Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/17.6GCIDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO;
ALTERAÇÃO DE FACTOS;
ELEMENTOS DO TIPO DE CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JCG DE IDANHA-A-NOVA)
Data: 04/12/2018
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 32.º, N.º 5, DA CRP; ARTS. 1.º, 358.º E 359.º DO CPP; ART. 152.º DO CP
Sumário: I – O art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa confere ao nosso processo penal estrutura, essencialmente, acusatória.
II – O princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento.
III – Mas a lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos.
IV – Constando a matéria levada ao ponto 9 dos factos provados da acusação, onde nesta, se integrava num contexto factual mais amplo, não existe facto diverso que devesse ser comunicado ao recorrente.
V – O tipo de crime violência doméstica tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
[Tipo objectivo] – A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge;
[Tipo subjectivo] – O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
VI - A lei não define o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, apenas esclarece que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
VII – A qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito, da mesma forma que a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 19).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, 4 e 5 do C. Penal.

Por despacho de 21 de Abril de 2017, B.. .foi admitida a intervir nos autos como assistente.

Por despacho proferido na audiência de julgamento de 31 de Outubro de 2017 [acta de fls. 268 a 269], foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido oposto ou requerido.

Por sentença de 31 de Outubro de 2017 foi o arguido condenado pela prática do imputado crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, condicionada ao dever de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida, e acompanhada de regime de prova, e ainda na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de dois anos e dois meses.
Mais foi o arguido condenado no pagamento à ofendida da quantia de € 700, a pagar no prazo de um ano a contar do trânsito da sentença, para compensação dos danos sofridos.
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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1º – Da acusação pública nos autos, consta que: “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida, bem como de molestá-la fisicamente e de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efetivamente causou, e não se abstendo de praticar os atos descritos na residência dela. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. Pelo exposto, o arguido, cometeu em autoria material, na forma consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
2º – A acusação é omissa quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos subjetivos do crime de violência doméstica, conduzindo tal omissão à rejeição da acusação por ser manifestamente infundada.
3º – Não tendo a acusação sido rejeitada pelo Tribunal, que por despacho datado de 18-08-2017 a recebeu, e verificando-se a falta dos elementos integradores do tipo subjetivo do ilícito, o que determina o não preenchimento do tipo de ilícito incriminador, deve forçosamente ser ordenada a absolvição do arguido em sede de audiência de julgamento, pois está em falta a definição da relação do agente com a ação ou omissão tipificados como crime.
4º – O que releva para o tipo legal de crime de violência doméstica é o conhecimento por parte do arguido que atuou voluntariamente de que as suas condutas são aptas a ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima, e esse conhecimento não só não resultou provado nos presentes autos, como nem sequer constava da acusação pública deduzida contra o arguido.
5º – Deste modo não consta da acusação o elemento subjetivo do tipo legal de ilícito correspondente ao crime de violência doméstica (o que consta é eventualmente, elementos típicos de crime de injúrias e de ofensas corporais e injúrias), devendo forçosamente ser ordenada a absolvição do arguido em sede de audiência de julgamento, diferentemente do que aconteceu na sentença dos autos.
6º – As condutas pelas quais o arguido vem acusado, não são à partida idóneas a enquadrar o crime de violência doméstica, pelo que o tribunal recorrido teve necessidade de introduzir o conceito de reiteração no tempo de modo a que integrassem a conduta típica ofensiva da dignidade humana, isto é o conceito de maus tratos.
7º – A douta sentença deu como provado no Facto 9: “Desde data não concretamente apurada, mas que se situa após a data referida em 5), sendo com mais frequência desde o ano 2016, o arguido, quase diariamente, apodou a ofendida de “putae que andava a foder com uns e com outros”, que tinha amantes.”, sem que tenha previamente comunicado tal facto ao arguido, não lhe tendo dado oportunidade de se defender em relação a todos os elementos de facto normativos pelos quais foi condenado, em violação do princípio constitucional do direito de defesa e ao contraditório.
