Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
319/06.7TASPS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
NEGLIGÊNCIA
ACTO MÉDICO
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO
Data do Acordão: 11/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (2.º JUÍZO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 148.º, N.ºS 1 E 3, E 144.º, ALÍNEAS A) E C), DO CP
Sumário: I - Para a imputação objectiva do resultado ao agente, é bastante concluir que, com a acção omitida, se teria diminuído o risco de lesão, de ocorrência do resultado danoso.

II - Tendo o ofendido sofrido perfuração de um dos olhos por corpo estranho que continha o risco de perda desse órgão, o que veio a ocorrer, e sendo esse risco menor se, no momento em que aquele foi observado pelo arguido, médico oftalmologista, este tivesse constatado a existência do referido elemento exógeno, realizando exame adequado e, se necessário, intervenção cirúrgica imediata, estão presentes os pressupostos indispensáveis para a imputação do resultado à omissão do dever de cuidado que era idóneo a diminuir o risco da ocorrência do resultado verificado.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório
Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular com o nº 319/06.7TASPS do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu o arguido A..., devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148º n.º1 e n.º 3 do Código Penal, com referência ao artigo 144º alíneas a) e c) também do Código Penal.

O ofendido, C..., deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia global de €70,000,00 (setenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida da quantia a título de danos patrimoniais futuros ou lucros cessantes que viesse a reclamar depois de conhecida a IPP que lhe seja atribuída em resultado do exame médico-legal, bem como juros, à taxa legal, desde a data da prática dos factos até efectivo pagamento.

Mais peticionou a condenação do arguido no pagamento de todas as despesas que vierem a ser suportadas pelas instituições de saúde que lhe prestaram assistência médica ou quaisquer outros serviços em consequência das lesões sofridas.

Posteriormente ampliou o pedido, requerendo a condenação do requerido no pagamento da quantia de €120.000,00 a título de lucros cessantes – danos patrimoniais futuros. (ampliação admitida).

A Companhia de Seguros B..., S.A. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia global de €34.478,34, posteriormente ampliado para €42.482,72.

Posteriormente ampliou o pedido para €42.482,72. (ampliação admitida)

O arguido A... requereu a intervenção da Companhia de Seguros D..., Companhia de Seguros E...a, S.A. em virtude de ter celebrado com aquela um contrato de seguro através do qual transferiu a sua responsabilidade civil profissional. Foi admitida a intervenção.

           

            A Companhia de Seguros B..., S.A. e C... requereram a intervenção principal provocada do Hospital de Y..., E.P.E, actualmente Centro Hospitalar AA..., E.P.E.. Foi admitida a intervenção.

Realizada a audiência de julgamento, em 27 de Fevereiro de 2013 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido A... como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punível pelo artigo 148º n.º 1 e n.º 3 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros);

b) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pelo demandante C... e condenar o demandado Centro Hospitalar AA..., E.P.E. no pagamento àquele:

· Da quantia de € 50,000,00 (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a sentença até efectivo e integral pagamento;

· Da quantia de € 88.305,78 (oitenta e oito mil trezentos e cinco euros e setenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais, pela incapacidade para o trabalho, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a sentença até efectivo e integral pagamento;

· Absolvendo-o do demais peticionado;

c) Julgar o arguido/demandado A... e a Companhia de Seguros D..., Companhia de Seguros, S.A. partes ilegítimas para intervir nos pedidos de indemnização civil formulados e, em consequência, absolvê-los da instância;

d) Julgar intempestivo o pedido de indemnização civil formulado pela Companhia de Seguros B..., S.A e, em consequência, rejeitá-lo;

e) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 2 UC o valor da taxa de justiça devida, acrescida de 1 %, por força do disposto no artigo 13º n.º 3, do DL n.º 423/91, de 30 de Outubro e fixando-se ½ da taxa de justiça devida a título de procuradoria e nos encargos que a sua conduta deu causa (artigos 74º, 82º n.º 1, 85º n.º 1 alínea b), 89º n.º 1 alínea b) e g) e 95º n.º 1 e n.º 2 do C.C.J, 513º n.º 1 e n.º 2, 514º n.º 1 do C.P.P.).

Inconformado, recorreu o arguido A....

Na sequência desse recurso foi proferido acórdão nesta Relação, em 27 de Novembro de 2013, que declarou nula a sentença recorrida por valoração de meio de prova proibido, ordenando a prolação de nova sentença pela Mmª Juiz que proferiu a primeira, expurgada de tal vício (valoração do depoimento da testemunha I...).

Em 14 de Fevereiro de 2014 foi proferida na 1ª Instância nova sentença que reproduz o dispositivo anterior.

Inconformado recorreu o arguido A..., condensando a respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.  A  douta  decisão  proferida  pelo  Tribunal  a  quo,  é,  salvaguardando  o  respeito  devido,  nula,  na  medida  em  que  não  cumpre  satisfatoriamente  a  injunção  contida  no  artigo  374º,  2,  do  CPP,  designadamente  no  segmento  em  que  tal  inciso  legal  impõe  que  a  decisão  proceda  ao  exame  crítico  da  prova.

2.  Na  verdade,  como  resulta  dos  autos,  a  douta  sentença  de  que  se  recorre  emerge  como  "remake"  de  outra  anteriormente  exarada  pela  mesma  Mma.  Juíza.

3.  Todavia,  no  que  tange  a  tal  primeira  decisão,  foi  julgado  em  Acórdão  proferido  por  esta  Relação  que  a  mesma  usava  meio  de  prova  cuja  cognoscibilidade  lhe  era  vedada  por  consubstanciar  "depoimento  indirecto",  nos  termos  do  artigo  129°  do  CPP,  e  ordenada  a  feitura  de  nova  decisão,  expurgada  desse  depoimento.

4.  Todavia,  a  sentença  agora  em  recurso  é  em  tudo  idêntica  à  anterior  -  dela  constando  ainda  o  resumo  do  depoimento  julgado  indirecto  -  só  acrescentando  que  tal  depoimento  não  foi  valorado  porque  considerado  ilegal.

5.  Ora,  assim  sendo,  fica  sem  se  perceber,  paradigmaticamente,  em  que  medida  os  diferentes  meios  probatórios  percutiram  o  espírito  da  Mma.  Juíza  ...

6.  Com  efeito,  não  é  possível  ultrapassar  uma  evidente  aporia:  se  o  referido  depoimento  era  inútil  para  a  formação  da  convicção  por  que  razão  foi  o  mesmo  usado  na  primeira  decisão?

7.  E  se,  afinal,  o  mesmo  contribuiu  para  a  formação  da  convicção  da  julgadora,  em  que  elementos  remanescentes  se  colheu  a  lacuna  que  a  sua  necessária  desconsideração  imperativamente  provocou?

8.  Ou  seja,  o  esforço  decisório  não  esclarece  como  os  meios  probatórios  -  efectivamente  -  percutiram  (  ou  deixaram  de  percutir)  o  espírito  da  Julgadora  ...

9.  E  em  que  medida  se  revelaram  determinantes  para  a  assunção  factual  efectuada.

10. Ora  tal  espécie  de  actuação  é  proscrita  pela  lei  -  nulidade  do  artigo  379°,  1,  a)  do  CPP  -  e  pela  CRP  -  art.  205°/1.

11.Na  verdade,  ao  bastar-se  com  alusão  tabelar  a  que  o  meio  de  prova  em  causa  não  foi  considerado  e  sem  especificar  e  examinar  criticamente  a  forma  como  a  prova  restante  permitiu  suprir  a lacuna  criada  incorreu-se  na  nulidade  plasmada  na  al.  a)  do  n."  1  do  artigo  379º  do  CP  Penal.

Sem  prescindir,

12.  Também  no  segmento  do  julgamento  de  facto,  a  douta  decisão  não  se  mostra  imune  a  um  discurso  crítico.

13.Assim,  no  que  tange  ao  cumprimento  do  estatuído  no  artigo  412°,  n.º  3  do  CP  Penal, consideram-se  incorrectamente  julgados  os  pontos de facto provados sob os números 4,  19, 20,  21.  27,  28,  29,  30,  38,  39,  40,  41,  42,  43,  44,  45,  46  e  47,

14. Na  verdade,  no  que  respeita  especificamente  aos  pontos  4  e  19,  o  Tribunal  valorou  integralmente  a  versão  da  consulta  transmitida  pelo  demandante,

15. Omitindo  que  o  arguido  desenvolveu  narrativa  completamente  distinta  do  mesmo  episódio,  unicamente  vivenciado  e  presenciado  por  ambos.

16.Assim,  o  depoimento  do  ofendido  surge  também  como  ferido  por  incontornável  aporia.

17.  Na  verdade,  confrontado  o  ofendido  com  a  queixa  constante  de  fls.  2  -  cuja  leitura  foi  autorizada  em  julgamento  -  constata-se  que  ele  aí  apenas  refere  que  estava  a  trabalhar  e  sentiu  uma  forte  dor  no  olho.

18. Ou seja, na narração inicialmente efectuada pelo ofendido ­precisamente na peça que despoletou o processo penal em causa ­nada foi dito quanto ao facto de se martelar aço com aço e do material atingido se ter estilhaçado, com penetração ocular de parte do(s) estilhaço(s).

19. Ou, muito menos, se narrou que tal incidente foi, dessa forma, narrado ao recorrente.

20. Ora, confrontado com esse facto, o ofendido não deu qualquer explicação em audiência de discussão e julgamento, limitando-se a dizer que "Na altura, na altura quando fui fazer a queixa, quando me puseram a fazer, pronto, eu li mas pensei que isso batesse a mesma coisa, mas sei lá."; e a pergunta do signatário:

Então a sua explicação para isto é que o Sr. efectivamente contou o mesmo que nos contou aqui e que terá sido o transcritor que omitiu e deixou de fora essa sua referência, respondeu "De certeza". (minuto 40, segundo 37, a minuto 41, segundo 35, do respectivo depoimento.

21. Ou seja, fica por esclarecer a razão para que a queixa apresente uma versão minimalista, comparada com aquela narrada na audiência de julgamento,

22. Contrariando, manifestamente, as regras da experiência comum que o funcionário receptor ousasse resumir, deturpando radicalmente, a queixa efectuada à singeleza com que a mesma vem expressa ...

