Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/19.5GAPNL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
OBJECTO
ACUSAÇÃO PÚBLICA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 287.º DO CPP
Sumário: I – O juízo de não pronúncia tanto se satisfaz com a inexistência de indícios suficientes da prática de um crime como com a não integração desses indícios, se verificados, em qualquer um dos tipos de ilícito penalmente previstos.

II – Visando a instrução requerida pelo arguido evitar a submissão deste a julgamento, esse fim também se alcança quando a pretensão manifestada no RAI incide sobre parte da relação jurídico-processual em causa.

III – Consequentemente, é legalmente admissível a instrução quando o arguido questiona tão só o crime (de injúria) que lhe está imputado na acusação particular, e não também os factos descritos na acusação pública, consubstanciadores de um crime de ofensa à integridade física.

Decisão Texto Integral:


Acordam na secção criminal do tribunal da relação de Coimbra

No Juízo de Instrução Criminal de Coimbra, Comarca de Coimbra, na Instrução que aí corre termos sob o nº 63/19.5GAPNL, e em que é arguida M., foi proferido despacho do seguinte teor (transcrição parcial):

No caso concreto, uma vez que a requerente apenas reagiu contra o crime de natureza particular de que se encontra acusada e não também quanto ao crime de ofensa à integridade física sempre a mesma terá de ser sujeita a julgamento quanto a estes últimos factos, não pretendendo a sua não sujeição a julgamento, que é o fim essencial da instrução.

Pelo exposto, e salvo o devido respeito por opinião em sentido contrário, indefere-se a requerida instrução por falta de admissibilidade legal.

Notifique

Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1) No âmbito dos presentes autos, o tribunal a quo determinou a rejeição do requerimento de abertura, por inadmissibilidade legal.

2) Sucede, porém, que a causa de inadmissibilidade tem que estar expressamente prevista na lei, o que não sucede no caso em dissídio.

3) Bem pelo contrário. A alínea a) do n.º 1 do art. 287.º do CPP, reconhece expressamente o direito de a arguida, tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, como sucede com o crime de injúria em apreço nos autos, requerer a abertura de instrução relativamente aos factos pelos quais a assistente acusou.

4) No caso sub judice, a arguida requereu a abertura de instrução relativamente aos factos que consubstanciam um crime de natureza particular e sobre os quais apenas a assistente acusou, invocando os concretos fundamentos de facto e de direito que fundamentam a sua não submissão a julgamento pelo crime de injúria, em claro respeito pela referida alínea a) do n.º 1 do art. 287.º do CPP.

5) A situação em apreço nos autos, não se enquadra em nenhuma das causas legais de inadmissibilidade da abertura de instrução, pelo que, é absolutamente infundada e contra legem a decisão que recusou, por inadmissibilidade legal, a requerida abertura de instrução, nos moldes supra expostos, por clara violação da alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 do art. 287.º do CPP, sendo a mesma ainda claramente nula, nos termos da alínea d) do art. 119.º do CPP. Ilegalidade e nulidade que expressamente se invocam para todos os devidos e legais efeitos.

6) Acresce que independentemente de a arguida ter que ser submetida a julgamento por um crime semipúblico, pelo qual o Ministério Público acusou, o tribunal a quo não pode olvidar que são ambas acusações principais, que se baseiam em factos distintos e que são deduzidas por entidades distintas, que se encontram no mesmo processo numa lógica de economia processual do inquérito, por identificação das partes.

7) Sucede que, tal facto não pode limitar nem coartar os direitos de defesa da arguida.

8) Limitação de direitos que efetivamente resulta do despacho proferido, que ao indeferir o requerimento de abertura de instrução impede a arguida de sindicar os vícios de uma acusação particular infundada e sujeita a arguida a um julgamento público sobre factos que não se encontram sustentados, nem sequer indiciados, nos autos.

9) Como tal, a decisão sub judice, viola o n.º 1 do art. 308.º do CPP. Ilegalidade que se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

10) Sendo também claramente inconstitucional e ilegal, por violar manifestamente o princípio constitucional da garantia de defesa em processo criminal, nomeadamente os n.º 1, 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que se invoca, desde já, para todos os devidos e legais efeitos.

Nestes termos e nos demais de direito sempre com o douto suprimento de V/ Exc. deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se o despacho que indeferiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida, substituindo-o por outro que determine a abertura de instrução e agende debate instrutório, com todas as consequências legais.

Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

1. No encerramento do inquérito a arguida M. foi acusada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e foi acusada, pela assistente, por um crime de injúria.

2. Não se conformando com a acusação particular, requereu a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia por esses factos, mas não o fez quanto aos factos constantes da acusação pública, com que se conformou.

3. Tal requerimento foi rejeitado pelo Exmo. Senhor Juiz, por inadmissibilidade legal, por não cumprir as finalidades da instrução - comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cf. art. 286º, nº 1 CPP) -, entendimento com que concordamos.

4. O RAI apresentado não visa evitar (nem pode) que o processo siga para julgamento, tendo este de se realizar quantos aos factos constantes da acusação pública, pois não pode o juiz de instrução conhecer dos mesmos;

5. pelo que, ainda que viesse a ser proferido despacho de não pronúncia pelo crime de injúria, sempre o processo prosseguiria para julgamento por aqueles outros factos e, assim, o RAI é inócuo quanto à finalidade da instrução.

6. Sendo indiferente que se trate de uma acusação pública e de uma acusação particular, pois são ambas que definem e limitam o objeto do processo, pelo que também a causa é única e a sua submissão a julgamento será inevitável.

7. Não podendo a instrução requerida cumprir a sua finalidade legal, carece a mesma de utilidade, pelo que se impõe a sua rejeição por inadmissibilidade legal, que se funda na violação das finalidades da instrução e em razões de economia processual, que proíbe a prática de atos inúteis.

8. A ausência de instrução não limita os direitos de defesa da arguida, que os pode exercer em pleno na audiência de julgamento, fase fulcral do processo penal, em que mantém todas as garantias e direitos que lhe estão assegurados.

9. Não se vislumbrando que a rejeição da instrução e a prossecução para julgamento implique a violação dos princípios do contraditório e do acusatório.

10. O recurso à instrução está limitado pelas suas finalidades legais e respetivas consequências, tendo os direitos de defesa de se compatibilizar-se com outros direitos e interesses que enfermam o processo penal.

11. Verificando-se uma impossibilidade legal de instrução, está afastada a nulidade insanável prevista no artigo 119º, d) do CPP, que só ocorre quando a instrução em falta é obrigatória; e não há que apelar ao artigo 308º, nº 1 pois que a abertura de instrução foi rejeitada.

12. Pelo que a decisão recorrida está devidamente fundamentada, não é nula, nem padece de inconstitucionalidade, e assim sendo deverá ser mantida na íntegra.

No entanto, Vossas Excelências decidirão, fazendo JUSTIÇA!

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido da eventual procedência do recurso.

Ainda respondeu a assistente S, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

É a seguinte a cronologia processual a considerar, atenta até a descrição que é feita no despacho recorrido:

O Ministério Público deduziu acusação nos autos, datada de 23-2-2020 contra a arguida M. imputando-lhe a prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº. 143º do Código Penal.

Por sua vez, a Assistente S. deduziu acusação particular, não acompanhada pelo MP, na qual imputa à arguida a prática de um crime de injúria p. e p. pelo artº. 181º do Código Penal.

Inconformada a arguida M. veio requerer a abertura de instrução, por requerimento de fls. 188 e seg.s, pretendendo que seja proferido despacho de não pronúncia relativamente ao crime de injúrias que lhe vem imputado na acusação particular.

Na sequência, viria a ser proferido o despacho recorrido que, em suma, se baseia na seguinte argumentação:

Coloca-se, pois a questão de saber se o arguido pode requerer a abertura da fase de instrução aceitando parte dos factos descritos na acusação pública quanto ao crime de ofensa à integridade física e reagindo apenas e tao só quanto ao crime de natureza particular.

