Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
888/04.6TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
PRESUNÇÕES
Data do Acordão: 01/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 412º, 3 E 4 DO CPP
Sumário: 1. A especificação dos “concretos pontos de facto só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.
2. Uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.
3. A exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova.
4. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação
5. O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido
6. O julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência
7. Estas presunções não são presunções de culpa. constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 888/04.6TAVIS que corre termos no Tribunal Judicial de Viseu, 2.º Juízo Criminal, por Sentença de 3/5/2010, a arguida I… foi condenada, como autora material da prática de um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 15 (quinze) euros, o que perfaz o montante global de 2.100 (dois mil e cem) euros, e, ainda, a pagar à ofendida “HM…, Ld.”, a quantia de quatro mil e dezasseis euros e vinte e cinco cêntimos, a título de indemnização civil, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos nos termos das condições de pagamento acordadas, ou seja, 50% a 30 dias e 50% a 60 dias, desde a data de emissão da respectiva factura e vincendos até efectivo e integral pagamento.
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B) Inconformada com a decisão recorrida, dela recorreu, em 7/6/2010, a arguida, pedindo a sua revogação, com a inerente absolvição, quer na vertente criminal, quer na vertente cível, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. A prova produzida e os demais elementos disponíveis permitiam ao Tribunal concluir que, realmente, não foi cometido crime algum, pois ficou demonstrado em juízo que a Arguida não praticou os factos que lhe foram imputados.
2. Pelo menos, o Tribunal sempre devia ter assumido dúvida razoável acerca dos factos imputados à arguida, o que determinaria a sua absolvição, à luz do basilar princípio in dubio pro reo.
3. A questão submetida a juízo era a de saber em que termos e em que contexto se processou a entrega de plantas a que alude o n.º 10 dos “factos provados”.
4. Concretamente, importava determinar se tal entrega decorreu de um artifício usado pela Arguida com o intuito de obter o fornecimento de certa mercadoria, estando já determinada a não pagar o respectivo valor, ou se, pelo contrário, tal entrega se destinou a substituir plantas que morreram, havendo acordo nesse sentido, bem assim no sentido de haver um acerto de contas.
5. O tribunal concluiu que tudo aconteceu em virtude de a Arguida ter arquitectado um plano destinado a obter uma vantagem pecuniária à custa de quem fez a entrega da mercadoria.
6. A decisão proferida foi condicionada e induzida por um pré-juízo que o Tribunal permitiu que se instalasse, levando-o a tirar ilações e a chegar a conclusões que não encontram apoio nos autos.
7. O Tribunal optou por desenvolver o raciocínio decisório com base na mera “interpretação literal” de umas comunicações subscritas pela Arguida, mesmo quando foi patente que a realidade das coisas era incompatível com essa literalidade.
8. Apesar de toda a demais prova produzida (em especial as três únicas testemunhas cujos depoimentos o Tribunal declarou credíveis), apontar em sentido inverso, o Tribunal ignorou ou desvalorizou essa prova.
9. O Tribunal percebeu que a Arguida foi vítima de um logro, de um embuste, perpetrado pela testemunha F....
10. O Tribunal também percebeu que, para manter o embuste, essa testemunha e três outras, articuladas entre si, mentiram em juízo, mas, ainda assim, a Arguida é que saiu condenada.
11. Não havendo elementos probatórios que sustentem realmente a decisão, afigura-se que, induzida pelo pré-juízo de que o Tribunal não se libertou, tal decisão terá assentado na íntima convicção, o que não é critério decisório aceitável, por incontrolável.
12. De resto, parte muito substancial da fundamentação evidencia um exercício especulativo, sendo tecidas considerações sem qualquer apoio nos autos.
13. Sem prejuízo de melhor opinião e sempre com o devido respeito, a sentença recorrida mostra-se desconforme à realidade dos autos.
14. Há erro na apreciação da prova, justificando-se a alteração da decisão da matéria de facto, no sentido acima referido e de acordo com os meios de prova também indicados.
15. Essa alteração atingirá os n.ºs 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15 e 16 dos “factos provados”.
16. E implicará que sejam dados como provados os factos acima elencados de 1 a 10 sob a epígrafe “factos que deveriam ter sido dados como provados”.
17. Tal alteração do quadro factual conduzirá a diferente solução jurídica e, por isso, à absolvição da Arguida.
18. Quanto à vertente cível, por inerência, também a Arguida deverá ser absolvida.
19. Mostra-se violado o disposto no artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, mostrando-se também violado o disposto nos artigos 483.º, 562.º e 566.º, do Código Civil.
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G) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu, em 2/9/2010, ao recurso da arguida, defendendo a sua improcedência total e, sem apresentar conclusões, argumentou, em resumo, o seguinte:
1. A Motivação de recurso não respeita os requisitos, no que tange à indicação das especificações previstas nas alíneas b) e c), do n.º 3 e n.º 4, do artigo 412.º, do CPP, na medida em que não indica especificadamente as provas que impunham relativamente a cada ponto uma decisão diversa quanto à matéria de facto.
2. Tal inviabiliza o conhecimento do recurso na parte atinente à matéria de facto que o recorrente pretende ver impugnado, cingindo-o à matéria de direito ou aos vícios apontados no n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.
3. Por isso, deve ter-se por assente e não impugnada a factualidade dada como provada.
4. A sentença recorrida não padece de erro notório na apreciação da prova.
5. Os pressupostos típicos do crime de burla estão verificados nos autos. ****
O recurso foi, em 7/9/2010, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 22/9/2010, emitiu douto parecer em que defendeu a improcedência total do recurso, salientando que “para evitarmos repetições, tomamos a liberdade de remeter para as considerações muito pertinentes sobre erro notório na apreciação da prova e livre apreciação da prova que a nossa Exma. Colega tece a fls. 554 e ss.”.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida: 2. Fundamentação
A) – Factos provados
1. A sociedade “HM…, Lda.” é uma sociedade por quotas cujo objecto social consiste na produção e comercialização de produtos agrícolas e agro-pecuários, agricultura, produtos agrícolas e viveiros, fruticultura, viticultura, culturas arvenses e outras, cujos sócios e gerentes são A......, F...... e P...., com sede no L…, matriculada em 8.01.2003, conforme certidão emitida pela respectiva Conservatória de Registo Comercial junta a fls. 121 a 124, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.
2. A sociedade “HM…, Lda.” é uma sociedade por quotas cujo objecto social consiste na produção e comercialização de produtos agrícolas e pecuários, cujos sócios são F......, H..., A...... e M..., sendo gerente o sócio A......, com sede no L…, matriculada em 18.12.1996, conforme certidão emitida pela respectiva Conservatória de Registo Comercial junta a fls. 115 a 118, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.
3. Em 19.01.2002, o marido da arguida, P..., adquiriu à sociedade “XB...... – ..., Lda.” 7 250 enxertos Tinta Roriz R110 e 7 250 Bacelo R110, para plantação na propriedade por si explorada, em P…, Viseu, tendo então pago o respectivo preço, no valor global de 12 911,96 euros, conforme factura junta a fls. 73.
4. Plantados tais enxertos em Viseu, vieram a morrer 7 250 desses enxertos de Bacelo R110, tendo a arguida ficado convicta que tal se devera à má qualidade desses mesmos enxertos.
5. Porquanto não conseguisse daquela sociedade indemnização pelo prejuízo sofrido com a morte desses enxertos, a arguida ciente de que a testemunha F... era sócio gerente da firma “XB...... – ..., Lda.” arquitectou um plano de modo a poder fazer-se ressarcir daqueles danos com que não se conformara.
6. Em 10 de Março de 2004, a arguida contactou telefonicamente com F..., à data, sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.” e sócio da sociedade ofendida “HM…, Lda.”, para o número 232470724, com vista à aquisição de 6250 enxertos prontos em R110.
7. Na sequência desse mesmo telefonema, nesse mesmo dia 10.03.2004, pelas 12,29 horas, a arguida enviou ao referido F... o fax junto a fls. 22, recepcionado através do n.º 232470724, solicitando a encomenda de 6250 enxertos prontos em R110 para uma propriedade situada em Fornos de Algodres, aguardando confirmação do pedido c condições de pagamento e informando que o local de entrega será na Estrada Alcafache, Viseu.