23. Ora, a versão da queixa é coincidente com a narração feita pelo arguido na audiência de discussão e julgamento.

24. Na verdade, do depoimento do recorrente, sessão de 6 de Dezembro de 2012, ficheiro 201 212 061 023 30 1 929 45 6 5354.wma, das 10:23:31 a 11:31:24, com a duração de 1h.07.52 resulta que este narra versão radicalmente diferente da sustentada pelo lesado.

25. Na verdade, refere que o ofendido apenas lhe disse que apertava um objecto com um instrumento de metal, que este resvalou e lhe atingiu o olho,

26. Em momento algum admitindo que o ofendido lhe tivesse dito que martelava aço, que este se desfez e que teve a sensação de entrada de um estilhaço no olho!

27. Tal, de facto, ajusta-se à participação efectuada que apenas refere "trabalho" e sensação de "dor forte", sem qualquer menção a martelar e a aço desfeito ...

28. Neste conspecto, resulta incompreensível que se crisme a versão do arguido de inconvincente e convincente o do ofendido.

29. Mais a mais, quando o ofendido não logra explicitar a razão de duas versões dos mesmos factos por ele carreadas aos autos.

30. É certo que se esgrime que o arguido construiu tese favorável à sua defesa, mas, salvo o devido respeito, o argumento é reversível:

31. Também a tese do ofendido é favorável à pretensão indemnizatória que intentou ...

32. Mais a mais, a assunção factual aqui efectuada sacrifica - ­inexoravelmente - o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República portuguesa.

33. Desde logo porque uma decorrência desse matricial princípio, exactamente naquela que impõe que nenhum arguido está onerado com a obrigação de demonstrar a respectiva inocência.

34. Por outro lado, o princípio agora chamado a terreiro também se mostra desconsiderado numa sua outra indiscutível vertente;

35. A de princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

36. Postulado que impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos (apenas consubstanciada na versão do ofendido veementemente contrariada pelo recorrente) fosse valorada a favor da posição processual do arguido,

37. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

38. No que tange aos factos elencados a 20, 21, 27, 28, 29, 30, 38, 39,40,41,42, 43, 44, 45, 46 e 47- i. é, todos os que estabelecem um nexo de imputação objectivo entre a alegada conduta do recorrente e os danos sofridos pelo ofendido - estes contrariam a prova pericial existente nos autos.

39. Na verdade, de fls. 485 dos autos, resposta ao "quesito" 1. 2., (Se acaso o utente tem sido, desde logo no dia 22-06-2006 intervencionado, poder-se-ia ter evitado aquela consequência danosa para a sua visão) lê-se "Se o corpo estranho já existia no dia 22-06-2006, um atraso na sua detecção e remoção é susceptível de agravar o risco de complicações, nomeadamente infecciosas. No entanto, não é possível afirmar se uma intervenção precoce melhoraria significativamente o prognóstico final, já que este depende de muitos outros factores. Em geral, o prognóstico visual final em casos de corpos estranhos é pobre, assim como em cerca de 3 a 12% dos casos se observa uma perda do globo ocular, mesmo em casos de intervenções cirúrgicas precoces" .

40. E, a fls. 107, noutro laudo pericial efectuado por perito distinto, afirma-se "Quanto mais precoce e adequado for o tratamento, melhor será o resultado final. Apesar disso, podemos afirmar com base na literatura internacional que, em média, 3 a 12 por cento dos casos acabam por ficar sem o globo ocular, 3 a 6 por cento ficam cegos, 16 a 23 por cento ficam sem visão útil, e apenas 60 a 70 por cento ficam com visão superior a meio décimo".

41. Ou seja, os Senhores Peritos, nos relatórios que efectuaram, são extremamente cuidadosos na forma como se expressam, dizendo da dúvida insanável que os assalta quando chamados a pronunciarem-se sobre se a detecção imediata e subsequente intervenção médica sobre o corpo estranho evitaria as consequências danosas sofridas pelo ofendido.

42. Na verdade referem que isso depende múltiplos factores e que o mesmo é pobre, sendo certo que o Sr. Perito que elabora o relatório de fls. 107 a 108 refere que só em 60 a 70 dos casos o prognóstico é de visão superior a meio décimo, mesmo com detecção e intervenção precoces.

43. E, é certo, em esclarecimentos prestados em audiência de discussão e julgamento o Sr. Perito Prof. Doutor U... enriqueceu essas primitivas abordagens.

44. Na realidade, entre o minuto 34.50 e o minuto 36.43, o Sr. Perito, a perguntas feitas, afirma: Pergunta: Sr. professor, a primeira pergunta que eu lhe queria fazer, se o Sr. professor me poder efectivamente responder era a seguinte: o que é que pode determinar que uma intervenção atempada e adequada, não obste à enucleação em 88 a 97% dos casos? Ao contrário, em 3 a 12% dos casos, peço desculpa ... Perito: A infecção nem sempre acontece. Pergunta: Portanto, ou seja, efectivamente o que pode causar efectivamente a enucleação será a endoftalmite advinda ... Resposta: Exactamente. Pergunta: ... da infecção do metal. Resposta: Exacto ( ... ) Do corpo estranho. ( .... ) Que introduz bactérias dentro do olho. ( ... ) Mas isso, isso, não acontece em todos os casos. Há casos que não terminam em endoftalmite. Pergunta: Certo, certo, será, efectivamente, só 3 a 12% dos casos? Resposta: Exacto. ( ... ) E depende até do tamanho do corpo estranho. Quanto mais pequeno for menos probabilidade de infecção. Pergunta: Sr. professor, examinou este corpo estranho concretamente, para poder dizer-nos o tamanho, a probabilidade do (imperceptível) local afectado. Resposta: Não. ( ... ). Não Sr. Dr."

45. Ou seja, o Senhor Perito afirma que quanto maior for o corpo estranho, maior será a probabilidade de se contrair endoftalmite que potencie um prognóstico de cegueira e enucleação.

46. Diz, ainda, que se o corpo for portador de bactérias maior será a probabilidade de infecção, subsequente endoftalmite que degenere em cegueira e perda do globo ocular.

47. Reconhece que não examinou o corpo estranho que entrou no olho do ofendido, desconhecendo o seu tamanho e era bacteriologicamente puro ou impuro,

48. Ou seja, o Senhor Perito não sabe se o aço estava contaminado e se estava já infectado (ou se nele concorriam ambas as características indesejáveis), pelo que nunca poderia afirmar se neste caso as lesões se verificariam ou não, independentemente da imediata detecção e intervenção!

49. Não obstante, a Mma. Juíza dá como provados os factos agora impugnados, esquecendo o estado de dúvida insanável do Senhor Perito.

50. Assim, deve frisar-se, que a actuação descrita é credora de crítica, na medida em que valora erradamente os dados fluentes dos contributos periciais.

51. Sendo certo que tal valoração imperfeita em que se incorreu irrompe, manifestamente, "contra legem".

52. Efectivamente o artigo 163° do CP Penal subtrai a prova pericial à livre convicção do julgador,

53. Sendo certo que o nº 2 do mencionado inciso normativo taxa um especial dever de fundamentação quando, malgré tout, existir essa referida divergência.

54. Ora, face ao teor da douta peça em recurso, indubitável é a constatação de que a divergência existiu não sendo detectável qualquer exercício de fundamentação de tal dissídio, especial ou normal.

55. Ora as mencionadas alterações factuais - impostas face ao que supra se adiantou - não deixarão de reconhecer importantes refracções na decisão.

56. Com efeito, deixará de existir razão para a emergência da condenação do arguido como autor do crime previsto e punível pelo artigo 148, 1 e 3, do CP.

57. Na verdade, deixará de se verificar quer a "omissão do cuidado devido", quer qualquer vínculo entre a putativa omissão e o resultado danoso.

58. Com efeito, a construção normativa de tal preceito permite afirmar que para a respectiva verificação típica é necessário intercorrer um nexo de imputação objectiva entre a conduta e o resultado - necessariamente a lesão (aqui "grave)" na integridade física de uma pessoa.

59. Ora, não obstante a Lei - artigo 10°, 1 do CP - tomar partido expresso pela ideia normativa da "causalidade adequada", a mesma nem sempre se revela susceptível de responder a todas as problemáticas suscitadas.

60. Na verdade, tal teoria coloca aporias insupríveis paradigmaticamente aquelas emergentes da necessidade do nexo de adequação se ter de aferir segundo um juízo de prognose póstuma e já não por um singelo juízo a posteriori.

61. Com efeito, adoptando esse prisma, atendendo à verificação inolvidável do resultado, nunca seria afastável a sua "previsibilidade" .

62. Por isso, a dogmática nacional - especificamente FIGUEIREDO DIAS - tem sugerido a teoria da conexão do risco.

63. Isto é, o nexo de imputação será passível de afirmação quando a conduta negligente tenha criado ou aumentado um risco proibido para o bem protegido e tal risco se materialize no resultado tipicamente proibido.

64. Ora, a factualidade em causa, não permite a assunção dessa imputação.

65. Efectivamente e desde logo - e independentemente do resultado do recurso estritamente factual - o relatório pericial elaborado pelo Distinto Professor chamado ao exercício de tais funções refere, assertivamente, que independentemente da intervenção médica devida e tempestiva em 3% a 12% dos casos de penetração de corpo intra-ocular de aço o resultado final é de cegueira e enucleação - exactamente o que ocorreu com o infeliz lesado.

66. Por isso, resulta incompreensível que a sentença tenha concluído que, in casu, a conduta do arguido tenha repercutido na saúde do paciente.

67. Com efeito, tal conclusão erige-se em aberta e flagrante colisão com o princípio in dubio pro reo, decorrente do artigo 32/2 da CRP, que implica que toda a dúvida seja decidida em favor do arguido.

68. Face ao exposto - designadamente ao que flui do relato pericial ­tal dúvida era insanável, atento o facto de ser impossível de afastar a hipótese do acidente que vitimou o órgão sensorial do ofendido ser irreversível.

69. De resto, os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em audiência, quando aludiu a que a "impureza" do objecto penetrante associado ao tamanho do mesmo seriam factores que potenciariam um prognóstico desfavorável, só adensam a dúvida para a tomar insustentável.

70. É que desconhecem-se - absolutamente - as características do objecto penetrante, nomeadamente a dimensão relativa dele e se estaria, ou não, infectado ...

71. Ou seja, a condenação do arguido/recorrente erige-se sobre a ignorância de questões de fundamental relevância para saber se a respectiva conduta aumentou o risco proibido para o bem jurídico protegido e se se materializou na lesão que o mesmo sofreu,

72 . Desprezando, no iter percorrido, o princípio do in dubio pro reo ...

