Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
358/14.4PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME SEMI-PÚBLICO
CRIME PARTICULAR
QUEIXA
PRAZO
ACUSAÇÃO PELO ASSISTENTE
Data do Acordão: 01/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JL CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 49.º E 50.º DO CPP; ARTS. 113.º E 115.º DO CP
Sumário: I – A participação, de modo análogo à queixa, é a manifestação de vontade de que seja instaurado o procedimento e distingue-se da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o procedimento.

II - A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, pelo que, para este efeito, se recorre à doutrina e à jurisprudência.

III - A efectivação da queixa não está sujeita a quaisquer formalidades legalmente impostas, podendo ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal contra o agente pelos factos que descreve ou menciona.

IV - Nos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo está dependente de queixa e da constituição de assistente por parte do titular do direito e o Ministério Público só pode deduzir acusação depois de o assistente ter deduzido acusação particular.

V - Nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito.

VI - Nos crimes particulares há, ainda, a necessidade de constituição de assistente para que o procedimento seja instaurado com a abertura de inquérito.

VII - A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação pública e particular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz 2, sob acusação do Ministério Público e acusação particular da assistente A... , que o Ministério Público acompanhou, foi submetida a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida

B... , divorciada, nascida a (...) 66, natural de (...) , filha de (...) e de (...) , titular do CC nº (...) , residente na (...) ,

imputando-se-lhe, na acusação pública, a prática, em autoria material, de um crime de perturbação da vida privada, p. e p. no art.190.º, nº 2, do Código Penal e, na acusação particular, um crime de injúrias, na forma continuada, p. e p. pelo art.181.º do mesmo Código.

            A assistente A... deduziu ainda pedido de indemnização contra a referida arguida/demandada, pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 4.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 28 de julho de 2017, decidiu:

- Declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida B... , relativamente aos crimes de perturbação da vida privada e de injúrias que lhe são imputados, por faltar ao Ministério Público e à assistente A... a necessária legitimidade para promover o processo e para a dedução das respetivas acusações pública e particular, com o consequente arquivamento dos autos; e

- Julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pela referida demandante e assistente A... contra a referida arguida /demandada B... , por impossibilidade superveniente da lide (art.277.º, al. e) do CPC).

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso a assistente A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Em primeira instância, por sentença, foi declarada extinto o procedimento criminal contra a arguida, ora Recorrida, relativamente aos crimes de perturbação da vida privada e de injúrias p. e p. pelos artigos 181º e 190º n.º 2 do Código Penal (doravante, designado como C.P) que lhe são imputados, por faltar ao Ministério Público e à Assistente a necessária legitimidade para promover o processo e para a dedução das respectivas acusações pública e particular, com o consequente arquivamento dos autos. Ainda julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pela referida demandante e assistente e contra a arguida/ demandada por impossibilidade superveniente da lide (art. 277º al. e) do Código de Processo Civil).

2. Não pode a Assistente, ora Recorrente, conformar-se com a sentença do tribunal a quo, na qual a Meritíssima Juiz entende que a Digna Magistrada do Ministério Público deduziu acusação, em processo comum singular, contra a referida Arguida B... , onde lhe imputa a prática, em autoria material, de um crime de perturbação da vida privada p. e p. no artigo 190º, nº 2 do Código Penal, tendo por base os seguintes factos “A assistente A... foi casada com D... , de quem se encontra separada há mais de 10 anos. Sendo que, desde 2012/2013, a ora arguida mantém um relacionamento com o referido D... com quem depois passou a viver em união de facto. Acontece que, desde o início desse relacionamento que a Arguida passou a perturbara vida privada, a paz e o sossego da A... , enviando-lhe constantemente mensagens para o telemóvel nº x (...) , que sabia pertencer à queixosa, o que fazia através do telemóvel nº y (...) e outros que não foi possível identificar. Com efeito, entre outras situações que não foi possível concretizar, a arguida enviou à queixosa mensagens pelo menos nos dias: 15,16, 24 e 29 de Março de 2013; 1 de abril de 2013; 18 de Novembro de 2013; 18 de Novembro de 2013; 3 e 28 de dezembro de 2013; 1 de Janeiro de 2014; 8,19,21,22,24 de Fevereiro de 2014; 18,21,24 de Maio de 2014 – Conforme reportagem fotográfica. A Arguida por diversas vezes enviou mensagens, pela mesma via, para o telemóvel da filha da queixosa nº z (...) , tentando coloca-la contra a mãe de que falava mal, para dessa forma perturbar a vida e o sossego da A... ”.

3. Entende o tribunal a quo não haver legitimidade por parte do Ministério Público, para promoção do processo, respectivamente, acusar a arguida por entender que não há queixa e na existente, não há correspondência fática entre a queixa e a acusação pública e que na participação efectuada pela Assistente não existe manifestação de vontade de que seja instaurado procedimento criminal.

4. Entende ainda o tribunal a quo, quanto ao crime de injúrias, também extinto o procedimento por faltar a Assistente a legitimidade de proceder à acusação particular, por quanto na participação não manifestou intenção de proceder criminalmente contra a arguida.

5. A Assistente, ora Recorrente, é obrigada a discordar com a posição tomada pelo tribunal a quo, por entender que existe um erro notório na apreciação da queixa e respectivos aditamentos constante nos autos.

6. Preceitua o artigo 190º do C.P que “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

7. 2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel. (sublinhado nosso)”, comete um crime de perturbação da vida privada, crime este de natureza semi-pública e por isso, dependente de queixa para desencadear o seu procedimento criminal, conforme o disposto no artigo 198º do C.P.

8. Já o crime de Injúria previsto e punido pelo artigo 180º do CP prevê que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”, é um crime de natureza particular, pelo que depende de acusação particular conforme preceituado no artigo 188º nº 1 do CP.

9. Fala-se a este propósito do princípio da oficialidade, «a iniciativa e o impulso processuais da investigação prévia e da submissão a julgamento das infracções criminais competem oficiosamente às entidades públicas a quem a lei confere o encargo daquela investigação e aos tribunais criminais» (Simas Santos e Leal Henriques, 2003, p. 329).

10. Este princípio sofre limitações, dado existirem, ao lado de crimes em que o procedimento criminal é desencadeado oficiosamente pelo Ministério Público, que exerce a acção penal com plena autonomia – os chamados crimes públicos, crimes relativamente aos quais, atenta a sua natureza, se exige diferentes requisitos para a respectiva promoção processual, nomeadamente crimes cujo procedimento criminal depende de apresentação de queixa por parte do ofendido, ou de terceiros que para tal tenham também legitimidade – art.49º do CPP – assim se conferindo legitimidade ao Ministério Público para exercer a acção penal – os crimes semi-públicos; e crimes em que a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal necessita de ser integrada não só com uma queixa, mas também com uma acusação particular – os crimes particulares (art. 50º do CPP). Em suma, de acordo com a fonte do impulso para instauração de procedimento criminal, podem os crimes ser classificados como crimes públicos, semi-públicos, e particulares.

