Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/22.2GCLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE CONTRA A PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DAS ESPÉCIES CINEGÉTICAS
EXERCÍCIO DA CAÇA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
VALORAÇÃO DAS DECLARAÇÕES
DEPOIMENTO INDIRECTO
Data do Acordão: 04/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, ALÍNEA C), 6.º N.º 1, ALÍNEA C), 18.º, N.º 1, 26.º, N.º 1, E 30.º, N.º 1, DA LEI N.º 173/99, DE 21 DE NOVEMBRO/LEI DE BASES GERAIS DA CAÇA/LC
ARTIGOS 56.º, N.º 1, E 88.º, N.º 1, DO D.L. N.º 202/2004, DE 18 DE AGOSTO/REGULAMENTO DA LEI DE BASES GERAIS DA CAÇA/RLC
ARTIGOS 58.º, N.º 6, 129.º, 249.º, N.º 1, ALÍNEA B), 358.º E 412.º, N.º 3 E 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Não é susceptível de configurar uma alteração da qualificação jurídica dos factos, a exigir o mecanismo do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a mera circunstância de na sentença, e para além das normas referidas no despacho de acusação, serem referidas outras, respeitantes tão só à definição legal de conceitos com que haja de avaliar-se o preenchimento das disposições que recortam o tipo.

II – Conforme resulta da noção legal de exercício de caça ou acto venatório, constante do artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, para a configuração do crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas não é exigível a captura de qualquer animal, nem sequer que no local em causa houvesse em liberdade natural animais de espécies cinegéticas e susceptíveis de captura.

III – Consubstancia o crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas a actividade complexa que inclui a procura, a espera, a perseguição, independentemente do sucesso efectivo ou potencial que caiba esperar da actividade, a menos que se configure uma tentativa impossível, como seria o caso de o arguido andar no local dos factos, munido de arma própria, à caça de ursos.

IV – Na impugnação ampla da decisão da matéria de facto, para além do duplo ónus processual, imposto pelo artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), e n.º 4, do Código de Processo Penal, de indicar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e as concretas provas (ou falta delas) que teriam imposto naquela matéria decisão diversa da tomada, tem o recorrente, necessariamente e como decorrência lógica daquelas obrigações, de ligar as provas aos factos em crise, com menção de que provas ou falta delas o impõem e quanto a que factos, e de explicitar argumentativamente as razões de considerarem que as mesmas impõem a reclamada decisão diversa.

V – A não constituição de arguido no momento devido implica a proibição da utilização das declarações prestadas pelo suspeito antes daquela constituição, nos termos do nº 5 do art. 58 C.P.P.

VI – É inviável, até do ponto de vista linguístico, abranger no comando de “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição”, do artigo 249.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, a tomada de declarações orais de alguém que de imediato é encarado como suspeito.

VII – Consubstancia depoimento indirecto o relato feito pelos agentes do OPC daquilo que o arguido lhes disse.

VIII – A admissibilidade excepcional do depoimento indirecto, nos termos e condições do artigo 129.º do Código de Processo Penal, não pode abranger declarações mediatizadas de outras pessoas que não testemunhas, designadamente de assistentes, de partes civis e, sobretudo, de arguidos.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, proferiu-se a 21/12/2022, em processo sumário, sentença em cujos termos o arguido

AA

foi condenado como autor de um crime de contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, p. e p. pelos art. 6.º, n.º 1, al. c), 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Lei 173/99, de 21709 (Lei de Bases Gerais da Caça – adiante LC) e 56.º, n.º 1 e 88.º, n.º 1, do DL 202/2004, de 18/08 (Regulamento da lei de Bases Gerais da Caça – adiante RLC), na pena de cinquenta dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, e como autor de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelos art. 86.º, n.º 1, als. c), e e), e n.º 2, por referência aos art. 2.º, n.º 1, als. ae) e ar), e n.º 3, al. ac), 3.º, n.º 6, al. a), 2.º, n.º 3, als. p), e), ac) e ad), e 3.º, n.º 2, al. v), da Lei 5/2006, de 23/02 (Regime Jurídico das Armas e Suas Munições – adiante LA), na pena de trezentos dias de multa, à taxa diária de 6.00 €, em cúmulo jurídico sendo-lhe imposta a pena única de trezentos e dez dias de multa, sempre àquela taxa diária de 6,00 € (num total da multa única de 1.860,00 €), sendo ainda declaradas perdidas a favor do Estado, nos termos do art. 109.º, n.º 1 do Código penal (adiante CP), a arma e as munições apreendidas nos autos.  

2. O arguido interpôs contra essa sentença recurso em que, apontando-lhe a violação dos art. 127.º, 129.º, 356.º, n.º 2 e 7, 358.º, n.º 1 e 3, 379.º, n.º 1, al. c), 374.º, nº 2, e 410.º, n.º 2, als. a) e c), todos do Código de Processo Penal (adiante CPP), 24.º, 47.º e 71.º, do CP, 2.º, al. c), 6.º, n.º 1, al. c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da LC, e 78.º e ss. do RLC, a final reclama a sua absolvição pelo crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas, e a redução da pena imposta pelo crime de detenção de arma proibida. Das motivações desse recurso extrai a final as conclusões seguintes:

« I – O presente recurso visa a reapreciação da decisão proferida pelo tribunal a quo, porquanto não pode o arguido concordar com a condenação pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, p. e p. pelos art. 6.º, n.º 1, al. c), 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, da LC, e 56.º, n.º 1, e 88.º, n.º 1, do RLC, nem pode concordar com a medida da pena aplicada pela prática do crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) e e), e n.º 2, da LA, por referência aos art. 2.º, n.º 1, als. ar) e ae), e n.º 3, al. ac), 3.º, n.º 6, al. a), relativamente à arma, e 2.º, n.º 3, als. p), e), ac) e ad), e 3.º, n.º 2, al. v), relativamente às munições, todos da LA, na pena parcelar de trezentos dias de multa, à taxa diária de €6,00;

II – Atendendo a que o tribunal a quo deu como provado que:

- No dia 29/11/2022 pelas 23:45 horas, o arguido encontrava-se na Rua ..., em ..., no interior do seu veículo, com a matrícula ..-OR-.., à espera de verificar a presença de javalis.

- O local onde o arguido se encontrava é rodeado de casas de habitação e o arguido encontrava-se a menos de duzentos e cinquenta metros dessas casas,

- Detendo consigo a espingarda semiautomática de percussão central, de cano de alma lisa, com o comprimento superior a 60 cm, de marca ..., modelo ..., com o n.º de série OV-...79, de calibre 12 Gauge, com depósito fixo por baixo do cano com capacidade para quatro cartuchos, em mau estado de conservação, mas funcional, e

- Dois cartuchos carregados com zagalotes, de calibre 12 Gauge e de percussão central, de marca ..., em razoável estado de conservação,

- Que se destinava à caça de javalis naquele local, data e hora,

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente,

- Sabendo que não podia proceder ao exercício da caça de javalis naquele local e hora, nem através daquele método.

Considera o recorrente que não foi feita prova em sede de audiência de discussão e julgamento dos seguintes factos, pelo que se requer a revogação da decisão dando como não provados tais factos, mais exatamente:

- Que a arma se destinava à caça de javalis naquele local, data e hora,

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente,

- Sabendo que não podia proceder ao exercício da caça de javalis naquele local e hora, nem através daquele método

Porquanto, o tribunal, sem atender à prova aí produzida, limitou-se a dar como provados os factos constantes da acusação.

III – Ora, o arguido vinha acusado por ter pretensamente praticado factos que se integravam no estatuído nos art. 6.º, n.º 1, al. c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da LC,  (…).