8. Em resposta a tal fax da arguida, foi enviado em papel timbrado da ofendida “HM…, Lda.”, um fax, enviado às 13,27 horas do dia 11.03.2004, dirigido à arguida, contendo a proposta de venda de enxertos prontos Trincadeira Preta P1103, quantidade 2000, valor total de 1 800 euros, e Trincadeira Preta R110, quantidade 4250, valor total de 3 825 euros, com as respectivas condições de pagamento sendo 50% a 30 dias e 50% a 60 dias, a validade da proposta era de 2 dias, conforme documento de fls. 23, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.
9. A arguida respondeu a tal proposta, novamente por fax enviado em 12.03.2004, pelas 11,19 horas, para o número 232470724, dirigido a F..., onde constava como assunto: compra de enxertos e onde estava escrito: recebemos o vosso fax e informamos que aceitamos as condições propostas apenas de Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, 4250 unidades, sendo o local de entrega Estrada Alcafache, Viseu, conforme documento de fls. 24, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.
10. Na sequência de tais negociações, no dia 18 de Março de 2004, a ofendida, cumprindo instruções da arguida, entregou ao sogro desta, em Estrada de Alcafache, Viseu, 4250 Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, em 17 caixas.
11. Após a entrega, à arguida da dita mercadoria, os legais representantes da ofendida contactaram a arguida com vista a obterem o pagamento por aquela do preço da mercadoria que lhe haviam entregue, no valor total de 3 825 euros, acrescido de IVA, ao que a arguida se escusou pagar.
12. Por fax enviado em 28.04.2004, para o número 232470724, junto aos autos a fls. 26, sob o Assunto: encomenda de 4250 plantas de trincadeira preta enxertos prontos em r110, a arguida escreveu adquirimos em 19/01/2002 7500 plantas (Bacelo r110) por intermédio do Eng. J..., responsável técnico pela Q…, conforme factura em anexo. Desde essa data, com visita a esta quinta de um responsável da vossa empresa para o comprovar, que demos conhecimento que as plantas morreram todas sem excepção, com o prejuízo daí decorrente em tempo (mais de 2 anos) e dinheiro disponibilizado na compra, plantação e tratamento das referidas plantas. Sem qualquer tipo de resposta com vista à resolução do problema por iniciativa do Eng. J...resolvemos voltar a pedir plantas, agora em menor quantidade e assumindo nós uma vez mais o arrancar das plantas mortas e plantação das novas plantas. Conforme fls. 26 cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.
13. Datada de 20.05.2004, a arguida enviou a carta junta a fls. 27, onde consta: Na sequência de nosso fax de 28 de Abril de 2004 cumpre-nos informar uma vez mais que estas facturas não são da nossa responsabilidade mas sim do Eng. J..., Q…, Penalva do Castelo, Só ele tem competência para resolver toda a situação criada por vós, uma vez que as plantas foram adquiridas por intermédio dele e nós limitamo-nos a contactar essa empresa, com a mesma morada, nºs de telefone e fax, para tentarmos abreviar a situação (mais de dois anos), uma vez que sempre que ele tentou entrar em contacto com a referida empresa não obteve qualquer tipo de resposta. Mais informamos que estamos abertos para contactos futuros tendo em vista a resolução do problema de modo a que ambas as partes não fiquem prejudicadas e sempre na presença do Eng. J.... Pelo exposto somos a enviar as respectivas facturas que consideramos não ser da nossa responsabilidade.
14. Ao encomendar as plantas mencionadas em 9, mostrando-se interessada na sua aquisição, solicitando informação sobre o preço e condições de pagamento das mesmas ao referido F... e recebendo tais plantas da ofendida, fazendo crer que pretendia de facto adquirir as mesmas e pagar o preço devido pela mercadoria adquirida, apesar de, desde o início de tal transacção, estar resolvida a não pagar o preço das mesmas, agiu a arguida com o intuito de fazer uma compensação com as plantas que haviam sido adquiridas à “XB...... – ..., Lda.” e que tinham morrido.
15. Com a sua conduta, a arguida conseguiu obter para si uma vantagem económica à qual não tinha direito, causando um prejuízo patrimonial à ofendida “HM…, Lda.”, de valor equivalente aos enxertos prontos Trincadeira Preta R110, na quantidade de 4250 e no valor total de 3 825 euros a que acresce IVA à taxa legal.
16. Agiu a arguida de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida.
Mais se provou que:
17. Na sequência da morte dos referidos 7 250 enxertos de Bacelo R110, foi realizada uma reunião na Q…, em Viseu, em que estiveram presentes as testemunhas: C..., responsável pela plantação da vinha, FM..., empregado da Quinta, F......, sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.”, bem como a arguida, com vista ao apuramento da responsabilidade pelo sucedido e de uma eventual reparação pela empresa fornecedora dos enxertos.
18. A arguida ainda não procedeu ao pagamento da referida mercadoria, no valor total de 3 825 euros, a que acresce IVA à taxa legal.
19. A arguida tem o mestrado em Gestão de empresas e, actualmente, dedica-se à exploração da Quinta do P…, em Viseu.
20. O marido da arguida é administrador de uma empresa e aufere um rendimento mensal superior a 5 000 euros.
21. A arguida vive em casa própria.
22. Tem 3 filhos, todos estudantes.
23. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida, constando do seu Certificado de Registo Criminal que os não tem. B) Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos supra. Designadamente, não se provou que:
1. Quando a arguida contactou telefonicamente e enviou o fax endereçado à testemunha F......, em 10.03.2004, estava ciente que o referido F......era sócio da queixosa “HM…, Lda.”
2. A arguida estivesse sempre ciente, durante os factos descritos em 6, 7, 8 e 9, que as Sociedades “HM…, Lda.” e “XB...... – ..., Lda.” eram duas Sociedades distintas.
3. Que na reunião ocorrida na Quinta do P…, em Viseu, estivesse presente a testemunha H....
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C) Motivação

Dar-se-á, de seguida, cumprimento ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, expondo-se os motivos de facto que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal, explicitando-se os fundamentos lógicos da decisão final.
A convicção do Tribunal para dar como provados os factos supra descritos resultou da apreciação crítica e selectiva de toda a prova produzida em audiência conexionada com as regras de experiência comum.
Designadamente, da análise dos documentos juntos aos autos, a fls. 22 e 24, faxes enviados para o número 232470724, dirigidos a F..., pela arguida; de fls. 23, fax recebido pela arguida com papel timbrado da ofendida; de fls. 25, documento rubricado pelo sogro da arguida aquando da recepção da encomenda de 4250 enxertos, efectuada pela arguida; de fls. 26, fax enviado pela arguida, em 28 de Abril de 2004, já após ter recepcionado os enxertos que encomendou à testemunha F...; de fls. 27, carta enviada pela arguida em 20 de Maio de 2004, onde declina a responsabilidade pelo pagamento das facturas.
Estes documentos foram analisados em audiência, designadamente pela arguida, que admitiu conterem a sua rubrica os faxes de fls. 22, 24 e 26, bem como a carta de fls. 27.
Valorou igualmente o Tribunal as certidões das matriculas das Sociedades “HM…, Lda.” e “XB...... – ..., Lda.”, juntas a fls. 113 a 124.
Valeu-se, ainda o Tribunal das declarações prestadas em audiência de julgamento pela arguida que admitiu ter sido ela quem assinou os faxes enviados a fls. 22, 24 e 26, bem como a carta de fls. 27.
Admitiu, ainda, a compra inicial efectuada pelo seu marido de 7 250 enxertos Tinta Roriz R110 e 7 250 Bacelo R110, para plantação na propriedade por si explorada, Quinta das R…, Viseu, tendo então pago o respectivo preço.
Explicou que a morte de tais enxertos se deveu à má qualidade destes, já que foram efectuados testes ao terreno e daí não se apurou existir qualquer problema. Referiu também as conversações existentes com o responsável pela empresa fornecedora de tais enxertos para que fossem substituídos, a testemunha F..., designadamente, uma reunião que ocorreu na Quinta do P… para se apurar responsabilidades e ressarcimento dos prejuízos.