8º – A presente acusação e a sentença recorrida não concretizam minimamente as datas ou momentos a que os factos tidos por provados se reportam, impedindo o arguido de se defender.
9º – E mesmo que tais factos constituíssem crime de injúrias, de ofensas corporais na sua forma tentada ou consumada ou de ameaças, desconhece-se se foram apresentadas as respetivas queixas, tendo de qualquer forma ocorrido a sua prescrição.
10º – Foram assim violados:
- o art. 152º , nº 1 al. a) e nº 2do CP
- o art. 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP
- o art. 283º, nº 3 al b), do CPP
- o art. 358º, nº 1 e 3 do CPP
- o art. 379º, nº 1 al. b), do CPP
- o art. 32º, nºs 1 e 5 da CRP
Com o que, e sobretudo com o muito mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, se fará como sempre, JUSTIÇA!
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Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
1. Todos os episódios e actos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua mulher, que são idóneas a afectar o seu bem-estar psicológico bem como a sua integridade física, pois além de representarem total desrespeito para com a sua mulher, causaram-lhe medo e ansiedade, eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso com a ofendida.
2. Para além de ter atingido a honra e consideração da ofendida e de lhe ter causado medo e receio pela sua integridade física, com a descrita repetida conduta o arguido também violou a liberdade de determinação e de decisão daquela, que configura a conduta típica, na modalidade de infligir maus-tratos psíquicos.
3. Não há, por isso, quaisquer dúvidas que toda a descrita conduta do arguido integra os pressupostos objectivos e subjectivos do crime pelo qual foi condenado, pelo que não há qualquer erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, razão pela qual não merece censura a sentença impugnada.
4. A alteração não substancial dos factos, representando uma modificação dos “factos” que constam da acusação, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
5. Existe identidade naturalística entre os factos que constavam da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida. A diferença de factualidade no acórdão recorrido, relativamente à acusação está apenas numa melhor explicitação ou pormenorização dos factos que, tendo por base o que constava da acusação, foram dados como provados e que resultaram da prova apurada em sede de julgamento, de entre o mais, das próprias declarações do arguido, parcialmente confessórias.
6. Ora os acrescentos ou menções constantes nos factos dados como provados em 9.º, apenas servem para concretizar e precisar os termos da acção típica neles constante, sendo que dos mesmos não se descortina o necessário “relevo para a decisão da causa” (exigido no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal) para que se impusesse a comunicação a que alude tal preceito legal. São pois acrescentos ou pormenores que, em si mesmos, não assumem relevo para a decisão da causa, mas que apenas servem para esclarecer/pormenorizar/concretizar/enquadrar os demais factos da acção típica em que se inserem.
7. Por isso, e porque nenhuma das divergências assinaladas pelo recorrente se enquadra no âmbito no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, não era exigível, nem se justificaria qualquer comunicação de tal alteração pretendida pelo ora recorrente, não assistindo, assim, razão ao recorrente.
8. O que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos actos que integram o conceito de violência doméstica (caso em que, sob pena de se postergar os direitos de defesa, normalmente, teriam de ser indicadas as circunstâncias de tempo, modo e lugar de cada um deles), mas um comportamento reiterado ao longo dos anos. A acusação, bem como a sentença ora em crise, balizou o tempo em que tal comportamento persistiu – desde os anos de 2002/2003 com mais frequência a partir de 2016.
9. Há comportamentos, sancionados pelo direito, em relação aos quais não é humanamente exigível a concretização, quanto a dia e hora, de todos os actos que o integram. O ordenamento jurídico é um todo harmonioso, não sendo pensável que o direito penal substantivo puna um comportamento, que, depois, seria indemonstrável face às regras do direito processual.
10. É assim também nos casos do crime de violência doméstica em que houver a imputação de comportamentos reiterados. Foi para prevenir situações como as descritas que a norma do art.º 283 nº 3 al. b) do CPP impõe que as concretizações nela indicadas apenas serão feitas “se possível”. Em todo o caso, a sentença recorrida balizou minimamente o comportamento no tempo e no espaço: ocorreu a partir dos anos de 2002/2003, com maior frequência desde o ano de 2016, no interior da residência do casal.
