Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
545/09.7T2OVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO FORMAL
CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA OVAR
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.S265-A, 671, 672 CPC
Sumário: 1. O princípio da adequação formal destinou-se a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida, encontrando-se no entanto a sua utilização condicionada ao respeito integral pelos princípios essenciais estruturantes do processo civil, nomeadamente o da igualdade das partes e o do contraditório.

2. Na aplicação do princípio processual em apreço, o juiz não pode interferir na estratégia processual livremente delineada pelos litigantes, suprindo eventuais omissões destes.

3. Tendo sido notificada às partes a sentença que declarou extinta a instância executiva com fundamento na sua deserção, sem que as mesmas a tivessem impugnado, tal decisão transitou em julgado, constituindo caso julgado formal nos termos do artigo 672.º do CPC.

4. Carece de suporte legal o despacho posteriormente proferido na mesma execução que, invocando o princípio da adequação formal, dá sem efeito a sentença de extinção, declarando renovada a instância.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
C (…), Lda, instaurou contra J (…), Lda, no Juízo de Execução de Ovar, Comarca do Baixo Vouga, a execução para pagamento de quantia certa que corre termos com o processo n.º 545/09.7T2OVR.
Por apenso à referida execução (processo n.º 545/09.7T2OVR-A), foram deduzidos embargos de terceiro pelo Município da Covilhã.
Em 23.02.2011, foi proferido no apenso A (Embargos) o despacho Ref.ª 10454359, com o seguinte teor:

«Por despacho datado de 05/01/2009 foi declarada a interrupção da instância, nos termos do disposto no art. 285.º do Cód. Proc. Civil.

O referido despacho foi notificado às partes em 07/01/2009.

No entanto, mostram os autos que a execução está parada há mais de três anos, competindo à exequente requerer outras diligências que permitissem ultrapassar o impasse processual em que se caiu.

Deste modo, e porque a paragem do processo de execução é imputável à exequente, que não requereu, como devia, o impulso posterior dos autos, e tendo decorrido os prazos previstos nos arts 285.º e 291.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil, na redacção da reforma de 95/96, do processo civil – ou seja, mais de três anos sem que tivesse havido impulso processual das partes –, considera-se deserta a instância executiva, pelo que, nos termos do disposto no art. 287.º, al. c), do mesmo Código, tal acarreta a sua extinção.

Em consequência do despacho que antecede, determino o levantamento da penhora do Lote de terreno n.º 30, sito em (...), freguesia do (...), descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o n.º (...), e inscrito na matriz predial urbana sob o art. (...), da mesma freguesia.

Notifique.»
Em 28.03.2011 foi proferido no processo de execução o despacho Ref.ª 10839372, com o seguinte teor:

«Por despacho proferido em 23/02/2011, notificado às partes, foi considerada deserta a instância executiva, que, nos termos do disposto no art. 287.º, al. c) do Cód. Proc. Civil implica a sua extinção.

Assim, esgotado ficou o objecto dos embargos de terceiro, pelo que em harmonia com o disposto no art. 287.º, al. e) do Cód. Proc. Civil, julgo extinta a instância do apenso declarativo, por impossibilidade superveniente da lide.

Custas da responsabilidade da exequente que deu origem à inutilidade da acção (art. 450.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo art. 156.º, n.º 1, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

Notifique e registe.»
As partes foram notificadas dos despachos que se reproduziram, não tendo sido deduzida qualquer reclamação ou interposto qualquer recurso.
Em 22.06.2011, foi proferido no processo de execução o despacho Ref.ª 11776279, com o seguinte teor:

«Após análise dos autos principais, bem como do apenso, constato que não se acham acertados os meus despachos datados de 23/02/2011, proferido no apenso A, e de 28/03/2011, proferido no principal, ambos no pressuposto de que a execução aguardava impulso processual da exequente.

Só que não é bem assim, pois a razão de o processo de execução não ter sido tramitado nos últimos três anos deve-se a duas circunstâncias, a saber: por um lado, o despacho datado de 29/05/2007 proferido nos embargos de terceiro que determinou a suspensão destes embargos por causa prejudicial (pendência da acção ordinária n.º 667/05.3TBCVL, que corre termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã); por outro, a circunstância de a exequente não encontrar outros bens susceptíveis de penhora para além daquele que é objecto dos embargos.