Admitiu também a entrega em casa do sogro dos enxertos por si encomendados e que não foram pagos por si.
Nesta parte o Tribunal deu credibilidade às declarações da arguida, pois foram coerentes e foram, ainda, corroboradas pelas declarações das testemunhas J... e C..., a quem o Tribunal também deu credibilidade.
Na verdade, de todas as pessoas ouvidas em audiência de julgamento, apenas estas duas lograram convencer totalmente o Tribunal da veracidade, isenção e objectividade dos seus depoimentos.
Com efeito, foram coerentes em si e entre si, não falaram do que não sabiam, explicaram como chegaram à conclusão de que as mortes de parte dos primeiros enxertos fornecidos ao marido da arguida não se deveu a morte natural nem a qualquer causa ligada ao terreno.
Os seus depoimentos foram serenos, de voz firme e convicta, olhando nos olhos quando falavam, sem hesitações nem contradições, foram razoáveis, objectivos, convictos, permitindo ao Tribunal formar a sua convicção.
Contudo, o Tribunal não acreditou quando a arguida contou a sua versão no que se refere aos faxes trocados.
Por um lado, porque a arguida tentou fazer crer que não os lia sequer, limitava-se a passar na empresa do marido e assinava tais faxes. Ora, tendo a arguida as habilitações que tem, possui um mestrado em Gestão de Empresas, não é credível que assine correspondência sem saber o que assina.
Por outro lado, não logrou convencer o Tribunal com a sua explicação para o facto de tais faxes se referirem a uma compra e venda, perfeitamente normal, onde se fala do preço a pagar, e não fazerem a mínima referência ao alegado acordo para entrega de enxertos em substituição dos primeiros que morreram, a título gratuito.
Com efeito, caso a arguida ainda estivesse em negociações com o responsável da sociedade “HM…, Lda.”, a testemunha F......, para a substituição dos enxertos que morreram, sem nada pagar, como pretendeu fazer crer, não faria sentido que dos faxes trocados constasse o preço que iria ser pago por tal transacção e, em parte alguma desses faxes, houvesse a mais ínfima referência ao acordo de substituição de enxertos mortos.
Aliás, se os faxes eram enviados da empresa do marido, escritos pela secretária deste segundo as suas indicações, se o primeiro negócio foi realizado com o marido da arguida e o segundo se destinava a substituir os primeiros enxertos fornecidos que morreram, sem qualquer custo, o mais razoável é que tais faxes fossem assinados pelo próprio marido da arguida e não por ela.
Ora, é precisamente por tais faxes estarem assinados pela arguida e fazerem referência a uma normal compra e venda que o Tribunal se convenceu que a arguida, descontente com a não reposição por parte da empresa fornecedora dos primeiros enxertos, após as negociações ocorridas e a reunião realizada na Quinta, que eventualmente se frustraram ou pelo tempo já decorrido sem efectuar nova plantação, decidiu fazer-se reparar dos prejuízos com recurso ao expediente em causa.
Ou seja, decidiu ser ela a fazer a encomenda e a mandar entregar os enxertos em lugar diferente da quinta do Paraíso, pois, caso a entrega fosse ali, poderiam ter desconfiado, face aos desencontros que necessariamente existiam quanto aos enxertos mortos entre o marido da arguida e a empresa representada pela testemunha F....
É certo que o Tribunal não apurou que a arguida alguma vez tenha estado ciente que a sociedade com quem contratou fosse outra que não a sociedade fornecedora dos primeiros enxertos, pois que, quer da primeira vez quer da segunda terá sido a testemunha F... a pessoa que agiu em nome de cada uma das empresas envolvidas. Também porque as respectivas sedes ficavam no mesmo local, as firmas de uma e de outra incluem o nome M… e são mesmo firmas parecidas, podendo ser confundidas facilmente. Também porque o n.º de telefone que a arguida usou para contactar o referido F... foi o mesmo que constava na factura do primeiro fornecimento.
Assim, o Tribunal acredita que a arguida estivesse ciente de se estar a fazer ressarcir do seu prejuízo pela empresa que, na sua óptica, tinha enganado o seu marido, não querendo repor os enxertos que morreram. Até porque a pessoa com quem sempre lidou era a testemunha F... que é sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.” e sócio da sociedade ofendida “HM…, Lda.”.
Para esta convicção do Tribunal, foram valoradas também as declarações prestadas pelas testemunhas J... e C..., pois, ambas referiram ser normal que as empresas do ramo substituam os enxertos quando estes morrem em grande quantidade. Tendo igualmente referido a reunião na Quinta da arguida para se apurar as causas das mortes e a substituição dos enxertos.
Ambas referiram também não fazerem ideia, à data da segunda entrega, da existência da sociedade ofendida nestes autos, para eles fora a primeira sociedade quem entregou os segundos enxertos, que pensavam ser para substituição dos primeiros.
A testemunha C... referiu também que na reunião realizada na Quinta com a testemunha F... foi acordada a entrega de outras vides para substituição das primeiras e que seria feito um acerto de contas entre as partes.
Contudo, pese embora o Tribunal se tenha convencido que existiu algum tipo de acordo com a testemunha F..., para substituição dos enxertos que morreram, não se convenceu que a encomenda realizada através dos faxes trocados entre a arguida e a referida testemunha F..., tivesse sido ao abrigo deste mesmo acordo, pois que, notoriamente não chegaram a um acordo final, o que motivou a arguida a agir da forma que o fez, fazendo acreditar estar a fazer uma encomenda que se propunha pagar.
Aliás, só tal versão pode justificar que nos faxes trocados antes da entrega dos referidos enxertos nunca conste qualquer referência ao acordo em causa nem à substituição dos enxertos mortos, da eventual reparação ou do acerto de contas a ser feito para, já depois da entrega, ter existido um fax onde a arguida refere: “a aquisição em 19/01/2002 de 7500 plantas (Bacelo r110) por intermédio do Eng. J..., responsável técnico pela Q…. Desde essa data, com visita a esta quinta de um responsável da vossa empresa para o comprovar, que demos conhecimento que as plantas morreram todas sem excepção, com o prejuízo daí decorrente em tempo (mais de 2 anos) e dinheiro disponibilizado na compra, plantação e tratamento das referidas plantas. Sem qualquer tipo de resposta com vista à resolução do problema por iniciativa do Eng. J...resolvemos voltar a pedir plantas, agora em menor quantidade e assumindo nós uma vez mais o arrancar das plantas mortas e plantação das novas plantas.”
E que fosse também enviada pela arguida a carta junta a fls. 27, de onde consta: “Na sequência de nosso fax de 28 de Abril de 2004 cumpre-nos informar uma vez mais que estas facturas não são da nossa responsabilidade mas sim do Eng. J..., Quinta da V…, Penalva do Castelo, Só ele tem competência para resolver toda a situação criada por vós, uma vez que as plantas foram adquiridas por intermédio dele e nós limitamo-nos a contactar essa empresa, com a mesma morada, nºs de telefone e fax, para tentarmos abreviar a situação (mais de dois anos), uma vez que sempre que ele tentou entrar em contacto com a referida empresa não obteve qualquer tipo de resposta. Mais informamos que estamos abertos para contactos futuros tendo em vista a resolução do problema de modo a que ambas as partes não fiquem prejudicadas (…).”
Ora, neste último fax e carta enviados pela arguida, mais uma vez, de parte alguma resulta a existência de um acordo que estivesse subjacente à troca de faxes entre a arguida e a testemunha F....
Pelo contrário, parece resultar uma decisão da arguida em resolver o “problema” à “sua maneira”, senão, que outro sentido teria para escrever nós limitamo-nos a contactar essa empresa, com a mesma morada, nºs de telefone e fax, para tentarmos abreviar a situação (mais de dois anos), uma vez que sempre que ele tentou entrar em contacto com a referida empresa não obteve qualquer tipo de resposta.
Ou seja, estando cansada de esperar mais de dois anos por uma solução, decidiu agir da forma que o fez, encomendando enxertos para substituir os que morreram, que não pretendia pagar, mas dando a entender que o pretendia fazer.