11. Assim, a douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, designadamente, os art.sº 152.º, n.º1, al. a) e n.º 2 do CP e 311.º, n.º 2, al. a), n.º3, al. b), 283.º, n.º 3, b), 358.º, n.º 1 e 3, 379.º, n.º 1, b), do CPP e 32.º, n.º 1 e 5 da CRP.
Pelo exposto, deverá o recurso interposto pelo recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão sindicada, condenando-se o arguido nos seus precisos termos, como é de toda a JUSTIÇA.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando os argumentos da resposta do Ministério Público, afirmando a inexistência de vícios decisórios, a correcção da valoração probatória e da qualificação jurídica dos factos, e concluiu pelo não provimento do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A nulidade da sentença;
- A atipicidade da conduta relativamente ao crime de violência doméstica;
- A prescrição dos – ‘convolados’ – crimes de injúria, ameaça e ofensa à integridade física.
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Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…)".
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Questão prévia
O ponto 10 dos factos provados, tal como consta da sentença recorrida, tem a seguinte redacção:
- Em Janeiro de 2016, (…), o arguido, em dia não apurado, (…), dirigindo-se à arguida, apodou-a de “puta” e “que andava a foder com uns e outros”, que tinha amantes.
Nos autos não existe arguida mas assistente. Trata-se, portanto, quando a primeira qualidade processual é ali mencionada, de manifesto lapso de escrita, aliás, já proveniente da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, feita em audiência de julgamento, como resulta da leitura da acta de 31 de Outubro de 2017, a fls., 268 a 269.
A rectificação do erro não importa modificação essencial do decidido, em especial, não agrava a posição do arguido (alínea b) do nº 1 do art. 380º do C. Processo Penal) e pode ser feita oficiosamente e pela Relação (nºs 1 e 2 do mesmo artigo).
Assim, procedendo-se à rectificação do erro de escrita apontado, no ponto 10 dos factos provados, onde se lê «(…) dirigindo-se à arguida, apodou-a (…)», deverá ler-se «(…) dirigindo-se à ofendida, apodou-a (…)».
Consigna-se que a rectificação já consta dos factos provados supra transcritos.
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Da nulidade da sentença
1. Alega o recorrente – conclusão 7 – que a matéria de facto que consta do ponto 9 dos factos provados não lhe foi previamente comunicada, em violação dos princípios constitucionais do direito de defesa e do contraditório. No corpo da motivação o recorrente densifica a alegação, acrescentando que não sendo idóneas para o preenchimento do tipo da violência doméstica os factos imputados na acusação, o tribunal a quo teve necessidade de introduzir a reiteração no tempo da conduta, de modo a que a esta, revelando-se ofensiva da dignidade humana, passasse a preencher o conceito de maus tratos, e nesta decorrência, deu como provada a matéria levada ao identificado ponto de facto, sem que lhe tivesse sido previamente comunicada, ao arrepio do imposto pelo art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, sendo por isso, nula a sentença, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 379º do mesmo código.
Oposta é a posição do Ministério Público para quem a matéria levada ao ponto 9 dos factos provados apenas concretizou a modalidade da acção típica. Não se descortinando nos acrescentos feitos o relevo para a decisão da causa exigido pelo nº 1 do art. 358º do C. Processo Penal para que a comunicação nele aludida seja feita.
Vejamos a quem, em nosso entender, assiste razão.
O C. Processo Penal estabelece no seu art. 379º o regime da nulidade da sentença. Esta patologia, nos termos do nº 1 do artigo citado, só ocorre nas situações previstas nas suas três alíneas, a saber [tendo em vista a forma comum do processo penal]: a) a ausência das menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º portanto, e além do mais, a inexistência de fundamentação; b) a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia; e, c) a omissão ou o excesso de pronúncia.