Assim e nesta matéria concorda-se com o Acórdão da Relação de Évora datado de 08/05/2012, acessível em www.dgs.pt., onde foi Relator o Exmo. Juiz Desembargador Edgar Valente (Processo 226/09.1 PBEVR.E1), que se transcreve: «(…) No que respeita à questão em toda a sua latitude, parece-nos que nada na lei inculca a ideia de que a instrução (requerida pelo arguido) deva obrigatoriamente basear-se na existência de uma divergência factual face ao acervo constante do libelo acusatório, Assim, parece-nos meridianamente claro que uma diversa qualificação daquele acervo (que não se contesta) poderá ser o motivo exclusivo do requerimento de abertura da instrução. Tal divergência, porém, só poderá fundamentar a realização da instrução se couber no escopo legal que esta visa (decisão de não pronúncia), sob pena de ilegalidade manifesta. Como começámos por referir, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de (no que agora nos interessa) deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Parece-nos, deste modo, que a concepção legal da instrução repousa numa perspectiva processual utilitarista, ou seja, trata-se de uma fase processual que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento; caso contrário, ou seja, quando o objecto da discussão não é susceptível de produzir esse resultado, apenas se reflectindo em qualquer modo específico do seu prosseguimento, a mesma não é admissível, dada a sua inutilidade e eventual redundância face ao julgamento subsequente», (…)Só que o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Também neste sentido os argumentos dos seguintes acórdãos: Também no Acórdão da Relação do Porto, de 24-09-2008, (processo n.º 813559) onde se decidiu: “Não é de admitir a abertura de instrução, a requerimento do arguido, apenas para este discutir a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados, uma vez que o mesmo tem ao seu dispor um meio adequado e eficaz para o conseguir: a contestação, regulada no art.º 315º do C. P. Penal”. Entre outros acórdão da Relação de Évora: - De 08.05.2012, proferido no Proc. n.º 226/09.PBEVR.E1, referindo:“(…) O critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível (…)”; - de 08-05-2012, proferido no Proc.º n° 226/09.1PBEVR.E 1, referindo: “I - Uma diversa qualificação do acervo fáctico (que não se contesta) da acusação pode ser o motivo exclusivo do requerimento de abertura da instrução. II - Tal divergência, porém, só poderá fundamentar a realização da instrução se couber no escopo legal que esta visa (decisão de não pronúncia), sob pena de ilegalidade manifesta. III - O critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literal idade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. IV - A diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados”; - de 03-06-2014, Proc. n° 136/12.5JASTB-A.E1, afirmando: “I - A admissibilidade da instrução pedida pelo arguido, questionando apenas a componente jurídica da acusação, deverá ser avaliada casuisticamente, em função do efeito jurídico que a alteração do enquadramento jurídico-criminal dos factos permita alcançar, imediata ou mediatamente, tomando como horizonte irrecusável a não sujeição do arguido a julgamento. II - Deverá ser admitida a abertura da instrução que tenha em vista apenas a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, se a procedência dessa alteração é de molde criar um pressuposto jurídico-material indispensável a que o arguido, mediante a intervenção de outros factores, nomeadamente a desistência de queixa, logre alcançar a extinção do procedimento criminal, sem chegar a ser submetido a julgamento. (…) Assim, a admissibilidade da instrução pedida pelo arguido, questionado apenas a componente jurídica da acusação, deverá ser avaliada casuisticamente, em função do efeito jurídico que a alteração do enquadramento jurídico-criminal dos factos permita alcançar, imediata ou mediatamente, tomando como horizonte irrecusável a não sujeição do arguido a julgamento.

Ao fim e ao cabo, tal fundamentação escora-se em duas essenciais ordens de razão:

- em primeiro lugar parece considerar que através da requerida instrução, a arguida mais não pretende do que efectuar diversa qualificação dos factos apurados (sem os contestar), o que não pode constituir escopo único daquela fase processual;

- depois, parece também afirmar que essa mesma fase processual destina-se a emitir um juízo sobre a globalidade do processo e não quanto a partes do mesmo.

Por isso concluiu que porque se põe em causa apenas a acusação particular e não também a pública, é legalmente inadmissível a abertura da mesma.

No seu parecer, na sua habitual forma judiciosa, o Dig.mo PGA considerou o seguinte:

Com efeito, não nos parece que seja decisivo o argumento utilizado no despacho recorrido no sentido de que a instrução que vem requerida em caso algum impedirá a realização do julgamento.

É que, como reconhece o próprio despacho recorrido o julgamento sempre será realizado mas por factos distintos dos que constam na acusação particular e por crime diferente do que consta nesta.

Partindo a solução adoptada de uma certa e determinada ideia de que o objecto do processo tal como vem configurado é incindível, tal não corresponde à realidade, sendo certo que a lei acolhe as hipóteses opostas, isto é, de que o objecto do processo a submeter a julgamento, atenta a fase processual que agora está em apreço, o permite.

Cremos que é esse o caminho a seguir.

Pode ser requerida a abertura da instrução, pelo arguido, se tiver sido proferida acusação, e pelo assistente, não se tratando de crime de natureza particular, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação (artº 287º, 1, a) e b), CPP).