IV – O tribunal ao condenar em preceitos legais que vão além dos constantes da acusação, pronunciou-se por factos que importam uma alteração da qualificação jurídica dos factos, tendo proferido decisão sem dar cumprimento ao estatuído no art. 358.º, n.º 3 e 1, do CPP, sendo assim tal decisão nula, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

V – Mas mais, em sede de audiência de discussão e julgamento não foi feita uma única pergunta se no local existia “qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural susceptíveis de serem capturadas, vivas ou mortas”, conforme exige o art. 2.º da citada Lei, nem foi demonstrado que existia.

VI – Mais, se a viatura estava em andamento, como poderia o tribunal a quo determinar onde e quando o arguido iria caçar e qual espécie?

VII – Assim, para que se verificasse a consumação do crime pelo qual vem o recorrente condenado, tinha primeiro que se provar que caçou uma espécie cinegética, já que este tipo não se basta com a mera intenção, conforme dispõe o art. 6.º, al. c), da LC. O que não aconteceu.

VIII – Ora, não tendo nenhuma das testemunhas em sede de audiência referido se há ou não qualquer espécie susceptível de ser capturada, e não tendo sido verificada qualquer tipo de “peça” de caça na posse do arguido, questiona-se porque o MP (titular do ónus da prova da matéria constante da acusação), ou o tribunal a quo, não entendeu averiguar/questionar, ou até apurar qual a caça ou espécie suscetível de ser caçada, pelo que não deveria o tribunal punir sem estar elucidado sobre tais factos.

IX – Além de que, a tentativa de cometimento de um crime, subsumível à previsão dos art. 22.º e 23.º do CP, pode, não obstante, deixar de ser punível. Basta que o agente: abandone voluntária e espontaneamente

a execução do crime isto é, omita a prática de mais actos de execução (desistência voluntária) − art. 24.º, n.º 1, 1.ª parte, independentemente das razões (sejam nobres ou até ilegais) que o levaram a desistir.

X – Ora, na dúvida ter-se-á de dar força decisória à versão do recorrente, atento o princípio in dubio pro reo que o julgador está obrigado a seguir.

XI – Faz ainda o julgador referência ao tipo de chumbo que municiava a arma como adequado para a caça ao javali, mas questiona-se se o mesmo não seria apenas o adequado à arma que o arguido transportava?

XII – Entende o recorrente que existem contradições entre os factos provados e que ocorre o vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, devendo os mesmos serem objeto de reapreciação, ou mesmo absolvição do crime de contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas.

- Da Medida da Pena aplicada ao crime de detenção de arma proibida

XIII – Consideramos também como perfeitamente desrazoável a medida da pena …

XIV – O grau da ilicitude não se apresenta acima da média, dentro da multiplicidade de comportamentos que criminalmente são punidos e em sede de prevenção especial, há que considerar que, não lhe sejam apontados antecedentes criminais ou de outra ordem.

XV – Pelo que em função da culpa e das exigências de prevenção (art. 47.º, n.º 1 e 2, do CP), afigura-se que, ponderado todo o circunstancialismo, as multas devem fixar-se em medidas sensivelmente dentro da média legal dos limites legais, sob pena de, assim não entendendo, não cumprirem devidamente a sua função de verdadeiras e autónomas penas, cuja dignidade intrínseca não pode ficar desvirtuada.

XVI – Quanto ao seu quantitativo diário, dado que o fixado se aproxima do limite mínimo legal (art. 47.º, n.º 2, do CP), reputa-se que o tribunal não o valorou com equilíbrio, de acordo com os elementos acerca da situação económica e financeira do recorrente de que dispunha.

XVII – Atendendo a tudo o exposto, não se justifica a pena tão pesada para o arguido, pelo que se requer a sua revogação, substituindo-a por uma pena de multa próxima dos cem dias. »

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP, pugnando pela inteira correcção do decidido e assim pela improcedência das pretensões recursivas e consequente manutenção da sentença recorrida …

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que acompanha a resposta do MP em primeira instância, de igual modo e nos mesmos termos concluindo pela improcedência dos argumentos recursivos e, cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou, sendo que após exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem mais vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e tendo essas conclusões em consideração, podemos apontar como temas a apreciar, ordenando-os segundo as precedências lógico-processuais, os seguintes:
a) A arguida nulidade da sentença;
b) As arguidas insuficiência dos factos provados para a decisão e contradição entre os factos provados;
c) O alegado erro de julgamento, incluindo a preterição do princípio in dubio pro reo;
d) O alegado excesso da concreta medida das penas aplicadas.

1.2. E enfim, não cabendo renovação de provas e de igual modo não sendo caso de realização de audiência (que aliás o recorrente não requereu), sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º, n.º 3, al. c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP), como foi.

2. A decisão recorrida

A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que se faça aqui presente o essencial da decisão recorrida (decisão em matéria de facto, incluindo factos provados e motivação, mas também, da fundamentação de direito, o que tange à determinação concreta das penas). Proferida oralmente, nos termos do art. 389.º-A, n.º 1, do CPP, esse teor, adiante sintetizado, pode extrair-se directamente da gravação respectiva [através da função media player do sistema citius – gravação de 20/12/2022, ficheiro 20221220145424_3040001_2870756]:

« (…)
Factos provados
No dia 29/11/2022, pelas 23.45h, o arguido encontrava-se a circular na Rua ..., em ..., no interior do seu veículo, com matrícula ..-OR-.., à espera de verificar a presença de javalis.
O local onde o arguido se encontrava é rodeado de casas de habitação e o arguido encontrava-se a menos de duzentos e cinquenta metros dessas casas.
Detinha consigo a espingarda semiautomática de percussão central de cano de alma lisa com comprimento superior a 70 cm, classificada como arma da classe D, da marca ..., modelo ..., com  o n.º de série OV-...79 de calibre 12 Gauge, com depósito fixo por baixo do cano com capacidade para quatro cartuchos, em mau estado de conservação mas funcional, que no interior continha dois cartuchos carregados com zagalotes, de calibre 12 Gauge e de percussão central, de marca ..., em razoável estado de conservação.
Destinava à caça de javalis, naquele local, data e hora, a arma descrita.
Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que não podia proceder ao exercício da caça de javalis naquele local e hora nem através daquele método, sabendo igualmente que não tinha autorização nem licença para deter a referida arma e munições, bem conhecendo as características das mesmas.
O arguido agiu conforme descrito mesmo sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
O arguido é cogerente de empresa do ramo da construção civil, retira de vencimento mensal para si próprio cerca de 750,00 €, vive com companheira na casa do filho, não paga renda e contraiu empréstimo ao consumo pelo qual paga prestação mensal no valor de 300,00 €, a companheira trabalha, auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional, tem despesas fixas, o agregado, com pagamento de luz e gás, em cerca de 170,00 € mensais.
Completou o 4.º ano de escolaridade e do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
Factos não provados
Para além dos referidos e de conclusões e meras interpretações de direito, não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
Motivos de facto
A convicção do tribunal quanto à factualidade provada formou-se com base na conjugação do depoimento das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento com o teor da prova documental junta aos autos, tudo analisado crítica e conjuntamente e apreciado com as regras da experiência e da livre convicção do julgador.
O arguido não prestou declarações quanto aos factos, apenas quanto à sua situação económico-social.
Foram ouvidas as testemunhas BB, CC, DD, EE, todos militares da GNR, e FF, o último testemunha também arrolada pelo arguido e testemunha abonatória.
As testemunhas militares da GNR prestaram depoimentos espontâneos, relataram aquilo que presenciaram de forma isenta, mostraram-se coerentes nos seus relatos, que foram por isso considerados sérios e credíveis. Disseram que havia sido recebida uma denúncia de avistamento de focos de lanternas nos ..., à noite, próximo de habitações, e os populares tinham visto ainda durante o dia a circular, à tarde, na zona, um veículo branco que foi considerado suspeito, e por tal motivo a patrulha da GNR deslocou-se àquela zona. Aí interceptaram o arguido, que conduzia o veículo melhor identificado nos autos, que no momento encontrava-se a menos de duzentos e cinquenta metros das habitações e que no interior do veículo fazia-se transportar uma arma caçadeira, melhor descrita no auto de apreensão e relatório fotográfico que consta dos autos, do lado esquerdo do condutor, com munições no interior e gatilho activo, pronta a disparar. Referiram que quando questionado era para quando avistasse o javali fazer disparo, e era para utilizar na caça em exclusivo. Ainda esclareceram os militares que o arguido havia dito que a arma tinha sido oferecida por um amigo e por causa dele não possuía quaisquer documentos, designadamente o manifesto da dita arma.
Conforme o exame pericial à arma efectuado e que consta dos autos, a arma já não estava em bom estado de conservação, mas ainda funcional. As munições no interior da arma eram cartuchos de zagalotes, para caça grossa, como também referiram os militares.
O arguido possuía licença de caçador.
Não havia no interior do veículo qualquer peça de caça nem vestígios de sangue visíveis.
Os militares da GNR, que se haviam deslocado àquela zona por movimentações suspeitas de focos de lanternas e face ao avistamento do veículo branco a circular, que já tinha sido avistado por moradores anteriormente no período da tarde, fê-los pensarem que seriam os autores de furtos, de tentativas de furtos, nas habitações no local, e esclareceram o tribunal que afinal perceberam que as movimentações do arguido naquela hora e local se devia à intenção de caçar javalis, como o próprio lhes revelou quando questionado sobre o que é que estava ali a fazer àquela hora. Assim o afirmaram as testemunhas BB, CC, DD e EE. Acrescentaram também estas testemunhas que na arma existia uma lanterna acoplada e ainda no interior do veículo o arguido trazia uma lanterna de mão, que tinha com ele.
Sendo certo que o arguido não vem acusado de ter capturado qualquer peça de espécie cinegética no dia dos factos, já o mesmo não se pode dizer da dita espera aos javalis, em si igualmente proibida para quem não chegou à competente autorização para a prática de tal acto venatório. E na verdade, o tribunal não se convenceu de que o arguido não tivesse levado consigo a arma que lhe foi apreendida até ao local para efectuar espera que terá feito aos javalis nessa noite, uma vez que não é normal, segundo regras da experiência comum e do decorrer lógico dos acontecimentos, que alguém transporte uma arma com munições no interior adequadas para caça grossa, como são os cartuchos com zagalotes, sem que inclusive o gatilho estivesse bloqueado, portanto, pronta a disparar, se não fosse intenção utilizá-la, precisamente, para efectuar caça aos javalis. Aliás, os próprios militares referiram que foi o que o arguido disse quando o questionaram sobre o que pretendia para transportar a dita arma já sem qualquer cadeado de segurança, sem qualquer bloqueamento do gatilho e que se encontrava pronta a disparar.
Com efeito, não foi possível formar-se outro raciocínio da conjugação da prova apreciada no seu conjunto que não fosse, precisamente, como referido pelos militares da GNR, que o arguido visava utilizar a dita arma, naquela zona, para a caça ao javali.
Também, não fez sentido a versão apresentada pela testemunha FF, sobrinho do arguido que era transportado no veículo no lugar do passageiro, quando refere que, é expressão do mesmo, “eu vi a arma entre os bancos mas não liguei”, tendo dito que haviam saído para tomar café, mas que afinal o estabelecimento onde iam tomar café estava fechado e que não estranhou a existência de uma arma no interior do veículo entre os bancos, como ele próprio referiu. Ora, o comportamento normal de qualquer pessoa quando vai apenas tomar café não é fazer-se acompanhar de uma arma caçadeira municiada, sem qualquer cadeado ou dispositivo de segurança activo no gatilho, com dois cartuchos de zagalote já na câmara, adequados a caça grosa e pronta a disparar.
Por outro lado, àquela hora da noite, 23.40, não havia afluência de trânsito naquela zona onde circulava o veículo do arguido e tinha havido denúncia a informar os militares que haviam sido vistas lanternas na noite, relativamente próximo das habitações, sendo esse o procedimento habitualmente utilizado por quem anda à caça dos javalis; (…) a caça efectuada de noite, utilizando necessariamente lanternas para iluminar as peças, como é do conhecimento geral da população.
Foi para o tribunal evidente, por tudo quanto ficou exposto, e da conjugação da prova concatenada no seu conjunto, que não foi pelo modo como a testemunha FF relatou os acontecimentos que estes se passaram na realidade, bem como não foi por mero acaso ou coincidência que o arguido se deslocava apetrechado com a espingarda caçadeira e munições (…); portanto, tal espingarda é própria para a prática venatória e as munições que levava no seu interior são adequadas a caça de javalis. A testemunha FF, sobrinho do arguido, prestou um depoimento que de certo modo pareceu pouco isento e opinativo; todavia, também referiu não ter ouvido o arguido ter dito aos militares da GNR que pretendia caçar javalis e que a arma fosse para esse propósito, mas ainda assim esclareceu que se encontrava um pouco distante do sítio onde o arguido estava a falar com os militares, pelo que ao dizer não ter ouvido não significa que tal não tivesse acontecido, tal conversa, e dessa forma o seu depoimento não infirma o depoimento dos militares da GNR, que asseguraram ter sido dito que a arma que transportava naquela noite era para caçar javalis se os avistasse. Esta testemunha FF, soube ainda referir ser do seu conhecimento que o arguido é caçador, uma vez que tem disso conhecimento pessoal, e que o mesmo tem licença de uso e porte de arma. Foi ainda ouvido como testemunha abonatória, referiu que o arguido é pessoa não problemática, que nunca se mete em quaisquer problemas ou cometimento de ilícitos.
Considerados todos os documentos dos autos, como já referi, e, no que respeita… Uma palavra no que respeita às conversas que o arguido teve, segundo disseram os militares, antes ainda de ter sido constituído arguido: tais conversas, tidas entre suspeito que posteriormente vem a ser constituído arguido, com militares na fase de investigação são admitidas como prova; os militares não estão impedidos de depor em audiência de julgamento sobre factos que detectaram e constataram durante a fase investigatória – com este sentido maioritariamente a jurisprudência assim se pronuncia, podendo citar-se, a título de exemplo, o Ac. TRG de 06/02/2017, proferido no processo 564/14.1CBCHV.G1, TRC de 09/05/2012, bem como de 11/09/2013, e TRL de 16/06/2015, todos eles com idêntico entendimento, de que tendo o arguido relatado espontaneamente, em momento em que ainda não era arguido, a órgão de polícia criminal, antes da existência de processo, e consequentemente em momento anterior ao da constituição do primeiro na dita qualidade de arguido, qualquer acto que constitui ilícito criminal, o acima descrito não viola qualquer norma processual penal, nomeadamente o disposto no art. 356.º, n.º 7, do CPP, e tão pouco tal depoimento frustra o direito ao silêncio do arguido (tais depoimentos dos militares em audiência).