In casu, releva a nulidade da alínea b), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º.
O art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa confere ao nosso processo penal estrutura, essencialmente, acusatória. Essencialmente, na medida em que essa estrutura se mostra temperada, a espaços, pelo princípio da investigação apresentando, portanto, alguns elementos de inquisitoriedade.
Brevitatis causa, diremos que o princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento. Trata-se de uma garantia fundamental do julgamento imparcial, do processo equitativo, do due process of law (art. 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), pela qual se confere ao tribunal a tarefa de julgar os factos da acusação e não, de proceder oficiosamente à sua investigação (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 522).
Num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício pleno de todas as garantias de defesa (cfr. art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa) exige a necessária correspondência ou correlação entre a acusação [e a pronúncia, quando exista] e a sentença, vista a necessidade de preservar a imutabilidade do objecto do processo por ela, acusação [ou pronúncia], fixado.
Esta correspondência não é, no entanto, absoluta. A lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o C. de Processo Penal regula nos arts. 1º, 358º e 359º.
Pois bem.
Estaremos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem. E aqui, a primeira distinção a fazer é entre alteração substancial e alteração não substancial de factos.
O art. 1º, f) do C. Processo Penal define «alteração substancial dos factos» como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim, primeiro requisito é que ocorra uma modificação dos factos, considerando-se facto o acontecimento ou ocorrência, passada ou presente, susceptível de prova. Depois, é necessário que a modificação ocorra em factos relevantes para a imputação de um crime ou para a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alínea a) do mesmo artigo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objecto do processo e portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art. 1º, f) do C. Processo Penal determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.
A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a alteração de factos que, não sendo substancial, tenha relevo para a decisão da causa (cfr. art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal).

2. A disciplina da alteração substancial dos factos encontra-se fixada no art. 359º do C. Processo Penal, cujas linhas gerais podem traçar-se em torno de duas realidades: acordo dos sujeitos processuais e falta dele. Existindo acordo entre o Ministério Público, o arguido e o assistente quanto à continuação do julgamento pelos novos factos, e não determinando estes a incompetência do tribunal, prossegue o julgamento, devendo aqueles ser considerados para efeitos de condenação (nº 3 do artigo citado). Não existindo acordo, os novos factos não podem ser considerados pelo tribunal para o efeito de condenação, nem implica a extinção da instância (nº 1 do artigo citado). Quando tal sucede, quando não existe acordo, ou os novos factos são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para o respectivo procedimento (nº 2 do artigo citado) ou não são autonomizáveis, situação em que, porque não podem ser considerados para efeito de condenação, se tornam irrelevantes.
A disciplina da alteração não substancial dos factos encontra-se fixada no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal e consiste, basicamente, na sua comunicação ao arguido e na concessão do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, considerada em toda a sua amplitude.

3. O ponto 9 dos factos privados da sentença tem a seguinte redacção, «Desde data não concretamente apurada, mas que se situa após a data referida em 5), sendo com mais frequência desde o ano de 2016, o arguido, quase diariamente, apodou a ofendida de “puta” e acusou de ter amantes e dizia que lhe batia».
No ponto 5 dos factos provados não consta, propriamente, uma data mas a referência, «Em data não apurada, mas situada nos anos de 2002 e 2003, em hora não apurada, (…)», o que significa que a factualidade levada ao ponto 9 se verificou desde data não concretamente apurada, mas que se situa após 2002/2003.

