código Penal. 80. Na verdade, a materialidade contida nos mencionados incisos legais levará a que a pena de multa se quede por um patamar inferior aos dos 200 dias fixados, 81. Dado que a culpa é diminuta e não se colocam razões preventivas - gerais ou especiais - com particular densidade. 82. Até porque, além do mais, a al. d) do artigo 72, 2, ainda do CP, refere que poderá ser motivo de atenuação especial da pena, o facto de ter decorrido muito tempo sobre a prática dos factos e de o agente ter mantido boa conduta, 83. Ora, o alegado crime ocorreu em Junho de 2006 e os pontos de facto 55 e 56 traduzem a espécie de conduta que mantinha e manteve antes e depois do episódio em causa ... 84. Ou seja, mesmo que tal não determine a atenuação da pena evidentemente facultativa - erige-se, ao menos, como um poderoso índice legal revelador do carácter avesso à Lei da medida fixada. Nestes termos, na procedência do presente recurso, deve ser proferido Acórdão que revogue a douta sentença recorrida substituindo-a por outra que acolha a materialidade fluente das conclusões elaboradas, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo que a decisão sob recurso deve manter-se na totalidade. O Centro Hospitalar AA... respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido de que deve proceder, com a sua consequente absolvição do peticionado civilmente.
O recurso foi objecto de despacho de admissão. Nesta Relação, efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada audiência, cumprindo apreciar e decidir. *** II. Fundamentos da sentença recorrida A sentença recorrida contém os seguintes fundamentos de facto: Para além dos factos conclusivos e em contradição com os que resultaram provados, não se provou qualquer outro facto sujeito a julgamento, nomeadamente, não se provou que: 1. Nas circunstâncias de lugar e tempo referidas em 2.1.1. o olho direito do C... começou de imediato a sangrar; 2. O facto de se referir na ficha de triagem “traumatismo ocular penetrante” deve-se a que o sistema informático existente no serviço de urgência do Hospital de Y... de Viseu seleccionar automaticamente essa opção para todos e quaisquer casos de corpos estranhos; 3. O simples alojamento de uma pestana no olho é considerado pelo sistema informático como “traumatismo ocular penetrante”. Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica de toda a prova produzida em julgamento designadamente a que se expressou e na falta de consistência da mesma sobre a factualidade em causa, em resultado, nomeadamente, de não terem sido carreados outros elementos probatórios credíveis e com força bastante para os sustentar. *** III. Apreciação do Recurso A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal). Mas o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes: - Se a sentença recorrida padece de nulidade por não observar o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal; - Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser alterada no sentido pugnado pelo recorrente com a sua consequente absolvição, questão que se desdobra na análise das seguintes subquestões: 1. Violação do princípio da presunção de inocência e do seu correlato in dubio pro reo porque a prova produzida não permite que se conclua com certeza pela violação de dever de cuidado; 2. Violação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal por ter sido desconsiderado o resultado da prova pericial sem fundamentação da divergência; 3. Impossibilidade de imputação do resultado danoso por inverificação do pressuposto de a conduta negligente ter criado ou aumentado um risco proibido para o bem protegido; 4. Violação do princípio in dubio pro reo em razão da imputação do resultado verificado; 5. Violação do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal por não se ter tentado suprir a dúvida sobre se a conduta negligente criou ou aumentou risco proibido; - Se a pena em que o arguido foi condenado deve ser reduzida.
