Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
840/21.7T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE OS CREDORES
SEGURANÇA SOCIAL
AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 30.º DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA E ARTIGOS 194.º, N.º 2, 197.º, AL.ª E), E 215.º, ESTES DO CIRE
Sumário: I – A previsão de um mesmo número de prestações para pagamento do crédito da Segurança Social e para pagamento do crédito da AT, quando o primeiro daqueles é de montante inferior, não implica violação do principio de igualdade entre credores, se, na comparação dos respetivos regimes legais, resulta que o pagamento em prestações se encontra muito mais facilitado para créditos da segurança social.

II – A concessão de moratórias ou de pagamentos fracionados não viola o princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, consagrado no n.º 2 do art. 30.º da LGT.

III – Se o plano aprovado não contraria o regime prestacional legalmente previsto para os créditos da segurança social, a ausência de consentimento do credor Segurança Social não constitui violação “não negligenciável” de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.

Decisão Texto Integral:
Processo nº 840/21.7T8ACB.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

S..., Lda., veio, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A, do CIRE, intentar o presente Processo Especial de Revitalização (PER).

Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no artigo 17º-D, nº3, do CIRE.

Apresentado acordo de pagamentos, e submetido a votação, recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 77,62% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.

Não foi solicitada a não homologação do plano por qualquer interessado (artigos 17º-F, nº7 e 216º do CIRE).

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a reconhecer que o mesmo se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, homologando o acordo de pagamentos respeitante à devedora.


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Inconformado com tal decisão, o credor Instituto de Segurança Social I.P., Centro Distrital de Segurança Social de ..., dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1.ª – No presente processo, o Instituto da Segurança Social, I.P. / Centro Distrital de Segurança Social de ... é credor sobre a devedora S..., Lda. da importância de €13.555,98, acrescida de juros.

2.ª – Por credores reclamantes de créditos seus numa percentagem de 77,38 % dos votos emitidos, foi aprovado o plano de recuperação conducente à revitalização da referida devedora, tendo o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., entidade competente para votar efetivamente, proferido voto contra esse Plano Especial que previa o pagamento em 40 prestações mensais do débito devido ao ora Recorrente.

3.ª – O Meritíssimo Juiz “a quo”, pela douta sentença recorrida julgou válido o Plano mencionado, homologando-o.

4.ª – Não só o recorrente não aprovou esse Plano de recuperação – manifestando voto contra – como também não houve a competente autorização com vista ao pagamento em prestações.

5.ª – E não o aprovou por ter considerado ficar em posição desfavorável relativamente ao outro credor público presente no plano, designadamente a Autoridade Tributária e Aduaneira.

6.º - Foi deste modo considerado que o princípio da igualdade que implicava que Instituto da Segurança Social, I.P. e Autoridade Tributária e Aduaneira deveriam efetuar os respetivos pagamentos em número diferenciado de prestações, foi posto em crise.

7.º - De facto, em face da diferença existente ao nível dos montantes em dívida, o número de prestações previstas, igualmente 40, para o Instituto da Segurança Social, I.P. se revelava excessivo, por comparação com o outro ente público.

8.º - Uma vez que não foi dado consentimento expresso relativo ao credor aqui Recorrente atinente à modificação e redução dos seus créditos, também o imposto pelo artigo 30.º da Lei Geral Tributária terá sido contrariado

9.º - Assim, é entendimento do ora Recorrente que o Plano de Revitalização não lhe será aplicável pelos motivos explanados, pelo que pretende, com o presente Recurso, que o mesmo não lhe seja oponível.

10.ª- Termos em que com o douto suprimento de V/ Exas., se deve julgar o recurso procedente, declarando-se a ineficácia do Plano de recuperação em presença relativamente ao aqui Recorrente.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a ineficácia do plano de revitalização face ao credor Instituto da Segurança Social, I.P..