Na acusação pública lê-se [fls. 214 e 215], na parte em que agora releva:
- [§ 4º] Logo após terem começado a viver juntos, quase diariamente, o arguido dirigiu-lhe expressões injuriosas, agrediu-a fisicamente e ameaçou-a de morte;
- [§ 7º] Assim, sem qualquer motivo, discutia com a ofendida e, na sequência dessas discussões, por diversas vezes, o arguido disse-lhe “És uma puta” e “Andas com outros homens”;
- [§ 8º] Igualmente, por diversas vezes, na residência de ambos no (…), quando a ofendida confrontava o arguido com alguma situação que era do seu desagrado, o arguido dirigiu-se àquela e disse-lhe “Levas uma para os cornos”;
- [§ 10º] Em data não concretamente apurada, entre os anos de 2004 a 2005, na sequência de uma discussão referente a uma mulher cuja identificação não se logrou apurar, o arguido disse-lhe “És uma puta … andas com outros homens”;
- [§ 11º] Acto contínuo, deu um forte empurrão à ofendida, a qual apenas não caiu ao chão por motivos alheios ao arguido;
- [§ 12º] A partir dessa data, o arguido passou a ter diversos relacionamentos extraconjugais com outras mulheres;
- [§ 13º] E quando a ofendida o confronta com tal situação, o arguido destrata-a, apelidando-a de “puta” e acusando-a de ter amantes;
- [§ 14º] Em dia não concretamente apurado, entre 14 e 15 de Agosto de 2016, na habitação onde reside actualmente, sita na (…),, a ofendida encontrava-se a descansar, quando a dada altura o arguido chegou a casa;
- [§ 15º] De imediato, dirigiu-se à ofendida e apelidou-a de “puta” e “andas a foder com uns e outros”;
- [§ 16º] Acto contínuo, o arguido pegou numa mesa de centro constituída por madeira e mármore, a qual encontrava-se na sala da habitação, e dirigiu-a contra a ofendida, apenas não a tendo atingido por (…) ter aparecido e impedido tal conduta;
- [§ 17º] Em data não concretamente apurada, mas em finais do ano de 2016, o arguido dirigiu-se à ofendida e, em tom sério e intimidatório disse-lhe que a matava;
- [§ 18º] Posteriormente, no dia 5 de Fevereiro de 2017, entre as 20h00m e as 21h00m, na habitação da ofendida supra referida, e na presença (…), na sequência de uma discussão sobre um candeeiro, dirigiu-se à ofendida apelidando-a de “puta” e acusando-a que “andava a foder com estre e com aquele”;
- [§ 19] Nesse mesmo dia, disse-lhe que estava impedida de frequentar o (…), porque ele é que mandava e não permitia.
Confrontando esta factualidade com os factos provados que constam da sentença recorrido, torna-se evidente que os §§ 14º a 16º, 18º e 19º da acusação correspondem, com algumas, mas não significativas alterações, aos pontos 11 a 15 dos factos provados da sentença. Por seu turno, a matéria dos § 4º e 17º da acusação passou para os pontos a) e i) dos factos não provados da sentença.
Usando uma técnica não isenta de crítica mas não interditada pelas normas do processo penal, a narração do «pedaço da vida» que integra a acusação pública começa pela descrição da cláusula geral, chamemos-lhe assim, que compõe o § 4º, onde é imputada ao recorrente, desde o início da coabitação com a ofendida, a prática, quase diária, de injúrias, ofensas à integridade física e ameaças, a que se segue no § 7º, com aumento do nível de concretização, a identificação das concretas expressões injuriosas que, repetidamente, o arguido dirigiu à ofendida e no § 8º a identificação do sentido das ameaças proferidas para, depois, nos §§ 9º a 19º, a indicação das circunstâncias de tempo, modo e execução das individualizadas condutas do arguido, pelas quais este dirigiu à ofendida aquelas palavras e expressões, as frases ameaçadoras e praticou as ofensas à integridade física.
Ainda que a dita cláusula geral tenha, na sentença, passado para o elenco dos factos não provados, o teor do ponto 9 dos factos provados mais não é do que uma redução do âmbito temporal daquela, na medida em que as expressões e palavras injuriosas – “És uma puta” e “Andas com outros homens”, o que equivale a acusar a ofendida de ter amantes – e a ameaça de agressão, em vez de se reportarem ao início do casamento – (…) – passaram a referir-se a datas posteriores a 2002/2003 e, em especial, desde 2016.
