Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2403/10.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: REGIME DISCIPLINAR
ESTUDANTES
ENSINO SUPERIOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 47.º DA LEI N.º 54/90, DE 5 DE SETEMBRO; LEI Nº 62/2007, DE 10/09.
Sumário: I – O art.º 47.º da Lei n.º 54/90, de 5 de Setembro, previa a criação de um regime disciplinar único para os estudantes do ensino superior, mas o certo é que nunca tal regime foi instituído, pelo que as Instituições do Ensino Superior continuaram a dispor de autonomia disciplinar - esta autonomia está hoje expressamente consagrada na Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro, possibilitando que as instituições de ensino superior públicas possam punir as infracções disciplinares praticadas por docentes, investigadores e demais funcionários, bem como pelos estudantes.

II - Na falta de diploma legal próprio, qualquer processo disciplinar movido contra um estudante seria regulado pelo Regulamento Disciplinar em vigor e não pelas normas próprias de outros ramos de direito, estando por isso, excluída, no caso dos estudantes, a aplicação quer do Código do Processo Penal, quer o Código do Trabalho.

III - Invocar o instituto jurídico do abuso de direito relativamente ao processo disciplinar, não faz qualquer sentido, pois não se deverá confundir a questão da (in)validade do procedimento, com a da (in)validade da decisão de agir e punir disciplinarmente. Só nesta segunda caberia a invocação do abuso de direito.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1.Relatório

            O autor H… apresenta apelação à sentença do Sr. Juiz do Tribunal do Círculo de Viseu, proferida em 01.02.2012.

       Eis o percurso deste processo:

       Em 21 de Agosto de 2010, o ora Apelante fez dar entrada no tribunal a quo p.i. de acção de processo ordinário, a qual terminava da seguinte forma:

            “Deve a Ré ser condenada a indemnizar o Autor na quantia global de € 66.224,50 (sessenta e seis mil duzentos e vinte e quatro euros e cinquenta cêntimos), correspondente ao montante de € 30.000,00 a título de danos morais, ao montante de € 5.424,50 a título de danos emergentes, e ao montante de € 30.800,00 a título de lucros cessantes, e cujo pagamento o Autor ora expressamente reclama da Ré, bem como nos juros que entretanto se vencerem, contados, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

            Em 06.10.2010 a Réu apresentou contestação com junção de documentos, na qual arguiu a excepção de incompetência material, a preclusão do direito de impugnação da decisão disciplinar e consequente ausência de fundamento e/ ou preclusão do direito a receber qualquer indemnização, impugnava os factos alegados pelo Apelante, deduzia pedido de litigância de má-fé, concluindo com os pedidos de procedência da excepção de incompetência material e, consequentemente, a absolvição da Ré da instância, ou, a assim não se entender, improcedência da acção por não provada e, em consequência, a absolvição de Ré do pedido.

            Em 03.11.2010 o autor apresentou réplica por ter sido deduzida excepção de incompetência material e respondeu ao pedido de litigância de má-fé deduzido pela Ré.

            No dia 04.01.2011 foi proferido despacho a solicitar esclarecimentos sobre pagamentos, classificados como danos emergentes na p.i., efectuados pela mãe do Apelante e peticionados nos autos.

            Em 14.01.2011 foi, pelo autor, apresentado requerimento de intervenção principal provocada, no qual se requeria a intervenção de sua Mãe como associada deste último nos autos.

            Por sua vez, a Ré, em 24.01.2011, pugnou pelo indeferimento do pedido de intervenção principal provocada deduzido pelo Apelante.

            No dia 10.02.2011 foi proferido despacho no qual se admitia a intervenção provocada requerida pelo Apelante.

            Em 26.04.2011 foi proferido despacho saneador, o qual decidiu sobre a excepção de incompetência material, considerando Tribunal a quo competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia.

            Em 01.02.2012 foi proferida a sentença em crise, a qual decidiu julgar: “(…) a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a Ré de todos os pedidos contra si formulados.”