11. O procedimento criminal tem como primeira fase o inquérito. Este inicia-se com a aquisição da «notícia do crime», através da denúncia (da mera denúncia, nos crimes públicos), da queixa (crimes semi-públicos), ou da queixa e constituição de assistente (crimes particulares). A denúncia consiste numa comunicação, que pode ser verbal (reduzindo-se então a escrito com elaboração do respectivo Auto) ou escrita, através da qual é levada ao conhecimento do Ministério Público a suspeita de que foi cometido um crime.

12. Nos crimes semi-públicos, a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pelo poder/dever de apresentação de queixa pelas pessoas para tal legitimadas, sem o exercício do direito de queixa, o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, sendo que, no caso dos crimes semi-públicos, esta constitui um pressuposto (processual) da admissibilidade do mesmo.

13. Nos crimes particulares, o artigo 50º do CPP exige que o ofendido apresente queixa. Assim, apresentada a queixa, o Ministério Público desencadeia a investigação penal, com os elementos de prova fornecidos pelo ofendido. O Ofendido terá que se constituir Assistente. Findo o inquérito, o Ministério Público convida o queixoso a deduzir acusação, o Ministério Público não acusa.

14. No procedimento por crimes que têm essa natureza, o conteúdo da queixa define o objecto da investigação, que só poderá ser ampliado com novos factos, cujo procedimento criminal também dependa de queixa, se entre estes e os iniciais se verificar conexão ou identidade substantiva, o mesmo é dizer, desde que, neste caso, se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico.

15. A queixa pode considerar-se uma forma de denúncia, da qual, no entanto, se distingue porque enquanto esta é uma mera declaração de ciência (simples transmissão do facto com eventual relevância criminal a quem tem legitimidade para promover o processo penal), a queixa exige, também, uma manifestação de vontade (por parte do respectivo titular, normalmente o ofendido) especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente.

16. Essa manifestação de vontade tem que dar a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, podendo considerar-se como tal o pedido de intervenção no processo como assistente por parte do titular do direito de queixa formulado em momento imediatamente subsequente à verificação do facto.

17. Reforçando o anteriormente dito com a análise do preceituado no art.246º, nº 1 do CPP “A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais. … Ou do seu nº. 3, onde inequivocamente, se diz “A denúncia contém na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do nº 1 do artigo 243º.

18. Somos forçados a concluir que os trâmites e defeitos da participação feita ás autoridades e a queixa são os mesmos com a diferença de que na queixa terá que manifestar o desejo de instaurar procedimento criminal. 

19. O Tribunal da Relação de Coimbra no seu Acórdão 22/01/2014, partilha do mesmo entendimento, considerando que “Da “queixa” - que não está subordinada a um formalismo específico - apenas tem de resultar a vontade no sentido da instauração de procedimento criminal”, assim como Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão de 16/10/2013.

20. No caso em apreço, a ora Recorrente, no dia 20/03/2014 a deslocou-se á Polícia de Segurança Pública, ao Comando distrital de (...) onde efectou a sua queixa contra B... , tendo relatado os seguintes factos:

21. “No dia 18/03/2014, às 15H30, em (...) recebeu várias mensagens no seu telemóvel com nº x (...) enviadas pelo nº da suspeita, que de momento não se recorda mas juntará oportunamente, com um teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente nos seguintes termos: “VOU-TE PARTIR OS DENTES TODOS; VOU DAR CABO DE TI (…)””.

22. No dia 22 de Março de 2014, pelas 19H20, dirigiu-se de novo á PSP, ao Comando Distrital de (...) , aditando novos factos à queixa “ Em aditamento ao auto de denúncia (…) a ofendida informar que ontem pelas 17h00 o seu marido (…) telefonou-lhe a avisar que a suspeita iria junto à casa da ofendia afim de cumprir as ameaças anteriormente denunciadas, (…..)”, A Ofendida, encontrava-se na companhia da filha de 15 anos de idade, E... “adiou a sua ida para a sua residência desde aquela hora até á 1h00 do dia seguinte, momento esse em que com receio das ameaças virem a ser concretizadas foi dormir com a sua filha a casa de uma amiga”. A filha da ofendida recebeu mensagens e uma chamada por parte da Recorrida, mais concretamente, no dia 18 de Março de 2014, pelas 11h40 “recebeu uma mensagem da suspeita a pedir que entrasse em contacto com a mesma, ao que esta acedeu, entrando em contacto com a mesma pelas 12h00 desse mesmo dia, e nessa mesma chamada a suspeita, proferiu-lhe o seguinte: A tua mãe é uma puta e anda com uns e com outros, tu não gostas dela, vou acabar com a tua vida e com a dela, vou espedeçar o carro dela, vou partir o focinho á tua mãe, vou fazer a tua vida e da tua mãe no inferno! Hoje a Ofendida recebeu uma mensagem via telemóvel por parte da suspeita dizendo que a sua filha “anda atrás do cu dos padres, a cantarolar”, e que “vais paga-las ”. A ofendida disse ainda que se encontra a estudar e a residir na cidade de (...) , motivo pelo qual a sua filha se encontra a residir em casa dos seus sogros, recebendo a visita do seu pai e da suspeita três dias por semana, pelo que a sua filha se encontra actualmente em pânico, ansiosa e receosa que a suspeita apareça a qualquer momento e que venha concretizar as ameaças narradas neste auto, a ofendida teme igualmente que o faça em relação à sua pessoa na medida em que actualmente apenas se desloca para a sua residência na companhia da mãe ou de uma amiga, limitando desta forma a sua vida diariamente”.

23. A este aditamento, foram juntas as mensagens que a ofendida recebeu da Recorrida. (a Fls 59 a 71 dos autos) e ainda as que a filha da ofendida recebeu da Recorrida (fls 73 e 74). A Recorrente manifestou mais que uma vez que o desejo de proceder criminalmente contra à Arguida, vejamos a fls 4. no auto de denúncia, questionada desejava procedimento criminal responde positivamente, a fls 56, a no dia do aditamento, a Recorrente “Reafirma o seu desejo do respectivo procedimento criminal e indemnizatório contra a participada”. A Recorrente constitui-se Assistente em 8 de Fevereiro de 2016.

24. Salvo o devido respeito que é muito e melhor entendimento, parece-me que a ora Recorrente segui os trâmites exigidos na lei para desencadear o procedimento criminal dos mencionados crimes, não podendo, deste modo, ser extinto por terem sido respeitados e cumpridos todos os requisitos necessários, conforme preceituado nos artigo 49º e 50 do CPP, senão vejamos, nos autos consta uma queixa (participação feita à autoridade policial, manifestando desejo de procedimento criminal) e dois aditamentos onde são participados os factos imputados à ora Recorrida, a ora Recorrente constitui-se assistente e manifestou desejo de procedimento criminal contra a ora Recorrida.