Deste modo, constando a matéria levada ao ponto 9 dos factos provados da acusação, onde nesta, se integrava num contexto factual mais amplo, não existe facto diverso que devesse ser comunicado ao recorrente, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal pelo que, não padece a sentença recorrida da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, b) do mesmo código.
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Da atipicidade da conduta relativamente ao crime de violência doméstica
4. Alega o recorrente – conclusões 2, 3, 5, 6 e 8 – que a acusação é omissa quanto aos factos integradores do elemento subjectivo do crime de violência doméstica pelo que, não tendo sido oportunamente rejeitada, na fase do julgamento impõe-se a sua absolvição, e ainda que, tão-pouco as condutas que lhe são imputadas são idóneas ao enquadramento do conceito de maus tratos exigido pelo tipo em questão, não estando concretizadas as datas em que ocorreram, impedindo a sua defesa.
Vejamos se lhe assiste ou não, razão.
O art. 152º do C. Penal, prevendo e punindo o crime de violência doméstica, dispõe no seu nº 1, a) que, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O crime tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512, Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305 e Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 15 e ss.; em sentido algo diferente, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 591, para quem, acentuando a natureza pluriofensiva do tipo, o crime protege os bens jurídicos integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra), tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora interessa:
[Tipo objectivo]
- A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge;
[Tipo subjectivo]
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
Trata-se de um crime específico impróprio – só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial, in casu, a relação familiar entre o agente e a vítima, sendo esta o fundamento da agravação da ilicitude –, habitual – pressupõe a prática reiterada da mesma acção, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única, o que verdadeiramente só acontecerá em circunstâncias extraordinárias – e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado outras de mera actividade, umas vezes de dano outras de perigo (cfr. Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 520).
A lei não define o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, apenas esclarece que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
Assim, incluem-se no conceito maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visam atingir directamente o corpo do ofendido, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de braços e pancadas ou golpes desferidos com objectos portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física. E integram o conceito de maus tratos psíquicos, entre outras acções, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, perseguições e as esperas não consentidas.
Deve notar-se que a qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito, da mesma forma que a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, ob. cit., pág. 19).
Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, a relação de domínio daquele sobre esta, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade.
Dito isto.

5. Como vimos, a reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo, mas é, no entanto, pressuposta pela lei, como conduta ‘norma’, razão pela qual é a violência doméstica qualificada como crime habitual. Como tal, todas as condutas parcelares integrantes do todo, ‘violência doméstica’, devem constar da acusação, individualizadas e concretizadas.
Neste particular aspecto, a lei não faz exigências desrazoáveis, antes revela alguma flexibilidade, ao exigir que a narração dos factos na acusação contenha, quando possível e portanto, quando conhecidos – a exigência não é, pois, absoluta –, o ubi, o cur e o quando do crime imputado (art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal).
Mas, como é evidente, uma imputação genérica isto é, a narração de um conjunto fáctico a que falta, em absoluto, a concretização da acção no tempo, no espaço, na motivação e no grau de participação do agente, não pode suportar uma condenação, sob pena da postergação do direito de defesa, na medida em que não é susceptível de ser contraditada.
Tendo presente que, na violência doméstica, o conceito de reiteração deve conduzir a um estado de agressão permanente [o que não significa que as agressões tenham que ser constantes], revelador de uma relação de domínio do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar, deixando-a esmagada e indefesa e portanto, numa situação humanamente degradante, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação (cfr. Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 306 e 307).

Revertendo para o teor da acusação e para a matéria de facto provada que consta da sentença, fácil é concluir que o balizamento temporal das condutas do arguido se mostra feito com o mínimo de concretização exigido pelo efectivo exercício do direito de defesa.
Com efeito, relativamente à matéria de facto constante dos pontos 5 e 6 dos factos provados da sentença – que constituem um minus relativamente aos §§ 9 a 11 da acusação –, ainda que a imprecisão temporal tenha determinado que a acção fosse situada em dia e hora não apurados dos anos de 2002 ou 2003, a situação concreta descrita, pelo nível de pormenorização – (…) – permitia o exercício daquele direito.