2.O Objecto da instância de recurso;

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685 - Aº, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São estas as conclusões que apresenta o autor, devidamente resumidas por nós:

A ré, I…, CRL, oferece as suas Contra-Alegações e, ainda, ao abrigo do disposto nos Arts. 684º-A e 685º-B, n.º 5, ambos do C.P.C., requere a Ampliação do Objecto do Recurso, com impugnação de pontos determinados da Decisão de Facto.

São estas as suas CONCLUSÕES:

As questões a decidir são as seguintes:

I - A sanção disciplinar que foi aplicada ao autor, no âmbito do processo disciplinar, é e foi, abusiva, porque aquele processo disciplinar é ilícito e ilegal atento o facto de não lhe ter sido dada a oportunidade de compreender a relevância e alcance da acusação contra si deduzida; não lhe ter sido dada a possibilidade de consultar o processo disciplinar, e, em consequência, não ter tido a possibilidade de organizar e apresentar a sua, cabal e efectiva, defesa?

II - A Ré abusou do seu direito de aplicar sanções disciplinares?

Procedendo esta argumentaria;

III- Temos a ampliação do objecto do Recurso feito pela ré, que se estenderá à revogação parcial da Decisão de Facto - Devem ser dados como não provados os Quesitos 17º e 18º, alterando-se, em conformidade, os Pontos 24 e 25 dos Factos Provados ?  - e, ainda, à apreciação de outros fundamentos da defesa, que não foram apreciados na Sentença recorrida - A Acção intentada pelo Autor, bem como o presente Recurso consubstanciam um verdadeiro abuso de direito (Art. 334º, CC), pelo que a mesma deverá, também com esse fundamento, ser julgada improcedente?

A matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância é a seguinte - e que este Tribunal mantém, porque a matéria de facto não foi impugnada e porque os elementos do processo não impõem decisão diversa, nem foi admitido documento superveniente com virtualidade para infirmar aquela decisão  - artigo 712º, nº 1 do CPC:

II. Do Direito
A essência do recurso apresentada pelo autor/recorrente está na arguição de nulidade do processo disciplinar que lhe foi movido e que culminou com a anulação da sua matrícula no I… de Viseu.
De facto, percorrendo todo o processado, percebe – se que o autor não canaliza a sua argumentação no sentido de rebater as acusações que lhe foram dirigidas, mas sim para uma violação do seu direito de defesa.
Assim, só a questão formal - não lhe ter sido dada a oportunidade de compreender a relevância e alcance da acusação contra si deduzida; não lhe ter sido dada a possibilidade de consultar o processo disciplinar, e, em consequência, não ter tido a possibilidade de organizar e apresentar a sua, cabal e efectiva, defesa - e não já a questão substancial que fundamentou tal processo disciplinar estará em causa nestes autos.
Para fundamentar a invalidade do processo disciplinar, o Recorrente invoca ainda (cfr. pág. 13 das Alegações de Recurso), quer a lei processual penal (concretamente o Art. 283º do CPP), quer o Código do Trabalho (Art. 353º).
Como é sabido, o I… de Viseu é um estabelecimento de ensino universitário, que prossegue fins públicos, tendo-lhe sido reconhecido, por decreto-lei, interesse público - DL n.º 211/96 de 18 de Novembro.
 Diz-nos o Art.º 6º, n.º 1 do Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo - vigente no momento em que ocorreram os factos em causa nos presentes Autos -, que o ensino superior particular cooperativo pode ser universitário ou politécnico.
O I… de Viseu foi criado como universidade, ou seja, como centro de criação, transmissão e difusão da cultura, da ciência e da tecnologia que, através da articulação do estudo, da docência e da investigação, se integra na vida da sociedade, prosseguindo os fins previstos no Art. 1º, n.º 2 da Lei da Autonomia das Universidades, aprovada pela Lei n.º 108/88 de 24 de Setembro - cfr. Art. 6º, n.º 2 e 14º do EESPC.
 Além disso, por via do estatuto de interesse público, o I… de Viseu encontra-se, “ope legis”, integrado no sistema educativo nacional, sendo que a Ré, enquanto entidade instituidora, goza dos direitos e das faculdades concedidas legalmente às pessoas colectivas de utilidade pública relativamente às actividades conexas com a sua criação e o seu funcionamento  - Art.º. 7º, n.º 2, EESPC -.
Relembre-se, ainda, que os estabelecimentos do ensino particular e cooperativo que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo – como é o caso do I… de Viseu − são considerados parte integrante da rede escolar  - Art.º 58º, n.º 1 LBSE.
Ora, como universidade que é, o I… de Viseu goza de autonomia disciplinar - Art.º 9º, n.º 1, LAU.
Nos termos do n.º 2 do mesmo Art.º 9º, o regime disciplinar aplicável aos estudantes deveria ser definido por lei, sob proposta do Conselho de Reitores, após audição das estruturas representativas dos estudantes.
Ora, tal como refere o Regulamento Disciplinar do I… de Viseu, respeitante ao ano lectivo de 2006/2007, tal diploma legal não chegou a ser aprovado, razão pela qual, cabia às universidades elaborar e aprovar, ao abrigo da sua autonomia administrativa, o regulamento disciplinar vigente em cada ano lectivo.
O art.º 47.º da Lei n.º 54/90, de 5 de Setembro, previa a criação de um regime disciplinar único para os estudantes do ensino superior, mas o certo é que nunca tal regime foi instituído pelo que as Instituições do Ensino Superior, que continuaram a dispor de autonomia disciplinar – esta autonomia está hoje expressamente consagrada na Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro, possibilitando que as instituições de ensino superior públicas possam punir as infracções disciplinares praticadas por docentes, investigadores e demais funcionários, bem como pelos estudantes; diz o artigo 75º, n.º 1, que “A autonomia disciplinar confere às instituições de ensino superior públicas o poder de punir, nos termos da lei e dos estatutos, as infracções disciplinares praticadas por docentes, investigadores e demais funcionários e agentes, bem como pelos estudantes”.
Ou seja, na falta de diploma legal próprio que impusesse caminho alternativo, qualquer processo disciplinar movido contra um estudante seria regulado pelo Regulamento Disciplinar em vigor.