Ainda no que respeita à prova, encontram-se a fls. (…) cópias dos documentos de licença de uso e porte de arma e livrete/manifesto de duas diferentes armas que o arguido possuía em sua casa, como se apurou pelo depoimento da testemunha DD, que são diferentes da arma caçadeira apreendida que o arguido transportava no dia dos factos dentro do veículo.
Quanto à prova dos factos respeitantes ao elemento subjectivo, esses provaram-se a partir da constatação dos factos objectivos conjugados com regras da experiência comum, entendendo o tribunal que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao tempo dos factos estar inserido na sociedade, ser do conhecimento geral da população a proibição de praticar acto venatório sem a respectiva autorização, sem ser em zona de caça autorizada e sendo certo também que é proibido transporte e utilização de armas não manifestadas para as quais, evidentemente, arma, para  a qual não tinha licença, e respectivas munições, como relativamente àquela que foi apreendida nos autos.
Da prova produzida não restaram dúvidas por isso ao tribunal de que os factos constante da acusação se têm por provados.
Quanto às condições socioeconómicas do arguido aceitaram-se com base nas suas declarações, e ainda se teve em conta o teor do certificado de registo criminal que consta de fls. (…).                                                     
 Fundamentos de direito
(…)
No caso concreto, e fazendo aqui a subsunção dos factos ao direito (…), resultou a prática pelo arguido, no dia e local dos factos referidos, 29/11/2022, pelas 23.45h, na zona das proximidades de casas de habitação, a menos de duzentos e cinquenta metros das mesmas, que o arguido detinha consigo a espingarda (…) classificada como arma da classe D (…) funcional, no interior continha dois cartuchos carregados com zagalotes, calibre 12 (…) e destinada à caça de javalis naquele local [actividade de espera, aguardando ver javalis enquanto peça de caça fazendo-se acompanhar de espingarda (…) pronta a disparar]. Tal actividade integra, nos termos do art. 2.º, al. c), da LC, a noção prevista de exercício de caça ou acto venatório, sabia o arguido que não era portador de autorização para realizar a espera a essa espécie cinegética (…) e que não estava legalmente autorizado a procurar, esperar javalis, com intenção de os capturar em tal zona; também sabia que tal procura, espera, perseguição, a distância inferior a duzentos e cinquenta metros de habitações, também em si proibida, e ainda que não podia procurar, esperar, perseguir ou capturar javalis utilizando um sistema de iluminação da presa, sabendo que não podia praticar tal acto venatório. Desta forma, não sendo possuidor de tais autorizações legais e não desconhecendo a proibição da sua conduta, agiu conformando-se com o resultado e neste caso com dolo directo.
(…)
Como tal, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime de que vinha acusado, o arguido agindo livre, deliberada e conscientemente e inexistindo quaisquer causas que excluam a ilicitude da conduta ou a sua culpa, o arguido devia ter agido de outro modo, sendo o comportamento censurável, pelo que deve ser condenado pela prática dos ilícitos de que vem acusado.
(…)
No caso concreto, as exigências de prevenção geral são consideráveis. Ambos os tipos de crime ocorrem com demasiada frequência no país. No que concerne às exigências de prevenção especial, verifica-se que o arguido não sofreu anteriormente condenações, nada tem averbado no certificado de registo criminal, mostra-se inserido social, familiar e laboralmente, pelo que são tidas por baixas tais exigências. Sabendo que a pena de prisão deve ser entendida como ultima ratio, considerando que o arguido se encontra inserido social, laboral e familiarmente, entende o tribunal que a aplicação de penas de multa será suficiente para que o arguido se abstenha de praticar quaisquer ilícitos criminais no futuro, entendendo-se que realizam no caso concreto de forma suficiente as necessidades de prevenção.
Escolhidas as penas, há que procurar a determinação da medida concreta das mesmas.
(…)
No caso concreto importa atender ao dolo com que o arguido agiu em ambas as condutas, sendo o directo a modalidade mais intensa. Quanto ao grau de ilicitude manifestado no cometimento destes ilícitos criminais, o mesmo é mediano, atendendo à inexistência de circunstâncias não compreendidas no tipo de ilícito que agravem a mesma. Ao nível das exigências de prevenção especial, temos que o arguido não possui antecedentes criminais. Tudo ponderado, considerando a moldura abstracta das penas, a culpa do agente e as necessidades de prevenção, tomando em consideração as circunstâncias concretas indicadas, o tribunal entende justo e adequado aplicar ao arguido as penas parcelares de cinquenta dias de multa pelo crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas, p. e p. pelo art. 6.º, n.º 1, al. c), e 30.º, n.º 1, da LC, e a pena parcelar de trezentos dias de multa pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), da LA.
No que respeita ao quantitativo diário, este é fixado em função da situação financeira do arguido e seus encargos pessoais, pode variar entre um mínimo de 5,00 € e um máximo de 500,00 €, nos termos do art. 47.º, n.º 2, do CP (…).
Uma vez que das condições económico-sociais do arguido resultou que o mesmo trabalha por conta própria, sendo cogerente de uma sociedade que se dedica à construção civil, tira para si próprio 750,00 € de vencimento mensal, não paga renda de casa, não tem filhos menores a seu cargo, as despesas fixas mensais são de cerca de 160,00 €, bem como além disso ainda tem uma prestação de empréstimo no valor de 300,00 € mensais, a esposa trabalha, auferindo o salário mínimo, considera-se que tem condições de vida dentro da normalidade da classe média, com condições de vida razoáveis a boas em termos de disponibilidade financeira, entende o tribunal ser justo e adequado aplicar-lhe a taxa diária de 6,00 €, que se situa ainda assim próximo do mínimo legal.
No que respeita ao concurso de crimes (…) a pena única a aplicar terá, nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, como limite máximo a soma das penas de multa concretamente aplicadas, ou seja, trezentos e cinquenta dias de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas, no caso trezentos dias de multa. Importa assim aplicar ao arguido uma pena única tendo em conta a culpa do agente revelada nos factos, as exigências de prevenção e as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele (…). (…) para além destes critérios gerais a lei estabelece ainda na parte final do art. 77.º, n.º 1, que sejam considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente. Esta avaliação deve centrar-se na ideia de gravidade do ilícito global que os factos analisados no seu conjunto nos oferecem, bem como na resposta que os mesmo dêem à questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência ou mesmo eventualmente uma carreira criminosa, ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade (…).
(…) Por isso, atendendo aos respectivos factos no seu conjunto, a conexão entre os ilícitos cometidos no concreto contexto em que foram cometidos, à personalidade do arguido manifestada também na circunstância de não ter colaborado na descoberta da verdade, bem como a tudo o mais que acima já referimos quando determinada a medida concreta das penas aplicadas para cada um dos ilícitos cometidos, culpa pessoal, exigências de prevenção geral e especial, julga-se justo e adequado fixar a pena única do concurso em trezentos e dez dias de multa.           
(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Conforme pode ler-se no despacho de acusação de 15/12/2022 (cfr. doc. ref. 90019404, dessa data), pelos factos nela narrados foi imputada ao recorrente a comissão, em concurso com a do crime de detenção de arma proibida, de um outro contra a fauna e as espécies cinegéticas, p. e p. pelos art. 6.º, n.º 1, al. c), 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da LC, e 56.º, n.º 1 e 88.º, n.º 1, do RLC. E como se alcança da fundamentação e do dispositivo da sentença em crise, nos termos das transcrições deixadas acima, o que o tribunal recorrido considerou, no que a isso respeita, foi que com a respectiva conduta o recorrente com efeito preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime p. e p. pelos art. 6.º, n.º 1, al. c), e 30.º, n.º 2, da LC, a final sendo a condenação precisamente como autor de um crime por aqueles normativos. Certo sendo que não houve na decisão em matéria de facto ínsita na sentença recorrida qualquer alteração, mesmo não substancial, da factualidade narrada naquela acusação, e visto que a condenação teve a final lugar com o mesmíssimo enquadramento normativo constante do libelo, apresenta-se destituída de alcance, e mesmo algo esdrúxula, salvo o devido respeito, a arguição da nulidade contemplada no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, da alteração da qualificação jurídica dos factos sem precedência do mecanismo previsto pelo art. 358.º, n.º 1 e 3, também do CPP.