E o mesmo se diga, relativamente à matéria de facto constante dos pontos 7 a 9 dos factos provados da sentença – com correspondência aos §§ 12 e 13 da acusação –, na medida em que a manifesta imprecisão temporal dos dois primeiros é logo balizada pelo período temporal assinalado no último – com maior frequência desde 2016 – e plenamente concretizado com a indicação do mês e ano em que ocorreram os factos mencionados nos pontos 10 e 11 dos factos provados da sentença – o último, correspondente ao § 14 da acusação – e com a data precisa dos factos mencionados no ponto 14 dos factos provados da sentença – correspondente ao § 18 da acusação.
Em suma, os pontos 5 a 13 dos factos provados da sentença contêm matéria de facto suficientemente concretizada, de modo a, conjugadamente, permitirem o pleno exercício do contraditório e do direito de defesa pelo que se não mostra violado o art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

6. Quanto ao mais.
a. O quadro resultante da matéria de facto provada demonstra a assunção pelo arguido de condutas repetidas no tempo, com violência, pelo menos, psicológica, de baixa intensidade, contra a ofendida, durante o casamento.
Embora seja baixa a intensidade da violência empregue em cada concreta conduta, consideradas individual e conjuntamente, que indubitavelmente integra o conceito de maus tratos psíquicos, o padrão de comportamento, a imagem global do facto – que é a que verdadeiramente importa na violência doméstica – resultante caracteriza a relação de domínio, de sobreposição do agente sobre a vítima, apta a afectar, de forma relevante, a dignidade da ofendida enquanto ser humano, pela afectação da sua saúde física, psíquica e moral.
Está, pois, preenchido o tipo objectivo do crime de violência doméstica.

b. Pretende, no entanto, o arguido que o mesmo não sucede com o tipo subjectivo do mesmo crime, pois não consta da acusação e também não consta dos factos provados da sentença que tenha agido voluntariamente, com conhecimento de que as suas condutas são aptas a ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima.
Vejamos.
Os §§ 20 e 21 da acusação têm a seguinte redacção, respectivamente:
- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida, bem como de molestá-la fisicamente e de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, e não se abstendo de praticar os actos descritos na residência dela;
- Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
A matéria do primeiro destes parágrafos, com ligeiras alterações, passou para o ponto 16 dos factos provados da sentença, que tem a seguinte redacção:
- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida, bem como de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, e não se abstendo de praticar os actos descritos na residência de ambos.
A matéria do segundo parágrafo transitou, ipsis verbis, para o ponto 17 dos factos provados da sentença.
Já sabemos que o dolo é o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
O elemento intelectual do dolo – o conhecimento do facto – traduz-se na representação pelo agente, no momento em que pratica a acção, de todos os elementos do tipo de ilícito objectivo, sendo necessário e suficiente o conhecimento tido por indispensável para que a sua consciência ético-jurídica possa solucionar, correctamente, a questão da ilicitude da conduta, sendo que, relativamente aos elementos normativos do tipo, é irrelevante o desconhecimento do seu exacto sentido e qualificação, bastando o conhecimento correspondente ao cidadão comum, a valoração paralela na esfera do leigo.
O elemento volitivo do dolo – a vontade de praticar o facto – significa que, além daquele conhecimento, o agente dirige a sua vontade para a realização do tipo de ilícito objectivo ou, pelo menos, que a sua vontade se conforma com tal realização. E aqui, perante as várias atitudes psicológico-volitivas do agente relativamente à realização do tipo objectivo, a lei distingue entre dolo directo (art. 14º, nº 1 do C. Penal), dolo necessário (nº 2 do mesmo artigo) e dolo eventual (nº 3 do mesmo artigo).
Já numa outra perspectiva, podemos distinguir entre dolo genérico, a intenção de cometer o facto no sentido do conhecimento e vontade de o praticar, e o dolo específico, a intenção de cometer o facto, associada a um determinado fim visado pelo agente (nesta caso, a lei usa, habitualmente, a expressão, «com intenção de …»).