Ora, assim sendo, na falta de diploma legal próprio, qualquer processo disciplinar movido contra um estudante seria regulado pelo Regulamento Disciplinar em vigor e não pelas normas próprias de outros ramos de direito, estando por isso, adiantamos desde já, excluída, no caso dos estudantes, a aplicação quer do Código do Processo Penal, quer o Código do Trabalho.
Aliás, tal entendimento é hoje reforçado pelo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), entretanto aprovado, como se disse antes, pela Lei n.º 62/2007 de 7 de Setembro.
Nesta sequência, o I…, acoitado na sua autonomia, elaborou o seu Regulamento Disciplinar, cuja cópia foi junta a fls. 110 a 113, tendo-o utilizado para aplicar uma medida disciplinar ao ora autor – o aluno H...
O procedimento disciplinar em causa nestes autos – como qualquer outro -, não se destinava a apurar, imparcial e objectivamente, uma verdade material.
Visa, tão só, fundamentar uma decisão de parte que é a decisão disciplinar.
 O seu objectivo é o de sustentar uma convicção – neste caso do I…, ora apelado – titular do poder de disciplina e que se exprimirá pela decisão de aplicar, ou não, certa sanção.
Esta decisão não é, como pode parecer em face da complexidade burocrática de certos modelos procedimentais, uma decisão pré-judicial, é uma reacção de um contraente contra outro, que ficará sujeita ao escrutínio judicial se houver litígio - relembramos que o apelante não levou a decisão de expulsão ao escrutínio dos Tribunais.
Como a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância não foi alvo de impugnação por parte do Recorrente, haverá que considerar, para esta decisão, o seguinte:
Como consta dos Pontos 5. e 6. dos Factos Provados (Alínea D) dos Factos Assentes), a Recorrida em 05/07/2007, dirigiu ao Recorrente uma comunicação (junta como Doc. n.º 40 da P.I.), a qual foi acompanhada por uma Deliberação da Direcção do I…/Viseu (junta como Doc. n.º 41 da P.I.), sendo que na referida missiva, a Recorrida comunicou, desde logo, ao Recorrente que: corria, contra ele, um processo de averiguações, instaurado em 20/06/2007;O Conselho Disciplinar do I… de Viseu propôs à Direcção que fosse dirigida ao Recorrente uma advertência no sentido de informar que não seriam tolerados mais actos de agressão física a colegas; Para além disso, a Direcção havia tomado conhecimento do facto de o Recorrente ter afixado nas paredes do I… de Viseu, em diferentes locais, documento que visava, de forma insultuosa, dois professores desse Instituto, bem como do teor desse documento e, ainda, de o Recorrente ter tentado agredir um colega com recurso a um isqueiro e um spray com conteúdo inflamável, razão pela qual compareceram no local as autoridades públicas; A Direcção reputava esses factos como de enorme gravidade; A Direcção, face a esses factos e ao abrigo do Art. 13º do Regulamento Disciplinar vigente, havia deliberado suspender o Recorrente até ao final do processo disciplinar.
Suspensão essa que foi, efectivamente, comunicada ao Recorrente nessa missiva (Pontos 6. e 7.dos Factos Provados).
Aliás, tal decisão foi, ainda, comunicada pela Direcção do I…/Viseu ao Conselho Disciplinar do I… de Viseu (Ponto 4. dos Factos Provados), o qual, na sequência de tal comunicação, emitiu Parecer, propondo à Direcção que fosse aplicada ao Recorrente a sanção de anulação de matrícula.
A referida suspensão do Recorrente foi, ainda, comunicada pela Recorrida à mãe daquele (cfr. Ponto 9 dos Factos Provados).
Assim, no dia 01/08/2007, a Direcção do I… de Viseu remeteu ao Recorrente uma carta (junta sob Doc. n.º 42 com a P.I.), por via da qual lhe foram imputadas as condutas em causa e dirigida a respectiva acusação (cfr. Ponto 8. dos Factos Provados).
Mais, por via dessa comunicação, ficou o Recorrente notificado para, no prazo de 10 dias úteis, se pronunciar sobre as imputações e acusações que lhe eram feitas (cfr., igualmente, Ponto 8. dos Factos Provados).
Não respeitando tal prazo, diga-se, o Recorrente apenas respondeu em 23/08/2007 – resposta esta cuja cópia o Recorrente juntou com a sua P.I., sob Doc. n.º 44 (cfr. Pontos 11 e 12 dos Factos Provados).
Diz o autor, que a ré lhe dirigiu imputações vagas, genéricas, subjectivas, com juízos de valor sobre factos não discriminados, o que não lhe possibilitou compreender o verdadeiro relevo das faltas, tornando assim impossível a apresentação da sua cabal e efectiva defesa.