3.2. E evidentemente, como na sua resposta ao recurso bem refere o MP, não é susceptível de configurar uma alteração da qualificação jurídica dos factos, a exigir aquele mecanismo do art. 358.º, do CPP, e adrede concitável para substanciar uma tal arguição, a mera circunstância de na sentença, e para além daquelas normas, serem referidas outras (designadamente o art. 2, al. c), da LC), que respeitam tão só à definição legal de conceitos com que haja de avaliar-se o preenchimento das disposições que recortam o tipo (no caso, a noção de exercício da caça ou acto venatório como “todos os actos que visem capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição”. Todas as demais normas invocadas respeitam aos pressupostos do tipo como em rigor e por si sós o definem os art. 6.º, n.º 1, al. c), e 30.º, n.º 1, da LC, não se lobriga no decidido, e a título algum, o menor desvio do tribunal à vinculação temática a que a acusação o sujeitava, e enfim, pensamos serem as considerações que antecedem já quanto baste, e sobeja, para sem mais afirmar que nenhuma violação ocorreu ao art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, e com isso arredar a hipótese de verificação da dita nulidade, cuja arguição por conseguinte improcede, nesta medida decaindo a argumentação de recurso.

3.3. Prosseguindo na análise das questões que o recurso suscita, notemos desde logo que envolvem afinal a impugnação da decisão de facto, e esta, como é sabido, pode nesta sede sindicar-se por duas vias: (a) no âmbito mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a que se convenciona chamar de revista alargada (e que a proceder reclama para correcção do decidido um novo julgamento, apenas excepcionalmente a podendo fazer o próprio tribunal superior – nos termos dos art. 426.º, n.º 1, e 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do CPP); ou (b) com a designada impugnação ampla, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, também do CPP (neste caso implicando a procedência a correcção do decidido pelo tribunal superior – art. 431.º, al. b), do CPP). Da primeira via, e segundo os explícitos termos literais da lei, só podem relevar os vícios decisórios que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que vale por dizer que têm de ser uns tais que se revelem pelo escrutínio que, armado daqueles critérios da experiências comum (é dizer: da lógica, da razão, enfim, do conhecimento científico), se limite à decisão em crise, sem recurso a elementos, designadamente probatórios e mesmo que produzidos em julgamento, que lhe sejam externos, e certamente sem recurso a considerações de ordem jurídica sobre a validade/admissibilidade da prova. Já na segunda, aí sim, versa-se a decisão em confronto com a prova e o respectivo reexame, na medida do necessário e à luz dos pertinentes critérios legais (os do art. 127.º do CPP, com os seus limites).

3.4. Com esta primeira e central distinção presente, comecemos pela impugnação restrita, que é do que o recorrente se louva, explicitamente e sob invocação aliás do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, com argumento de que existem contradições entre os factos provados, e de modo um tanto oblíquo, sem invocação da al. a) do n.º 2 do mesmo art. 410.º, em todo o caso sustentando que os factos provados não incluem matéria que seria indispensável para configurar aquele tipo de crime contra a fauna e as espécies cinegéticas. No que tange a este último vício, surpreender-se-ia em não ter sido apurado que o recorrente tivesse capturado qualquer exemplar, nem apurado ou sequer averiguado se no local da ocorrência ao menos existiriam, ou não, exemplares cinegéticos em estado de liberdade natural e susceptíveis de serem capturados, sendo certo, argumenta, que o preenchimento do tipo, ainda que na forma tentada fosse, se não basta com mera intenção, reclamando que com efeito tivesse sido caçado algum exemplar ou empreendidos actos de execução disso; e no que tange ao primeiro, a contradição lobrigar-se-ia em ficar dado como provado que o arguido circulava naquele local da ocorrência numa viatura em andamento e, do mesmo passo, que se encontrava a caçar e qual a espécie, coisas putativamente incompatíveis entre si, não cabendo falar-se de intenção de caçar ao transitar dentro de um veículo automóvel.

3.5. Pois bem, labora o recorrente em manifesto erro quando pressupõe que o exercício da caça implicaria, para relevar do crime em causa, que tivesse sido conseguida uma captura ou sequer que efectivamente e no local em causa houvesse em liberdade natural concretos animais de espécies cinegéticas e susceptíveis de captura, e um tal erro releva, precisamente, da noção legal de exercício da caça ou acto venatório que é dada pelo já referido art. 2.º, al. c), da LC: “todos os actos que visem capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição”. Perseguir, procurar ou esperar exemplares de espécie venatória, com o objectivo de capturá-los, é em si mesmo exercer a caça, independentemente do sucesso efectivo ou potencial que caiba esperar da actividade e desde que não nos encontrássemos na perspectiva de uma tentativa impossível (como por exemplo se, nas imediações das habitações de ..., o arguido andasse, munido de arma própria, à caça de ursos…). Breve, não é necessário, para o preenchimento do tipo, que no local em que o autor exerce a caça, logre a captura de qualquer peça ou sequer que estas aí sejam abundantes ou mesmo efectivamente existentes (podendo nem chegar a surgir sem que por isso a actividade deixe de ser a de caçar); ponto seja que a exerça, isto é, que leve a cabo a actividade complexa que, nos termos da lei, muito ao contrário de cingir-se ao acto de disparar sobre a peça, inclui a procura, a espera, a perseguição e, eventual mas apenas contingentemente, a captura. 

3.6. Ora, mantendo a análise centrada do texto da decisão recorrida, como o impõe o art. 410.º, n.º 2, do CPP, o que claramente consta dos factos provados é que na data e local em causa, à noite (23.45 h), na proximidade de habitações (a menos de duzentos e cinquenta metros delas), na posse de arma caçadeira de calibre 12 municiada com cartuchos de zagalotes e funcional, apta à caça de javalis e que a isso destinava, o recorrente com efeito procurava exemplares dessa espécie, sabendo tal conduta proibida e punida por lei mas ainda assim tendo querido levá-la a cabo. Poderia até dar-se o caso de, como o recorrente por outro lado argumenta também, as provas disponíveis não sustentarem a afirmação de tais factos, mas isso seria uma questão própria da impugnação ampla, de um suposto erro de julgamento, a avaliar já com escrutínio das provas e não detectável a partir do próprio texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. O ponto é pois que aqueles factos, como na sentença provados, claramente dão corpo ao afirmado preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, como recortado nos art.  6.º, n.º 1, al. c), 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da LC, e 56.º, n.º 1 e 88.º, n.º 1, do RLC – e tanto basta para afastar o espectro da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

3.7. No que tange à explicitamente arguida contradição entre os factos provados, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, a conclusão que se impõe não é diversa e alcança-se com porventura maior clareza ainda, visto ter de tomar-se por evidente que o facto de, quando interceptado pelos agentes da autoridade, o recorrente se fazer transportar no veículo, em nada briga, no plano da lógica, com o de por ali andar a caçar, isto é, a esperar, procurar ou perseguir animais com vista a capturá-los. Naturalmente que para fazê-lo se deslocou ao local, que enquanto o fazia poderia deslocar-se de uns sítios para outros e que quando porventura desse por finda a actividade se deslocaria para onde melhor entendesse, mas nada há que implique a necessidade lógica de fazê-lo apeado, como se a circulação em automóvel ipso facto afastasse o acto de caçar. Além disso, seria estultícia não ter em justa consideração o contexto e o que imediatamente revela: o recorrente não circulava simplesmente em automóvel transportando uma arma de caça; trazia-a pronta a disparar, carregada com munições próprias para caça grossa (zagalotes) e com lanterna acoplada, à noite, e nas proximidades de povoação rural onde a autoridade policial fora chamada por denúncia de ali haver, precisamente, movimentações de lanternas…