73. E, mesmo que assim se não entendesse - hipótese que só uma excessiva cautela de patrocínio manda colocar - sempre a Mma. Juiz a quo deveria, ao abrigo do artigo 340/1 do CP Penal, ter envidado a actividade investigatória que lhe permitisse suprir a dúvida, maxime procurando fazer examinar o corpo estranho intra-ocular.

74. Ao não ter agido dessa forma está indubitavelmente ferido o aludido artigo 340/1 o CP Penal.

75. A douta sentença em recurso, no segmento da determinação da pena, ainda e sempre salvaguardando o respeito devido, viola o disposto nos art.s 148°, 1 e 3 e 70° do CP e 18°/2 da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito,

76.Estabelecendo o primeiro dos normativos citados a punição, para quem incorrer na factualidade típica contida em tal preceito, de multa até 240 dias, a Mma. Juíza optou pela condenação na pena de 200 dias de multa - isto é, numa moldura equivalente a cinco sextos do limite máximo.

77. Ora, in casu, atento o tipo de crime assacado ao recorrente, bem como as novas concepções das prevenções geral e especial, está-se em crer que pena sensivelmente mais reduzida satisfaria a teleologia punitiva colocada pela hipótese concreta.

De facto,

78. Tal condenação, e a valoração normativa que lhe está subjacente, colide com o disposto no n.º 1 do artigo 71 ° do CP, que por isso resulta violado.

79. A pena aplicada emerge, também, desfasada do preceito normativo constante do artigo 40° do Código Penal.

80. Na verdade, a materialidade contida nos mencionados incisos legais levará a que a pena de multa se quede por um patamar inferior aos dos 200 dias fixados,

81. Dado que a culpa é diminuta e não se colocam razões preventivas - gerais ou especiais - com particular densidade.

82. Até porque, além do mais, a al. d) do artigo 72, 2, ainda do CP, refere que poderá ser motivo de atenuação especial da pena, o facto de ter decorrido muito tempo sobre a prática dos factos e de o agente ter mantido boa conduta,

83. Ora, o alegado crime ocorreu em Junho de 2006 e os pontos de facto 55 e 56 traduzem a espécie de conduta que mantinha e manteve antes e depois do episódio em causa ...

84. Ou seja, mesmo que tal não determine a atenuação da pena ­evidentemente facultativa - erige-se, ao menos, como um poderoso índice legal revelador do carácter avesso à Lei da medida fixada.

Nestes termos, na procedência do presente recurso, deve ser proferido Acórdão que revogue a douta sentença recorrida substituindo-a por outra que acolha a materialidade fluente das conclusões elaboradas, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo que a decisão sob recurso deve manter-se na totalidade.

O Centro Hospitalar AA... respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido de que deve proceder, com a sua consequente absolvição do peticionado civilmente.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Nesta Relação, efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada audiência, cumprindo apreciar e decidir.

***

            II. Fundamentos da sentença recorrida

A sentença recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:
2.1. Matéria de facto provada
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 22 de Junho de 2006, cerca das 8h30m, C... desempenhava as funções de carpinteiro na obra de construção do Centro Comercial denominado “Palácio do Gelo”, sito em Viseu, quando, ao apertar uma “castanha” da cofragem metálica de um pilar, utilizando para o efeito um martelo, soltou-se um estilhaço metálico da referida cofragem que se introduziu no seu olho direito, tendo-lhe provocado fortes dores;
2. Transportado ao Serviço de Urgências do Hospital de Y..., nesta cidade, ali deu entrada, na sala de triagem, às 9h08m, queixando-se de ter sido atingido no olho direito por um estilhaço metálico da cofragem do pilar que estava a montar, pelo que lhe foi atribuída prioridade “laranja” por “traumatismo ocular penetrante” pela enfermeira da triagem;
3. De seguida, o C... foi observado pelo arguido, médico especialista de oftalmologia, que prestava serviço no Hospital de Y... como Assistente de Oftalmologia, que procedeu à visualização directa do referido olho e, após, prescreveu-lhe antibióticos, penso oclusivo, cicloplégico e corticosteróides, dando alta ao doente no mesmo dia, com a indicação de recorrer aos serviços clínicos da companhia de seguros no dia 26 de Junho de 2006;
4. O arguido fez constar no registo da observação clínica do doente que o mesmo apresentava “laceração conjuntival e hifema do OD”, não tendo feito quaisquer referência às circunstâncias em que ocorreu o traumatismo já referido pela enfermeira na triagem e reafirmado pelo doente ao arguido aquando da sua observação, nem fez constar o resultado de qualquer exame oftalmológico efectuado, nomeadamente, do fundo ocular, bem como não procedeu à realização de qualquer exame complementar de diagnóstico, nomeadamente, radiografia do globo ocular, tomografia axial computorizada ou ecografia ocular;
5. Face ao agravamento das dores, no dia 26 de Junho de 2006, o ofendido C... dirigiu-se à Clínica da L..., sita em Viseu, local onde funcionavam os serviços médicos da companhia de seguros para quem a sua entidade empregadora havia transferido a responsabilidade por acidentes de trabalho;
6. Naquela Clínica, foi-lhe recomendado por uma funcionária, depois de ter entrado em contacto telefónico com o arguido, que também ali prestava serviços como médico especialista em oftalmologia, para se dirigir às Urgências do Hospital de Y..., em Viseu, o que ele fez de imediato;
7. No serviço de urgência do Hospital de Y..., em Viseu, o ofendido foi observado pelo Dr. H..., Assistente Graduado de Oftalmologia, que constatou que o doente tinha uma endoftalmite, tendo requisitado uma radiografia da órbita, através da qual detectou um corpo metálico intra-ocular no OD do ofendido;
8. De seguida, medicou o doente com antibiótico sistémico e transferiu-o para os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) com vista a ser submetido a intervenção cirúrgica;
9. Nesse mesmo dia, nos HUC, foi-lhe realizada uma TAC e uma radiografia ocular, tendo resultado que o doente apresentava “OD-corpo estranho intra-ocular na cavidade vítrea inferior, às 7 horas, com 96 horas de evolução e endoftalmite, membrana inflamatória espessa, pupilar, com seclusão e edema da córnea”;
10. Ainda no dia 26 de Junho de 2006, o doente foi submetido a extracção do corpo estranho intra-ocular, com electroíman, via pars plana e foi efectuada antibioterapia tópica e sistémica;
11. Após a realização da cirurgia e a seguir à observação oftalmológica pós-cirurgia, foi concluído que o doente apresentava “membrana inflamatória na câmara anterior, catarata e organização do vítreo por endoftalmite;
12. Por essa razão, no dia 30 de Junho de 2006, o ofendido foi submetido a uma facofagia e a uma vitrectomia posterior via pars;
13. No dia 9 de Julho de 2006, o ofendido teve alta daquele Hospital, quando já apresentava ausência de percepção luminosa e a existência de “descolamento” total da retina com vitreorretinopatia proliferativa de grau D3, sem solução cirúrgica (cegueira do olho direito e sinais de inflamação grave);
14. Após aquela data, o ofendido continuou a necessitar de tratamento médico, pelo que passou a ser acompanhado na Clínica da L..., em Viseu, pelo arguido, até ao dia 28 de Setembro de 2006, continuando sem percepção luminosa do OD e uma acuidade visual de 9/10 sem correcção do olho esquerdo (OE), sendo o prognóstico do OD praticamente nulo;
15. Em 16 de Outubro de 2010, o ofendido foi observado pelo Dr. J...., médico especialista de oftalmologia, na Clínica de M..., em Coimbra, apresentando ausência de visão no OD, hemorragia da câmara anterior e posterior e uma leve inflamação revelando uma acuidade visual do OE de 10/10, tendo sido medicado com gotas anti-inflamatórias;
16. O ofendido voltou a ser observado pelo Dr. J..., no dia 7 de Novembro de 2006, permanecendo o OD sem visão com hemorragia intra-ocular em reabsorção e uma baixa de visão de OE-4/10, com edema da papila e da mácula, desencadeado pelo processo inflamatório geral;
17. Em consequência da inflamação geral que atingia já o OE, o doente foi medicado com elevadas doses de cortisona e, no dia 29 de Novembro de 2006, submetido a enucleação total (remoção) do olho cego e colocada uma prótese artificial em sua substituição;
18. Por outro lado, em Janeiro de 2007 o OE ainda revelava um edema macular, apresentando por fim, em 2 de Dezembro de 2008, uma acuidade visual do olho esquerdo de 9/10, sem lente, data em que teve alta clínica;
19. Consideradas as queixas apresentadas pelo doente/ofendido, a indicação feita na triagem de traumatismo ocular penetrante e, conforme as regras da praxis médica que o arguido bem conhecia enquanto médico especialista de oftalmologia, perante qualquer traumatismo ocular, o arguido podia e devia ter sido feito ao doente um interrogatório pormenorizado sobre as circunstâncias em que ocorreu o traumatismo, bem como, não tendo sido possível a visualização directa de um corpo estranho intra-ocular, podia e devia o mesmo ter procedido à realização de exames complementares de diagnóstico que o detectariam, designadamente, radiografia do globo ocular, tomografia axial computorizada (TAC) ou ecografia ocular;
20. Ao não proceder dessa forma, provocou um atraso de 4 (quatro) dias na detecção e remoção do corpo estranho do olho direito, agravando por isso o risco de complicações, nomeadamente, infecciosas que tiveram como consequência as lesões descritas e examinadas na perícia junta aos autos a fls. 474 a 478, acima referidas, as quais foram causa directa e necessária de 894 dias de doença, sendo 21 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 112 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional, tendo ainda resultado doença particularmente dolorosa e a perda de um importante órgão, no caso, o olho direito;
21. O arguido actuou de forma descuidada e imprudente, com violação das regras da praxis médica, ao não efectuar um interrogatório pormenorizado ao ofendido sobre as circunstâncias em que o traumatismo ocorreu e ao não ter procedido à realização de exames imagiológicos, procedimentos que podia e devia ter adoptado no caso concreto, tanto mais que não foi possível a visualização directa de um corpo estranho intra-ocular, pelo que segundo a praxis médica se impunha a realização deste tipo de exames, sendo que se o arguido os tivesse adoptado, como podia e devia, teria evitado as dores e sofrimentos causados ao ofendido ao longo de quatro dias e a evolução negativa do seu quadro clínico com um aumento do risco de complicações, nomeadamente, infecciosas, que posteriormente e inevitavelmente se verificaram face ao diagnóstico e tratamento incorrecto que aplicou ao doente e que foram a cegueira, a enucleação do olho direito e a diminuição da visão do olho esquerdo, resultado que o arguido não previu, mas devia ter previsto;
22. O arguido à data dos factos acima descritos era funcionário do Hospital de Y..., E.P.E. (actualmente Centro Hospitalar AA..., S.A.), exercendo funções de médico oftalmologista, com a categoria de Assistente de Oftalmologia, no serviço de oftalmologia, funções que exercia, na categoria, desde 6 de Setembro de 2000 e no Hospital desde 1 de Junho de 1998, trabalhando 35 horas semanais;
23. À data dos factos acima descritos o Hospital de Y... de Viseu (hoje Centro Hospitalar AA..., S.A), onde o ofendido foi assistido, era uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira;
24. O ofendido C... à data dos factos acima descritos trabalhava como carpinteiro de 2ª, para a Firma W..., S.A., auferindo o vencimento base mensal de €496,00 (quatrocentos e noventa e seis euros), acrescido de subsídio de alimentação e ajudas de custos, conforme melhor se vê dos recibos de vencimento juntos aos autos a fls. 554-559, recebendo também os subsídios de férias e de natal correspondentes;
25. O ofendido C... sempre foi um homem dinâmico, robusto, trabalhador, alegre e zeloso no desempenho das suas funções;
26. O C... nasceu no dia 29 de Dezembro de 1967, tendo à data dos factos 38 anos de idade;
27. Em consequência directa e necessária das lesões que sofreu e da actuação do arguido, o ofendido sente-se humilhado e constrangido;
28. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido o ofendido ficou parcialmente afectado da visão do olho esquerdo;
29. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, o ofendido sente dificuldades em desempenhar os trabalhos da sua profissão habitual de carpinteiro;
30. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, o olho direito e o olho esquerdo do ofendido apresentam-se notoriamente diferentes;
31. Em consequência das lesões sofridas o ofendido sentiu dores físicas e teve angústias e inquietações quanto à evolução do seu estado de saúde e sentiu e sente-se angustiado por se ver limitado;
32. À data dos factos o ofendido C... era o único sustento do seu lar, constituído pela esposa e dois filhos menores de idade;
33. Era com o rendimento do seu trabalho que acorria aos encargos familiares como vestir, calçar, alimentação, saúde, despesas domésticas;
34. O ofendido durante vários meses teve dores intensas, teve de permanecer em casa, sem desempenhar qualquer actividade;
35. Em virtude de todo o sofrimento, limitações e incapacidade, o requerente passou a viver o dia a dia de forma stressada, abatido, nervoso e ansioso;
36. Tornou-se uma pessoa triste, revoltada e frustrada perante a sua situação de incapacidade;
37. O ofendido tem necessidade de usar óculos no dia a dia;
38. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu o ofendido C... défice funcional temporário, correspondente ao período durante o qual, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização de actos correntes da vida diária familiar e social;
39. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, sofreu o ofendido um défice funcional temporário total, situado entre 22/06/2006 e 31/07/2007, correspondente ao período de internamento até 18/07/2007, pelo período de 40 dias;
40. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, sofreu o ofendido um défice temporário parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda que com limitações, que se terá situado entre 01/08/2006 e 28/02/2007, correspondente ao acto cirúrgico/oftalmológico (enucleação a 29/11, seguido de 3 meses de corticoterapia), pelo período de 212 dias;
41. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, sofreu o ofendido repercussão temporária na actividade profissional, correspondendo ao período durante o qual, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua actividade profissional habitual, considerando a repercussão temporária na actividade profissional total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros, que se terá situado entre 22/06/2006 e 15/04/2007, mais 11/05/2007 a 15/05/2007, num período de 359 dias;
42.  Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu o ofendido repercussão temporária na actividade profissional parcial, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas actividades, ainda que com limitações, que se terá situado entre 16/04/2007 e 10/05/2007, mais 16/05/2007 a 13/11/2007, pelo período de 237 dias;
43. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu também quantum doloris, corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões, num grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados;
44.  Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, sofreu o ofendido um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 26%;
45.  Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, sofreu o ofendido repercussão permanente na actividade profissional, correspondente ao rebate das sequelas no exercício da actividade profissional habitual – actividade à data do evento, ou seja, na sua vida laboral, devendo evitar máquinas trabalhando a alta velocidade e potencialmente perigosas;
46.  Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu o ofendido um dano estético permanente, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da sua imagem quer em relação a si próprio, quer perante os outros, num grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspectos: a utilização de ajudas técnicas, a deformidade e a coloração da prótese que é diferente do olho natural;
47.   Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu ainda o ofendido repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer correspondente à impossibilidade estrita e específica para se dedicar a certas actividades lúdicas, de lazer e de convívio social, que exercia de forma regular e que para ele representavam um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação pessoal, num grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta que o ofendido era pescador amador à linha no que ficou limitado nomeadamente na deslocação que implica "saltar" pedras de que resulta o receio de queda na água;
48.  A data da consolidação das lesões sofridas pelo ofendido ocorreu em 13/11/2007;
49. Entre a Companhia de Seguros B..., S.A. e a empresa W..., L.da, foi celebrado um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º AT 02/228080516;
50. O referido contrato vigorava sob a modalidade de acidentes de trabalho – trabalhadores por conta de outrem;
51. Na referida apólice figurava como segurado, entre outros, o ofendido C...;
52. Por força do contrato de seguro celebrado foi participado à Companhia de Seguros B..., S.A. um acidente de trabalho, cujo sinistrado era o C...;
53. Em virtude da participação do sinistro e numa fase conciliatória foi realizado o auto de conciliação onde a Companhia de Seguros B..., S.A. aceitou conciliar-se nos termos que melhor constam do documento de fls. 614 e 615, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
54. A título de pensão vitalícia devida pela I.P.P. de que ficou portador e no âmbito daquele acordo, pagou a Companhia de Seguros B..., S.A. ao C... até 30 de Novembro de 2012, a quantia de €21.694,22 (vinte e um mil seiscentos e noventa e quatro euros e vinte e dois cêntimos);
55. O arguido é pessoa estimada, respeitada e considerada no meio social onde vive
56. É também considerado e respeitado no meio onde trabalha, sendo reconhecido como um bom profissional;
57. O arguido aufere a quantia mensal de €2.230,00 (dois mil duzentos e trinta euros) enquanto funcionário do Centro Hospitalar AA...;
58. Faz Clínica Privada, actividade da qual aufere a quantia mensal de cerca de €1.000,00 (mil euros);
59. A esposa é médica e aufere a quantia mensal de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros);
60.  Tem 2 filhos, de 23 e 15 anos de idade, ambos estudantes;
61. O arguido vive com a família em casa própria e paga a quantia mensal de €800,00 (oitocentos euros) de um empréstimo bancário que contraiu para a sua aquisição;
62. O arguido é licenciado em medicina e especialista em oftalmologia;
63. O arguido não tem antecedentes criminais.