Como se escreve na decisão em crise “…na verdade, qualquer pessoa medianamente sagaz (e o autor frequenta o ensino superior) percebe que, através da carta enviada no dia 1 de Agosto (fls. 99), ficou o autor preventivamente suspenso até final do processo disciplinar (tal como permitia o Artigo Décimo Terceiro do Capítulo VI do Regulamento Disciplinar – fls. 113), tendo-lhe sido ainda concedido um prazo de 10 dias úteis para esclarecer “as acusações acima apresentadas que sobre ele recaem”.
A nota de culpa enviada ao autor/aluno contém a descrição circunstanciada necessária e suficiente, dos factos que lhe são imputados, pelo que não viola o direito de defesa do aluno e dá, assim, corpo ao princípio da vinculação temática.
O que estava em causa e determinava a acusação ao aluno - para além dos problemas relacionados com fotos, canivetes ou agressão física a colegas, também o facto de no dia 3 de Julho, ter procedido “à colagem nas paredes da instituição, em lugar público e visível, de folhas com referências impressas e manuscritas que visavam dois professores em termos insultuosos e gravemente atentatórios da honra de cada um dos visados,” - encontrava-se bem à vista na carta enviada pela ré ao autor.
E tanto o autor bem compreendeu o sentido e alcance da comunicação que lhe foi dirigida que não hesitou em responder aos factos, na certeza de que se não soubesse do que se tratava diria simplesmente que desconhecia os factos de que era acusado – leia-se integralmente a resposta enviada pelo autor (até para lá do prazo que lhe foi concedido…) - para se perceber que foram feitas várias diligências, desde logo junto do autor (a que este chama de intermináveis interrogatórios), refutando este as acusações que lhe foram dirigidas.
Além do mais, afirmou o autor o seguinte: “(…) não insultei ninguém (apesar de esta acção se estar a tornar uma moda no interior do Instituto); não ameacei ninguém com agressão física, canivetes, fotos, ou de incendiar; não agredi ninguém fisicamente, nem com canivetes, ou incendiei alguém no Instituto. Como parece que me estão a tentar acusar de ter feito estas supracitadas ridicularidades, numa atitude que considero de mesquinhice, gostaria de lembrar que fui vítima de agressão física no interior do Instituto; tendo surgido a GNR que não foi por mim solicitada ao local; e que apesar de tudo decidi não apresentar queixa estando no entanto ainda a tempo de o fazer. Desconheço também quem chamou/solicitou a GNR ao Instituto, pois os próprios agentes da autoridade não me revelaram essa informação.”
Ora, por via dessa Resposta, o apelante demonstrou ter conhecimento dos factos que estavam em causa, bem como ter compreendido as acusações que lhe eram feitas, pois, veio negar tais imputações, alegando, expressamente, que “não insultei ninguém”, “não ameacei ninguém com agressão física, canivetes, fotos, ou de incendiar”, “não agredi ninguém fisicamente, nem com canivetes, ou incendiei alguém no Instituto”, negação essa, na verdade, dos elementos que constavam da acusação contra si dirigida.
É claro que, como refere o Sr. Juíz da 1.ª instância, a missiva poderia ter feito referência à dimensão ou ao número de folhas afixadas ou às concretas palavras nelas inscritas, mas a acusação é, ainda assim, perfeitamente clara sobre os factos que lhe eram imputados, sendo inapropriado empreender um paralelismo com o processo penal – o importante é que o aluno perceba exactamente as acusações de que é alvo.
A imputação dos factos terá algumas semelhanças – mas não passará disso - com a acusação prevista no mundo processual penal.
Ambas têm o papel fulcral de delimitar o “thema decidendum”, ou seja, é nelas que devem ser inseridos os factos concretos imputados ao arguido como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo a este que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser “condenado” pelos factos constantes nas referidas peças.
Também, tendo em conta os valores que “estão em jogo”, neste tipo de processo disciplinar, a “nota de culpa” não reveste o rigor que a lei exige no processo laboral e, muito menos, na acusação penal.