Quanto às testemunhas de acusação, F......, A...... e H..., todos irmãos e, de uma forma ou de outra, ligados às duas sociedades em questão, o Tribunal não lhes deu credibilidade, salvo quando os seus depoimentos foram corroborados pelos documentos acima referidos ou pelas declarações da arguida (na parte em que acima se referiu terem merecido credibilidade) e das testemunhas J... e C....
Com efeito, os seus depoimentos foram subjectivos, pouco coerentes, sendo notório de toda a sua postura em audiência de julgamento o seu interesse no desfecho deste processo.
Por exemplo, as testemunhas H… e F... tentaram fazer crer que na Reunião na Quinta da arguida quem esteve presente foi a testemunha H... e não a testemunha F.... Não acreditou o Tribunal, já que, como acima se referiu, o Tribunal acreditou no depoimento da testemunha C... que foi absolutamente convincente quando referiu ter sido a testemunha F...... a estar naquela reunião e não a testemunha F… .
O Tribunal também lhes deu pouca credibilidade quando quiseram fazer crer que o marido da arguida, P..., nunca pagou a factura referente aos primeiros enxertos que recebeu.
Ora, caso tal factura nunca tivesse sido paga, não haveria qualquer motivo para a arguida se sentir prejudicada com as mortes ocorridas e para fazer o que fez.
Mas também, porque afirmaram que estava em Tribunal uma acção interposta pela sociedade “XB...... – ..., Lda.”, para cobrança de tal factura, sendo que apesar de ter sido ordenada a junção da certidão da Petição Inicial da referida acção e do estado dos autos, directamente à testemunha F... e à testemunha A......, mais tarde também através do mandatário da ofendida, jamais fizeram tal junção.
Assim, atento o tempo decorrido desde a entrega dos enxertos em causa, Janeiro de 2002 até ao presente, mais de sete anos, não se afigura credível que tal factura não estivesse efectivamente paga, caso contrário teria sido interposta realmente uma acção judicial para obter o seu pagamento coercivo e, neste caso, nenhum motivo haveria para não ter sido junta a certidão ordenada pelo Tribunal e com tantas insistências como foram feitas, quer pelo defensor da arguida quer pelo Tribunal, ao longo de várias sessões da audiência de julgamento, sem que tivesse sido apresentada qualquer justificação para a sua não entrega.
Também não acreditou o Tribunal que, estando as duas empresas sediadas no mesmo edifício, tendo os funcionários da empresa “XB...... – ..., Lda.” transitado para a empresa “HM…, Lda.”, (como foi dito em audiência pelas referidas testemunhas) sendo sócios e gerentes da primeira as testemunhas A...... e F...... e sendo sócios da segunda os referidos F...... e A......, este também gerente, não soubesse dos problemas ocorridos com a morte dos referidos enxertos, da pretensão de que fossem substituídos, da reunião existente na Quinta para apuramento das causas, até ser enviada a carta junta a fls. 27 pela arguida, como quis fazer crer a testemunha A.......
Também a forma como falavam, demonstrando nervosismo e irritação com as perguntas do defensor da arguida, não contribuiu para lhes dar credibilidade.
O Tribunal não acreditou igualmente no depoimento da testemunha N... quanto também quis fazer crer, na sua qualidade de Técnico Oficial de Contas da ofendida e da sociedade “XB...... – ..., Lda.” que estaria ainda em divida a factura emitida em nome do marido da arguida.
Na verdade, a forma como depôs e porque trabalha para ambas as sociedades, levou o Tribunal a pensar que veio dizer o que lhe pediram que dissesse, parecendo um depoimento “encomendado”.
Quanto à reunião na Quinta, às pessoas que ali estiveram presentes e ao motivo da mesma, valorou também o depoimento da testemunha FM..., que foi ouvida oficiosamente pelo Tribunal, por ter sido referido em audiência que a mesma teria estado na reunião em causa na Quinta da arguida.
Sendo certo que inicialmente disse apenas conhecer a testemunha C..., das que lhe foram apontadas e onde também se encontravam as testemunhas F......, H... e A......, tendo depois apontado para a testemunha F... como tendo estado na referida reunião da Quinta.
Porém, ao Tribunal não lhe pareceu que estivesse instrumentalizado para dar tal resposta ou que estivesse a mentir.
Na verdade, tendo esta testemunha trabalhado para a arguida durante alguns anos, na referida Quinta, bem poderia ter sido indicada como testemunha de defesa por esta, se fosse possível levá-la a mentir tão facilmente, já que foi o Tribunal quem decidiu ouvir esta testemunha.
Por outro lado, referiu não ser saber o nome da pessoa que apontou, ora, caso o seu depoimento tivesse sido previamente preparado, também poderia facilmente dizer que sabia ser F..., por ouvir chamar-lhe tal nome quando estivera na Quinta, o que não aconteceu.
Esta testemunha também referiu que existiram conversações para substituição dos enxertos que morreram.
As condições familiares, sociais e económicas da arguida resultaram das suas declarações, à falta de outros elementos de prova.
A ausência de antecedentes criminais da arguida resultou do teor do seu Certificado de Registo Criminal de fls. 337 dos autos.


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3. Os Fatos e o Direito

A arguida vem acusada por factos susceptíveis de integrar a prática em autoria material de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
Segundo este preceito legal, comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem a si ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.”
Como se pode ler no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 275, “a burla recobre situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial.”
O tipo legal do crime em análise tutela o património enquanto bem jurídico fundamental na organização da nossa comunidade.
O tipo objectivo preenche-se com a verificação dos seguintes pressupostos:
- Colocar terceiro em erro por factos astuciosamente causados pelo agente;
- Conduzir o enganado, por força do engano, a praticar actos determinantes de prejuízo patrimonial.
A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduzindo-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos próprios ou alheios (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 293).
O tipo subjectivo, por seu turno, preenche-se com o actuar doloso (em qualquer das suas formas), a ele acrescendo o elemento subjectivo específico que se traduz na intenção de obter enriquecimento ilegítimo através do engano de terceiro.
Ora, resultou provado que por não conseguir da sociedade “XB...... – ..., Lda.” uma indemnização pelo prejuízo sofrido com a morte dos enxertos que o seu marido havia adquirido aquela sociedade, a arguida arquitectou um plano de modo a poder fazer-se ressarcir daqueles danos com que não se conformara.
Assim, em 10 de Março de 2004, a arguida contactou telefonicamente com F..., à data, sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.” e sócio da sociedade ofendida “HM…, Lda.”, para o número 232470724, com vista à aquisição de 6250 enxertos prontos em R110.
Na sequência desse telefonema, nesse mesmo dia, pelas 12,29 horas, a arguida enviou ao referido F... o fax junto a fls. 22, recepcionado através do n.º 232470724, solicitando a encomenda de 6250 enxertos prontos em R110 para uma propriedade situada em Fornos de Algodres, aguardando confirmação do pedido e condições de pagamento e informando que o local de entrega era na Estrada Alcafache, Viseu.
Em resposta a tal fax da arguida, foi enviado um fax, às 13,27 horas do dia 11.03.2004, contendo a proposta de venda de enxertos prontos Trincadeira Preta P1103, quantidade 2000, valor total de 1 800 euros, e Trincadeira Preta R110, quantidade 4250, valor total de 3 825 euros, com as respectivas condições de pagamento sendo 50% a 30 dias e 50% a 60 dias, a validade da proposta era de 2 dias.
A arguida respondeu a tal proposta, por fax enviado em 12.03.2004, pelas 11,19 horas, para o número 232470724, dirigido a F..., onde dizia: recebemos o vosso fax e informamos que aceitamos as condições propostas apenas de Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, 4250 unidades, sendo o local de entrega Estrada Alcafache, Viseu.
Na sequência de tais negociações, no dia 18 de Março de 2004, a ofendida, cumprindo instruções da arguida, entregou ao sogro desta, em Estrada de Alcafache, Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, em 17 caixas.
Após a entrega, à arguida da dita mercadoria, os legais representantes da ofendida contactaram a arguida com vista a obterem o pagamento por aquela do preço da mercadoria que lhe haviam entregue, no valor total de 3 825 euros, acrescido de IVA, ao que a arguida se escusou pagar.