25. Vem o tribunal a quo na sentença dizer que nos autos “inexiste qualquer queixa por parte da referida Assistente contra a mencionada arguida, relativamente aos factos integrativos dos mencionados crimes de perturbação da vida privada e de injúrias”. Somos obrigados a discordar e apelar à análise da supra referida queixa e respectivos adiamentos das quais se depreende pelos factos narrados que intenção da ora Recorrida era perturbar a paz e o sossego da ora Recorrente, se não vejamos: no dia 18 de Março de 2014, a ora Recorrente recebeu da ora Recorrida as mensagens com teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente nos seguintes termos: “VOU-TE PARTIR OS DENTES TODOS; VOU DAR CABO DE TI (…)”; No aditamento, podemos verificar que a Recorrente continuam a enviar mensagens tanto à Recorrente como à sua filha, no dia 22 de Março de 2014, recebeu uma mensagem da ora Recorrida com o seguinte conteúdo: “anda atrás do cu dos padres a cantarolar; vais paga-las”. No dia 18 de Março de 2014, a filha da Recorrente retribui a chamada à ora Recorrida, chamada essa com o seguinte teor “ a tua mãe é uma puta e anda com uns e com outros, tu não gostas dela, vou espedaçar o carro dela, vou partir o focinho à tua mãe, vou fazer a tua vida e da tua mãe num inferno”.

26. O crime de perturbação da vida privada protege o bem jurídico paz e sossego, o qual é violado com o envio de mensagens escritas ou de telefonema através de telemóvel com a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, tal como consta do auto de denúncia a fls. 4 dos autos, a ora Recorrida desde do início do seu relacionamento com o ex-marido da ora Recorrente perturbava a vida privada da ora Recorrente, enviava-lhe mensagens, por forma a perturbar a paz e o sossego, com o seguinte conteúdo: ”Vou-te partir os dentes todos”, “vou dar cabo de ti”, telefonava e enviava mensagens a filha da ora Recorrente falando mal da própria mãe, procurando desassossegar a ora Recorrente, aliás, são imensas às mensagens enviada pela ora Recorrida, conforme se pode constatar a fls. 59 a 71 dos autos. Salvo a melhor opinião, não restam dúvidas que se encontram preenchidos os elementos objectivos deste tipo de crime. No caso, a específica intenção por parte da arguida de perturbar a paz e o sossego do assistente, retira-se do facto das muitas das mensagens enviadas pela arguida terem conteúdo ameaçador e intimidante, envolvendo e usando a filha da ora Recorrente por forma provocar maior desassossego.

27. Conforme entendimento do Acórdão de 7/12/2012 do Tribunal da Relação do Porto, “Integra a prática do crime p. e p. pelo artigo 190º nº 1 e nº 2 do C.P o envio de mensagens escritas com um telemóvel com a intenção de perturbar a vida privada, paz e sossego de outra pessoa ”.

28. Quanto ao crime de injúrias, podemos verificar pelo conteúdo das mensagens juntas aos Autos, que a ora Recorrida injuriou a ora Recorrente tratando de “Mãe desnaturada; Reles de Merda”. No crime de injúrias praticado por palavras, o significante utilizado tem de encerrar em si uma potência ofensiva, ou seja terá de ter um significado associável a significados padronizados ou padronizáveis com essência ou núcleo ofensivo. Existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que objetivamente atingem o património pessoal das pessoas a quem são dirigidas, enxovalhando-as e humilhando-a. A ora Recorrente sentiu-se humilhada perante tais expressões proferidas pela ora Recorrida.

29. Em consequência, de tudo que foi exposto, requerer-se a Vª Exª deverão ser consideradas válidas a queixa e os aditamentos, com correspondência fáctica entre a queixa e as acusações (publica e particular), e consequentemente considerar-se válido procedimento criminal dos crimes de perturbação de vida privada e injúria, marcando datas para a realização da audiência e julgamento.

30. Em consequência, manter o pedido de indemnização civil formulado pela ora Recorrente contra a Recorrido. 

Termos em que e nos mais de Direito, requerer-se a V.Exª, que dando provimento ao recurso, julgar procedente o presente recurso, e em consequência, revogar a sentença recorrida por alegada falta de legitimidade do Ministério Público e da ora Recorrente para acusar publica e particularmente, devendo considerar válida a queixa e respectivos aditamentos supra referidos e os respectivos procedimentos criminais, e consequentemente serem designadas datas para a realização da audiência e julgamento. E ainda manter o pedido de indemnização civil formulado pela ora Recorrente contra a Recorrido. Só assim se fará acostumada justiça!!!

            O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela assistente, concluindo que a sentença proferida é insuscetível de qualquer reparo ou censura e não padece de qualquer vício ou nulidade pelo que deverá ser confirmada e, em consequência, ser negado provimento ao recurso.

            Também a arguida respondeu ao recurso interposto pela assistente, pugnando pelo seu não provimento e manutenção da douta sentença recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso da assistente, revogada a sentença recorrida e considerada válida a queixa apresentada, com reconhecimento da legitimidade do Ministério Público e da assistente para acusar, com o prosseguimento dos autos até final.

Notificado o parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, não houve resposta.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            Da sentença recorrida consta, designadamente, o seguinte:

            « QUESTÃO PRÉVIA:

            Dispõe o artigo 368º, nº 1, do CPP, alusivo à sentença, que: “O Tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão”.

            No caso vertente, e conforme já acima se fez alusão, a Digna Magistrada do Ministério Público deduziu acusação, em processo comum singular, contra a referida arguida B... , onde lhe imputa a prática, em autoria material, de um crime de perturbação da vida privada, p. e p. no artigo 190º, nº 2, do Código Penal, tendo base os seguintes factos:

“A assistente A... foi casada com D... , de quem se encontra separada há mais de 10 anos.

Sendo que, desde 2012/2013, a ora arguida mantém um relacionamento com o referido D... com quem depois passou a viver em união de facto.

Acontece que, desde o inicio desse relacionamento que a arguida passou a perturbar a vida privada, a paz e o sossego da A... , enviando-lhe constantemente mensagens para o telemóvel nº (...) que sabia pertencer à queixosa, o que fazia através do telemóvel nº (...) e outros que não foi possível identificar.