Apreciando: Começa o recorrente por alegar que a sentença recorrida é nula na medida em que não cumpre satisfatoriamente o 374º, 2 do CPP, designadamente no segmento em que tal inciso legal impõe que a decisão proceda ao exame crítico da prova. Na verdade, a sentença de que se recorre emerge como "remake" de outra anteriormente exarada que usou meio de prova proibido a expurgar. Todavia, a sentença agora em recurso é em tudo idêntica à anterior - dela constando ainda o resumo do depoimento julgado indirecto - só acrescentando que tal depoimento não foi valorado porque considerado ilegal. Ora, assim sendo, fica sem se perceber, em que medida os diferentes meios probatórios percutiram o espírito da Mma. Juíza não sendo possível ultrapassar uma evidente aporia: se o referido depoimento era inútil para a formação da convicção por que razão foi o mesmo usado na primeira decisão? E se, afinal, o mesmo contribuiu para a formação da convicção da julgadora, em que elementos remanescentes se colheu a lacuna que a sua necessária desconsideração imperativamente provocou? Ou seja, o esforço decisório não esclarece como os meios probatórios - efectivamente - percutiram ( ou deixaram de percutir) o espírito da Julgadora e em que medida se revelaram determinantes para a assunção factual efectuada. Tal espécie de actuação é proscrita pela lei - nulidade do artigo 379°, 1, a) do CPP - e pela CRP - art. 205°/1. Vejamos. Preceitua o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que versa sobre os requisitos da sentença que «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». O artigo 379º, nº 1, alínea a) comina de nula a sentença que não contiver os requisitos acima citados. A razão de ser da exigência de fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve a garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso. Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso. Para essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso, não se exige que se proceda a uma análise crítica exaustiva dos meios de prova e, nomeadamente, com apelo sistemático ao conteúdo concreto da prova, esta vertente apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada, não porque o fosse mas porque indemonstrada a sua justificação. Sobre as exigências de fundamentação e mormente a irredutível importância do exame crítico da prova pode ler-se no Acórdão do STJ de 21.3.2007, proferido no processo 07P024, publicado em www.dgsi.pt: A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão. As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289). A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32). A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo. (…) A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção. O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00). No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998). A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. Ora lendo a decisão recorrida, verificamos que ela contém todos os elementos necessários e que permitirão a este tribunal conhecer do recurso da matéria de facto porque dela constam os meios probatórios que serviram para formar a sua convicção bem como os motivos que levaram o tribunal a considerar ou a desconsiderar os meios de prova produzidos. Compreende-se que o recorrente se insurja pela simples repetição da sentença anterior, apenas com a desconsideração do depoimento indirecto proibido, mas nada impedia que o Tribunal a quo refizesse a sua decisão e considerasse que os restantes meios de prova eram suficientes para fundamentar a sua convicção positiva. Aliás, tudo se passa como se não existisse decisão anterior e os termos do recurso interposto são bem significativos de que o recorrente compreendeu o sentido da decisão; a sua razão de ser e, por isso, a consegue rebater tentando justamente desconstruir os seus fundamentos essenciais, porque os compreendeu. Também este Tribunal de recurso não terá qualquer dificuldade em reapreciar a prova produzida e em avaliar a “bondade” da convicção alcançada justamente porque se encontra expressa de forma perceptível. O facto de ter existido sentença anterior não obrigava o tribunal a justificação adicional no sentido de explicar porque formou agora a mesma convicção sem a valoração do meio de prova proibido, mas apenas e tão só as razões da sua convicção. Essas encontram-se expressas de forma suficiente. Não reconhecemos por consequência a existência da apontada nulidade.
O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, entendendo que se encontram mal julgados os factos provados sob os números 4, 19, 20, 21, 27, 28, 29, 30, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 e 47 da sentença recorrida, ou seja, todos aqueles que permitiram a sua condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física na forma negligente.