Assim, ao trocar os referidos faxes com o referido F..., que a arguida estava ciente de ser sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.”, a arguida quis fazer-lhe crer que pretendia comprar 4250 Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, estando disposta a pagar o respectivo preço, no valor de 3 825 euros, acrescido de IVA, levando-o a confiar e a entregar na morada indicada pela arguida a referida mercadoria.
A arguida agiu sempre de modo livre, voluntário e conscientemente, com o propósito concretizado de obter para si um enriquecimento ilegítimo, através do engano que astuciosamente provocou no referido F..., à data, sócio e gerente da “XB...... – ..., Lda.” e sócio da sociedade ofendida “HM…, Lda.”
Porquanto, da factualidade apurada, resulta que a arguida usou de astúcia ou engenho, fazendo uma encomenda por escrito, após contacto telefónico, para lograr convencer terceiro (a sociedade “XB...... – ..., Lda.”) através do seu sócio e gerente, F..., a entregar-lhe os enxertos que encomendou e que nunca pretendeu pagar, numa morada diferente da Quinta onde haviam sido entregues os enxertos que morreram e estavam na origem do conflito entre o marido da arguida e a referida sociedade.
Ora, caso não tivesse feito tal encomenda por escrito, em seu próprio nome em vez do nome do seu marido e para entrega numa morada distinta daquela onde os primeiros enxertos foram entregues e fazendo ainda referência que se destinavam a uma Quinta em Fornos de Algodres, bem sabia que o referido F... (gerente da referida sociedade) poderia não estar disposto a entregar-lhe tal mercadoria sem pagamento imediato, pois o conflito que existia poderia tê-lo levado a desconfiar das intenções da arguida, o que não ocorreu atento o expediente por esta engendrado.
Assim, porque a consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), teremos de concluir, face à facticidade provada, que o tipo objectivo se mostra assim preenchido.
O mesmo se diga quanto ao tipo subjectivo, pois, a arguida actuou, de modo livre e voluntário, com conhecimento de todos os factos, pretendendo induzir por meio de artifício, encomenda por escrito, com utilização do seu nome em vez do nome do marido, indicação de um local para entrega diferente da Quinta onde iam ser plantados os enxertos e até a referência a uma Quinta em Fornos de Algodres, o referido F... a entregar-lhe 4250 Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, que tinha intenção de nunca lhe pagar, pois pretendia fazer uma compensação com os prejuízos que entendia ter sofrido.
Efectivamente, a arguida usou de artifício, pois fez uma encomenda ao referido F... (representante da ofendida) de 4250 unidades de enxertos prontos Trincadeira Preta (tinta amarela) R110, fazendo crer àquele F... que pretendia pagar o respectivo preço, quando efectivamente não o pensava fazer, pois o que pretendia efectivamente fazer era uma compensação com o valor dos enxertos que o seu marido havia comprado e que morreram.
Contudo, a sociedade fornecedora dos enxertos ao marido da arguida nem sequer era a mesma sociedade que lhe forneceu os enxertos que encomendou. Facto que contudo a arguida podia não ter sabido no momento em que decidiu agir como agiu, pois que, não se provou que a arguida estive ciente, durante a troca de faxes que motivou a encomenda e a entrega dos enxertos, que as Sociedades “HM…, Lda.” e “XB...... – ..., Lda.” eram duas Sociedades distintas.
Não obstante, a arguida veio a ter conhecimento de tal facto, pelo menos, antes de 20.05.2004, porque do teor da carta enviada pela arguida e junta a fls. 27, refere que “nós limitamo-nos a contactar essa empresa, com a mesma morada, nºs de telefone e fax, para tentarmos abreviar a situação (mais de dois anos), uma vez que sempre que ele tentou entrar em contacto com a referida empresa não obteve qualquer tipo de resposta.”
Assim, ao constatar que se tratava de empresas diferentes podia e devia a arguida ter pago a mercadoria por si adquirida, bem como, ter interposto uma acção judicial contra a sociedade “HM…, Lda.”, para ressarcimento dos danos que entendia ter sofrido e terem sido causados por esta empresa.
Assim, ao não o ter feito e agindo como agiu, a arguida obteve um enriquecimento ilegítimo para si à custa de consequente empobrecimento da ofendida “HM…, Lda.”, existindo, pois, um nexo causal entre o enriquecimento da arguida e o empobrecimento da ofendida, verificando-se, ainda, a falta de causa justificativa de tal enriquecimento (cfr. Acórdão do STJ de 23.01.1997, BMJ, 463.º, pág. 276).
Mostra-se, desta forma, estarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivo do crime de burla de que a arguida vinha acusada, impondo-se a sua condenação.

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Da escolha e medida concreta da Pena
Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida, importa agora determinar a natureza e medida da pena a aplicar-lhe pelo crime praticado.
Para o tipo de crime de burla prevê a lei penal a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Estabelece, assim, a Lei para este tipo de crime, em alternativa, uma pena de prisão e uma pena não privativa de liberdade, pelo que, atento o disposto no artigo 70.º do Código Penal, deve o Tribunal dar preferência à pena não privativa da liberdade, desde que essa realize de uma forma adequada as finalidades da punição (cfr. artigo 40º, do Código penal).
As necessidades de prevenção geral não são acentuadas, atendendo a que não se trata de um crime muito praticado nesta comarca, pese embora a necessidade de se fazer respeitar as regras de mercado e a protecção de quem negoceia com outrem.
As exigências de prevenção especial também não são acentuadas, considerando o motivo que determinou a arguida a actuar da forma que actuou, designadamente por se ter sentido ela própria enganada pela sociedade “XB...... – ..., Lda.” cujo sócio gerente é também sócio da sociedade ofendida, a “HM…, Lda.”, a pessoa com quem negociou, o referido F..., e a falta de antecedentes criminais da arguida.
Assim, tudo ponderado, afigura-se ser a pena de multa a sanção mais adequada à punição da presente situação, por que se mostra ser suficiente para acautelar as necessidades de prevenção geral e especial, pelo que se opta pela mesma, em detrimento da pena de prisão.
Atentemos, agora, na determinação concreta da medida da pena.
Nesta, por imperativo legal, tem de atender-se à culpa do agente, às exigências de prevenção geral e especial e a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor da arguida, desde que não façam parte do tipo legal de crime.
A culpa funcionará ao mesmo tempo como fundamento e limite inultrapassável da pena a aplicar ao agente funcionando as exigências de prevenção geral como o mínimo da moldura de prevenção a estabelecer e atingindo-se a medida ideal da pena, com o funcionamento, entre esses dois limites, da prevenção especial.
As exigências de prevenção geral e especial são as já acima referidas.
A arguida actuou com dolo directo embora a sua culpa não seja elevada, pois que, ela própria se sentiu enganada pela sociedade “XB...... – ..., Lda.”, que havia fornecido ao marido os enxertos que morreram e, após negociações para substituição de tais enxertos, que se arrastaram no tempo, sem solução, a arguida decidiu agir por conta própria e fazer “justiça por mãos próprias”.
É evidente que a arguida não podia ter agido dessa forma, até porque acabou por causar danos a uma outra sociedade, a ofendida “HM…, Lda.”, em vez da sociedade causadora do seu próprio prejuízo, todavia, a sua conduta não foi desencadeada sem qualquer motivo forte, antes foi motivada pelo descontentamento causado pela conduta já mencionada, o que acabou por lhe retirar discernimento.
A arguida não confessou integralmente e sem reservas os factos, mas ainda assim as suas declarações contribuíram decisivamente para a descoberta da verdade, ao assumir ter assinado e enviado os faxes que motivaram a entrega dos enxertos e o fax e carta enviados posteriormente, os quais conjugados com as regras de experiência comum e com as restantes declarações da arguida e das testemunhas J... e C..., levaram à convicção do Tribunal.
Como agravante, a arguida tem contra si o não ter ainda ressarcido à sociedade ofendida, pois que, pelo menos, decorrido algum, apercebeu-se que se tratava de uma sociedade distinta daquela com quem o seu marido havia negociado e, por isso, deveria ter regularizado as contas com a ofendida e, caso assim o entendesse, intentar acção própria para ser ressarcida dos seus prejuízos contra a sociedade que estava em falta consigo, a “XB...... – ..., Lda.”