2.2. Matéria de facto não provada

Para além dos factos conclusivos e em contradição com os que resultaram provados, não se provou qualquer outro facto sujeito a julgamento, nomeadamente, não se provou que:

1. Nas circunstâncias de lugar e tempo referidas em 2.1.1. o olho direito do C... começou de imediato a sangrar;

2. O facto de se referir na ficha de triagem “traumatismo ocular penetrante” deve-se a que o sistema informático existente no serviço de urgência do Hospital de Y... de Viseu seleccionar automaticamente essa opção para todos e quaisquer casos de corpos estranhos;

3. O simples alojamento de uma pestana no olho é considerado pelo sistema informático como “traumatismo ocular penetrante”.

2.3. Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, concretamente:
Prova documental:
· Informação clínica de fls.32-37, documentação clínica de fls. 41-43, Consulta Técnico-Científica de fls. 60-62, documentação de fls. 67-76, certidão de fls. 85-208, certidão de fls. 239-352, relatório de fls. 450 e 451, relatório clínico de fls. 455-461, relatório pericial de fls.474-478, Consulta Técnico-Científica de fls. 482-486, documentos de fls.554-559, certidão de fls.560-562, documentos de fls. 591-711, relatório pericial de fls.783-787, informação clínica de fls. 931-933, relatório pericial de fls.992-998, documentos de fls. 1041-1053 e esclarecimento de fls. 1219;