Por outro lado, o poder judicial tem considerado – no âmbito laboral que, como supra referimos se mostra mais exigente nas suas formalidades – que “a nota de culpa irregular por não conter a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador, só determina a nulidade do processo disciplinar quando o trabalhador não consiga apreender os factos de que é acusado e quando, por via disso, fique impedido de exercer eficazmente o direito de defesa que a lei lhe confere” – por todos, o Acórdão da Relação de Évora de 28.06.2012, retirado do site www.dgsi.pt.
Ademais, o recorrente não estava impossibilitado de conhecer, nem o Regulamento Geral, nem o Regulamento Disciplinar então vigentes - junto com a P.I. sob Doc. n.º 49.
Com efeito, o Regulamento Disciplinar esteve sempre à disposição do Recorrente, nomeadamente por via dos serviços administrativos do I… de Viseu e o Regulamento Geral ainda por via eletrónica, no site desse Instituto. Se o Recorrente tivesse sido “um pouco” mais diligente e não tivesse esperado quase 2 anos para obter o referido Regulamento Disciplinar, talvez tivesse tido sucesso nessa obtenção…
Ficou provado que, quer o Regulamento Disciplinar, quer o Regulamento Geral podiam ser consultados pelo Recorrente, bastando, para tal, que este os pedisse junto da Secretaria-Geral da Escola – cfr. Pontos 15 e 16 dos Factos Provados - e o segundo ainda pela internet  - Ponto 17 dos Factos Provados.
Aliás, tal como refere a decisão da 1.ª instância, “Nos dias de hoje, quase tudo pode ser livremente consultado na Internet, o que facilita sobremaneira a consulta dos mais variados documentos, mas esta é uma realidade que, ao longo dos últimos anos, com a evolução da tecnologia, se veio progressivamente a implantar nas mais diversas áreas; no passado e sem meios informáticos, não se vê que as universidades distribuíssem individualmente aos alunos quaisquer Regulamentos, devendo estes, se nisso manifestassem interesse, formular um requerimento nesse sentido”.
Ou seja, o autor, se dúvida tivesse sobre os seus direitos, poderia e deveria consultar o Regulamento Disciplinar; porém, contrariamente ao que alegou, não logrou demonstrar que tivesse, por qualquer meio, procurado obter esse Regulamento - vejam-se as respostas negativas aos quesitos 9º e 11º.
Mais: se discordava da decisão proferida pelo Instituto, poderia então apresentar o competente recurso para o Conselho Directivo do Instituto … - Artigo 14.º do Capítulo VII -, esgrimindo uma vez mais argumentos tendentes a contrariar a decisão tomada; e, em última instância, para o tribunal, discutindo, ainda aqui, o sentido da decisão.
Todavia, o arguido nada fez, acatando a decisão de expulsão.
O autor defende também que, na missiva que lhe foi dirigida, deveria constar “o prazo para a apresentação de prova para a sua defesa” ou a “possibilidade de consultar o respectivo processo disciplinar para preparação da sua defesa em sede de audiência prévia”.
Ora, relativamente ao prazo, o Regulamento Disciplinar não estabelecia - como ainda hoje não estabelece - um prazo concreto para a audição do aluno.
Pensamos que o prazo de 10 dias úteis que lhe foi concedido é um prazo perfeitamente razoável para que o mesmo se pudesse pronunciar, podendo indicar então qualquer testemunha que reputasse de importante para o esclarecimento da verdade.
 Por outro lado, não se vê que a notificação dirigida ao aluno tivesse que abordar a possibilidade de consulta do processo - até nos tribunais, só recentemente, com a introdução do sistema Habilus, é que as citações e/ou notificações enviadas aos mais variados intervenientes processuais contêm informações mais pormenorizadas sobre prazos, direitos ou cominações, porque no passado, quando tudo era feito manualmente, as citações limitavam-se ao legalmente exigido.
Por tudo isto, não se vê pois que o Instituto… tenha violado qualquer direito do autor, o qual teve oportunidade, em tempo útil, de apresentar a sua defesa.
Como se demonstrou, a Direcção do I… de Viseu – entidade competente pela instauração e instrução do processo, nos termos do artigo 8º do Regulamento Disciplinar – deu cumprimento a tais regras. Ouviu o Recorrente, bem como as pessoas que tinham conhecimento directo sobre os factos imputados àquele, tendo, a final, aplicado ao Recorrente uma sanção dotada de previsão normativa − a saber, a anulação da matrícula, de acordo com o artigo 6º, alínea e) do Regulamento Disciplinar, norma esta que, expressamente, invocou.