A situação económica da arguida é desafogada e a mesma encontra-se inserida social e profissionalmente.
Tudo ponderado e tendo em conta a moldura penal aplicável, decide-se aplicar à arguida pela prática de um crime de burla, a pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 15 (quinze) euros, o que perfaz a multa global de € 2 100,00 (dois mil e cem euros);
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4. Do Pedido de Indemnização Civil
A ofendida “HM…, Lda.” veio deduzir pedido de indemnização civil, requerendo que a arguida seja condenada a pagar-lhe a quantia de 4 016,25 euros, acrescida de juros legais vencidos e vincendos.
O pedido de indemnização civil, em obediência ao fixado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, funda-se na prática de um crime, assim, a causa de pedir do pedido civil analisa-se unicamente no facto criminoso.
Importa, então, averiguar se os factos dados como provados integram os pressupostos da responsabilidade civil.
Dispõe o artigo 483.º, do Código Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 129.º, do Código Penal, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Assim, os pressupostos da cuja verificação depende a aludida responsabilidade são a acção, a antijuridicidade, a culpa do agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Vejamos.
No presente caso, temos como certo que a arguida fez uma encomenda à ofendida de Enxertos Prontos Trincadeira Preta (Tinta Amarela) R110, 4250 unidades, os quais foram entregues no dia 18 de Março de 2004, sendo o valor destes de 3 825 euros, acrescido de IVA à taxa legal.
As condições de pagamento aceites pela arguida foram de 50% a 30 dias e 50% a 60 dias.
Ou seja, a arguida aceitou pagar metade do valor da factura decorridos 30 dias sobre a sua emissão e o restante valor no prazo de 60 dias.
Como resulta da factualidade provada, não obstante a arguida ter transmitido à ofendida a sua intenção de comprar os referidos enxertos, pagando o correspondente preço, o certo é que nunca teve intenção de proceder a tal pagamento, pois a sua real intenção era a de fazer uma compensação entre esses enxertos encomendados os enxertos que haviam morrido e que o seu marido havia comprado.
Porque a arguida ao agir da forma que o fez levou a ofendida a fornecer-lhe uma mercadoria que não lhe entregaria caso soubesse das reais intenções da arguida, esta através de um logro obteve um enriquecimento indevido à custa do património da ofendida, pelo que praticou um facto ilícito.
Além de ilícita, a conduta da arguida é culposa, isto é, a arguida agiu com dolo, como acima já se deixou escrito.
Constituiu-se, deste modo, a arguida em responsabilidade civil por facto ilícito e na consequente obrigação de indemnizar os danos sofridos pela ofendida “HM…, Lda.” Social, conforme artigos 483.º, n.º 1 e 562.º, ambos do Código Civil.
O dever de indemnizar por parte do responsável civil compreende todos os danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes da sua conduta, que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, visando-se, assim e segundo a “teoria da diferença”, repor o lesado na situação que teria se não ocorresse o facto lesivo, computando-se a indemnização em dinheiro se a reconstituição in natura não for possível – artigos 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil (vide, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume. I, pág. 660).
Ora, comprovada que está a existência de danos patrimoniais por parte da demandante, no valor de 4 016,25 euros, correspondente ao montante dos enxertos acrescido do IVA à taxa legal que forneceu, sobre a arguida impende a obrigação de repor a situação que existiria se não ocorresse o crime.
Sobre esta quantia, acrescem os respectivos juros legais, vencidos nos termos das condições de pagamento acordadas, ou seja, 50% a 30 dias e 50% a 60 dias, desde a data de emissão da respectiva factura e vincendos até efectivo e integral pagamento.”
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III. Apreciação dos Recursos:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
As declarações oralmente prestadas em audiência foram documentadas em acta por referência aos respectivos suportes áudio, nos termos estipulados no artigo 363.º do C.P.P.
Deste modo, deverá conhecer este Tribunal de facto e de direito, de acordo com o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P. A questão a conhecer é a seguinte:
1. Saber se deve haver alteração da matéria de facto, no sentido da absolvição da arguida, em toda a sua extensão (criminal e cível).
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Na Motivação do seu recurso, a arguida defende que “há erro na decisão sobre a matéria de facto. Por um lado, dentro dos “factos provados”, há pontos, imprecisões, deficiências ou excessos que devem ser corrigidos. Por outro lado, não foram dados como provados factos que foram devidamente demonstrados em juízo.”
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No que diz respeito aos factos provados, aponta o seguinte:
- “n.º 4: peca por deficiente e por impreciso, porquanto foi demonstrado que a morte das plantas não ocorreu por circunstâncias naturais, nem se deveu ao terreno onde foram plantadas, outrossim à sua má qualidade. Assim, deveria ter sido dado como provado isso mesmo, e não apenas que era essa a convicção da arguida;
- n.º 5: nada se provou nos termos aí vertidos, pois se apurou que o segundo fornecimento de plantas ocorreu no âmbito de um acordo de substituição das plantas mortas, mais se apurando que seria feito um acerto de contas;
- n.ºs 6, 7, 9 e 12: como resulta do teor de fls. 22, 23, 24 e 26, não pode a arguida ter telefonado ou enviado fax para o n.º 232470742, pois esse é o “seu número”, o número de onde remeteu os seus faxes, sendo outro o número de destino;
- n.º 8: deve ser corrigido no sentido de que o fax aí referido (cfr. Fls. 23) foi remetido à arguida pela testemunha F..., tendo este usado papel timbrado da firma “HM…, Lda.”;
- n.º 10: apenas pode ser dada como provada a entrega aí referida, mais se dando como provado que isso ocorreu em harmonia com as indicações que a arguida deu à testemunha F..., tudo porque a arguida não tinha conhecimento da existência da firma aí referida, nada tendo contratado com a mesma;
- n.º 11: deve ser reformulado de modo a expressar a realidade, isto é, a arguida não pagou o valor reclamado pela simples razão de que não era suposto haver qualquer pagamento nesse contexto, outrossim um encontro de contas, tal como fora acordado com a testemunha F...;
- n.º 14: pura e simplesmente, não se provou nada do que aí consta, pois a actuação da arguida ocorreu no contexto de um acordo feito, na presença de testemunhas, com a testemunha F..., no sentido de que seriam fornecidas plantas para substituir as que tinham morrido, havendo depois acerto de contas;
- n.ºs 15 e 16: o respectivo teor fica prejudicado por não se ter provado o referido no n.º 14.”
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Por sua vez, entende, também, que “o Tribunal desconsiderou, desvalorizou ou omitiu factos que foram cabalmente demonstrados em juízo, factos esses que têm a virtualidade de demonstrar que jamais poderia a arguida ter sido condenada.
Por via disso, segundo a sua perspectiva, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
“1. A morte das plantas referidas no n.º 4 dos factos provados não se deveu a causa natural, nem ao terreno onde foram plantadas, mas à sua má qualidade;
2. A reunião referida no n.º 17 dos factos provados foi a única, no âmbito da questão em apreço, em que esteve um representante da entidade vendedora (a testemunha F...);
3. É normal as empresas do ramo substituírem as plantas fornecidas, quando estas morrem em grande quantidade e não é de atribuir essa morte a causa natural ou ao terreno onde são plantadas;
4. Na referida reunião, foi acordada entre a arguida e a testemunha F... a entrega de outras plantas para substituição das primeiras e que seria feito um acerto de contas entre as partes;
5. O contacto telefónico referido no n.º 6 dos factos provados e o envio do fax referido no n.º 7 dos factos provados ocorreram em momento posterior à reunião a que alude o n.º 17 dos factos provados;
6. Nunca, em momento algum (quer naquela reunião, quer nos posteriores contactos telefónicos ou por fax), a testemunha F... declarou que não actuava em representação da XB...... – ..., Lda.”;
7. Em momento algum, e pelo menos até à entrega das plantas referidas no n.º 10 dos factos provados, a arguida e as testemunhas J... e C... se aperceberam de que existia a firma H M…, Lda.”;
8. Menos ainda se aperceberam de que a testemunha F... actuasse em representação desta última firma, sendo certo que a testemunha F... nada referiu a esse propósito;
9. Em momento algum, quer na reunião referida no n.º 17 dos factos provados, quer nos contactos (por telefone ou fax) mantidos com a testemunha F..., a arguida agiu com o intuito ou o propósito de não pagar à firma representada por aquele;
10. Embora tenha estado presente na reunião referida no n.º 17 dos factos provados e embora aí tenha acordado com a arguida a substituição das plantas e a realização de um acerto de contas, a testemunha F... dirigiu à arguida, no dia 28/4/2004, o fax de fls. 160, cujo teor é incompatível com a conduta que assumiu perante a arguida e as testemunhas C... e FM....”