No que concerne aos factos provados sob os números 4 e 19 o seu inconformismo e discordância assenta na seguinte ordem de razões: - O Tribunal valorou integralmente a versão da consulta transmitida pelo demandante, omitindo que o arguido desenvolveu narrativa completamente distinta do mesmo episódio, unicamente vivenciado e presenciado por ambos; - O ofendido, confrontado com a queixa, onde apenas refere que estava a trabalhar e sentiu uma forte dor no olho, não deu explicação convincente, ficando por esclarecer a razão para que a queixa apresente uma versão minimalista, comparada com aquela narrada na audiência de julgamento; - A versão da queixa é coincidente com a narração feita pelo arguido na audiência de discussão e julgamento no sentido de que o ofendido apenas lhe disse que apertava um objecto com um instrumento de metal, que este resvalou e lhe atingiu o olho em momento algum admitindo que o ofendido lhe tivesse dito que martelava aço, que este se desfez e que teve a sensação de entrada de um estilhaço no olho; - Resulta incompreensível que se crisme a versão do arguido de inconvincente e convincente o do ofendido; - A assunção factual efectuada sacrifica inexoravelmente o princípio da presunção da inocência porque o arguido não está onerado com a obrigação de demonstrar a sua inocência e enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo. Como verificamos, o que se equaciona nesta parte da impugnação de facto prende-se essencialmente com a valoração dos meios de prova e não tanto com o respectivo conteúdo. Não questiona o recorrente que o ofendido haja declarado em audiência no sentido de que quando se encontrava a trabalhar numa obra; batendo com um martelo numa castanha de aço, esta esmilhou e alguma coisa se espetou no olho direito e que tal corresponda ao tipo de acidente de trabalho que sofreu e que, aliás, é compatível com as lesões verificadas; com o teor da prova pericial. Deve, pois, equacionar-se, em primeiro lugar, se existe alguma razão plausível para que o ofendido haja transmitido a terceiros e nomeadamente ao arguido, médico que em primeiro lugar o observou no serviço de urgência do hospital, um diferente tipo de acidente. Não vislumbramos, porém, quer confrontando as regras da experiência, quer os subsídios da prova produzida, qualquer razão para o ofendido não ter contado exactamente o tipo de acidente que sofreu, mas um outro de natureza diferente, como seja ter sido atingido no olho pelo objecto com que apertava a castanha; o martelo. É certo que na denúncia oral (elaborada mediante declaração verbal do ofendido ao funcionário judicial) que consta dos autos a fls. 2 não se fez constar o tipo concreto de acidente verificado, mas apenas que o requerente se encontrava a trabalhar e subitamente sentiu uma forte dor no olho (o que tanto é compatível com o ser atingido no olho com um martelo como por um estilhaço de metal) mas significativamente também consta da mesma denúncia que lhe foi dito que nada havia no interior do olho quando foi observado no hospital pelo médico, o que sugere que o ofendido terá referido a quem redigiu o auto que sentiu que algo lhe terá entrado no olho. Ao contrário do que o recorrente parece concluir, na denúncia não se encontra relatado um acidente diferente do ocorrido, mas apenas se omite o tipo de acidente, não se podendo buscar nesse documento qualquer subsídio no sentido de encontrar razão para o ofendido no hospital ter “inventado” um acidente diferente do que efectivamente ocorreu. E para o entendimento do cidadão comum mais emergiria explicar com verdade e detalhe o acidente ocorrido ao médico, para tratamento, de que no Tribunal, para a prévia denúncia. É certo que a enfermeira que atendeu o ofendido na triagem do hospital (a testemunha V...) não se recorda do caso, mas integrou a situação no parâmetro pré-fixado “traumatismo ocular penetrante” e não noutro parâmetro pré-definido “dor” como seria possível se o ofendido se houvesse queixado de uma pancada no olho, o que resulta do depoimento da testemunha Z..., também enfermeiro da urgência do hospital, mais esclarecedor nesta matéria da triagem e da integração das situações dos doentes nos itens pré-definidos. Também destes elementos probatórios não resulta, que contra a normalidade das coisas, o ofendido haja relatado acidente diferente do ocorrido, na triagem. Na triagem que chegou ao médico e ora arguido vinha a situação do ofendido integrada no parâmetro “traumatismo ocular penetrante”. Não entendemos que esse seja um elemento definitivo, tratando-se apenas de uma indicação que com toda a evidência pode ser contrariada pela história que o doente conta, decisivo é mesmo o tipo de acidente ocorrido que o doente transmite e que motivará a acção médica subsequente. Busquemos então nas declarações do arguido algo que possa contrariar a normalidade das coisas; que o ofendido não contou efectivamente o que lhe sucedeu mas uma outra versão de acidente. O arguido relata nas suas declarações que o ofendido lhe terá contado que foi atingido no olho pelo instrumento com que apertava a castanha, mas quando confrontado se sabia o que era uma castanha (não sabia) o que se extrai também das suas declarações é que não terá percebido bem que tipo de acidente sofreu o ofendido, tendo-se fixado em que algo lhe tinha batido no olho. Não colocamos a hipótese da legítima mentira com objectivo de defesa, interpretando antes o declarado pelo arguido como desencontro/desentendimento motivado pela linguagem própria do ofendido que o arguido não terá tido o cuidado de esmiuçar. Seja como for, certo é que não encontramos qualquer motivo que justifique que o ofendido não tenha contado ao arguido o que efectivamente aconteceu, resultando da perícia realizada, que em qualquer traumatismo ocular é fundamental um interrogatório pormenorizado sobre as circunstâncias em que ocorreu, resultando das declarações do arguido que omitiu esse cuidado, e no caso de suspeita de corpo estranho deve ser realizado exame imagiológico ainda que na observação do olho não se detecte corpo estranho. Em suma, consideramos que a convicção positiva do Tribunal a quo sobre os factos em causa tem evidente suporte nos meios de prova produzidos, não se vislumbrando violação da presunção de inocência ou do correlativo princípio probatório in dubio pro reo, que suporia a inexistência de base probatória suficiente para um juízo de certeza.