Ora, exercendo a exequente um direito que não se discute do ponto de vista processual (aguardar pelo desfecho dos embargos de terceiro), e atento o efeito suspensivo da execução que tem o recebimento dos embargos, é óbvio que a falta de tramitação do processo de execução não lhe é imputável, tanto mais que, não sendo parte na dita Acção de Processo Ordinário nº 667/05.3TBCVL, não dispõe de mecanismos para lhe dar impulso processual.

O despacho datado de 23/02/2011, proferido no apenso de embargos de terceiro, transitou, entretanto, em julgado.

Só que a exequente reiterou já o seu interesse pela penhora do Lote de Terreno, pelo que seria a todos os títulos incompreensível que a exequente ficasse obrigada a instaurar nova execução, com base no mesmo título executivo.

Julgo que a melhor solução será considerar a vontade de a exequente em manter aquela penhora e, por via, disso, admitir a renovação da instância executiva quanto ao mesmo bem penhorado, aproveitando-se tudo o que foi processado relativamente a este bem, com fundamento no princípio da adequação formal (art. 265.º-A do CPC).

Penso ser esta a melhor adequação processual que se impõe fazer para que não sejam afectados os interesses de qualquer das partes.

Assim sendo, determino que a execução fique a aguardar o desfecho dos embargos de terceiro, sem prejuízo de a exequente nomear novos bens à penhora, e no que tange aos embargos, como não podia deixar de ser, mantêm-se os efeitos intraprocessuais decorrentes do despacho de 29/05/2007 (suspensão por causa prejudicial).

Notifique.»
Não se conformando com este último despacho, veio o embargante Município da (...)interpor recurso de agravo, apresentando as seguintes alegações:

Nos termos do artigo 687.º, n.º 1, 2.ª parte (conjugado com o artigo 678.º, n.º 2, do CPC), o fundamento da ora Recorrente assenta na ofensa de caso julgado em que, no seu entendimento, o Despacho de 22/06/2011 incorreu.

Ambos os Despachos foram devidamente notificados às Partes, não tendo qualquer uma delas recorrido e/ou reclamado dos mesmos (conforme foi oportunamente referido pela ora Recorrente, no seu requerimento de 02/09/2011 – referência 7946022),

Pelo que, nos termos do artigo 677.º do CPC, ambos os Despachos transitaram em julgado, passando a ter força de caso julgado.

Tal significa, no entendimento da ora Recorrente, que os mesmos não podiam ter sido modificados, pois a decisão neles contida tornou-se imodificável, ou seja, o Tribunal não poderia ter invertido a decisão subjacente aos Despachos de 23/02/2011 e de 28/03/2011.

Deste modo, e com o devido respeito, a Recorrente entende que o Despacho de 22/06/2011 (referência 11776279) – ao admitir “a renovação da instância executiva quanto ao mesmo bem penhorado”3 – pôs claramente em causa os princípios da certeza e segurança jurídica que o caso julgado visa proteger.

Recorde-se, aliás, que a Recorrente já havia até procedido ao levantamento da penhora sobre o lote de terreno aqui em causa, conforme certidão do registo predial junta ao requerimento da ora Recorrente de 02/09/2011 (referência 7946022),

Sendo que esta foi, em todo o caso, uma situação criada pela Exequente (e, por tal motivo, a ela imputável), uma vez que não reagiu quando devia ter reagido aos Despachos de 23/02/2011 e de 28/03/2011, pelo que contribuiu para que as referidas decisões transitassem em julgado, nos termos do mencionado artigo 677.º do CPC, com as consequências legais daí decorrentes.
Nem a exequente nem a executada apresentaram contra-alegações.
O M.º Juiz proferiu despacho de sustentação.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pela recorrente nas suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do CPC), sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o despacho recorrido é juridicamente sustentável com base no princípio da adequação formal que nele se invoca.

2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante encontra-se já definida no relatório da presente decisão, traduzindo-se no teor dos despachos que ali se reproduziram e para o qual se remete nesta sede.