3.8. Mais uma vez, o recorrente parece querer reduzir a noção de caça, i.e., exercício da caça ou acto venatório, ao concreto e específico acto de disparar sobre e, porventura, efectivamente capturar uma peça de caça, coisas que na verdade dificilmente se compatibilizariam com conduzir o veículo – mas já vimos que é redutora e indevida aquela noção de que parte, objectivamente resultando  a construção dele em viciar os pressupostos da conclusão a que quer chegar, de verificação, na decisão em matéria de facto, de uma contradição lógica que todavia a racionalidade intersubjectiva, pressupondo a correcta noção de acção de caçar, não pode alcançar. Em suma, também nisto o recorrente empreendeu uma argumentação que tem de ser liminarmente desestimada, não se verificando o dito vício da contradição entre os factos provados ou, já agora, tão pouco da fundamentação ou desta com os factos, como previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, nisto igualmente decaindo o recurso. Obviamente, nem neste nem no precedentemente referido plano resulta cabimento para, aqui, em sede de recurso, proceder-se a qualquer alteração da decisão em matéria de facto, nos termos dos art. 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do CPP, ou sequer determinar reenvio do processo para novo julgamento total ou parcial, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP.    

3.9. O que nos deixa com a questão do eventual erro de julgamento que o recorrente alega, istro é, da impugnação ampla da decisão que, mesmo sem referência expressa alguma ao art. 412.º, n.º 3, do CPP (nas motivações como nas conclusões), parece apesar de tudo ensaiar. A este respeito, contudo, o que cabe de imediato observar é que no contexto da impugnação ampla da decisão de facto e nos termos do dito art. 412.º, n.º 3, do CPP, do que se cura não é e nem pode ser de um novo julgamento da causa, sobreposto ao da primeira instância e para mais sem os benefícios da oralidade e imediação de que esta usufruiu. A impugnação visa, e só isso cabe que vise e pode lograr, a cirúrgica correcção de potenciais erros de julgamento; e mesmo que potencialmente muitos, é sempre e apenas isso. Dito de outro jeito, e de resto com mais exactidão, não está e nem pode estar em causa a sobreposição, pelo tribunal de recurso, da sua compreensão da prova e das conclusões que viabiliza (ou já agora da dos recorrentes), àquela que o tribunal recorrido formou e exprimiu em sentença, no uso da respectiva liberdade, outorgada pelo dito art. 127.º, do CPP, e naturalmente desde que com respeito pelos correspondentes limites. Isto é uma implicação necessária de a potencial alteração do decidido em matéria de facto pela primeira instância, só justamente ser viável lá onde a prova impusesse decisão diversa, como resulta directamente do art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP, e é aliás doutrina e jurisprudência comuns.

3.10. Necessário será, ainda, que na proposta apreciação alternativa, a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada ou a prova que foi produzida, de algum modo imponham, como conclusão lógica, uma decisão diversa e em concreto aquela a que nas argumentações de recurso se chega – daqui decorrendo o duplo ónus processual, imposto pelo art. 412.º, n.º 3, als. a) e b), e 4, do CPP, de o recorrente indicar por um lado os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e, por outro, as concretas provas (ou falta delas) que no seu entender teriam imposto naquela matéria decisão diversa da tomada – além disso incluindo-se nesse cumprimento, necessariamente e como decorrência lógica daquelas obrigações, ainda as de ligar as provas aos factos em crise (com menção de que provas ou falta delas o impõem e quanto a que factos) e de explicitar argumentativamente as razões (más ou boas) de considerarem que as mesmas com efeito impõem a reclamada decisão diversa, é dizer, explicarem o porquê disso, em termos susceptíveis de alcance e acolhimento pela racionalidade intersubjectiva suposta na comunidade destinatária das decisões judiciais. Para que fiquem afastadas quaisquer incompreensões: não basta configurar hipóteses decisórias alternativas ainda mais ou menos compagináveis com a prova produzida (ou com a insuficiência dela), é dizer, nela também em tese suportáveis (ou em tese não suficientemente suportáveis).
 
3.11. E sendo as coisas inequivocamente assim, temos que o recorrente indica os factos que reputa erroneamente julgados (concretamente pugnando por que se dessem como não provados os relativos destinar-se a arma à caça de javalis naquele local, data e hora, e à acção livre, voluntária e consciente, sabendo que não podia exercer a caça de javalis nesse local e hora e com o método empregue), nisso dando cumprimento suficiente à obrigação determinada pelo art. 412.º, n.º 3, al. a), do CPP. Por outro lado, nenhum meio de prova especificando em abono das conclusões decisórias alternativas que propõe como necessárias, centra o seu juízo quanto à suposta imposição de decisão diversa (a que pretende) em  alegada insuficiência da prova produzida para tê-los tido como assentes, e mesmo a conceder-se que com isso desse cumprimento também minimamente bastante à obrigação decorrente do art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP, o certo é que o faz com concretas razões a que, em termos aliás muito próximos ao explanados a respeito da impugnação restrita, não pode reconhecer-se um tal alcance. Desde logo, a prova que reputa como necessária não o seria, segundo vimos, a conclusão que considera contraditória não o é afinal, como vimos igualmente, e por cima resulta inquestionável, a partir dos depoimentos dos militares da GNR e mesmo da testemunha por si mesmo arrolada, que com efeito trazia consigo a arma nas condições descritas. Vejamo-las uma vez mais.

3.12. O recorrente detinha uma espingarda caçadeira na viatura, ao seu lado, sem cadeado ou mecanismo de bloqueio de tiro e, por conseguinte, pronta a disparar; trazia-a além disso municiada com cartuchos de zagalotes, que segundo o mais elementar conhecimento comum são carga apta para caça grossa; tinha uma lanterna acoplada à arma e outra, de mão, na mesma viatura; uma viatura com as características da sua tinha sido vista a rondar a zona e por ali tinham pouco antes sido nas proximidades das habitações vistas movimentações de lanternas, coisa que dá aliás origem à denúncia em cuja sequência os militares da GNR acorreram ao local, interceptando o recorrente; e o não menos óbvio conhecimento comum de que a espera e procura de javalis, à noite, reclama justamente o uso de lanternas para iluminar as peças. Tudo só por si e à luz de verdadeiros módicos de sensatez, de experiência da normalidade do acontecer e conhecimento das regras da experiência comum impõe, isso sim, a conclusão de que o recorrente andava a levar a cabo aquela actividade, a ponto de podermos, sem receio, dizer que concluir o contrário é que, mais do que um erro de julgamento, seria porventura um erro notório. Como na sentença bem se disse, ninguém leva uma arma naquelas condições senão para caçar, e o mais são, com o devido respeito, tergiversações do recorrente na tentativa de contornar essa todavia inescapável conclusão.