Com efeito, entre outras situações que não foi possível concretizar, a arguida enviou à queixosa mensagens pelo menos nos dias: 15, 16, 24 e 29 de Março de 2013; 1 de Abril de 2013; 18 de Novembro de 2013; 3 e 28 de Dezembro de 2013; 1 de Janeiro de 2014; 8, 19, 21, 22, 24 de Fevereiro de 2014; 18, 21, 24 de Maio de 2014 – conf. Reportagem Fotográfica de fls. 58- 71 e de 87-90 dos autos.

A arguida também por diversas vezes enviou mensagens, pela mesma via, para o telemóvel da filha da queixosa nº (...) , tentando colocá-la contra a mãe de que falava mal, para dessa forma perturbar a vida e o sossego da A... – conf. Reportagem fotográfica de fls. 72-74 e 82-86 dos autos.

Ao actuar como se descreve, enviando-lhe constantemente mensagens, a qualquer hora do dia ou da noite, a arguida agiu deliberadamente com o propósito de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da A... , o que conseguiu.

A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e criminalmente puníveis.”

Por sua vez, a assistente A... deduziu ainda a acusação particular constante de fls. 272 e segs. contra a referida arguida, onde lhe imputa um crime de injúrias, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, tendo por base os seguintes factos:

“1º No fim-de-semana do mês de Março de 2014, a assistente encontrava-se em (...) , na casa onde residia enquanto estudante com a sua colega de curso C... , a estudar para exames do curso de (...) que frequentava na Universidade (...) , nessa altura, recebeu uma chamada da arguida que, de viva voz, em tom ameaçador, proferiu as seguintes expressões: “Puta”, “Vaca”, “mãe desnaturada”.

2º A arguida gritou tão alta as expressões supra mencionadas que a C... , que se encontrava na mesma mesa a estudar ouviu-as, bem assim, como todo o conteúdo da chamada telefónica.

3º A arguida ainda telefonou à filha da assistente, dizendo: “a tua mãe é uma cabra, e uma mãe desnaturada”.

4º A arguida, através do seu contacto móvel nº y (...) , reiteradamente envia SMS para o telemóvel da Assistente com as seguintes expressões:

1. No dia 16.03.2013, “Mas dois tens tu na cabeça e estão a medrar todos os dias”.

2. No dia 16.03.2013, “Vê se cresces imbecil (…)” (Doc 2).

3. No dia 08.02.2014, “Mãe desnaturada” (Doc. nº 3).

4. No dia 19.06.2014, “olha vai a missinha va la rezar b preciizas para não enfernizar a vida dos outros trata-te”; e uma segunda SMS “eh eh amante e muito amada tu protegida por deus oh oh pelo diabo e vai te acompanhar para o resto da vida. Tadinha sucesso numcaa” (Dc, 4 e 5).

5º Tais expressões orais foram proferidas pela arguida em voz alta e por forma a serem escutadas por quem quer se encontrasse nas imediações, como na verdade aconteceu.

6º Com tais expressões, quis a Arguida ofender gravemente a honra e consideração social devida à Assistente, como efectivamente ofendeu.

7º Bem sabia a Arguida que a sua conduta era proibida por lei.

8º No entanto, não se coibiu de levá-la a cabo de forma deliberada, livre e consciente”.

Ora, o crime de injúrias, p. e p. pelo citado artigo 181º do Código Penal, reveste natureza particular (cfr. 188º do Código Penal), e o crime de perturbação da vida privada, p. e p. no artigo 190º, nº 2, do Código Penal, reveste natureza semi-pública (cfr. 198º do Código Penal).

Estipula o nº 1, do artigo 49º, do CPP, que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, sendo que, para este efeito, “considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele” – nº 2.

            E, “a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais”, como se dispõe no nº 3, do mesmo artigo.

            O art.49.°, n.º 4, do CPP equipara à queixa à participação de qualquer autoridade, e por isso deve entender-se que os trâmites e efeitos da participação são os mesmos da queixa.

            A participação, de modo análogo à queixa, é a manifestação de vontade de que seja instaurado o procedimento e distingue-se da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o procedimento.

            Por sua vez, dispõe o artigo 50º, nº 1, do CPP que: “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.

            De acordo com o artigo 113º, do Código Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”– nº 1.

            A efectivação da queixa não está sujeita a quaisquer formalidades legalmente impostas, podendo ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal contra o agente pelos factos que descreve ou menciona.

            Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 15/03/2006, in www.dgsi.pt, “a noção de queixa não se cinge à mera transmissão do facto com eventual relevância criminal ao Ministério Público, ou seja, não releva como queixa uma simples declaração de ciência acerca do facto. A queixa exige, ainda, que se manifeste nessa declaração uma vontade de ver o agente perseguido criminalmente pelo facto.

            A queixa distingue-se da denúncia na medida em que enquanto esta é mera manifestação de ciência [transmissão ao MP da ocorrência do crime], na queixa além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente [cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., págs. 55 a 59.]”.

            Verificamos, assim, que nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito. Nos crimes particulares há, ainda, a necessidade de constituição de assistente para que o procedimento seja instaurado com a abertura de inquérito. A queixa (nos crimes semipúblicos), a queixa, a constituição de assistente e a acusação particular (nos crimes particulares) são pressupostos da admissibilidade do processo, neste sentido, pressupostos processuais, que constituem limitações (nos crimes semipúblicos, em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo autênticas excepções (nos crimes particulares) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.

No caso vertente os presentes autos tiveram início com base no auto de denúncia constante de fls. 4, datado de 20/03/2014, onde a aqui assistente manifestou o desejo de procedimento criminal da arguida, pelos factos ali melhor descritos, referindo expressamente que na data/hora (18/03/2014 às 15:30) e local da ocorrência (Universidade (...) ), onde estuda, recebeu várias mensagens no seu telemóvel com o nº x (...) enviadas pelo nº da suspeita (a aqui arguida), com teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente nos seguintes termos: “Vou-te partir os dentes todos”; “Vou dar cabo de ti”. Mais ali refere que tais ameaças escritas pela referida suspeita e enviadas para o seu telemóvel, têm a ver com o facto de aquela ter um caso amoroso com o ainda seu marido e que por vingança envia-lhe estas mensagens para a intimidar. 

Ora, tais factos que foram denunciados pela assistente são susceptíveis de integrar em abstracto a eventual prática pela arguida de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.

Sucede porém que, a Digna Magistrada do MP arquivou os autos nesta parte, tudo conforme melhor decorre de fls. 258 a 259, e nos autos inexiste qualquer queixa por parte da referida assistente contra a mencionada arguida, relativamente factos integrativos dos mencionados crimes de perturbação da vida privada e de injúrias melhor descritos nas mencionadas acusações pública e particular, dentro do prazo a que alude o artigo 115º, nº 1, do Código Penal, segundo o qual: “1 - O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”.

A referida queixa dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, constitui um pressuposto processual do prosseguimento do processo, condicionando a legitimidade do Ministério Público e da referida assistente para deduzir acusação pelos factos correspondentes.