Prova testemunhal:
· Declarações prestadas pelo ofendido C... o qual relatou ao tribunal as circunstâncias em que se encontrava a trabalhar, como carpinteiro, numa obra de construção civil, a bater com um martelo numa “castanha” de aço, esta “esmilhou” e alguma coisa se espetou no olho direito. Mais disse que se dirigiu às urgências do Hospital e que à entrada, quando falou com a enfermeira, explicou o que lhe tinha acontecido, ou seja, que estava a bater com um martelo numa “castanha” de aço, que esta se “esmilhou” e que alguma coisa lhe tinha espetado no olho. Acrescentou que, de seguida, cerca de 15 minutos depois, foi atendido pelo médico aqui arguido, o qual lhe perguntou o que se tinha passado e ele explicou-lhe que estava a apertar uma “castanha” de cofragem a qual “esmilhou” quando ele lhe bateu com o martelo e que alguma coisa lhe tinha espetado no olho e que o arguido ficou ciente disso, que em momento algum disse ao arguido que foi o martelo que lhe bateu no olho. Que depois de o observar, o arguido lhe disse que não tinha nada no olho, que o olho estava limpo, colocou-lhe um penso e medicou-o com gotas e pomada durante 5 dias e que se não ficasse melhor nesse período de tempo, que procurasse o médico da seguradora, na segunda feira seguinte, para participar o acidente de trabalho. Referiu ainda que o arguido lhe explicou que caso deixasse de ver momentaneamente que não fizesse alarme porque era da pomada que lhe tinha receitado. Que no sábado seguinte, dois dias depois, teve muitas dores e deixou de ver mas como o médico lhe tinha dito aquilo não se preocupou. Na segunda-feira seguinte, dia 26, como o olho estava pior resolveu ir à Clínica do seguro, falando previamente com o patrão que o mandou fazer a participação ao seguro do acidente e ir ao médico. Como na Clínica da L... não se encontrava nenhum médico, a funcionária entrou em contacto com um médico (por coincidência o arguido que ali presta serviços) o qual recomendou que ele se dirigisse às urgências do Hospital, o que fez. Foi então atendido pelo Dr. H..., médico que estava de serviço à urgência, que o observou e mandou fazer um RX. Após fazer o RX, o Dr. H... disse-lhe que ele tinha um aço no olho e uma infecção muito grave, tendo-o encaminhado para os HUC, onde foi operado e lhe retiraram o aço do olho e, mais tarde, algum tempo depois, o próprio olho porque o outro olho que estava bom corria risco de infecção. De relevo disse também que nos HUC lhe disseram que se tivesse tirado o aço no dia do acidente ficaria a ver do olho porque o que o cegou foi a infecção. Esclareceu ainda que quando refere “apertar castanhas” é o mesmo que dizer “martelar castanhas”;
· Depoimento isento e credível da testemunha I..., à data dos factos colega de trabalho do ofendido, o qual se encontrava a trabalhar na mesma obra no dia e horas em que os factos ocorreram. Esta testemunha disse não ter visto o acidente porque quando se apercebeu já o mesmo tinha ocorrido e que foram outros colegas que disseram que o C... se tinha magoado. No entanto, disse que os colegas lhe explicaram que a “castanha” que ele estava a apertar se tinha partido e que lhe tinha entrado alguma coisa para a vista, esclarecendo o tribunal que a “castanha” é de metal, que a cofragem em causa também é de metal e que aquela é apertada com o martelo. Esclareceu ainda que, segundo o que lhe disseram, não foi o martelo que lhe bateu no olho, que foi um bocadinho da “castanha” que se partiu e entrou no olho. De relevo disse ainda que, após os factos em causa nos autos, o ofendido ficou limitado nos trabalhos que podia executar, que tinham que ser trabalhos executados no chão e que não exigissem perícia, que ele se queixava que o olho lhe chorava muito, passando a viver muito limitado e que dizia sentir-se muito mal com isso e muito frustrado;
· Depoimento isento e credível da testemunha G..., esposa do ofendido, a qual relatou as circunstâncias em que teve conhecimento que o marido tinha sofrido um acidente no trabalho, explicando que foi quando chegou a casa, no mesmo dia em que o mesmo ocorreu, encontrando-o com um penso no olho. Que ele lhe contou que tinha sido no trabalho, que estava a bater numa “castanha” com um martelo e que lhe tinha saltado uma limalha para o olho, que tinha ido ao Hospital e que lhe tinham receitado uma gotas e uma pomada e que o tinham mandado para casa. Relatou depois o desenrolar da situação que culminou com a ida de novo ao Hospital a Viseu, depois para Coimbra onde foi operado para lhe retirarem o aço e mais tarde foi operado para lhe retiraram o olho. Disse ainda que o marido lhe contou que em Coimbra, o médico que o operou no dia 26, lhe disse logo que ele estava cheio de infecção e que provavelmente não havia nada a fazer, mas que se tivesse sido logo operado no dia do acidente ele não tinha ficado cego. Acrescentou que o marido à data do acidente tinha 38 anos e trabalhava como carpinteiro, sendo que ele era o sustento da família porque ela apenas trabalhava seis meses por ano nas Termas. Que o marido era uma pessoa alegre, robusta e trabalhadora e que depois dos factos nunca mais foi a mesma pessoa, nem o mesmo marido, nem o mesmo pai. Que anda sempre muito nervoso, muito revoltado, que há dias que ela nem pode “abrir a boca”. Que o choque que ele sofreu se agravou por receio de perder também o olho esquerdo porque a infecção estava a passar para esse olho. Referenciou ainda, a título de exemplo, que o marido cultivava uns terrenos que eles têm e que agora não o pode fazer e que uma ocasião iam para um casamento, que ele antes de sair de casa foi lavar a cara, a prótese caiu e partiu-se e que ele ficou de tal maneira incomodado que já não queria ir ao casamento;
· Depoimento isento e credível da testemunha V...., enfermeira, funcionária do Hospital de Viseu e que à data dos factos trabalhava no serviço de urgência geral, tendo sido ela quem realizou a triagem ao ofendido aquando da sua chegada ao Hospital. Disse não se recordar em concreto da situação atento o lapso de tempo decorrido e o número de pessoas atendidas na urgência, pese embora quando confrontada com o teor de fls. 42 confirmou ter sido ela quem preencheu os itens da data da triagem, queixa, fluxograma, discriminador e prioridade. Como não se lembrava do caso concreto, falou no procedimento que costumava adoptar quando se encontrava no serviço de urgência (o que actualmente não acontece), dizendo que a triagem é feita essencialmente com base na queixa do doente e na sua observação e que o fluxograma e o discriminador são preenchidos o mais próximo possível da queixa do doente. Mais esclareceu que o item “queixa” é escrito pelo enfermeiro livremente uma vez que não há parâmetros pré-fixados e que nos itens “fluxograma” e “discriminador” tem que se fazer opções de acordo com os parâmetros pré-fixados e que o discriminador define a prioridade da situação. Do que se recordava, disse que o 1º discriminador (cor vermelha) que aparecia eram queimaduras químicas, o 2º discriminador (cor laranja) seria desde logo o traumatismo ocular penetrante, não se recordando dos outros, o 3º discriminador (cor amarela) seria dor moderada e o 4º discriminador (cor verde) seria dor leve. De relevo disse ainda que perante as queixas apresentadas e, na dúvida, assume-se sempre que o traumatismo é penetrante, porque é mais favorável ao doente;
· Depoimento isento e credível de H..., médico oftalmologista e que exerce e exercia à data dos factos essas funções no actual Centro Hospitalar AA..., E.P.E., à data Hospital de Y... E.P.E. Disse conhecer o arguido, que é seu colega, ter com ele relações profissionais e de amizade. Mais disse ter atendido o ofendido nas urgências do Hospital, que se tratava de um paciente que apresentava um quadro de infecção no olho e que já tinha anteriormente recorrido à urgência por suspeita de um traumatismo. Que da observação que fez detectou-lhe um corpo metálico no olho, mandou fazer-lhe exames complementares e, em seguida, mandou-o para os HUC para lhe ser retirado o corpo metálico uma vez que não havia cirurgia dessa área na urgência do Hospital em Viseu. Que nessa observação o doente já não tinha visão porque a infecção impedia que ele tivesse visão útil. Mais disse saber que ele foi intervencionado em Coimbra mas depois não acompanhou a situação. De relevo disse que da sua experiência profissional nos casos de infecção no olho existem cerca de 5 a 10 por cento de probabilidades de perda do globo ocular. Instado sobre o que consta da ficha clínica de fls. 42 e sobre o caso concreto (do qual não falou por não saber o que se havia passado) disse que na sua actuação enquanto médico procura saber como ocorreu o acidente, depois observa o doente e que do resultado da observação é que decide se manda ou não fazer exames complementares. Instado disse também que a laceração não implica necessariamente uma perfuração profunda do olho, que a mesma pode ocorrer com um objecto contundente e não sempre com um objecto cortante. Mais referiu que, em geral, se da observação que faz do olho não vê qualquer corpo estranho, manda fazer um RX para afastar as dúvidas sobre a existência de um corpo estranho, mas que na maioria das vezes até se consegue só com a observação ver o corpo estranho. Acrescentou que se a descrição do doente for altamente sugestiva da existência de um corpo estranho ele mandaria fazer um RX;
· Depoimento isento e credível da testemunha X..., amigo do ofendido há cerca de 20 anos, o qual referiu que este costumava fazer-lhe alguns trabalhos agrícolas e também na construção civil. Descreveu o ofendido como uma pessoa muito voluntariosa, trabalhador exemplar e a quem ele confiava os trabalhos necessários na sua ausência. Que hoje em dia já assim não acontece porque o ofendido depois dos factos em causa nos autos ficou muito limitado e já não executa determinados trabalhos e que, por causa disso, o ofendido se sente triste, nervoso e psicologicamente abatido, facto que ele já pôde constatar;
· Depoimento isento e credível da testemunha U..., médico oftalmologista, Professor da Universidade de Coimbra, medico dos HUC há mais de 25 anos, pessoa que fez parte do Conselho Médico-legal durante dois anos e subscreveu o parecer de fls.482-486, sendo que actualmente já não faz parte do Conselho Médico-Legal. Disse conhecer o arguido, que é seu colega. Confirmou integralmente o parecer que subscreveu e que se encontra, como se disse, a fls. 482-486, esclarecendo, relativamente ao quesito 1.2. que nos casos de introdução de corpos estranhos no olho, ma maioria dos casos a visão geral acaba por ser reduzida e que, em geral, isso acontece mesmo quando há uma intervenção precoce, podendo mesmo ocorrer a perda do globo ocular. Mais esclareceu que em média 3 a 12% dos casos há perda do globo ocular, sendo que entre 88 e 97% dos casos essa perda não ocorre. Disse ainda que qualquer corpo estranho ocular, nomeadamente, metálicos, origina sempre complicações. Perguntado disse que o corpo estranho pode ficar alojado numa parte do olho que não seja observável e que a história contada pelo doente é importante porque permite suspeitar. Mais afirmou que a observação directa do corpo estranho pode dispensar a realização de exames complementares mas a sua não observação, havendo suspeitas da sua existência, deve manda fazer-se exames complementares. De relevo disse ainda que no caso concreto dos autos, a laceração conjuntival e hifema, por si só poderiam ter ocorrido em consequência de um traumatismo contundente mas a história clínica indicava que poderia existir um corpo estranho intra-ocular. Mais disse que pese embora não existam normas de orientação clínica, a boa prática com história de percussão de metais é ser excluída a sua existência, pela realização de exames complementares. Afirmou ainda que a laceração conjuntival com hifema é mais a favor da existência um traumatismo directo do globo ocular e não de um corpo estranho, mas pode também ser compatível com traumatismo penetrante;
· Depoimento isento e credível da testemunha Z..., enfermeiro em exercício de funções no serviço de urgência do Centro Hospitalar AA..., E.P.E. desde há cerca de 21 anos e que disse conhecer o arguido, com quem tem relações profissionais. Esta testemunha esclareceu alguns aspectos no que toca à triagem feira naquele serviço, tendo em conta os parâmetros da “triagem de Manchester” em vigor, julga, desde 2005. Instado, esclareceu que se alguém aparece *no  serviço  de  urgência  a  dizer  que  tinha  batido  com  uma  caneta  no  olho, colocaria  no  discriminador  "dor"  e  não  "traumatismo"  uma  vez  que  nem  todas  as pancadas  cabem  no  discriminador  "traumatismo  ocular  penetrante".  Que  isso  depende da  história,  o  que  a  provocou,  o  que  se  estava  a  fazer.  Mais  disse  que,  por  exemplo, perante  uma  queixa  de  uma  bolada  também  não  assumiria  como  "traumatismo  ocular penetrante",  sendo  que  traumatismo  seria  o  que  se  colocaria  na  queixa,  nessa  situação;
· Depoimentos isentos  e  credíveis  das  testemunhas N..., O...,P...., Q...., R... e S....  ,  pessoas  que  convivem  e  trabalham  com  o  arguido  há  mais  de  10  anos (com  excepção  do  último  que  o  conhece  há  cerca  de  7  anos),  no  que concretamente  diz  respeito  aos  factos  provados  em  2.1.55.  e  2.1.56. (* parte aditada por despacho de correcção de fls. 1635 a 1636 de 17.2.2014). 
A versão apresentada pelo arguido em sede de audiência de julgamento não logrou convencer o tribunal. De facto, o arguido, ouvido em declarações, confirmou que no dia e horas dos factos se encontrava de serviço na urgência do então Hospital de Y..., em Viseu, e que atendeu o ofendido C.... Disse que quando o atendeu ele se queixava de ter sido vítima de um traumatismo no olho direito que ocorreu quando apertava uma “castanha” e o instrumento com que apertava a “castanha” resvalou e traumatizou o olho e queixava-se de dores. Que nessa altura perguntou ao ofendido se o instrumento tinha caído ao chão e que ele lhe disse que sim. Que em momento nenhum ele lhe disse que se tinha soltado um estilhaço metálico e que se tinha espetado no olho. Nessa altura o ofendido não sangrava do olho, nem referiu que tivesse sangrado antes e que disse ver bem. Começou então a observar o olho do ofendido, colocando-lhe anestesio, para aliviar a dor e colocou-lhe umas gotas para dilatar o olho e fez observação da qual constatou uma laceração conjuntival (da parte branca do olho) e ainda uma ferida nessa parte que lhe pareceu ter resultado de traumatismo. Pressionou o olho para ver se havia algum refluxo do olho (líquido do olho), o que não ocorreu. De seguida, através da lâmpada de fender observou a câmara anterior do olho e viu um nível de sangue por baixo e, depois, interpondo uma lente de observação, observou o fundo do olho e não encontrou nada. Depois de ter visto o fundo do olho e de não ter visto nada, concluiu ter-se tratado de uma contusão, medicou o ofendido em conformidade, deu-lhe alta e mandou-o procurar a seguradora, dizendo-lhe que se se sentisse mal, que voltasse. Esclareceu que não consta da ficha clínica a história do evento porque a pressão nas urgências é muita e não teve tempo, estava muito pressionado com o serviço naquele dia, pelo que só registou os sinais positivos. Referiu que se calhar deveria ter feito um RX mas não lhe pareceu necessário e que se o ofendido lhe tivesse dito que se tinha soltado um estilhaço teria feito um RX. Acrescentou que na altura não sabia o que era uma “castanha”, pensa agora que seria um instrumento de ferro e que não se lembra se lhe perguntou qual era o instrumento, que não estava preocupado com o instrumento e em saber como teriam ocorrido as coisa, estava era preocupado em observar o olho. Disse também que a laceração pode ser provocada por um instrumento cortante mas não necessariamente e que da sua experiência a laceração não acompanha a perfuração do globo ocular. Confirmou prestar serviços na Clínica da L..., à data dos factos.
As declarações prestadas pelo arguido não nos mereceram credibilidade quando diz que o ofendido C... nunca lhe disse que se tinha soltado um estilhaço metálico e que teria entrado no olho. Não nos mereceram credibilidade desde pelo confronto com as declarações prestadas pelo próprio ofendido, as quais como já dissemos, foram credíveis e sinceras, como também com o confronto com o depoimento prestado pela esposa do ofendido, a quem ele logo contou quando chegou a casa que lhe a “castanha” se tinha desfeito e entrado alguma coisa para o olho. Se à esposa ele relatou a mesma “história”, porque razão haveria de ser contada uma diferente ao arguido ou omitido algum aspecto da mesma? Ao que acresce que também a versão do ofendido é compatível com triagem realizada pela enfermeira e que consta da ficha clínica de fls. 42 e que aponta para “traumatismo ocular penetrante”. Por outro lado, o arguido quis fazer crer que o ofendido lhe tinha dito que foi o instrumento com que apertava a castanha (o martelo) que lhe teria batido no olho e que este tinha caído ao chão e, compreende-se a razão de ser desta versão. É que o arguido, como médico oftalmologista, sabe que o que descreveu na ficha clínica como sendo o resultado da sua observação, isto é, a laceração conjuntival e o hifema, sem que daquela ficha clínica conste qualquer outra informação complementar, como por exemplo, a queixa de que se tinha soltado um estilhaço e entrado no olho, o resultado dessa sua observação é compatível com um traumatismo contundente e daí a versão que apresentou, muito favorável à sua defesa. Contudo, pelas razões que já apontámos, estamos em crer, que esta versão não corresponde à realidade dos factos. 