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Ao impugnar o julgamento da matéria de facto, nos termos acima descritos, a recorrente, conforme fls. 532, e na sua Motivação, entende quehá erro na decisão sobre a matéria de facto”.
E, na sequência disso, no n.º 14 das suas Conclusões, afirma quehá erro na apreciação da prova, justificando-se a alteração da decisão da matéria de facto, no sentido acima referido e de acordo com os meios de prova também indicados.”
Pois bem, impõe-se deixar claro, para que fique clarificada a abordagem à questão suscitada no recurso, qual o tipo de impugnação trazido aos autos. A recorrente pretende, ao fim e ao cabo, invocar um dos vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretende reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP? Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
O erro de julgamento, por seu turno, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.Ora, no caso em apreço, a recorrente, ao empregar o conceito amplo de erro na apreciação da prova, que poderia, num primeiro momento, levar a pensar que a impugnação da matéria de facto se situasse no âmbito do previsto na al. c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, está claramente no âmbito do disposto no artigo 412.º, do CPP.
Tanto assim é que a recorrente, a fls. 534, 536 e 537, na sua Motivação, escreve o seguinte:
“Passa a arguida a fazer as especificações impostas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, do CPP.
Relativamente aos factos provados acima referidos, que se têm por incorrectamente julgados, os meios de prova que justificam decisão diversa são os seguintes: a) quanto aos factos n.ºs 6, 7, 8, 9 e 12: os documentos de fls. 22, 23, 24 e 26;
b) quanto aos factos n.ºs 4, 5, 10, 11, 14, 15 e 16: os depoimentos das seguintes testemunhas:
- J... (cfr. Actas de fls. 343, de 16/10/2009, e de fls. 454, de 22/4/2010).
- C… (cfr. Acta de fls. 394, de 26/2/2010).
- FM... (cfr. Acta de fls. 428, de 25/3/2010).
(…)
Os factos acabados de elencar sob os n.ºs 1 a 10 deveriam ter sido dados como provados, tendo em conta os depoimentos das seguintes testemunhas:
- J... (cfr. Actas de fls. 343, de 16/10/2009, e de fls. 454, de 22/4/2010).
- C... (cfr. Acta de fls. 394, de 26/2/2010).
- FM... (cfr. Acta de fls. 428, de 25/3/2010).”
**** Ora, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, tem de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4). A especificação dos “concretos pontos de facto só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação. Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”. Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação. Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas: - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante; - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas. Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135. Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Antes de avançarmos para a análise concreta do caso, importa, ainda, sublinhar que, no domínio da Lei n.º 59/98, de 25-08, impunha o artigo 412.º, n.º 4, do CPP, que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. E como decorria da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após a identificação, no recurso, dos suportes técnicos de gravação, haveria que proceder à transcrição do que fosse relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que se mostrassem previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que se lhe impunha a referida norma do artigo 412.º, n.º 4. A transcrição era um acto posterior que incumbia, não ao recorrente, mas ao tribunal efectuar (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16-01-2003, in DR, I série-A, de 30-01-2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, destinando-se a permitir (rectius, a facilitar) então ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada. A Lei n.º 48/2007, de 29-08, mudou radicalmente o regime de impugnação da matéria de facto e, entre outras alterações, afastou a transcrição da prova, no caso regra de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual (artigo 364.º, n.º 1, do CPP). A prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso, uma vez cumpridas todas as formalidades previstas no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, proceder ao controlo dessa prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).
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No caso em apreço, não restam dúvidas de que a recorrente, em determinado momento do recurso, individualiza os factos que tem por indevidamente julgados, por referência à factualidade dada como provado pelo tribunal de 1.ª instância, assim como concretiza os factos que pretende ver como assentes.
Quanto a tal aspecto da questão, nada há que censurar no recurso.
Todavia, quanto ao mais a que estava obrigada, temos de convir que a recorrente não indica especificadamente as provas que impõem relativamente a cada ponto uma decisão diversa quanto à matéria de facto. Lá chegaremos, mais adiante.
Vejamos.
Em primeiro lugar, começa o recurso por fazer meras considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão, como tal, como já vimos, inconsequentes para o efeito pretendido, como, a título de mero exemplo, as seguintes:
a) “a decisão contida na sentença é surpreendente e inesperada”;
b) “não se consegue compreender o critério que levou o Tribunal a condenar a arguida”;
c) “todo o raciocínio decisório foi condicionado por um pré-juízo que se instalou no Tribunal” (aceitemos esta afirmação como simples argumento de retórica e não como um labéu sobre quem julgou, o que seria uma grave afirmação, a necessitar de demonstração, pois, certamente, não foi essa a intenção do ilustre mandatário da recorrente, quando a redigiu, até porque, verdade seja dita, a dado passo da Motivação, escreve “não se pondo, minimamente em causa, longe disso, a genuidade do convencimento do Tribunal”);
d) “tendo o Tribunal – inadvertidamente, pois claro – permitido que tal pré-juízo se instalasse, não foi capaz de evitar que o raciocínio decisório saísse inquinado, como saiu”;
e) “o Tribunal, não se libertando da influência nefasta do dito pré-juízo”;
f) “o critério decisório foi marcado por uma opção apriorística acerca da conduta imputada à arguida”;
g) “em vez de se preocupar com aquilo que, de forma abundante, lhe foi dado a perceber em audiência”
Em segundo lugar, a recorrente transcreve passagens da sentença ora em crise, relativas aos depoimentos das testemunhas J…, C… e FM..., a fim de salientar o que por elas foi dito, o que se revela inócuo, na medida em que a prova se encontra gravada.
Em terceiro lugar, a recorrente, após considerar que, das sete testemunhas ouvidas em julgamento, apenas uma foi indicada pela defesa, já que a testemunha Macário foi inquirida oficiosamente e as restantes foram indicadas pela acusação, conclui que, da sentença, resulta que só três testemunhas produziram depoimentos a que o tribunal deu crédito e qualifica de “estranho critério” aquele que levou o Tribunal a condenar a arguida, na sua perspectiva, sem apoio mínimo nos depoimentos produzidos.
Abrimos, agora, um parêntesis para constatar que, até aqui (fls. 501 – primeira página do recurso - a 515), a recorrente não deu cumprimento ao dever de especificação acima aludido.
Fechado o parêntesis, avancemos um pouco mais.
A recorrente continua o recurso, fazendo a sua apreciação da prova existente nos autos (fls. 515 a 531), salientando que o processo teve origem “num logro, numa mentira, num embuste criado pelas testemunhas F......, A......e H...”, chegando mesmo a afirmar que o “Tribunal percebeu que os irmãos M… mentiram em juízo, tendo-o feito de modo consciente, intencional e ostensivo”.
Ainda nesta parte do recurso, a recorrente tece, de novo, considerações de inconformismo sobre a decisão que, relembremos, devem ser entendidas como inconsequentes, tendo em vista o aspecto técnico-jurídico em causa, tais como “pena foi que o Tribunal tivesse passado totalmente à margem do que antecede”, “é pena que o Tribunal se tenha ficado pela constatação dessa censurável atitude e não tenha entendido o que motivou essa mentira”, “também aqui o Tribunal se limitou a registar o descrédito dos depoimentos, sem retirar consequências e sem mostrar ter percebido o exacto alcance de tal estratégia”, “não obstante, desenvolvendo sempre um raciocínio inquinado pelo pré-juízo que se instalou, o Tribunal preferiu a via da especulação”.