Com efeito, nos crimes semi-públicos e particulares, só a factualidade descrita na queixa é que pode ser investigada e apreciada a final, seja com despacho de arquivamento ou acusatório, sendo que no caso de ser deduzida acusação esta apenas deve conter a narração do pedaço ou história de vida mencionado na queixa que originou o processo.

No caso vertente, a mencionada queixa apresentada pela assistente, no auto de denúncia que deu origem aos presentes autos, onde a mesma declarou desejar procedimento criminal contra a denunciada, não faz alusão a qualquer facto susceptível de ser enquadrado como crime de injúria ou como crime de perturbação da vida privada.

Verificamos, assim, que a Digna Magistrada do MP não detinha legitimidade para deduzir nos presentes autos a mencionada acusação pública relativamente aos factos que consubstanciam a prática pela arguida do imputado crime de perturbação da vida privada, atenta a sua natureza semi pública, por falta da queixa, relativamente a tais factos, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal.

Por sua vez, a assistente também não detinha legitimidade para deduzir nos presentes autos a mencionada a acusação particular relativamente aos factos que consubstanciam a prática pela arguida do imputado crime de injúrias, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, atenta a sua natureza particular, por falta da queixa relativamente a tais factos, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, não detendo de igual modo a Digna Magistrada do MP legitimidade para acompanhar tal acusação particular.

A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação pública e particular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa.

Assim sendo, inexistindo nos presentes autos queixa por parte da referida assistente \contra a arguida pelos factos integrativos dos mencionados crimes de perturbação da vida privada e de injúrias melhor descritos nas mencionadas acusações pública e particular, dentro do prazo a que alude o artigo 115º, nº 1, do Código Penal, não pode o tribunal conhecer da sua existência, nem do correspondente pedido indemnizatório já que nos termos dos artigos 71º e 74º do Código de Processo Penal tal pedido é “fundado na prática de um crime” tendo legitimidade para o apresentar “a pessoa que sofreu danos causados pelo crime”.».


 *

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

Tendo em consideração as conclusões da motivação a questão suscitadas pela assistente A... é a seguinte:

- se o Ministério Público e a recorrente A... têm legitimidade para deduzirem acusação pela prática, respetivamente, de um crime de perturbação da vida privada p. e p. no art.190.º, n.º 2 do Código Penal e de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelo art.181.º, do mesmo Código, pelo que devem prosseguir os autos.


-

            Passemos ao conhecimento da questão.

            Na sentença recorrida, como questão prévia, o Tribunal a quo decidiu que o Ministério Público e a recorrente não tinham legitimidade para deduzirem acusação pela prática, respetivamente, de um crime de perturbação da vida privada p. e p. no art.190.º, n.º 2 do Código Penal e de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelo art.181.º, do mesmo Código e, consequentemente, declarou extinto o procedimento criminal contra a arguida B... pela prática destes crimes, com o consequente arquivamento dos autos.

Fundamentou a sua decisão, em síntese, no facto do crime de perturbação da vida privada revestir natureza semipública e do crime de injúria revestir natureza particular, sendo a queixa da pessoa para tal legitimada pressuposto de admissibilidade do processo, quer nos crimes semipúblicos, quer nos particulares. 

Os presentes autos tiveram início com o auto de denúncia constante de fls. 4, datado de 20/03/2014, onde a assistente manifestou o desejo de procedimento criminal contra a arguida, por no dia 18/03/2014, às 15h30m, na Universidade (...) , onde estuda, ter recebido várias mensagens no seu telemóvel com o nº x (...) , enviadas pelo nº da suspeita (a aqui arguida), com teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente, “Vou-te partir os dentes todos”; “Vou dar cabo de ti”. Mais ali refere que tais ameaças escritas pela referida suspeita e enviadas para o seu telemóvel, têm a ver com o facto de aquela ter um caso amoroso com o ainda seu marido e que por vingança envia-lhe estas mensagens para a intimidar. 

Estes factos denunciados pela ora assistente são suscetíveis de integrar em abstrato a eventual prática pela arguida de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.153º, nº 1, do Código Penal, mas a Digna Magistrada do MP arquivou os autos nesta parte, tudo conforme melhor decorre de fls. 258 a 259.

Nos autos inexiste qualquer queixa por parte da assistente contra a arguida, relativamente a factos integrativos dos crimes de perturbação da vida privada e de injúrias melhor descritos nas mencionadas acusações pública e particular, dentro do prazo a que alude o artigo 115º, nº 1, do Código Penal, pelo que o Ministério Público não detinha legitimidade para deduzir a mencionada acusação pública relativamente aos factos que consubstanciam a prática pela arguida do imputado crime de perturbação da vida privada, e a assistente também não detinha legitimidade para deduzir a mencionada a acusação particular relativamente aos factos que consubstanciam a prática pela arguida do crime de injúrias, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, não detendo de igual modo o Ministério Público legitimidade para acompanhar a acusação particular.

A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação pública e particular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa, e do correspondente pedido indemnizatório já que nos termos dos artigos 71º e 74º do Código de Processo Penal tal pedido é “fundado na prática de um crime” tendo legitimidade para o apresentar “a pessoa que sofreu danos causados pelo crime”.

            A assistente A... não se conforma com esta decisão do Tribunal a quo, defendendo que, quer o Ministério Público, quer ela, tinham legitimidade para deduzirem acusação pela prática, respetivamente, de um crime de perturbação da vida privada p. e p. no artigo 190º, nº 2 do Código Penal e de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelo art.181.º, do mesmo Código, pelo que pretende o prosseguimento dos autos.

Alega para o efeito, no essencial:

- No dia 20/03/2014, deslocou-se á Polícia de Segurança Pública, e efetuou queixa contra B... , tendo relatado que “No dia 18/03/2014, às 15H30, em (...) recebeu várias mensagens no seu telemóvel com nº x (...) enviadas pelo nº da suspeita, que de momento não se recorda mas juntará oportunamente, com um teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente nos seguintes termos: “VOU-TE PARTIR OS DENTES TODOS; VOU DAR CABO DE TI (…)”.