Acresce que as demais testemunhas, ouvidas em sede de audiência de julgamento, indicadas pela defesa do arguido não infirmaram nem contrariaram a prova em que o tribunal se baseou para dar como provados os factos que constavam da acusação.
Com efeito, a testemunha J..., médico oftalmologista desde 1990 e que trabalha nos UHC desde 2001, foi quem operou o ofendido nos UHC, disse conhecer o arguido, que é seu colega. Em resumo, disse que sempre que há um corpo estranho intra-ocular há risco de infecção, que o prognóstico é sempre de infecção. Que o procedimento habitual que toma enquanto médico é o de que, sempre que alguém chega à urgência, deve-se fazer um interrogatório sobre o que a pessoa estava a fazer e depois fazer a observação do olho. Se da observação feita vir sinal directo ou indirecto de entrada de um corpo estranho, se vir hemorragia, então pede exames imagiológicos. Se não vir porta de entrada, se só vir uma hemorragia na branca do olho, nesses casos, não costuma pedir exames imagiológicos, mesmo que haja laceração conjuntival porque qualquer pancada pode provocar uma laceração. Neste último caso, receitaria antibióticos e diria ao doente para voltar daí a 4 ou 5 dias. Confrontado com o teor do relatório por si subscrito a fls. 450 e 451 refere que o mesmo não está bem esclarecido no que toca à data em que o C... sofreu o trauma do olho e o dia na operação para extracção do aço intraocular. Mais referiu que 4% a 5% dos corpos estranhos intra-oculares infeccionam, sendo que os aços infeccionam menos, afirmação que diz basear na sua experiência profissional. Confrontado com a percentagem que referiu no relatório de fls. 450 e 451, disse que era a percepção que teria na altura em que o subscreveu e que agora se alterou. Confrontado com a versão dos factos apresentada pelo arguido e com a ficha clínica de fls. 42 e seguintes, disse que talvez não pedisse exame imagiológico. Mais disse que se a pessoa (o doente) estiver a fazer uma actividade profissional em que pode saltar algum corpo estranho, pode haver preocupação, mesmo que a observação não traga nada relativamente a esse aspecto, sendo que se já há um alerta na triagem, tem que haver mais cuidado ainda e que se for logo intervencionado o risco de infectar e ter más consequências é menor. Finalmente, disse que se se tratasse de um traumatismo com uma coisa maior, não mandaria fazer exame imagiológico, mas se houvesse possibilidade de estilhaços, então seria diferente.
Por sua vez, a testemunha K..., médico oftalmologista aposentado e enquanto no activo foi Director de Serviços do Hospital de Y... em Viseu disse conhecer o arguido, que é seu colega. Depois referiu que em casos de aços intraoculares nunca se pode prever a salvação de um olho, mesmo que ele seja logo extraído. Mais disse que o importante é a história clínica e a história que se ouve do doente e que essa boa prática se perdeu por causa dos números ministeriais. Confrontado com o caso dos autos disse que não mandava fazer a radiografia, que ficaria expectante, que perante a observação do fundo ocular e não tendo visto nada e mesmo que o doente se queixasse de alguma coisa que lhe tinha espetado no olho, não mandava fazer a radiografia. Confrontado com o teor de fls. 482-486, disse “não ter nada contra isso”. Mais disse que se fosse há 30 anos atrás faria a radiografia “na ponta da unha”, mas que agora não porque não se vê aços intra-oculares há muito tempo.
Já a testemunha F....., médico oftalmologista desde 1989, actualmente Director de Serviços do Centro Hospitalar AA..., disse conhecer o arguido, que é seu colega e que teve conhecimento dos factos em causa nos autos porque o arguido particularmente lhos relatou. Disse que, perante o caso, observaria o doente através da lâmpada de fender e observação ocular e não faria nenhum exame complementar porque a laceração poderia resultar de um objecto contundente e que um dia ou dois depois voltaria a observar o doente. Referiu que antigamente se fazia sempre RX, mas hoje em dia não porque há 3 ou 4 situações destas por ano, em Viseu, no Hospital. Disse também que nem todos os aços intra-oculares levam a infecções, mas que a maioria sim e que nem todos os operados deixam de perder a visão.
No que diz respeito à testemunha T...., médico oftalmologista, exerce funções no Hospital de Viseu desde 1993, disse conhecer o arguido, que é seu colega. Mais disse que perante as queixas do doente, iria à procura do corpo estranho, mediante a observação do olho e que se dessa observação não visse lesões no olho, quase excluiria a existência de um corpo estranho e que não realizaria o RX. Disse também que são raros os casos de aços intra-oculares no Hospital, talvez um caso por ano. Referiu ainda que se fosse encontrado um corpo estranho seria de fazer logo a cirurgia. Acrescentou que se o fundo do olho não tivesse nada, não faria RX, se o fundo do olho apresentasse lesão, então faria o RX.
Finalmente, a testemunha S..., médico oftalmologista em funções no Hospital de Viseu há cerca de 7 anos, disse conhecer o arguido a quem reconhece como bom profissional, bom oftalmologista e bom colega de serviço. Em suma, disse que qualquer exame complementar só será de fazer quando for preciso esclarecer alguma dúvida que o exame objectivo não consiga esclarecer. Referiu ainda que um corpo estranho conspurcado tem grande probabilidade de gera uma infecção no olho (endoftalmite) mas a infecção do olho nem sempre traz a enucleação; que um corpo estranho asséptico pode ou não gerar endoftalmite. Da observação que fez da ficha clínica de fls.42 e do desenho ali feito pelo arguido disse que se o corpo estranho estava na cavidade vítrea inferior, ele (o arguido) teria que o ter visto na observação e sem ser preciso recorrer ao exame complementar e que olhando para o esquema, o mesmo sugere-lhe ser um traumatismo contundente.