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Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se deve ser decretada a ineficácia do plano relativamente à Apelante:
a. Pelo facto do credor ISS, I.P., ter votado contra a aprovação do plano, não tendo autorizado o pagamento em prestações previsto no plano relativamente ao seu crédito;
b. A sujeição a um pagamento em 40 prestações, tal como foi previsto para o crédito fiscal, quando o montante do seu crédito é inferior, envolve a violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 194º, nº1 CIRE.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Na apreciação das questões suscitadas na presente apelação, teremos por relevantes os seguintes factos que emergem dos elementos constantes dos autos:
1. Por requerimento de 24 de abril de 2020, S..., Lda., veio manifestar a sua vontade de encetar negociações conducentes à sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação, requerimento igualmente subscrito pelo credor AA;
2. Apresentada lista provisória de créditos pelo Administrador Judicial provisório nomeado, a mesma não foi objeto de qualquer impugnação.

3. Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação, recolheu o voto favorável de 77,38% da totalidade dos votos emitidos da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.
4. O credor Instituto de Segurança Social, I.P., fez anexar declaração de voto com o seguinte teor:
Considerando que:
a. O plano de revitalização prevê a regularização da dívida à segurança social nos seguintes termos que se transcrevem:
“A dívida à Segurança Social reconhecida no presente PER será regularizada através de plano prestacional a autorizar em 40 prestações mensais e sucessivas, no âmbito da execução fiscal;
O pagamento da 1ª prestação deverá ocorrer em datas idênticas para os credores da Segurança Social e AT.
Isenção da prestação de garantia, nos termos do nº13 do artigo 199º do CPPT
As Ações Executivas pendentes para cobrança de dívida à Segurança Social não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser autorizado”.
O plano de revitalização é penalizador para a segurança social por contraponto com a autoridade tributária, sendo nessa medida, violador do princípio da igualdade previsto no artigo 194º do CIRE uma vez que o número de prestações previsto para regularização da dívida à segurança social afigura-se excessivo quando comparado com o número de prestações proposto para a regularização da dívida à autoridade tributária e o valor dos respetivos créditos.
Neste contexto, o plano de revitalização não acautela os interesses da Segurança Social.
Delibera-se o seguinte:
1. A Segurança Social vota contra o plano de revitalização apresentado.
2. Caso o plano de revitalização seja aprovado e homologado, o mandatário da segurança social deve interpor recurso da sentença de homologação, requerendo a declaração de ineficácia do plano face à segurança social uma vez que este credor não deu o seu consentimento expresso à modificação e redução dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da segurança social, bem como a legislação tributária, designadamente o artigo 30º da Lei Geral Tributária, que refere que os créditos da segurança social são indisponíveis.”
5. O plano de revitalização apresenta o seguinte plano de reembolso dos credores do Estado, que aqui se reproduz na parte com interesse para a questão objeto de recurso:
“Instituto de Segurança Social
a. A dívida à Segurança Social reconhecida no presente PER será regularizada através de plano prestacional a autorizar em 40 prestações mensais e sucessivas, no âmbito da execução fiscal;
b. O pagamento da 1ª prestação deverá ocorrer no mês seguinte ao da homologação do Acordo de pagamento;
(…)
Autoridade Tributária
A dívida será enquadrada nos termos dos ns. 2 e 3 do art. 30º e nº3 do art. 36ºda LGT e arts. 196º e 199º do CPPT, e irá receber os seus créditos, isto é, a quantia exequenda, custas e juros de mora, em regime prestacional, o que, de acordo com o regime legal aplicável aos créditos tributários a regularização dos mesmos deve obedecer, cumulativamente:
Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196º do CPPT, ou seja:
a) As prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a 1º até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no nº5 do artigo 17º-D do CIRE;
b) Número máximo de prestações: 40 prestações mensais, não podendo nenhuma delas ser inferir a 10 unidades de conta (atualmente € 1020);
(…)”.
6. À Autoridade Tributária foi reconhecido um crédito de impostos no valor de 41.954,57 €, e ao ISS., IP, um crédito no valor de 13.555,98 €.