Face ao exposto, há que concluir que o processo disciplinar instaurado pelo Recorrido contra o Recorrente não padece de qualquer vício, sendo totalmente válido – o que se estende à decisão final que pôs termo ao mesmo.
Atravessa, ainda, o apelante o instituto do abuso de direito.
Dispõe o artigo 334.º do Código Civil que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito."
Assim, o abuso do direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça" - Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63.
Por isso, o abuso do direito deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica.
 No abuso do direito a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito – o sublinhado é nosso.
Para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ de 25.6.98, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 340.
Diz o autor neste particular, “… neste caso, a Ré abusou do seu direito de aplicar sanções disciplinares, o qual lhe foi conferido por lei, quando, primeiro, não facultou, oportuna e atempadamente ao Apelante, uma cópia do Regulamento Disciplinar; quando, segundo, não fundamentou, de facto e de direito, a deliberação que decidiu instaurar processo disciplinar; quando, terceiro e por força daquela ausência de fundamentação, não permitiu ao Apelante apresentar uma, eficaz e efectiva, defesa; quando, quarto, não foi informado que poderia consultar o respectivo processo disciplinar e de que poderia apresentar prova na sua defesa (inclusive refere que deve prestar “esclarecimentos”, não informa que deve apresentar a sua defesa, neste caso, por escrito…); quando, quinto, não informou o Apelante de que poderia interpor recurso, dentro do prazo a fixar pela Ré, da decisão final proferida, para o órgão competente para o efeito (indicando qual seria….), entre muitas outras ilegalidades ou ilicitudes que supra se enunciaram…”.
Vimos já que os cinco argumentos utilizados pelo recorrente não se verificam.
Por isso, apenas dizemos que esta não é, seguramente matéria que navegue nas águas do chamado abuso de direito.
Como escreve a recorrida nas suas alegações, com as quais concordamos, “acrescentar que a invocação do instituto jurídico do abuso de direito relativamente ao processo disciplinar…não faz qualquer sentido, pois não se deverá confundir a questão da (in)validade do procedimento, com a da (in)validade da decisão de agir e punir disciplinarmente. Só nesta segunda caberia a invocação do abuso de direito…”.
E esta questão já há muito que está definida – relembramos que o autor/apelante não impugnou a sanção disciplinar que lhe foi aplicada.
Ou seja, o autor não questiona o direito ao réu de instaurar procedimento disciplinar, mas, tão só, os vícios formais que fundamentam tal direito.
Ou seja, não está aqui em causa – mesmo nas palavras do Recorrente – apurar a validade da decisão de agir contra e punir disciplinarmente o Recorrente. Tão só, que o procedimento disciplinar está ferido de vícios formais.
Aí, como se disse, não cabe a invocação do abuso de direito.

Passemos ao sumário:

1. O art.º 47.º da Lei n.º 54/90, de 5 de Setembro, previa a criação de um regime disciplinar único para os estudantes do ensino superior, mas o certo é que nunca tal regime foi instituído, pelo que as Instituições do Ensino Superior continuaram a dispor de autonomia disciplinar - esta autonomia está hoje expressamente consagrada na Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro, possibilitando que as instituições de ensino superior públicas possam punir as infracções disciplinares praticadas por docentes, investigadores e demais funcionários, bem como pelos estudantes.

2. Na falta de diploma legal próprio, qualquer processo disciplinar movido contra um estudante seria regulado pelo Regulamento Disciplinar em vigor e não pelas normas próprias de outros ramos de direito, estando por isso, excluída, no caso dos estudantes, a aplicação quer do Código do Processo Penal, quer o Código do Trabalho.
3. Invocar o instituto jurídico do abuso de direito relativamente ao processo disciplinar, não faz qualquer sentido, pois não se deverá confundir a questão da (in)validade do procedimento, com a da (in)validade da decisão de agir e punir disciplinarmente. Só nesta segunda caberia a invocação do abuso de direito.

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

(José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)