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.» (artº 286º, 1, CPP).

Só nos casos expressos no nº 3 pode ocorrer rejeição do requerimento: por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Como resulta evidente das normas citadas, a instrução pode ser requerida pelo arguido, manifestando ele, no caso de ter sido proferido despacho de acusação, quais os motivos da sua discordância com a mesma, desde logo afirmando que se impunha decisão diversa; deve indicar quais são as razões de facto e de direito em que funda essa divergência, indicando também – sempre que disso for caso - quais os meios de prova que não foram considerados no inquérito e que o deveriam ter sido.

Tal exigência bem se compreende já que é o requerimento em causa que opera a delimitação temática do Tribunal. O JIC tem de ser confrontado com uma situação que leve necessariamente a uma das finalidades da instrução, no caso a não submissão a julgamento.

Só confrontado com a argumentação do requerente poderá o Juiz de Instrução ajuizar – finda a instrução - se «do decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento» (artº 298º, CPP).

É poi isso que nesse despacho se averigua se foram «recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança» (artº 308º. 1, CPP).

Ou seja, o despacho instrutório (de pronúncia ou de não pronúncia) pode fundar-se numa série de considerações como sejam, a da verificação indiciária (ou não) das provas, por um lado, e da tipicidade dos actos indiciados, por outro. Ou seja, o juiz deve proferir despacho de não pronúncia, ainda mesmo que tendo sido demonstrados indiciariamente verificados todos os factos, sempre que conclua que eles não constituem crime ou que ocorre circunstância que obsta à sua punibilidade.

Sendo embora a instrução uma fase processual essencialmente factual, não pode ela alhear-se da apreciação normativa das consequências que inapelavelmente se devem retirar da apreciação jurídico-penal dos indícios recolhidos.

Ou seja, o juízo de não pronúncia tanto se pode satisfazer com a afirmação da não recolha de indícios suficientes como a de estes, mesmo verificados, não integrarem a previsão de um qualquer tipo penal.

Assim sendo, cremos que cai por terra o primeiro argumento usado na decisão recorrida - através da requerida instrução, a arguida mais não pretende do que efectuar diversa qualificação dos factos apurados (sem os contestar), o que não pode constituir escopo único daquela fase processual. Com efeito, a arguida não pretende discutir a qualificação jurídica dos factos, em termos meramente conceptuais, antes pretende afirmar (com ou sem razão) que não cometeu o crime de injúrias de que vem acusada, nem a expressão em apreço tem dignidade penal.

Também o segundo argumento parece não ter qualquer sustentação em termos positivos; a norma do artº 286º, 1, tem uma redacção genérica considerando a globalidade do sistema. Com efeito parte do caso paradigmático, pressupondo que existe apenas uma acusação e que está em causa a imputação de um único crime.

Só suportada neste pressuposto inicial, se pode compreender a afirmação de que a instrução se destina a emitir um juízo sobre a globalidade do processo e não quanto a partes do mesmo. Todavia, nada no texto ou no espírito da lei permite tal conclusão.

Com efeito do decurso da instrução pode resultar que o arguido, muito embora deva ser submetido a julgamento, por se terem indiciariamente demonstrado factos que tal justificam, não o deva ser pela globalidade dos crimes constantes do catálogo da acusação, antes e apenas por parte deles.

Este não pode deixar de ser o escopo da instrução, pois que sendo embora a sua teleologia evitar o julgamento (no caso paradigmático), não pode deixar de entender-se que esse fim também se alcança nos casos em que o arguido vê reduzido o objecto do mesmo.

A interpretação que é feita no despacho recorrido, de que é legalmente inadmissível a abertura da instrução, porque se põe em causa apenas a acusação particular e não também a pública, é contrária á teleologia da norma, por ser demasiado formal e positivista.

Nos termos do disposto no artº 287º, 3, CPP, a rejeição do RAI «» pode ter lugar com base num dos três fundamentos aí alternativamente tipificados. E aí não cabe, na nossa perspectiva, o caso em apreço, que não está abrangido pela inadmissibilidade legal.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que declare aberta a instrução, caso não ocorra uma qualquer outra causa de rejeição.

A assistente pagará uma taxa de justiça fixada em 2 UC’s (artº 515º, 1, b), CPP).

        

Custas pela assistente, com taxa de justiça fixada em 1 UC.

Coimbra, 16 de Dezembro de 2020

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)