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 1. Se deve ser decretada a ineficácia do plano relativamente ao Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Segurança Social de ....
O tribunal a quo veio a proferir despacho de homologação do plano aprovado pelos credores, nos seguintes termos, que aqui se reproduzem:
“ (…)
No tocante ao conteúdo material do plano, há que concluir que se entende que a Processo Especial de Revitalização (CIRE) proposta é lícita, adequada e equilibrada, não beneficiando injustificadamente qualquer credor.
Quanto aos créditos titulados pela Autoridade Tributária e Aduaneira e pelo Instituto da Segurança Social, I.P., o tratamento dispensado pelo acordo de pagamento em análise justifica-se pelo interesse público inerente aos referidos créditos, pela especial natureza destes créditos e ainda pelo princípio geral da indisponibilidade dos créditos fiscais e para-fiscais (art. 30.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária).
Assim, não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano que impeça a sua homologação, não prevendo o plano quaisquer condições suspensivas ou quaisquer actos ou medidas que devam preceder a respectiva homologação e execução (arts. 17.º-F, n.º 7, e 215.º do CIRE).
Não foi solicitada a não homologação do plano por qualquer interessado (arts. 17.º-F, n.º 7, e 216.º do CIRE).
Nestes termos, deverá ser homologado o acordo de pagamento junto a Ref. 8044723, nos termos dos artigos 17.º-F, n.º 7 e 212.º, n.º 1, do CIRE.
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Face ao exposto,
Homologo por sentença o acordo de pagamento aprovado por deliberação dos credores da devedora “S..., Lda.”, com n.º de matrícula e de pessoa colectiva ..., e sede na Rua ..., Quinta..., ..., ... ..., nos termos do disposto nos termos do disposto no art. 17.º-F, n.º 7 do CIRE.
*
Insurge-se o credor/Apelante, ISS.IP., Centro Distrital de Segurança Social de ..., contra a decisão de homologação do plano, sustentando a ineficácia do mesmo contra si, porquanto, não deu consentimento ao plano de pagamento prestacional quanto a si previsto, tendo votado contra a homologação do plano; e votou contra o plano, porquanto, face à disparidade de valores entre a sua divida e a da Autoridade Tributária – que ascendia a 46.210,01 €, e o montante de 13.555,98 €, de que era credor –, não se justificava que ambos os pagamentos se efetuassem repartidos por igual número de prestações, in casu, 40.
Segundo a Apelante, a ineficácia do plano impor-se-ia, desde logo, face ao regime constante dos artigos 192º, nº2, 2015º e 216º, nº1, al. a), do CIRE:
- cabendo ao IGFSS.IP., decidir a posição a assumir pela segurança social no âmbito dos processos judiciais e extrajudiciais de regularização de dívida (art. 3º, nº3, al. e), do DL nº84/2012, de 30.03), as condições de regularização à segurança social não podem ser menos favoráveis do que o acordado para os restantes credores (art. 191ºdo Código dos Regimes Contributivos da Segurança Social);
- tratando-o de forma diversa relativamente ao previsto para AT, o plano só o poderia afetar com o respetivo consentimento, em conformidade com o disposto no artigo 192º, nº2 do CIRE;
- cabendo ao juiz recusar oficiosamente a homologação do plano no caso de “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo” (artigo 215º CIRE);
- consagrando o artigo 194º o princípio da igualdade entre os credores, o nº2 do citada norma faz depender o tratamento mais desfavorável, relativamente a outros credores em idêntica situação, do consentimento do credor afetado;
- o artigo 197º, al. e), CIRE, estatui que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afetados pelo plano.
 Resumindo, nesta parte, a posição da Apelante, temos que, em seu entender, envolvendo o plano um tratamento mais desfavorável para o seu crédito, relativamente ao crédito da AT, só poderia ser afetado pelo plano caso tivesse dado o seu consentimento.
Desde já, podemos adiantar que, só seria de dar razão à Apelante, se o plano prestacional previsto para o seu crédito violasse o principio da igualdade de tratamento dos créditos previstos no artigo 194º do CIRE, no confronto com os termos do plano de pagamento em prestações aí previsto para o credor Autoridade Tributária. E, a nosso ver, não se reconhece que os planos prestacionais propostos para cada um dos créditos viole o principio da igualdade e que envolva um tratamento mais desfavorável para o crédito da Apelante.
Se não vejamos.
Dispõe o artigo 17-F, nº7 do CIRE, relativamente à apreciação do plano por parte do juiz com vista a decidir se o homologa ou recusa a sua homologação:
 “O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194º a 197º, no nº1 do artigo 198º e nos artigos 200º a 202º, 215º e 216º”.