Assim, da conjugação de todos os elementos vertidos nos documentos acima discriminados, da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento acima referida e descrita e ainda das regras de experiência comum, fica-nos a convicção da verificação dos factos dados como provados, com particular relevo no que toca aos factos provados em 2.1.1. a 2.1.21. para as declarações do ofendido as quais pela sua espontaneidade e simplicidade nos mereceram total credibilidade, o depoimento da testemunha U..., os depoimentos dos enfermeiros V... e Z..., os quais explicaram os procedimentos da triagem nas urgências e o teor do parecer técnico emitido pelo Conselho Médico-legal de fls. 482-486, de onde resulta que “Perante qualquer traumatismo ocular é fundamental um interrogatório pormenorizado sobre as circunstâncias em que este ocorreu. No caso de suspeita de corpo estranho é mandatório interrogar o doente sobre se existiu uma história de percussão de metais, a qual é sugestiva da possibilidade de existência de um corpo estranho intraocular. A visualização directa de um corpo estranho intraocular pode dispensar a realização de exames complementares de diagnóstico. Pelo contrário, a sua não visualização, perante uma história clínica sugestiva, deve obrigar à realização de exame imagiológico para confirmar ou excluir o diagnóstico. A sua não realização pode ser considerada uma violação da “legis artis”..

De referir que não foi valorado o depoimento da testemunha I..., colega de trabalho do ofendido, por se tratar de depoimento indirecto e como tal prova proibida (cf. artigos 118º n.º 3 e 125º do CPP).

No que concerne aos factos atinentes à situação social e económica do arguido teve-se em consideração as declarações prestadas pelo arguido que nos mereceram credibilidade.

No que se refere aos antecedentes criminais do arguido, considerou-se o C.R.C. junto aos autos a fls. 762.

Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica de toda a prova produzida em julgamento designadamente a que se expressou e na falta de consistência da mesma sobre a factualidade em causa, em resultado, nomeadamente, de não terem sido carreados outros elementos probatórios credíveis e com força bastante para os sustentar.

***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes:

- Se a sentença recorrida padece de nulidade por não observar o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser alterada no sentido pugnado pelo recorrente com a sua consequente absolvição, questão que se desdobra na análise das seguintes subquestões:

1. Violação do princípio da presunção de inocência e do seu correlato in dubio pro reo porque a prova produzida não permite que se conclua com certeza pela violação de dever de cuidado;

2. Violação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal por ter sido desconsiderado o resultado da prova pericial sem fundamentação da divergência;

3. Impossibilidade de imputação do resultado danoso por inverificação do pressuposto de a conduta negligente ter criado ou aumentado um risco proibido para o bem protegido;

4. Violação do princípio in dubio pro reo em razão da imputação do resultado verificado;

5. Violação do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal por não se ter tentado suprir a dúvida sobre se a conduta negligente criou ou aumentou risco proibido;

- Se a pena em que o arguido foi condenado deve ser reduzida.

Apreciando:

Começa o recorrente por alegar que a sentença recorrida é nula na medida em que não cumpre satisfatoriamente o  374º,  2  do  CPP,  designadamente  no  segmento  em  que  tal  inciso  legal  impõe  que  a  decisão  proceda  ao  exame  crítico  da  prova. Na  verdade, a sentença  de  que  se  recorre  emerge  como  "remake"  de  outra  anteriormente  exarada que usou  meio  de  prova  proibido a expurgar. Todavia,  a  sentença  agora  em  recurso  é  em  tudo  idêntica  à  anterior  -  dela  constando  ainda  o  resumo  do  depoimento  julgado  indirecto  -  só  acrescentando  que  tal  depoimento  não  foi  valorado  porque  considerado  ilegal. Ora,  assim  sendo,  fica  sem  se  perceber,  em  que  medida  os  diferentes  meios  probatórios  percutiram  o  espírito  da  Mma.  Juíza não sendo  possível  ultrapassar  uma  evidente  aporia:  se  o  referido  depoimento  era  inútil  para  a  formação  da  convicção  por  que  razão  foi  o  mesmo  usado  na  primeira  decisão? E  se,  afinal,  o  mesmo  contribuiu  para  a  formação  da  convicção  da  julgadora,  em  que  elementos  remanescentes  se  colheu  a  lacuna  que  a  sua  necessária  desconsideração  imperativamente  provocou? Ou  seja,  o  esforço  decisório  não  esclarece  como  os  meios  probatórios  -  efectivamente  -  percutiram  ( ou  deixaram  de  percutir)  o  espírito  da  Julgadora  e em  que  medida  se  revelaram  determinantes  para  a  assunção  factual  efectuada. Tal  espécie  de  actuação  é  proscrita  pela  lei  -  nulidade  do  artigo  379°,  1,  a)  do  CPP  -  e  pela  CRP  -  art.  205°/1.

Vejamos.

Preceitua o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que versa sobre os requisitos da sentença que «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». O artigo 379º, nº 1, alínea a) comina de nula a sentença que não contiver os requisitos acima citados.

A razão de ser da exigência de fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve a garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso. Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso.

Para essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso, não se exige que se proceda a uma análise crítica exaustiva dos meios de prova e, nomeadamente, com apelo sistemático ao conteúdo concreto da prova, esta vertente apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada, não porque o fosse mas porque indemonstrada a sua justificação.

Sobre as exigências de fundamentação e mormente a irredutível importância do exame crítico da prova pode ler-se no Acórdão do STJ de 21.3.2007, proferido no processo 07P024, publicado em www.dgsi.pt:

A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.

As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).

A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).

A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.

(…)

A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.

O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).

No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998).

A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.

Ora lendo a decisão recorrida, verificamos que ela contém todos os elementos necessários e que permitirão a este tribunal conhecer do recurso da matéria de facto porque dela constam os meios probatórios que serviram para formar a sua convicção bem como os motivos que levaram o tribunal a considerar ou a desconsiderar os meios de prova produzidos.

Compreende-se que o recorrente se insurja pela simples repetição da sentença anterior, apenas com a desconsideração do depoimento indirecto proibido, mas nada impedia que o Tribunal a quo refizesse a sua decisão e considerasse que os restantes meios de prova eram suficientes para fundamentar a sua convicção positiva. Aliás, tudo se passa como se não existisse decisão anterior e os termos do recurso interposto são bem significativos de que o recorrente compreendeu o sentido da decisão; a sua razão de ser e, por isso, a consegue rebater tentando justamente desconstruir os seus fundamentos essenciais, porque os compreendeu.

Também este Tribunal de recurso não terá qualquer dificuldade em reapreciar a prova produzida e em avaliar a “bondade” da convicção alcançada justamente porque se encontra expressa de forma perceptível.

O facto de ter existido sentença anterior não obrigava o tribunal a justificação adicional no sentido de explicar porque formou agora a mesma convicção sem a valoração do meio de prova proibido, mas apenas e tão só as razões da sua convicção. Essas encontram-se expressas de forma suficiente.

Não reconhecemos por consequência a existência da apontada nulidade.

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, entendendo que se encontram mal julgados os factos provados sob os números 4, 19, 20, 21, 27, 28, 29, 30, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 e 47 da sentença recorrida, ou seja, todos aqueles que permitiram a sua condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física na forma negligente.

No que concerne aos factos provados sob os números 4 e 19 o seu inconformismo e discordância assenta na seguinte ordem de razões:

- O Tribunal valorou integralmente a versão da consulta transmitida pelo demandante, omitindo que o arguido desenvolveu narrativa completamente distinta do mesmo episódio, unicamente vivenciado e presenciado por ambos;

- O ofendido, confrontado com a queixa, onde apenas refere que estava a trabalhar e sentiu uma forte dor no olho, não deu explicação convincente, ficando por esclarecer a razão para que a queixa apresente uma versão minimalista, comparada com aquela narrada na audiência de julgamento;

- A versão da queixa é coincidente com a narração feita pelo arguido na audiência de discussão e julgamento no sentido de que o ofendido apenas lhe disse que apertava um objecto com um instrumento de metal, que este resvalou e lhe atingiu o olho em momento algum admitindo que o ofendido lhe tivesse dito que martelava aço, que este se desfez e que teve a sensação de entrada de um estilhaço no olho;

- Resulta incompreensível que se crisme a versão do arguido de inconvincente e convincente o do ofendido;

- A assunção factual efectuada sacrifica ­inexoravelmente o princípio da presunção da inocência porque o arguido não está onerado com a obrigação de demonstrar a sua inocência e enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

Como verificamos, o que se equaciona nesta parte da impugnação de facto prende-se essencialmente com a valoração dos meios de prova e não tanto com o respectivo conteúdo.

Não questiona o recorrente que o ofendido haja declarado em audiência no sentido de que quando se encontrava a trabalhar numa obra; batendo com um martelo numa castanha de aço, esta esmilhou e alguma coisa se espetou no olho direito e que tal corresponda ao tipo de acidente de trabalho que sofreu e que, aliás, é compatível com as lesões verificadas; com o teor da prova pericial.

Deve, pois, equacionar-se, em primeiro lugar, se existe alguma razão plausível para que o ofendido haja transmitido a terceiros e nomeadamente ao arguido, médico que em primeiro lugar o observou no serviço de urgência do hospital, um diferente tipo de acidente.

Não vislumbramos, porém, quer confrontando as regras da experiência, quer os subsídios da prova produzida, qualquer razão para o ofendido não ter contado exactamente o tipo de acidente que sofreu, mas um outro de natureza diferente, como seja ter sido atingido no olho pelo objecto com que apertava a castanha; o martelo.