- No dia 22 de Março de 2014, pelas 19H20, dirigiu-se de novo á PSP, aditando novos factos à queixa: “ Em aditamento ao auto de denúncia (…) a ofendida informar que ontem pelas 17h00 o seu marido (…) telefonou-lhe a avisar que a suspeita iria junto à casa da ofendia afim de cumprir as ameaças anteriormente denunciadas, (…..)”. A Ofendida, encontrava-se na companhia da filha de 15 anos de idade, E... “adiou a sua ida para a sua residência desde aquela hora até á 1h00 do dia seguinte, momento esse em que com receio das ameaças virem a ser concretizadas foi dormir com a sua filha a casa de uma amiga”. A filha da ofendida recebeu mensagens e uma chamada por parte da Recorrida, mais concretamente, no dia 18 de Março de 2014, pelas 11h40, “recebeu uma mensagem da suspeita a pedir que entrasse em contacto com a mesma, ao que esta acedeu, entrando em contacto com a mesma pelas 12h00 desse mesmo dia, e nessa mesma chamada a suspeita, proferiu-lhe o seguinte: A tua mãe é uma puta e anda com uns e com outros, tu não gostas dela, vou acabar com a tua vida e com a dela, vou espedaçar o carro dela, vou partir o focinho á tua mãe, vou fazer a tua vida e da tua mãe no inferno! Hoje a Ofendida recebeu uma mensagem via telemóvel por parte da suspeita dizendo que a sua filha “anda atrás do cu dos padres, a cantarolar”, e que “vais paga-las ”. A ofendida disse ainda que se encontra a estudar e a residir na cidade de (...) , motivo pelo qual a sua filha se encontra a residir em casa dos seus sogros, recebendo a visita do seu pai e da suspeita três dias por semana, pelo que a sua filha se encontra actualmente em pânico, ansiosa e receosa que a suspeita apareça a qualquer momento e que venha concretizar as ameaças narradas neste auto, a ofendida teme igualmente que o faça em relação à sua pessoa na medida em que actualmente apenas se desloca para a sua residência na companhia da mãe ou de uma amiga, limitando desta forma a sua vida diariamente”.

A este aditamento, foram juntas as mensagens que a ofendida recebeu da Recorrida (a Fls 59 a 71 dos autos) e ainda as que a filha da ofendida recebeu da Recorrida (fls 73 e 74). A Recorrente manifestou mais que uma vez que o desejo de proceder criminalmente contra à Arguida.

- A fls 4. no auto de denúncia, questionada se desejava procedimento criminal responde positivamente, a fls 56, no dia do aditamento, a Recorrente “Reafirma o seu desejo do respectivo procedimento criminal e indemnizatório contra a participada”.

- A recorrente constitui-se assistente em 8 de Fevereiro de 2016.

- Deverão, pelo exposto, serem consideradas válidas a queixa e os aditamentos, com correspondência fáctica entre a queixa e as acusações (publica e particular), e consequentemente considerar-se válido procedimento criminal dos crimes de perturbação de vida privada e injúria, prosseguindo o processo.

Vejamos.

O processo penal tem a função de esclarecer o crime e punir o criminoso, como um assunto da comunidade.  

Um dos princípios fundamentais do nosso processo penal é o chamado princípio da oficialidade do processo, segundo o qual a iniciativa e a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares.

Concretiza-se, no nosso ordenamento processual penal, pela atribuição ao Ministério Público da iniciativa e da prossecução processuais.

Embora na generalidade das legislações a promoção processual dos crimes seja tarefa estatual, os legisladores reconhecem que certas infrações contendem com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo não tão intenso como outros e que quanto àqueles  deve ser deixada alguma margem ao ofendido para fazer valer ou não a aplicação de sanções ao infrator.

A coordenação do interesse do Estado e do indivíduo, na promoção processual, leva à existência de crimes públicos, de crimes semipúblicos e crimes particulares.

O processo penal inicia-se com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público (art.241.º do Código de Processo Penal).

A aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público pode surgir por várias vias: por conhecimento próprio, auto de notícia do órgão de polícia criminal ou outra entidade policial (art.243.º do C.P.P.), denúncia, quer obrigatória (art.242.º do C.P.P.), quer facultativa (art.244.º do C.P.P.).

A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as exceções previstas (art.262.º, n.º 2, do C.P.P).

O princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares, proclamando o art.48.º do C.P.P. a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, logo aí se ressalvam as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, as quais conformam, justamente, as exceções a que o n.º 2 do art.262.º do C.P.P. se refere.

Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa, como resulta evidenciado do art.49.º do Código de Processo Penal:

«1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

«(…)».

Nos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo está dependente de queixa e da constituição de assistente por parte do titular do direito e o Ministério Público só pode deduzir acusação depois de o assistente ter deduzido acusação particular.

Assim o estabelece o art.50.º do C.P.P.: «1– Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular. (…)»

Nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito.

Nos crimes particulares há, ainda, a necessidade de constituição de assistente para que o procedimento seja instaurado com a abertura de inquérito.

A queixa (nos crimes semipúblicos), a queixa, a constituição de assistente e a acusação particular (nos crimes particulares) são pressupostos da admissibilidade do processo, neste sentido, pressupostos processuais que constituem limitações (nos crimes semipúblicos, em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo autênticas exceções (nos crimes particulares) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.

Como bem refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque « (…) o regime da queixa é o mesmo, quer se trate de um crime particular ou de um crime semipúblico».[4] 

A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, pelo que, para este efeito, se recorre à  doutrina e à jurisprudência.

O Prof. Figueiredo Dias define «queixa» como “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art.111.º e CPP art.49.º)».[5]

E a propósito da omissão sobre a forma da queixa, tanto do Código Penal, como do Código de Processo Penal, acrescenta o mesmo autor que esta  “pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam  corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”.[6]

O direito de queixa deve ser exercido « no prazo de 6 meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz» (art.115.º, n.º1 do Código Penal).

O crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.190.º, n.º 2 do Código Penal, tem natureza semipública e o crime de injúria, p. e p. pelo art.180.º, do mesmo Código, reveste natureza particular.

Cremos que estas considerações jurídicas são pacíficas.

A verdadeira questão é se a ora assistente A... apresentou ou não queixa pelos factos constantes da acusação pública e da acusação particular.

Compulsando os autos, resulta dos mesmos, designadamente, o seguinte:

- A ora Recorrente, no dia 20 de março de 2014, compareceu na Polícia de Segurança Pública, de (...) , e apresentou queixa contra B... , declarando, nomeadamente, que no dia 18/03/2014, às 15H30, na Universidade (...) recebeu várias mensagens no seu telemóvel com nº x (...) enviadas pelo nº da suspeita, que de momento não se recorda mas juntará oportunamente, com um teor intimidatório e ameaçador, nomeadamente nos seguintes termos: “VOU-TE PARTIR OS DENTES TODOS; VOU DAR CABO DE TI”. Estas ameaças, escritas pela suspeita e enviadas por telemóvel, têm a ver com o facto de aquela ter um caso amoroso com o ainda seu marido e que por vingança envia-lhe estas mensagens para a deixar intimidada e com receio.”.