Como afirma Catarina Serra[1], pelos artigos 215º e 216º do CIRE, que desempenham uma função de orientação do juiz em matéria de homologação do plano, ainda que, de certo modo, pela negativa, por força das quais o juiz fica obrigado à rejeição do plano de recuperação em determinadas situações: violação grave da lei e sacrifício ou benefício injusto de algum sujeito, em resultado do plano.
É o seguinte o teor dos artigos 215º, e 216º, nº1., al. a), que, segundo a Apelante, imporiam a apreciação da questão da não produção de efeitos do plano relativamente seu crédito:
“Artigo 215º
Não homologação oficiosa
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam proceder à homologação.”
Artigo 216º
Não homologação a solicitação dos interessados
1. O juiz recusa a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contando que o requerente demonstre em termos plausíveis que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante do acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
(…).
Tais normas preveem dois distintos grupos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra unicamente a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º).
Ao remeter para o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, respeitantes à aprovação do plano de recuperação no processo de insolvência, optou o legislador por submeter à análise judicial o plano aprovado pelos credores, no âmbito da qual deve o juiz, oficiosamente, sindicar o cumprimento das regras procedimentais e de conteúdo não negligenciáveis, bem como, avaliar o mérito da oposição que tenha sido apresentada por algum credor: o juiz assume um papel de garante da legalidade, no âmbito do qual lhe restará assegurar-se de que não se verifica nenhuma das situações fundamentadoras da rejeição do plano estabelecidas no artigo 215º e, por outro, analisar os pedidos de não homologação do plano, se os houver (artigo 216º).
No caso em apreço, embora não tenha requerido a não aprovação do plano, a credora ISS., IP, apresentou um voto contra, “motivado”, justificando a sua posição com a alegação de que o plano de revitalização é penalizador para a segurança social por contraponto com a autoridade tributária, sendo nessa medida, violador do princípio da igualdade previsto no artigo 194º do CIRE uma vez que o número de prestações previsto para regularização da dívida à segurança social afigura-se excessivo quando comparado com o número de prestações proposto para a regularização da dívida à autoridade tributária e o valor dos respetivos créditos.”
Como tal, a ausência de pronúncia por parte do tribunal, relativamente a tal questão, integraria uma nulidade nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), do CPC, cuja consequência, de qualquer modo, seria, tão só, a apreciação de tal questão por este tribunal, ao abrigo da regra da substituição ao tribunal recorrido, contida no artigo 665º, nº1 do CPC.
Vejamos, então, se o plano aprovado, ao prever um mesmo número de prestações para a Seguração Social (40 prestações) que para a Autoridade Tributária, quando o valor do crédito da segurança social é inferior ao desta, viola o princípio da igualdade entre os credores, e se tal violação acarretará a sua não oponibilidade ao crédito da Apelante.
Entre outras medidas, o plano de insolvência ou de revitalização pode prever “o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto os juros”, bem como a “modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juros dos créditos” (als. a) e c), do artigo 196º CIRE).
E o CIRE permite a afetação dos créditos existentes – o seu valor/e forma de pagamento – no plano de recuperação do processo de insolvência ou do processo especial de revitalização, sem prever qualquer exceção a favor do Estado (ou de outra pessoa coletiva pública) ou exigir a sua aprovação/acordo para ficar vinculado a tais medidas, pelo que, regra geral, o plano de recuperação, mesmo prevendo medidas que afetem os créditos tributários, será aprovado e vinculará todos os credores, inclusive a AT e a Segurança Social, desde que devidamente aprovado nos termos dos arts. 212º ou 17º-F, CIRE[2].
A única situação em que é exigido o consentimento do credor afetado (de qualquer credor), encontra-se prevista no artigo 194º do CIRE, com o seguinte teor:
 Princípio da Igualdade
1. O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.
2. O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto desfavorável.
3. É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto”.
Esta é uma das normas de conteúdo aplicáveis ao plano e a que o mesmo deve obedecer, que consagra a sujeição do plano ao princípio da igualdade e cuja violação consubstancia, como norma imperativa que é, tal como vem sendo considerado pela doutrina e pela jurisprudência, um vício não negligenciável[3] para efeitos do citado art. 215º CIRE.