3.13. De resto, importa igualmente dizê-lo, se a decisão sobre os factos está devidamente motivada (art. 374.º, n.º 2, do CPP), no sentido de ser feita uma cabal explicitação dos mecanismos que informaram o raciocínio subjacente do julgador, e se contém naquilo que a lógica consente extrair da prova, tudo como cremos ser manifestamente o caso, então em boa verdade a decisão de facto torna-se inalterável, uma vez que que não é possível apontar-lhe um erro com as apontadas características e, precisamente, se contém nas margens da liberdade de apreciação da prova e formação de conclusões que o art. 127.º do CPP defere ao juiz, i.e., ao terceiro imparcial que julga, e não a qualquer dos interessados/destinatários da decisão, que não podem almejar simplesmente a um indevido novo julgamento, agora feito pelo tribunal de recurso, que, privado embora dos benefícios da oralidade e imediação de que fruiu o tribunal recorrido, sobreporia às deste as suas próprias valorações – ou as do recorrentes, os qual, com a sua argumentação, apenas pretende afirmar uma diferente convicção, fazer o seu próprio julgamento e impor o correspondente raciocínio, como se fosse padrão do devido.

3.14. Acresce, e nisto já enfrentamos um outro específico argumento ainda brandido pelo recorrente, assim formada, aquela convicção não deixou no caso concreto e à julgadora espaço para dúvida alguma, que se não surpreende naquele seu processo mental de decisão, como transposto para a sentença. O princípio in dubio pro reo, que o recorrente sustenta ter sido violado, é geral do nosso direito processual penal e, decorrendo do da presunção de inocência, acha guarida no art. 32.º, n.º 1, da CR, resolvendo-se em critério decisório em matéria de facto, como limite exógeno à liberdade de apreciação da prova (no sentido de que condiciona não o processo de apreciação mas o seu resultado). Se após a produção de prova ficasse o julgador com dúvida razoável e insanável sobre factos que possam ser prejudiciais ao arguido, então sempre teria de decidir dando-os como não provados (ou como provados, se pelo contrário fossem excludentes da ilicitude do facto ou da culpa dele). Sucede é que nem o tribunal sentiu tais dúvidas, de que não há rasto algum na motivação da decisão de facto ou em qualquer ponto da sentença, nem objectivamente e compulsada aquela motivação se vê porque devesse tê-las acalentado, logicamente muito menos a tendo decisoriamente resolvido contra o recorrentes, e desse modo carece de sentido a alegação de violação do princípio – um sentido que naturalmente lhe não daria o apelo a uma dúvida que subjectivamente entenda o recorrente que devesse ter subsistido, por entender ele mesmo que a prova não fosse suficiente para vencê-la.
 
3.15. Enfim, a crédito de total transparência, e em todo o caso esconjurando a perspectiva de ser apontada uma omissão de pronúncia, sempre referimos que não passa despercebida a invocação, como violados, dos art. 129.º e 356.º, n.º 2 e 7, do CPP. O recorrente abstém-se de qualquer desenvolvimento de argumentos a um tal respeito, fosse nas motivações fosse nas conclusões, mas isso não impede a compreensão da respectiva posição: os militares da GNR depuseram sobre o que ele mesmo e em tom aliás confessório lhes teria dito, ao ser interceptado, no sentido de com efeito destinar a arma a disparar sobre javalis que pudessem aparecer-lhe; e com valorar esses depoimentos, segundo aliás resulta patente da motivação da decisão de facto que foi o caso, a Sr.ª juiz recorrida teria feito inquirição que lhe era vedada pelo art. 366.º, n.º 7, do CPP, e, com aproveitá-la, ter-se-ia prevalecido de depoimento indirecto fora das condições em que o art. 129.º, n.º 1 e 3, do CPP, o consentiria, com isso admitindo meios de prova proibidos e incorrendo em violação de proibição de valoração de provas. Neste plano, e recordando que no mínimo o recorrente, quando abordado, era um evidente suspeito que não podia deixar de logo antever-se como necessário constituir arguido, discordamos da posição expressa na sentença recorrida sobre a admissibilidade daquelas provas.

3.16. Mas mesmo concedendo (e demasiado seria conceder) que não fosse até ao momento daquelas relatadas declarações suspeito, e sendo certo que arguido ainda não era, quando menos aquelas teriam, por si só, tornado claro que como tal deveria ter sido constituído (art. 59.º/1, e 58.º/2, do CPP), com a inerente comunicação dos pertinentes direitos e deveres [o que de resto só por si o imporia a detenção em flagrante delito (art. 58.º, n.º 1, al. c), 255.º, n.º 1, al. a), e 256.º, n.º 1, do CPP)]. E a tê-lo logo sido, como devia, as declarações que aos agente do OPC prestasse e fossem reduzidas a escrito não poderiam ter sido reproduzidas ou lidas em audiência senão a sua própria solicitação (art. 357.º, n.º 1, al. a), do CPP), única hipótese de o tribunal as valorar; acrescendo, em inteira congruência, que sobre o conteúdo delas não poderiam ser inquiridos os ditos agentes do OPC como testemunhas (art. 357.º, n.º 3, e 356.º, n.º 7, do CPP), isto é, também não podendo esses depoimentos ser valorados. Seja como for, a não constituição de arguido quando devida implicaria que ficasse vedada a utilização como prova das declarações que a pessoa visada tivesse prestado (art. 58.º, n.º 6, do CPP). Valorar tais dados à margem das ditas condições e limites configura uma autêntica proibição de prova, como tal um limite claro à liberdade de apreciação e formação de convicção que o art. 127.º do CPP assinala ao julgador, e cremos que as coisas não poderiam ser diversas apenas por ter havido uma natural demora entre o momento em que se torna evidente que importaria constituir o recorrente como arguido e aquele em que efectivamente o foi – o que de resto deixaria na mão do OPC a possibilidade de por esta via, de omitir a constituição de arguido, assegurar afinal que a jusante se lograsse contornar aquelas condições e limites.

3.17. Ainda a este respeito, apelar à competência do OPC para tomar as providências cautelares aptas a assegurar a preservação da prova, é coisa que não consentiria encarar os termos do problema com diferença significativa, designadamente (e sem quebra alguma do respeito devido), parecendo-nos inviável, até sob o ponto de vista linguístico, abranger no comando de “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição” (art. 249.º, n.º 1, al. b), do CPP), a tomada de declarações orais de alguém que de imediato é encarado (nas circunstâncias não pode deixar de ser encarado) como suspeito (aliás, nesses termos foi até abordado pelos militares com questão sobre o que ali fazia com a arma…), e de jeito que afinal faria do conteúdo de tais declarações informais a prova preservada… E por fim, o depoimento dos militares (agentes do OPC) que o tribunal valorou, são, nessa parte, com efeito testemunhos indirectos: a sua substância é o que o arguido lhes teria dito no sentido de estar ali com a arma para caçar javalis. Ora, a admissibilidade excepcional do depoimento indirecto, nos termos e condições do art. 129.º, do CPP, não pode abranger, segundo julgamos pacífico, declarações mediatizadas de outras pessoas que não testemunhas (designadamente de assistentes, de partes civis e, sobretudo, de arguidos). Também por aqui se afigura inviável (proibida) a valoração dessa parte dos depoimentos (que directos são apenas, mas são, quanto às condições da detecção e apreensão da arma e das razões que levaram à actuação), o que em nada mudaria por na audiência o recorrente ter podido contraditá-los.
 
3.18. Concedemos assim na razão do recorrente quando aponta as ditas violações do art. 129.º, n.º 1 e 3, e 356.º, n.º 7, do CPP, plano em que com efeito o tribunal decorrido desbordou dos limites da sua liberdade de valoração de prova e formação de convicção, assim vulnerando do mesmo passo o art. 127.º do CPP. E contudo, isso revela-se no caso concreto inconsequente, deixando às considerações que antecedem um valor meramente explicativo, para não dizê-las ociosas. É que as conclusões relevantes sobre a autoria dos factos (os objectivos como, por inferência a partir deles e sua natureza voluntária, a atitude subjectiva do recorrente) não são a final de contas em nada condicionadas, total ou parcialmente que fosse, por aquela prova proibida. Por outras palavras, não somente essa prova não foi a única em que assentou o estabelecimento daqueles factos, como sem ela um tal assentamento se alcançaria de igual modo e necessariamente, segundo acima vimos já. De modo que sim, a sentença faz-se passível daquela censura, mas daí nada resulta em favor da pretensão do recorrente. Escusado é dizer, se sem aqueles depoimentos se tivesse mostrado inviável dar por assentes os factos, ou ao menos sem que subsistissem dúvidas, então tudo seria diverso, presuntivamente chegando-se à absolvição do recorrente por aquele crime – mas não foi esse o caso.