No entender do Tribunal da Relação, resulta medianamente claro que a ora assistente quando apresenta esta queixa contra B... não o fez apenas por ter recebido uma mensagem no dia 18/03/2014, às 15H30, na Universidade (...) , com os termos “VOU-TE PARTIR OS DENTES TODOS; VOU DAR CABO DE TI”, mas por ter recebido “várias mensagens no seu telemóvel com nº x (...) enviadas pelo nº da suspeita, que de momento não se recorda mas juntará oportunamente, com um teor intimidatório e ameaçador”( sublinhado nosso).

- No dia 22 de Março de 2014, pelas 19H20, a ora recorrente A... dirigiu-se de novo à PSP, de (...) , e “Em aditamento ao auto de denúncia” veio (…) a lesada/ofendida a  informar que ontem pelas 17h00 o seu marido (…) telefonou-lhe a avisar que a suspeita iria junto à casa da ofendia afim de cumprir as ameaças anteriormente denunciadas, pelo que a mesma, na companhia da filha de 15 anos de idade, E... adiou a sua ida para a sua residência desde aquela hora até á 1h00 do dia seguinte, momento esse em que com receio das ameaças virem a ser concretizadas foi dormir com a sua filha a casa de uma sua amiga”. Mais se menciona aí, designadamente, que a filha da ofendida, no dia 18 de Março de 2014, pelas 11h40 “recebeu uma mensagem da suspeita a pedir que entrasse em contacto com a mesma, ao que esta acedeu, entrando em contacto com a mesma pelas 12h00 desse mesmo dia, e nessa mesma chamada a suspeita, proferiu-lhe o seguinte: A tua mãe é uma puta e anda com uns e com outros, tu não gostas dela, vou acabar com a tua vida e com a dela, vou espedeçar o carro dela, vou partir o focinho á tua mãe, vou fazer a tua vida e da tua mãe no inferno!”. Hoje a lesada/ofendida recebeu uma mensagem via telemóvel por parte da suspeita dizendo que a sua filha “anda atrás do cu dos padres, a cantarolar”, e que “vais paga-las ”. A lesada/ofendida disse ainda que se encontra a estudar e a residir na cidade de (...) , motivo pelo qual a sua filha se encontra a residir em casa dos seus sogros, recebendo a visita do seu pai e da suspeita três dias por semana, pelo que a sua filha se encontra atualmente em pânico, ansiosa e receosa que a suspeita apareça a qualquer momento e que venha concretizar as ameaças narradas neste auto, a ofendida teme igualmente que o faça em relação à sua pessoa na medida em que actualmente apenas se desloca para a sua residência na companhia da mãe ou de uma amiga, limitando desta forma a sua vida diariamente”.

Resulta deste aditamento, que dois dias depois de apresentar a primeira queixa a ora recorrente volta à PSP, denunciando que no citado dia 18 de Março de 2014, a ora arguida contactou ainda a filha da ora assistente e proferiu as expressões que descreve - objetivamente ofensivas da honra e consideração da ora assistente -, e que, no dia de hoje, recebeu mais uma SMS da arguida, com o conteúdo que indica.

- No dia 20 de maio de 2014, a ora recorrente A... é ouvida na PSP, declarando designadamente, o seguinte:

“…confirmar os factos descritos na denúncia apresentada nesta Polícia, bem como o aditado junto da PSP de Coimbra por corresponderem à verdade.

Que apesar de ainda se encontrar casada com D... , está separada do mesmo há cerca de 10 anos sensivelmente, tendo até fruto desse casamento uma filha.

A participada vive em união de facto há cerca de um ano com o mencionado marido da declarante, no entanto já mantém um relacionamento com o mencionado marido da declarante há cerca de dois anos sensivelmente.

Foi a partir do início desta relação, portanto há cerca de dois anos, que a declarante, começou a receber mensagens SMS, provenientes de um número de telemóvel , o y (...) , número que desconhecia o seu titular.

A declarante, ao questionar, também através de mensagem SMS, quem era a pessoa titular de tal telemóvel, a participada identificou-se. Logo nessa primeira mensagem a participada escreveu palavras de ameaças, do género: Vou-te partir os dentes, entre outras do género.

(…) desde essa altura até à presente data, tem enviado inúmeras mensagens SMS à declarante sempre com conteúdo injurioso e até ameaçador à integridade física da declarante.

Tais mensagens incidem essencialmente na altura em que a declarante se encontra em exames ou frequências, o que naturalmente causam forte instabilidade emocional e psicológica na declarante, refletindo-se no seu aproveitamento.

Esclarece que além do número atrás indicado, a participado tem enviado outras mensagens SMS, provenientes de outros números, que de momento sabe indicar.

Esclarece que tenho o seu telemóvel avariado, a declarante teve de o substituir, não conseguindo guardar o conteúdo de todos as mensagens que recebeu da participada, desde o inicio, no entanto compromete-se a juntar aos presentes autos, todo o conteúdo das mensagens que conseguir armazenar, as quais calcula serão em número elevado.

A declarante estando atualmente a estudar e a residir nesta cidade de (...) , deixando a sua filha ao encargo dos avós, que residem também em Coimbra, teme que a participada lhe possa também fazer algum mal, tanto mais que existe alguma convivência entre elas, quando a sua filha se encontra à guarda do pai.

Aliás a sua filha chegou a receber recentemente da participada, mensagens SMS, onde também ela é ameaçada. Que também se compromete a juntar aos autos, o conteúdo das mensagens recebidas pela sua filha.

A participada também efetua chamadas telefónicas onde profere as mesmas ameaças. Que tais chamadas apesar de serem provenientes de número não identificado, reconhece sem qualquer dúvida a voz da participada.

Esclarece ainda que entre outras ameaças, frequentemente a participada refere que a declarante não irá terminar o curso que atualmente esta frequenta nesta cidade de (...) , o que lhe causa receio.

Perante o exposto, declara que todos estes factos, lhe causam forte perturbação emocional e ou psicológica, sentindo-se perturbada na sua vida pessoal e na sua paz. (…).

Em face do exposto, reafirma o seu desejo do respetivo procedimento criminal e indemnizatório contra a participada.” ( sublinhado nosso)..

- A ora recorrente juntou de folhas 58 a 71 e de folhas 87 a 90, uma reportagem fotográfica de  SMS que terão sido por ela recebidas nos dias 15, 16, 24 e 29 de Março de 2013; 1 de Abril de 2013; 18 de Novembro de 2013; 3 e 28 de Dezembro de 2013; 1 de Janeiro de 2014; 8, 19, 21, 22, 24 de Fevereiro de 2014; 18, 21 e 24 de Maio de 2014, provenientes da ora arguida e, ainda, uma reportagem fotográfica de SMS, constantes de folhas 72-74 e 82-86 dos autos que a ora recorrente refere terem sido enviadas pela ora arguida, pela mesma via, para o telemóvel da filha ora recorrente.

A ora recorrente juntou, assim aos autos, as várias mensagens escritas (SMS) que alegadamente terá recebido no seu telemóvel, enviadas pela arguida, e que referiu querer juntar logo aquando da apresentação da queixa, e foi reafirmando posteriormente.