No caso da violência doméstica, o tipo descrito no art. 152º, nº 1, a) do C. Penal não exige a verificação de um dolo específico, sendo suficiente para o preenchimento do tipo subjectivo o dolo genérico, traduzido no conhecimento e vontade de infligir maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge, com consciência da sua censurabilidade desta conduta. A este propósito, escreveu Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 520) ser necessário o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica e o conhecimento e vontade da conduta (caso, p. ex., das ofensas sexuais) e do resultado (caso, p. ex., das ofensas corporais), consoante os comportamentos subsumíveis ao âmbito teleológico-normativo do art.152º configurem tipos de crimes formais ou materiais.
Já sabemos que a lei não define o conceito de maus tratos, físicos ou psíquicos, mas que na categoria dos maus tratos psíquicos se devem incluir, além do mais, as injúrias e as ameaças.
Preenchendo as repetidas condutas do arguido o tipo objectivo dos crimes de injúria e de ameaça, face ao que supra se deixou dito, parece-nos evidente que o dolo relativo a estes tipos de ilícito teria, necessariamente, que constar, como consta, quer da acusação, quer da factualidade provada da sentença. Integrando as injúrias e as ameaças o conceito de maus tratos psíquicos o dolo de injuriar e o dolo de ameaçar significa então, lógica e necessariamente, o dolo de maltratar psiquicamente.
Com ressalva do respeito devido por opinião diversa, não existem fórmulas sacramentais para definir o dolo da violência doméstica, nem este tem que ser, necessariamente, descrito por referência ao bem jurídico tutelado, pois este apenas orienta a interpretação do tipo em questão.
Na verdade, a afirmação do dolo não exige a consciência reflexiva. Queremos com isto significar que o agente tem que conhecer que injuria e ameaça e portanto, que maltrata, e tem que querer injuriar e ameaçar e portanto, querer maltratar. Pode, porventura, até saber e querer que a relação de domínio que exerce sobre a vítima é apta a afectar a saúde física, psíquica e moral desta e, por este meio, a sua dignidade mas, caso assim não suceda – muitas vezes não o saberá, quanto mais não seja, por meras razões culturais – nem por isso deixará de ter actuado dolosamente.
Acresce que a relação de domínio que vimos referindo será sempre uma conclusão de facto a extrair da imagem global do facto dada pelas condutas concretas em causa.
Em suma, não existindo, repetimos, fórmula sacramental e mais ou menos estanque, para descrever o dolo da violência doméstica, a circunstância de não constar dos factos provados da sentença recorrida que o arguido também sabia e queria ofender a saúde psíquica e emocional da vítima e a sua dignidade, ou segmento semelhante, não significa que não se tenha por preenchido o tipo subjectivo do crime, através da matéria de facto levada aos pontos 16 e 17 dos factos provados, na medida em que, referindo-se tal matéria ao dolo de injuriar e ao dolo de ameaçar, lógica e necessariamente, se refere também ao dolo de maltratar psiquicamente.
Correcta é, portanto, a qualificação jurídica dos factos provados feita na sentença em crise.
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Da prescrição dos – ‘convolados’ – crimes de injúria, ameaça e ofensa à integridade física
7. Alega o recorrente – conclusão 9 – que ainda que os factos por si praticados constituíssem crimes de injúria, ofensa à integridade física e ameaça, para além de desconhecer se foram apresentadas queixas, estão os mesmos prescritos.
A argumentação parte do princípio de que a matéria de facto provada seria insusceptível de preencher o tipo do crime de violência doméstica, e na eventualidade de ganharem ‘autonomia’ os ilícitos típicos referidos.
Assim não é, como vimos, o que significa que carece de fundamento a invocação da prescrição do procedimento criminal, até porque ao crime de violência doméstica é aplicável o disposto no art. 119º, nº 2, b) do C. Penal.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).

Coimbra, 12 de Abril de 2018
Heitor Vasques Osório (relator)
Helena Bolieiro (adjunta) )