No direito civil, a ideia da igualdade emana do princípio par conditio creditorum estabelecido no artigo 604º do Código Civil, sob a epígrafe, “Concurso de credores”:
1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos créditos.
2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitida na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.”
Contudo, como salienta Carolina Cunha[4], a ideia de igualdade de credores vertida no Código Civil não coincide com a colhida no artigo 194º do CIRE, materializando-se no direito dos credores comuns, perante a garantia geral que constituiu o património do devedor, de ser pagos proporcionalmente por este, tratando-se de um instrumento desprovido de qualquer pretensão de justiça substancial: «quer isto dizer que os credores comuns “se encontram no mesmo plano” e “são pagos em pé de igualdade (ou de plena proporcionalidade) uns com os outros”, sem qualquer consideração pela prioridade temporal dos créditos (i.e., pela sua data de constituição), pela sua fonte ou pelo seu montante».
É comum os planos de recuperação estabelecerem distintos regimes para os créditos comuns, para os credores com garantia real, e ainda para os créditos tributários, diferenças que se justificariam, desde logo, com o princípio da igualdade geral consagrado no artigo 604º do CC.
Significando tal regra que os credores devem estar à partida num plano de igualdade perante o devedor, salvo se existirem causas legítimas que contrariem a aplicação desta regra, uma das razões objetivas habitualmente invocadas, de tratamento diferenciador enquanto consagração ou concretização desse mesmo princípio da igualdade, reside na distinta classificação dos créditos.
Encontrando-se a “desigualdade” entre o regime estabelecido para os credores comuns e o regime estabelecido para os credores garantidos ou privilegiados, expressamente prevista na legislação civil e insolvencial, em princípio, a consagração de um distinto tratamento, mais favorável, quanto aos créditos garantidos ou quanto aos créditos privilegiadas, quando em confronto com o acordado para os créditos comuns, não envolverá qualquer violação do princípio da igualdade.
Mas o nº1 do artigo 194º CIRE vai mais longe, ao consagrar uma dimensão material do princípio da igualdade – que exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes[5].
O artigo 194º, nº1 do CIRE consagra uma regra de verdadeira igualdade material: os credores não têm de ser tratados todos da mesma maneira, abrindo-se espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação[6], dentro dos quais se poderão contar a data da constituição, a fonte ou a proveniência do crédito e o respetivo montante, desde que a diferenciação se revele materialmente fundada[7].
A proibição da violação do principio da igualdade não significa uma situação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenças de tratamento, apenas impedindo que o tratamento diferenciado se funde em fatores de diferenciação ilegítimos ou outros que que “se apresentem contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou pertinentes”[8].
No caso em apreço, as alegadas “desigualdades” ocorrem dentro da mesma classe de créditos (privilegiados), grosso modo, designados por “tributários” – créditos tributários strito sensu (créditos fiscais) e créditos da segurança social –, submetidos por lei especial a regimes em alguns aspetos próximos e com normas de aplicação comum, mas ainda assim, com algumas especificidades, nomeadamente quanto ao que diz respeito à possibilidade e condições de pagamento em prestações.
No caso em apreço, prevendo o plano o pagamento integral, do capital e juros, quer quanto aos créditos da segurança social, quer quanto aos créditos fiscais, propõe para a Segurança Social o pagamento prestacional em “40 prestações mensais” e para a AT o pagamento “num número máximo de 40 prestações mensais, não podendo numa delas ser inferior a 10 UCs” , devendo o pagamento da 1ª prestação ocorrer em datas idênticas, sendo aqui que reside a invocada violação do princípio da igualdade: no entender da Segurança Social/Apelante, sendo o seu crédito de montante inferior ao da AT, o estabelecimento de um mesmo número de prestações viola o principio da igualdade.
Em princípio, e em termos genéricos, o estabelecimento do mesmo número de prestações para créditos de diferentes montantes, poderia envolver a violação do princípio da igualdade no sentido que lhe é dado pelo nº1 do artigo 194º, uma vez que, apesar de se manter intocada a regra da proporcionalidade no seu pagamento – serão ambas a pagar em 40 prestações (cerca de 3 anos e meio), o que significará que o valor de cada prestação será exatamente proporcional ao montante do crédito – se poderia encontrar alguma justificação para que o crédito de menor montante fosse objeto de satisfação num prazo mais curto.