Pois bem, só a fls. 532, a recorrente coloca como título da sua peça processual o seguinte:
IMPUGNAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
Assim sendo, podemos concluir, sem grande esforço, tal como o faz a Digna Magistrada do Ministério Público que respondeu ao recurso em primeira instância que “durante as trinta primeiras páginas da sua motivação, a arguida limita-se a aduzir as razões da sua discordância relativamente à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo esgrimindo argumentos e pugnando pelo reconhecimento de que as testemunhas mentiram em julgamento e que a decisão do Tribunal mais não é de que um equívoco resultante de um embuste e logro em que o Tribunal caiu.”
Por conseguinte, e em bom rigor, a recorrente, só a fls. 532, começa, verdadeiramente a impugnar a matéria de facto.
Retomando algo que atrás deixámos em aberto, passemos a ver, em concreto, se a recorrente cumpriu o disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. b), do CPP.
Pois bem, quando a recorrente indica os meios de prova que justificam decisão diversa, limita-se, como atrás ficou já descrito, a remeter, em termos genéricos, para certos documentos e para os depoimentos das testemunhas J…, C... e FM....
No que tange aos depoimentos das citadas testemunhas, é preciso ter bem presente que os mesmos tiveram a seguinte duração:
1. J…:
- dia 16/10/2009, acta de fls. 343 – 00:36:33;
- dia 22/4/2010, acta de fls. 454 – 00:09:51;
2. C...:
- dia 26/2/2010, acta de fls. 394 – 00:34:29;
3. FM...:
- dia 25/3/2010, acta de fls. 428 – 00:36:45
Assim sendo, constatamos que estamos perante depoimentos que se prolongam por mais de trinta minutos (o da primeira testemunha, atendendo à sua totalidade), sendo certo que a recorrente não indica, em concreto, qual ou quais as passagens que impõem uma decisão diversa quanto à matéria de facto em causa.
Para que não fiquem dúvidas, o dever de especificação só teria sido cumprido se, por exemplo, a propósito do facto provado n.º 4 (citemos este, por ser o primeiro posto em causa no recurso), a recorrente tivesse feito alusão expressa ao momento preciso em que qualquer das apontadas testemunhas tivesse dito algo que impusesse uma alteração, quer através da reprodução exacta do que tinha sido dito, quer por meio de um resumo do que tivesse sido afirmado, ainda que em discurso directo, quer, por fim, recorrendo a uma determinada pergunta que tivesse sido feita por qualquer dos intervenientes na audiência de julgamento, de modo a permitir ao tribunal de recurso a apreensão exacta do local da gravação a considerar, sem esquecer, evidentemente, a forma mais óbvia de o fazer que passa pela indicação expressa dos minutos em que começa e acaba o respectivo depoimento.
Da mesma forma, quanto à indicação de certos documentos, a recorrente não concretizou em que medida os por si indicados impõem uma alteração da matéria de facto.
Resumindo, a recorrente não deixou explicitado, nos termos previstos no artigo 412.º, do CPP, por que razão a prova indicada impõe decisão diversa da recorrida, facto a facto.
E não seria possível entender o que a recorrente fez ao longo da sua Motivação (fls. 515 a fls. 531) como o cumprimento do respectivo dever de especificação?
A resposta tem que ser negativa.
Desde logo, nada de objectivo, e é isso que tal dever exige, tem afirmar que: a) certas testemunhas (irmãos Monteiro) criaram um embuste, enganando a arguida e mentindo em juízo (fls. 515 e 516);
b) existiu absoluto desplante de F... (fls. 518);
c) é assinalável o absoluto cinismo da testemunha F... (fls. 519);
d) só um sujeito estruturalmente mal formado e desonesto é capaz de proceder assim (fls. 519).
Ora, é preciso realçar que nem sequer os depoimentos das testemunhas Monteiro foram indicados como prova que levaria à alteração da matéria de facto. Por isso, tudo aquilo que é apontado, nesta parte do recurso, quanto ao que tais testemunhas (ao que podemos acrescentar a referência feita à testemunha Jorge Nascimento e às declarações da própria arguida) disseram nenhum valor pode ter para a impugnação pretendida pela recorrente.
Resta, então, o que é referido pelas três testemunhas indicadas pela recorrente.
E aí, podemos encontrar o seguinte:
1. “a testemunha C..., a cujo depoimento o Tribunal deu total credibilidade, também assegurou que o F... esteve nessa reunião, na qualidade da firma que forneceu as primeiras plantas, tendo havido acordo para a substituição das plantas e quanto ao acerto de contas (cfr. Os segundo terceiro e quarto parágrafos de fls. 473)” – fls. 521;
2. “a testemunha FM..., em cujo depoimento o Tribunal acreditou, também identificou o F... como tendo estado na referida reunião (cfr. Os últimos seis parágrafos de fls. 476)” – fls. 521;
3. “as duas testemunhas a que o Tribunal deu maior crédito (J...Consciência e C...) foram as únicas que se pronunciaram acerca desse ponto, tendo ambas sido claras no sentido de rejeitar a ideia de que a arguida visasse, pura e simplesmente, solicitar as plantas com o intuito de nada pagar” – fls. 528:
4. “aliás, e confirmando as afirmações da arguida, a testemunha C... disse ter ficado combinado, na reunião realizada na quinta com o F... que haveria um segundo fornecimento de plantas e que depois se fariam contas.” – fls. 528.
Resulta claro que, também aqui, as referências acima feitas não concretizam as passagens dos depoimentos das testemunhas e, mais do que isso, não as ligam, em concreto, a determinado facto.
Outro factor tem que ser salientado.
A alusão feita a certos documentos é sempre feita pela recorrente de um modo genérico e vago e é sempre enquadrada na perspectiva por si trazida aos autos, ou seja, em nenhum momento, de modo concreto é dito que, por exemplo, o documento de fls. 22 (uma vez mais, citemos este, por ser o primeiro) impõe que o facto provado “x” deva ter uma redacção diferente da que consta da decisão recorrida.
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Aqui chegados, importa retirar as consequências do que até agora ficou exposto.
De acordo com posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido Cfr. v.g., Acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.. Daí que o artigo 417.º, n.º 3, do CPP, imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”. Se o recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite Neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002. . Em suma, não pode este tribunal de recurso sindicar, pelas razões supra expostas, a decisão proferida sobre matéria de facto, pelo que o acervo factológico mostra-se definitivamente fixado nos precisos termos em que o tribunal de 1.ª instância o definiu.
Assim sendo, não é possível proceder a qualquer alteração do quadro factual que conduza à absolvição da arguida.
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E não se diga que sempre o Tribunal devia ter assumido haver dúvida razoável, por força do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Não estamos perante qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. Ora, o alegado processo não pode ser uma válvula de escape para um “buraco negro”, devendo assentar em alicerces bem precisos e fundamentados. Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997. Não obstante o que acabamos de referir, importa ter bem presente, conforme é referido por Germano Marques da Silva, “ Curso de Processo Penal”, pág. 82, que é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se ao tema da prova, enquanto a prova indirecta se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência comum, uma ilação quanto ao tema da prova. De acordo com André Marieta, “La Prueba em Processo Penal”, pág. 59, são dois os elementos de prova indiciária: a) o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. O indício, em resumo, constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra de experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar; b) a presunção, que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto. A presunção, em síntese, é a conclusão do silogismo constituído sobre uma premissa maior – a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum – que, apoiada no indício – premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. Acontece que nada impede, antes impõe o bom senso da comunidade que, devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjugação dos indícios, permita fundamentar a condenação – cfr. Mittermaier, “Tratado de Prueba em Processo Penal”, pág. 389.
Caso contrário, o julgador seria um interveniente acrítico no processo, um mero receptor de mensagens…
Significa isto que o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314. Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.
Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto, tendo feito apelo, com ponderação, às aludidas presunções materiais associadas à normalidade da vida e às regras da experiência comum, em conjugação com toda a prova produzida em audiência.
A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas na recorrente e não no Tribunal).
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IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.
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José Eduardo Martins (Relator)



Isabel Valongo