Impugna também o recorrente os factos provados elencados sob os números 20, 21, 27 a 30 e 38 a 47 que estabelecem o nexo de imputação objectiva entre a conduta do arguido e o resultado verificado. Entende que a prova pericial não consente que se estabeleça esse nexo de imputação porque os peritos admitem que o resultado final danoso podia ser o mesmo ainda que tivesse ocorrido intervenção precoce e o perito que prestou esclarecimentos em audiência, Prof. Dr. U..., ainda mais explicitou que a probabilidade de sucesso de uma intervenção precoce ainda depende do tamanho do corpo estranho e de ser ou não portador de bactérias o que no caso não se investigou, não se podendo afirmar neste caso se as lesões se verificariam ou não independentemente da imediata detecção e intervenção cirúrgica. Por consequência, alega que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal que subtrai a prova pericial da livre apreciação do julgador, e quando ocorra divergência, estabelece o nº 2 do preceito um especial dever de fundamentação que não foi cumprido. Temos, pois, presente uma divergência de interpretação da prova pericial porque o Tribunal a quo, segundo o que se depreende na decisão recorrida, não divergiu da prova pericial, antes se sustentou nela para imputar o resultado lesivo à conduta negligente do arguido. A conduta negligente traduz-se na omissão de um dever de cuidado e, sobre a omissão, preceitua o artigo 10º, nº 1 do Código Penal que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo”. Estamos reconduzidos ao que se deva entender como acção adequada a evitar o resultado, se esta apenas pode ser a acção que com toda a certeza evitaria o resultado ou também inclui a acção que tem apenas alguma probabilidade para evitar o resultado, mas que pode efectivamente vir a revelar-se ineficaz. Se concluirmos que o resultado apenas pode ser imputado a quem omite acção que com toda a certeza evitaria o resultado, deixaremos certamente de fora parte considerável da omissão de cuidados de saúde (veja-se o caso de operações a doentes com cancro que não obstante vêm a falecer, apenas para exemplificar). Sobre a causalidade jurídica e a teoria da adequação que vem plasmada no artigo 10º, nº 1 citado, refere Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., pág. 327 e segs. que a ideia mestra que preside à teoria da adequação é a de delimitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Mas vai mais longe, afirmando que o resultado ainda é imputável quando a acção (ou omissão) tenha criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Ou seja, ainda que o risco de ocorrência do resultado já existisse, este ainda é imputável ao agente se omitiu um cuidado que era adequado a diminuir o risco de ocorrência do mesmo, se, ao invés, aumentou as hipóteses da sua ocorrência pela sua não intervenção (omissão de cuidado). André Lamas Leite em As Posições de Garantia na Omissão Impura, Coimbra, 2007, pág. 104, citando o Prof. Figueiredo Dias refere ser desproporcionada a exigência de uma probabilidade de a acção ou omissão evitarem o resultado que roce a certeza, porque do ponto de vista da política criminal inculcaria a ideia de que o omitente apenas deve agir naquele momento em que é praticamente segura a lesão de um bem jurídico, o que nada contribui para a função de protecção que ao direito penal se assinala. Dito de outro modo, o omitente apenas poderia ser penalizado se ex ante se pudesse afirmar com grau de quase certeza que a sua acção teria evitado o resultado, o que, como resulta do exposto, desvirtuaria o fim de protecção da norma penal por deixar de fora grande parte dos cuidados de saúde devidos, sempre que não existisse a certeza de evitarem o resultado. Também este autor conclui que para a imputação objectiva basta que se possa concluir que, com a acção omitida, se teria diminuído o risco de