3.19. Seguros portanto de que a decisão última da causa há-de partir da factualidade que na sentença recorrida se apurou, nos precisos termos nela alinhados, a última das questões suscitadas pelo recorrente é a do alegado excesso na medida das penas, vertente em que se lamenta de que não foram tidas na devida consideração a sua ausência de antecedentes criminais, o facto de não ter chegado a abater qualquer peça de caça, acabando por não ter feito utilização indevida da arma, e o de mostrar-se social, familiar e profissionalmente bem inserido. De tudo retirando que o grau de ilicitude dos factos não passa da mediania e que as exigências de prevenção especial não são especialmente relevantes, sustenta que as penas devem ser fixadas na média dos limites legais, e a final defende ainda que a sua situação económica e financeira também não foi equilibradamente tida em conta, inferindo-se que devida seria uma taxa diária da multa inferior aos 6,00 € determinados, a despeito de reconhecê-los como próximos do limite mínimo. Também nisto se não pode entrever margem alguma de procedência às razões de recurso, como já de seguida e com a brevidade possível procuraremos demonstrar.

3.20. Para o crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas, e assente a opção pela multa, a moldura penal prevista pelo art. 30.º, n.º 1, da LC, em conjugação com o art. 47.º, n.º 1, do CP, é de dez a cem dias, e para o crime de detenção de arma proibida, igualmente assente a opção pela multa, a moldura prevista pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), da LA, é de dez a seiscentos dias. Em ambos os casos, a pena concretamente fixada (cinquenta dias no primeiro, trezentos dias no segundo), ficou apenas ligeiramente abaixo da linha média da moldura respectiva (dada pelos cinquenta e cinco dias no primeiro, e pelos trezentos e cinco dias, no segundo), mal se percebendo, por conseguinte, o protesto do recorrente quando argumenta que deveriam ter sido graduadas “sensivelmente dentro da média dos limites legais”, o que justamente foi o caso (e isso apesar de logo adiante e em jeito contraditório sustentar igualmente que em especial a correspondente ao crime de detenção de arma proibida deveria ficar “próxima dos cem dias” – isto é, abaixo da linha do 1/5 inferior da moldura…). Certo, tendo em conta o grau de ilicitude dos factos, em ambos os casos patenteado no preenchimento do crime a mais de um título e na especial perigosidade revelada, é que as exigências de prevenção geral são acentuadas, como na sentença muito bem se refere.

3.21. Com efeito, e no que tange ao crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, sobre exercer a caça sem autorização legal, fê-lo de noite e, a mais disso, a menos de duzentos e cinquenta metros de habitações (violando três das proibições constantes da al. c) do n.º 1 do art. 6.º da LC), e no que respeita ao crime de detenção da arma proibida, envolveu além dela a das munições (vulnerando não apenas a al. c) mas ainda a al. e) do n.º 1 do art. 86.º da LA), e isso já mal falando na circunstância de transportar a arma municiada e pronta a disparar (sem bloqueio de gatilho dentro do veículo e à sua mão), que em todo o caso destitui de sentido o argumento de que não teria chegado a ser feito utilização indevida da espingarda. O que diremos, é que se na verdade não chegou a ser abatida peça alguma (o que agravaria a dita ilicitude do facto), nem por isso pode reputar-se esta de escassa ou menos ainda diminuta, e, a mais de, como referirmos, a medida dela acentuar as exigências de prevenção geral, acentua igualmente o grau de culpa, de resto sendo o dolo em ambos os casos directo. Neste contexto, temos que a fixação das penas até mesmo ligeiramente abaixo das linhas médias das molduras respectivas, só se explica precisamente por terem sido consideradas reduzidas, e bem, as exigências de prevenção especial, e isso em função da ausência de antecedentes e da boa inserção familiar e profissional do recorrente – aspectos que a sentença expressamente ponderou, e com tudo isto se desmentindo também o argumento de não terem sido esses factores tidos na devida conta (que aliás já tinham sido determinantes para a opção pela multa em detrimento da alternativa da prisão).
 
3.22. O que se afigura claro é que, não obstante serem reduzidas as exigências de prevenção especial, as de prevenção geral são significativas a ponto de não poderem dar-se por satisfeitas com penas que se desviassem significativamente das ditas linhas médias das molduras, e as quais, evidentemente, também não excedem o limite absoluto dado pela culpa do recorrente – de tal sorte que, na ponderação daqueles factores, o resultado alcançado pelo tribunal recorrido não postergou o equilíbrio devido e, em concreto, não importou violação dos art. 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, n.º 1 e 2, do CP. E o mesmo tem de dizer-se no que tange à pena única do concurso desses dois crimes, cuja moldura abstracta, seguindo o critério do art. 77.º, n.º 2, do CP, vai de um mínimo de trezentos dias (a maior das parcelares) a um máximo de trezentos e cinquenta dias (s soma de ambas); fixada concretamente em trezentos e dez dias, ficou-se assim precisamente na linha do 1/5 inferior daquela moldura, algo que, valorando em conjunto os factos e a personalidade neles revelada pelo recorrente, como comanda o n.º 1 do mesmo art. 77.º, do CP, e em todo o caso de acordo com os mesmos critérios gerais dos art. 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, n.º 1 e 2, do CP, se algo pecasse seria por ficar talvez aquém do que as exigências de prevenção geral exigiriam – dando-se ainda assim como justificado pela conexão entre os dois crimes, sendo um (o de detenção de arma) instrumento quase necessário do outro (o de caça).

3.23. Lateralmente, não podemos deixar de manifestar, e embora sobre isso o recorrente nada no recurso diga, o mais vivo desacordo com a menção, na sentença recorrida e a desfavor do recorrente, em sede precisamente de graduação da pena única, à circunstância de não ter colaborado na descoberta da verdade (sejamos claros: de não ter confessado!). A óbvia censura que nesse específico passo a sentença concita, não importa porém consequência alguma, tida que seja em conta, como referimos, que aquela pena única ficou em boa verdade já talvez demasiado próxima do limite mínimo legal. E isto, enfim, é quanto pode dizer-se também da específica taxa diária da multa, que nos termos do art. 47.º, n.º 2, do CP, se fixa entre os 5,00 € e os 500,00 €, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. O recorrente, sem o desenvolver argumentativamente, implica serem supostamente excessivos os 6,00 € fixados, mas a extrema proximidade desse valor com aquele mínimo e a sua condição económico-financeira relativamente confortável, de todo o jeito e apesar de tudo pelo menos mediana (valoração que os factos impõem de modo absolutamente claro), jamais poderiam consentir fixação abaixo daquilo, porventura já de menos, certo como é que, justamente por sê-lo, o mínimo é coisa que cabe reservar aos casos de particular destituição de meios – fora dos quais equivale a simples e ilegitimamente desprover a pena do conteúdo aflitivo imprescindível à sua natureza.                             

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do arguido AA, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 513º, n.º 1 e 3, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

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Coimbra, 26 de Abril de 2023
Pedro Lima (relator)
Jorge Jacob (1.º adjunto)
Eduardo Martins (2.º adjunto)
Assinado eletronicamente