É certo que na denúncia oral (elaborada mediante declaração verbal do ofendido ao funcionário judicial) que consta dos autos a fls. 2 não se fez constar o tipo concreto de acidente verificado, mas apenas que o requerente se encontrava a trabalhar e subitamente sentiu uma forte dor no olho (o que tanto é compatível com o ser atingido no olho com um martelo como por um estilhaço de metal) mas significativamente também consta da mesma denúncia que lhe foi dito que nada havia no interior do olho quando foi observado no hospital pelo médico, o que sugere que o ofendido terá referido a quem redigiu o auto que sentiu que algo lhe terá entrado no olho.

Ao contrário do que o recorrente parece concluir, na denúncia não se encontra relatado um acidente diferente do ocorrido, mas apenas se omite o tipo de acidente, não se podendo buscar nesse documento qualquer subsídio no sentido de encontrar razão para o ofendido no hospital ter “inventado” um acidente diferente do que efectivamente ocorreu.

E para o entendimento do cidadão comum mais emergiria explicar com verdade e detalhe o acidente ocorrido ao médico, para tratamento, de que no Tribunal, para a prévia denúncia.

É certo que a enfermeira que atendeu o ofendido na triagem do hospital (a testemunha V...) não se recorda do caso, mas integrou a situação no parâmetro pré-fixado “traumatismo ocular penetrante” e não noutro parâmetro pré-definido “dor” como seria possível se o ofendido se houvesse queixado de uma pancada no olho, o que resulta do depoimento da testemunha Z..., também enfermeiro da urgência do hospital, mais esclarecedor nesta matéria da triagem e da integração das situações dos doentes nos itens pré-definidos.

Também destes elementos probatórios não resulta, que contra a normalidade das coisas, o ofendido haja relatado acidente diferente do ocorrido, na triagem.

Na triagem que chegou ao médico e ora arguido vinha a situação do ofendido integrada no parâmetro “traumatismo ocular penetrante”. Não entendemos que esse seja um elemento definitivo, tratando-se apenas de uma indicação que com toda a evidência pode ser contrariada pela história que o doente conta, decisivo é mesmo o tipo de acidente ocorrido que o doente transmite e que motivará a acção médica subsequente.

Busquemos então nas declarações do arguido algo que possa contrariar a normalidade das coisas; que o ofendido não contou efectivamente o que lhe sucedeu mas uma outra versão de acidente.

O arguido relata nas suas declarações que o ofendido lhe terá contado que foi atingido no olho pelo instrumento com que apertava a castanha, mas quando confrontado se sabia o que era uma castanha (não sabia) o que se extrai também das suas declarações é que não terá percebido bem que tipo de acidente sofreu o ofendido, tendo-se fixado em que algo lhe tinha batido no olho. Não colocamos a hipótese da legítima mentira com objectivo de defesa, interpretando antes o declarado pelo arguido como desencontro/desentendimento motivado pela linguagem própria do ofendido que o arguido não terá tido o cuidado de esmiuçar.

Seja como for, certo é que não encontramos qualquer motivo que justifique que o ofendido não tenha contado ao arguido o que efectivamente aconteceu, resultando da perícia realizada, que em qualquer traumatismo ocular é fundamental um interrogatório pormenorizado sobre as circunstâncias em que ocorreu, resultando das declarações do arguido que omitiu esse cuidado, e no caso de suspeita de corpo estranho deve ser realizado exame imagiológico ainda que na observação do olho não se detecte corpo estranho.

Em suma, consideramos que a convicção positiva do Tribunal a quo sobre os factos em causa tem evidente suporte nos meios de prova produzidos, não se vislumbrando violação da presunção de inocência ou do correlativo princípio probatório in dubio pro reo, que suporia a inexistência de base probatória suficiente para um juízo de certeza.

Impugna também o recorrente os factos provados elencados sob os números 20, 21, 27 a 30 e 38 a 47 que estabelecem o nexo de imputação objectiva entre a conduta do arguido e o resultado verificado.

Entende que a prova pericial não consente que se estabeleça esse nexo de imputação porque os peritos admitem que o resultado final danoso podia ser o mesmo ainda que tivesse ocorrido intervenção precoce e o perito que prestou esclarecimentos em audiência, Prof. Dr. U..., ainda mais explicitou que a probabilidade de sucesso de uma intervenção precoce ainda depende do tamanho do corpo estranho e de ser ou não portador de bactérias o que no caso não se investigou, não se podendo afirmar neste caso se as lesões se verificariam ou não independentemente da imediata detecção e intervenção cirúrgica.

Por consequência, alega que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal que subtrai a prova pericial da livre apreciação do julgador, e quando ocorra divergência, estabelece o nº 2 do preceito um especial dever de fundamentação que não foi cumprido.

Temos, pois, presente uma divergência de interpretação da prova pericial porque o Tribunal a quo, segundo o que se depreende na decisão recorrida, não divergiu da prova pericial, antes se sustentou nela para imputar o resultado lesivo à conduta negligente do arguido.

A conduta negligente traduz-se na omissão de um dever de cuidado e, sobre a omissão, preceitua o artigo 10º, nº 1 do Código Penal que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo”.

Estamos reconduzidos ao que se deva entender como acção adequada a evitar o resultado, se esta apenas pode ser a acção que com toda a certeza evitaria o resultado ou também inclui a acção que tem apenas alguma probabilidade para evitar o resultado, mas que pode efectivamente vir a revelar-se ineficaz.

Se concluirmos que o resultado apenas pode ser imputado a quem omite acção que com toda a certeza evitaria o resultado, deixaremos certamente de fora parte considerável da omissão de cuidados de saúde (veja-se o caso de operações a doentes com cancro que não obstante vêm a falecer, apenas para exemplificar).

Sobre a causalidade jurídica e a teoria da adequação que vem plasmada no artigo 10º, nº 1 citado, refere Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., pág. 327 e segs. que a ideia mestra que preside à teoria da adequação é a de delimitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Mas vai mais longe, afirmando que o resultado ainda é imputável quando a acção (ou omissão) tenha criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Ou seja, ainda que o risco de ocorrência do resultado já existisse, este ainda é imputável ao agente se omitiu um cuidado que era adequado a diminuir o risco de ocorrência do mesmo, se, ao invés, aumentou as hipóteses da sua ocorrência pela sua não intervenção (omissão de cuidado).

André Lamas Leite em As Posições de Garantia na Omissão Impura, Coimbra, 2007, pág. 104, citando o Prof. Figueiredo Dias refere ser desproporcionada a exigência de uma probabilidade de a acção ou omissão evitarem o resultado que roce a certeza, porque do ponto de vista da política criminal inculcaria a ideia de que o omitente apenas deve agir naquele momento em que é praticamente segura a lesão de um bem jurídico, o que nada contribui para a função de protecção que ao direito penal se assinala. Dito de outro modo, o omitente apenas poderia ser penalizado se ex ante se pudesse afirmar com grau de quase certeza que a sua acção teria evitado o resultado, o que, como resulta do exposto, desvirtuaria o fim de protecção da norma penal por deixar de fora grande parte dos cuidados de saúde devidos, sempre que não existisse a certeza de evitarem o resultado.

Também este autor conclui que para a imputação objectiva basta que se possa concluir que, com a acção omitida, se teria diminuído o risco de lesão; de ocorrência do resultado danoso. E cita o exemplo dos pais de uma criança doente em que havia grande probabilidade de o tratamento médico ser ineficaz, não procurarem tratamento, cuja omissão no seu entender ainda é punível.

Trata-se da teoria da conexão do risco que na actualidade assim tem integrado o conceito de causalidade e cujo fundamento está assente no fim de protecção da norma, havendo que penalizar todas as situações que violem esse fim.

Ora, revertendo ao caso dos autos, o ofendido sofreu perfuração do olho por corpo estranho que continha o risco de perda do olho, falando em linguagem vulgar, o que veio a ocorrer. No entanto, a prova pericial é bem esclarecedora no sentido de que esse risco seria menor se, no momento em que foi observado pelo arguido, este tivesse constatado a existência do corpo estranho realizando o necessário exame e tivesse sido efectuada intervenção cirúrgica imediata.

E os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico em que refere os factores que podem influir num melhor ou pior resultado final não afastam a conclusão de que o risco do resultado verificado seria menor com uma intervenção cirúrgica mais precoce.

Temos, pois, presentes os elementos necessários para a imputação do resultado à omissão do dever de cuidado que era idóneo a diminuir o risco da ocorrência do resultado verificado.

Em suma, o Tribunal a quo não desprezou o resultado da prova pericial, antes estabeleceu o nexo de imputação do resultado com base nesse meio de prova, não se verificando violação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal.

E se a prova pericial permitia e impunha que se efectuasse tal imputação, também não se pode ter por violado o princípio in dubio pro reo.

Igualmente não tinha o Tribunal o dever de proceder a qualquer investigação adicional das características do objecto que se alojou no olho do ofendido nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal porque não essencial para a descoberta da verdade. E sempre a destempo estaria a invocação do vício (cfr, artigo 120º, nº 2 e nº 3, alínea a) do Código de Processo Penal).

 

Pelo que precede se conclui que a prova produzida, em todos os aspectos impugnados, consentia a convicção alcançada no Tribunal da 1ª instância.

Como a sentença recorrida, para além de não estar viciada dos apontados erros de julgamento da matéria de facto, igualmente não padece dos vícios a que se reporta o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, deve ter-se por definitivamente fixada a matéria de facto nela assente que integra a prática pelo arguido do crime de ofensa à integridade física negligente que lhe foi imputado, importando manter a sua condenação.

Entende o recorrente que a pena de multa que lhe foi aplicada (200 dias numa moldura até 240 dias) viola o disposto nos artigos 71º, nº 1 e 40º do Código Penal, devendo ser reduzida.

E neste aspecto parece-nos manifesto que não existe justificação legal para fixar a pena com tanta proximidade do limite máximo previsto que, para além de não ser necessário à prossecução das finalidades de prevenção geral e especial de grau não acentuado, neste domínio, atentam manifestamente contra o limite imposto pela culpa. Acresce que a necessidade da pena também se foi esbatendo com o passar do tempo e uma reacção penal que peca por tardia, como bem alega o recorrente.

Entende-se como adequada e proporcional a pena de 100 dias de multa.

Nesta parte importa conceder provimento ao recurso.

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IV. Decisão

Nestes termos acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na pena de 200 dias de multa, fixando essa pena em 100 dias, mantendo-a no mais.

Não há lugar a tributação em razão do recurso (cfr. artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal).

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Coimbra, 19 de Novembro de 2014 

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins (adjunto)