Contudo, sendo o pagamento em prestações objeto de regulamentação especifica pelas leis tributárias e da segurança social, vejamos o que a tal respeito aí se prevê.
Quanto aos créditos fiscais, dispõe o artigo 196º do Código PPT, na redação em vigor à data da apresentação e votação do plano:
Artigo 196.º
Pagamento em prestações e outras medidas
1 - As dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal.
(…)
3 - É excecionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas referidas no número anterior, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso couber, quando:
a) Esteja em aplicação plano de recuperação económica legalmente previsto de que decorra a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano, haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes; ou
b) Se demonstre a dificuldade financeira excecional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
4 - O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
5 - Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.
6 - Quando, no âmbito de plano de recuperação económica legalmente previsto, se demonstre a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do número anterior.
7 - A importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, os quais serão incluídos na guia passada pelo funcionário para pagamento conjuntamente com a prestação.
(…)”
Já no que respeita à Segurança Social, temos por relevantes as seguintes normas do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (CRCSPSS):
Artigo 189.º
Pagamento em prestações
1 - O diferimento do pagamento da dívida à segurança social, incluindo os créditos por juros de mora vencidos e vincendos, assume a forma de pagamento em prestações.
(…)
Artigo 190.º
Situações excecionais para a regularização da dívida
1 - A autorização do pagamento prestacional de dívida à Segurança Social, a isenção ou redução dos respetivos juros vencidos e vincendos, só é permitida nos termos do presente artigo, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte e das regras aplicáveis ao processo de execução fiscal.
2 - As condições excecionais previstas no número anterior só podem ser autorizadas quando, cumulativamente, sejam requeridas pelo contribuinte, sejam indispensáveis para a viabilidade económica deste e desde que o contribuinte se encontre numa das seguintes situações:
a) Processo de insolvência, de recuperação ou de revitalização;
(…)
Artigo 191.º
Condição especial da autorização
As condições de regularização da dívida à segurança social não podem ser menos favoráveis do que o acordado para os restantes credores.
Quanto aos créditos da segurança social, dispõe, ainda, o artigo 81º do Decreto-Regulamentar nº1-A/2021, de 03.01:
Artigo 81.º
Pagamento em prestações
1 - O diferimento do pagamento da dívida à segurança social, incluindo os créditos por juros de mora vencidos e vincendos, assume a forma de pagamento em prestações mensais, iguais e sucessivas, com o limite máximo de 150.
2 - O número de prestações autorizado para o pagamento depende:
a) Da capacidade financeira do contribuinte;
b) Do risco financeiro envolvido;
c) Das circunstâncias determinantes da origem das dívidas;
d) Do grau de liquidez da garantia.
3 - A taxa de juros vincendos a aplicar no âmbito de pagamentos prestacionais autorizados pode ser reduzida em função da idoneidade da garantia.
4 - Excecionalmente, quando tal se mostre indispensável à recuperação económica do contribuinte, pode ser autorizada a progressividade do valor das prestações.
5 - O pagamento de cada prestação é efetuado até ao final do mês a que diz respeito.
Da comparação dos respetivos regimes legais, resulta que o pagamento em prestações é objeto de um tratamento muito mais favorável ao devedor, encontrando-se mais facilitado, quanto aos créditos da Segurança Social, quando comparado com as restrições fixadas a tal respeito relativamente aos créditos da Autoridade Tributária, nomeadamente quanto ao número máximo de prestações – aí se prevê que os créditos da segurança social possam ser pagos em prestações mensais e sucessivas até um máximo de 150, independentemente do valor em dívida e de um qualquer valor mínimo para cada uma delas, enquanto que, para os créditos da AT só, a título excecional e para créditos de valor superior a 500 UC (51.000,00 €), se prevê que o regime prestacional possa ser alargado até cinco anos (60 prestações),  e até 150 prestações (12 anos e meio), desde que nunca inferiores cada uma a 10 UCs (1.020,00 €).