- A folhas 258 e seguintes, a Digna Magistrada do Ministério Público, proferiu dois despachos. No primeiro deles consignou, designadamente:

No caso em análise, entendemos que não foram apurados elementos de prova suficientes/bastantes para acusar a arguida da autoria do referido crime de ameaça, por forma a admitir com razoabilidade que a mesma venha ser condenada em sede de julgamento, atento o preceituado nos n.ºs 1 e 2 do art.283 do CPP.

Com efeito, resulta do Auto de Denuncia que a arguida terá enviado mensagens à queixosa, através do telemóvel, dizendo “... vou-te partir os dentes todos, ... vou dar cabo de ti.”.

Acontece que, apesar de todas as diligências efectuadas, não foi possível apurar quando tais mensagens lhe foram enviadas. Uma vez que das Reportagens Fotográficas juntas aos autos (fols. 58-71, 72-74, 82-90) não resulta mensagem com aquele teor.

Por outro lado quando foi inquirida, a queixosa disse que a arguida lhe tem enviado inúmeras mensagens SMS com conteúdo ameaçador, não concretizando quando as mesmas ocorreram (fols. 55-56).

As testemunhas inquiridas também não disseram concretamente quais as ameaças que foram dirigidas à queixosa, nem em que data/altura tal aconteceu (fols. 20, 42, 43, 248).

Sendo que a arguida negou a autoria dos factos que lhe são imputados.

Assim, face ao tudo exposto, considerando que não foram apurados elementos bastantes para acusar a arguida da autoria do crime de ameaças, e não se vislumbrando outras diligências úteis a realizar, ordenamos o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos do disposto no art.277° n.º 2 do C.P.P .”.

No segundo despacho, deduziu acusação contra a arguida B... imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de perturbação da vida privada, p. e p. no art.190.º, n.º 2, do Código Penal, nos termos que constam descritos na “Questão prévia” da sentença recorrida.

Do exposto, resulta que o Ministério Público decidiu arquivar o processo na parte relativa ao crime de ameaça descrito no “Auto de Denuncia”, de envio de mensagens à queixosa, através do telemóvel, dizendo “... vou-te partir os dentes todos, ... vou dar cabo de ti”, porquanto dos SMS juntos pela ora recorrente não constava nenhum com esse teor  e não há prova do seu envio, mas considerou que face aos vários SMS que indica na acusação particular, se indicia suficientemente que a arguida praticou um crime de perturbação da vida privada, em que é vítima a ora recorrente.     

- A assistente A... deduziu, por sua vez, acusação particular, constante de fls. 272 e segs. contra a mesma arguida, imputando-lhe um crime de injúrias, na forma continuada, p. e p., pelo art.181.º do Código Penal, nos termos que constam descritos na “Questão prévia” da sentença recorrida, ou seja, com base, nomeadamente em alguns SMS cujo teor descreve e estão juntos aos autos.

Salvo o devido respeito, na apresentação da queixa em 20 de março de 2014, a ora recorrente A... manifesta vontade inequívoca de que tenha lugar procedimento criminal contra a arguida B... pelas várias mensagens que lhe foram remetidas pela arguida, que se compromete a juntar aos autos; no aditamento de 22 de Março de 2014 deixa medianamente claro que a queixa deve ser extensiva às recebidas pela filha, enviadas pela arguida, e em que é ofendida por esta; e nas declarações de 20 de maio de 2014 deixa bem expresso o seu desejo de procedimento criminal e indemnizatório contra a arguida B... pelos factos descritos no auto de denúncia apresentada nesta Polícia, no aditamento, e nas suas declarações, havendo entre todos os factos narrados uma evidente conexão e identidade substantiva, como bem reconheceu o Ministério Público ao deduzir acusação pública e a assistente ao deduzir acusação particular.

Entendemos, assim, que o Tribunal a quo, ao conhecer do pressuposto da legitimidade do Ministério Público e da assistente, não devia ter-se limitado a apreciar o auto de denúncia constante de folhas 4 , datado de 20 de março de 2014, e o despacho de arquivamento do Ministério Público nos termos em que o fez, e concluir que “nos autos inexiste qualquer queixa por parte da referida assistente contra a mencionada arguida, relativamente [a] factos integrativos dos mencionados crimes de perturbação da vida privada e de injúrias melhor descritos nas mencionadas acusações pública e particular, dentro do prazo a que alude o artigo 115º, nº 1, do Código Penal”.

O auto de denúncia interpretado nos termos que deixamos expresso, conjugado com o referido aditamento, as declarações prestadas pela ora recorrente e as mensagens juntas aos autos, levam-nos a concluir que foi apresentada queixa pela ora recorrente contra a arguida por factos que integram a narração das acusações pública e particular e, consequentemente, que o Ministério Público e a recorrente A... têm legitimidade para deduzirem acusação pela prática, respetivamente, de um crime de perturbação da vida privada p. e p. no art.190.º, n.º 2 do Código Penal e de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelo art.181.º, do mesmo Código.

Se todos os factos narrados nas acusações, pública e particular, constam do auto de denúncia interpretado nos termos que deixamos expresso, conjugados com o referido aditamento, as declarações prestadas pela ora recorrente e as mensagens juntas aos autos, é questão que não foi abordada na sentença recorrida.

Como também não foi abordada a natureza do crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.190.º, n.º 2 do Código Penal, designadamente se é um crime instantâneo ou duradouro, nem a natureza, continuada, do crime de injúrias imputado na acusação e, consequentemente, se o direito de queixa foi exercido nos termos do art.115.º, n.º1 do Código Penal, relativamente a todos os factos referidos nas acusações.

Os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim apurar da adequação e legalidade da decisão sob recurso e, no caso, a questão é decidir é se inexistia qualquer queixa por parte da referida assistente contra a mencionada arguida, relativamente a factos integrativos dos mencionados crimes de perturbação da vida privada e de injúrias sob a forma continuada, como fora decidido na douta sentença recorrida.

Decidido que foi exercido o direito de queixa e que o Ministério Público e a assistente A... têm legitimidade para acusar, não pode manter-se a decisão recorrida de declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida B... , relativamente aos crimes de perturbação da vida privada e de injúrias que lhe são imputados, nem a consequente declaração de extinção do pedido de indemnização civil por impossibilidade superveniente da lide e o arquivamento dos autos.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pela A... e, revogando a douta sentença recorrida, determina-se o prosseguimento dos autos.

 Sem custas.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                         *

Coimbra, 17 de Janeiro de 2018

Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4]  In “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, ed. 2007, pág. 152. 
[5]  In “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, notícias editorial, pág. 665.
[6]  In, obra citada, pág. 675.