3. Fundamentos de direito
Recapitulando a factualidade essencial: 1) no despacho de 23.02.2011 (Ref.ª 10454359), foi julgada deserta e em consequência extinta a instância na acção executiva; 2) no despacho de 28.03.2011 (Ref.ª 10839372), foi julgada “extinta a instância do apenso declarativo [embargos de terceiro], por impossibilidade superveniente da lide”; 3) as partes foram notificadas dos despachos que se reproduziram, não tendo sido deduzida qualquer reclamação ou interposto qualquer recurso; 4) no despacho recorrido, o M.º Juiz refere expressamente o trânsito em julgado dos anteriores despachos, invoca o princípio da adequação formal e decreta «a renovação da instância executiva».
O princípio da adequação formal encontra-se previsto no artigo 265.º-A do Código de Processo Civil, nestes termos: «Quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações.»
Como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro, o princípio enunciado é expressão do carácter funcional e instrumental da tramitação relativamente à realização do fim essencial do processo, não visa a criação de uma espécie de processo alternativo, da livre discricionariedade dos litigantes, visando antes possibilitar a ultrapassagem de eventuais desconformidades com as previsões genéricas das normas de direito adjectivo.
Especificando a vocação e alcance do princípio em causa, refere Carlos Lopes do Rego[1], que o mesmo se destina a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida ou à cumulação de vários objectos processuais a que correspondam formas procedimentais diversas, visando ultrapassar - através do estabelecimento de uma tramitação “sucedânea” - possíveis inadequações ou desadaptações das formas legal e abstractamente instituídas, no âmbito de qualquer tipo de processo.
No entanto, como acentua e enfatiza o autor citado, o princípio em causa visa a justa composição do litígio, que sempre terá que ser alcançada com “respeito integral pelos princípios essenciais estruturantes do processo civil”, nomeadamente os da igualdade das partes e do contraditório.
De acordo com o mesmo autor[2], na aplicação do princípio da adequação formal, deve o juiz, após audição das partes, fixar e especificar, no despacho que proferir, quais as alterações à tramitação-tipo que considera necessárias, estabelecendo, por uma única vez, todo o "plano” da tramitação sucedânea que estabelece para a causa, só assim ficando integralmente seguradas as garantias das partes, que devem, à partida, conhecer, sem quaisquer reservas ou limitações, todo o esquema de concreto processamento reservado para a acção. Estabelecido o plano da tramitação sucedânea, o seu desrespeito, no âmbito da causa em que o despacho foi proferido, implicará nulidade, nos termos genericamente previstos: na verdade, o desrespeito de decisão judicial vinculativa no âmbito de certo processo deve equivaler plenamente à violação da lei que rege sobre a marcha do processo.
Conclui Carlos Lopes do Rego[3], que o princípio da adequação formal deve permitir ao juiz a correcção ou o suprimento de uma (errónea) qualificação jurídica do meio processual erradamente utilizado pela parte, “não legitimando, todavia, uma convolação do meio procedimental efectivamente usado para outro - autónomo e substancialmente diferente - por tal contender com a estratégia processual livremente delineada pelos litigantes.[4]
Em suma, verificando o juiz que a tramitação legalmente prevista não se adequa às especificidades da causa, ouvidas as partes determina a prática dos actos que se ajustem a esse fim.
No entanto, como se colhe do apontamento doutrinário que antecede, o juiz encontra-se limitado, desde logo, por dois factores: i) pela estratégia processual livremente delineada pelos litigantes; ii) pelo integral respeito dos princípios essenciais estruturantes do processo civil[5].
Entendemos, salvo o devido respeito, que o despacho sob censura não respeitou os parâmetros enunciados.
Vejamos porquê.
A parte cujo interesse de alguma forma o despacho em causa visa proteger (exequente), foi notificada do despacho que declarou a extinção da instância executiva e não o impugnou, deixando-o transitar em julgado[6].
Por outro lado, sempre com o devido respeito, o despacho em apreço fere um dos princípios estruturantes do processo civil – o caso julgado.
O instituto do caso julgado (formal) vem previsto no artigo 672.º do CPC, nestes termos[7]: «Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo
A lei processual distingue nos artigos 671.º e 672.º do CPC, duas formas de caso julgado: a primeira, (art. 671.º) verifica-se quando a sentença aprecia a relação material controvertida; a segunda (art. 672.º), quando a decisão (seja ela sentença ou despacho) recai unicamente sobre a relação processual, quando não aprecia o fundo da acção.
O caso julgado formal traduz assim a força obrigatória dos despachos e das sentenças que recaiam unicamente sobre a relação processual, dentro do processo, consistindo o caso julgado material, na força obrigatória dentro e fora do processo.
Em suma, o caso julgado formal está ligado a questões processuais, onde não é discutida a relação material controvertida, só tendo força dentro do processo onde é proferida a decisão.
E essa força vincula não só os destinatários (partes), mas também o tribunal.
O instituto processual em apreço constitui corolário da obrigatoriedade e da prevalência das decisões dos tribunais, visando garantir o princípio enunciado nestes termos no n.º 2 do artigo 205.º da CRP[8]: «As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades»
O objectivo de pacificação social, prosseguido por toda a actividade jurisdicional ficaria irremediavelmente comprometido se a decisão final proferida num processo, ressalvados casos excepcionais legalmente tipificados, pudesse ser contrariada ou desautorizada por ulteriores decisões.
Na situação em apreço, como já se consignou, o M.º Juiz recorreu ao principio da adequação formal para superar as consequências negativas da omissão de diligência processual por parte da exequente, que, notificada do despacho que julgou extinta a instância executiva, se conformou com o mesmo, não o impugnando, permitindo assim o seu trânsito em julgado.
Do exposto decorre a conclusão de que o despacho recorrido, ressalvando sempre o respeito devido, viola os dois parâmetros que se enunciaram – interfere na estratégia processual livremente delineada pelos litigantes (in casu por omissão), não respeitando um dos princípios essenciais estruturantes do processo civil (caso julgado).
Acresce que no regime processual em vigor à data[9], após a prolação do despacho que determinou a extinção da instância executiva, na sequência da sua notificação, a exequente, caso discordasse, poderia interpor recurso de agravo, o que permitiria ao M.º Juiz a sua reparação, nos termos do n.º 1 do artigo 744.º do CPC., com fundamento no lapso que reconhece no despacho recorrido.
Decorre de todo o exposto, ressalvando sempre o respeito devido, que o despacho recorrido não é juridicamente sustentável, pelo que deverá ser revogado, mantendo-se a decisão anterior, transitada em julgado.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, decide-se julgar procedente o recurso de agravo, ao qual se concede provimento, revogando-se o despacho de 22.06.2011 [proferido no processo de execução], Ref.ª 11776279 e, em consequência, mantendo-se os despachos proferidos em 23.02.2011 [no apenso A - Embargos], Ref.ª 10454359, e o despacho proferido em 28.03.2011 [no processo de execução], Ref.ª 10839372, transitados em julgado.
Custas do recurso pelos Agravados.
                                                         *


Carlos Querido (Relator)


[1] Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2004, Almedina, pág. 261 a 264.
[2] Ob. cit., página 263.
[3] Ob. cit., página 264.
[4] Sublinhado nosso.
[5] Como refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I. Volume, 2.ª edição, Almedina, pág. 107: “o princípio da adequação formal não deve ir tão longe que permita o afastamento puro e simples do princípio da legalidade das formas processuais”.

[6] Como decidiu o STJ, em acórdão de 18.12.2007, proferido no Processo n.º 07A2774 (acessível em http://www.dgsi.pt): «Na decisão, e a sobrepor-se ao rigoroso formalismo adjectivo, está presente o princípio da igualdade das partes, não criando qualquer “deminutio” de uma em razão da menor diligência processual da outra

[7] Redacção aplicável a estes autos, anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24-08, considerando que a acção executiva foi intentada em 2003.
[8] Neste sentido veja-se, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora 2007, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 77 e 78. 
[9] Redacção aplicável a estes autos, anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24-08, considerando que a acção executiva foi intentada em 2003.