lesão; de ocorrência do resultado danoso. E cita o exemplo dos pais de uma criança doente em que havia grande probabilidade de o tratamento médico ser ineficaz, não procurarem tratamento, cuja omissão no seu entender ainda é punível. Trata-se da teoria da conexão do risco que na actualidade assim tem integrado o conceito de causalidade e cujo fundamento está assente no fim de protecção da norma, havendo que penalizar todas as situações que violem esse fim. Ora, revertendo ao caso dos autos, o ofendido sofreu perfuração do olho por corpo estranho que continha o risco de perda do olho, falando em linguagem vulgar, o que veio a ocorrer. No entanto, a prova pericial é bem esclarecedora no sentido de que esse risco seria menor se, no momento em que foi observado pelo arguido, este tivesse constatado a existência do corpo estranho realizando o necessário exame e tivesse sido efectuada intervenção cirúrgica imediata. E os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico em que refere os factores que podem influir num melhor ou pior resultado final não afastam a conclusão de que o risco do resultado verificado seria menor com uma intervenção cirúrgica mais precoce. Temos, pois, presentes os elementos necessários para a imputação do resultado à omissão do dever de cuidado que era idóneo a diminuir o risco da ocorrência do resultado verificado. Em suma, o Tribunal a quo não desprezou o resultado da prova pericial, antes estabeleceu o nexo de imputação do resultado com base nesse meio de prova, não se verificando violação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal. E se a prova pericial permitia e impunha que se efectuasse tal imputação, também não se pode ter por violado o princípio in dubio pro reo. Igualmente não tinha o Tribunal o dever de proceder a qualquer investigação adicional das características do objecto que se alojou no olho do ofendido nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal porque não essencial para a descoberta da verdade. E sempre a destempo estaria a invocação do vício (cfr, artigo 120º, nº 2 e nº 3, alínea a) do Código de Processo Penal).
Pelo que precede se conclui que a prova produzida, em todos os aspectos impugnados, consentia a convicção alcançada no Tribunal da 1ª instância. Como a sentença recorrida, para além de não estar viciada dos apontados erros de julgamento da matéria de facto, igualmente não padece dos vícios a que se reporta o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, deve ter-se por definitivamente fixada a matéria de facto nela assente que integra a prática pelo arguido do crime de ofensa à integridade física negligente que lhe foi imputado, importando manter a sua condenação.
Entende o recorrente que a pena de multa que lhe foi aplicada (200 dias numa moldura até 240 dias) viola o disposto nos artigos 71º, nº 1 e 40º do Código Penal, devendo ser reduzida. E neste aspecto parece-nos manifesto que não existe justificação legal para fixar a pena com tanta proximidade do limite máximo previsto que, para além de não ser necessário à prossecução das finalidades de prevenção geral e especial de grau não acentuado, neste domínio, atentam manifestamente contra o limite imposto pela culpa. Acresce que a necessidade da pena também se foi esbatendo com o passar do tempo e uma reacção penal que peca por tardia, como bem alega o recorrente. Entende-se como adequada e proporcional a pena de 100 dias de multa. Nesta parte importa conceder provimento ao recurso. *** IV. Decisão Nestes termos acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na pena de 200 dias de multa, fixando essa pena em 100 dias, mantendo-a no mais. Não há lugar a tributação em razão do recurso (cfr. artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal). *** Coimbra, 19 de Novembro de 2014
(Maria Pilar de Oliveira - relatora)
(José Eduardo Martins (adjunto) |