Ou seja, a lei permite que os créditos da segurança social possam ser pagos mediante um maior número de prestações, até 150 prestações mensais, independentemente do valor em dívida e de um qualquer limite mínimo para cada uma das prestações, tendo sido fixado o numero de 40 prestações para o crédito da SS no valor de 13.555 €, quando poderia ter ido, em teoria, até 150 prestações, e de 40 prestações mensais para o crédito da AT, no valor de 46.210,01 (mas em que 1.144, 53 €, respeitam a juros, não englobáveis nas prestações), quando o número de prestações só poderia ir até 60 prestações se a dívida atingisse as 500 UCs (51.000,00 €), e não atinge.
Concluindo, ainda que, de um modo genérico se possa justificar uma correlação entre o valor em dívida e o número de prestações, no caso em apreço, a previsão de um mesmo número de 40 prestações para o crédito da SS, quando o seu crédito é de montante inferior, surge desde, logo justificado pelo próprio regime estabelecido por lei para o pagamento em prestações dos respetivos créditos, que permite que o pagamento mediante um maior numero prestações, mesmo para créditos de menor valor.
No sentido de que não ofende o princípio da igualdade a fixação de um mesmo exato número de prestações para a liquidação do crédito da Segurança Social e para a liquidação dos créditos tributários ainda que seja diversos os respetivos montantes, se pronunciou o Acórdão do TRL de 22-02-2022[9].
Concluímos, assim, que o plano de recuperação aprovado não viola o princípio da igualdade, encontrando-se a fixação de um mesmo número de prestações, quando o montante do crédito da AT é mais do triplo do crédito da SS, justificado pela própria diferença de regimes que quanto ao pagamento prestacional é dispensado pelas leis tributárias e da segurança social.
Como tal, não reconhecendo que a previsão de pagamento do mesmo numero de prestações para o crédito da SS e para o da AT, envolva uma violação do principio da igualdade, das disposições conjugadas dos artigos 196º e 194º CIRE, não resultaria a imposição do consentimento do credor visado.
Quanto à invocação do artigo 197º, al. e) do CIRE, por parte da Apelante, que estatui que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afetados pelo plano, nenhuma relevância apresenta para o caso em apreço: nele não se afirma que os créditos que gozem de garantias reais ou de privilégios creditórios não possam ser afetados pelo plano, mas, tão só que as garantias de que gozam tais créditos, não podem ser, elas próprias, afetadas pelo plano.
Não se discutindo aqui qualquer garantia ou privilégio do crédito da Segurança Social que possa a estar a ser afetado pelo plano, a invocada norma não tem cabimento na apreciação da situação em apreço.
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Vejamos, agora, se o consentimento do credor era exigível face às regras especiais que vigoram para os créditos tributários lato sensu, e, em caso afirmativo, quais as consequências da aprovação do plano sem esse consentimento.
Segundo o artigo 30º, n. 2 e da Lei Geral Tributária, “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo principio da igualdade e da legalidade tributária”.
E, tendo o DL nº 55-A/2010, de 31 de dezembro aditado um nº3 ao citado artigo 30º, segundo o qual “o disposto no número antedito prevalece sobre qualquer legislação especial”, passou a ser entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência, que, face ao principio da indisponibilidade dos créditos públicos, “os créditos do Estado e da Segurança Social são, em princípio, insuscetíveis de perdões, reduções de valor, moratórias ou de outros condicionamentos, não podendo ser afetados por plano de insolvência ou de revitalização, contra a vontade dos seus titulares”[10].
Assim sendo, no caso de aprovação de plano de insolvência ou de revitalização que haja deliberado sobre créditos fiscais ou da segurança social, sem o consentimento da Autoridade Tributária ou da Segurança Social, assim atingindo a indisponibilidade de tais créditos, os nossos tribunais, considerando existir violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215º, CIRE, vêm decidindo a favor da homologação do plano de recuperação salvaguardando os créditos tributários:
- presumindo a vontade hipotética ou conjetural das partes no sentido de conservar o plano, dele expurgando as cláusulas incidentes sobre os créditos tributários[11], ou,
- considerando que o plano deve ser homologado, decretando tão só, que, quanto aos créditos em causa, a decisão homologatória é ineficaz, não sendo oponível a tais credores, que não são afetados pelo plano.
 A tese da ineficácia relativa é a tese prevalente, por obviar às consequências que poderiam advir da não homologação do plano[12].
A especial proteção dada a estes credores pela legislação fiscal tem sido objeto de duras criticas, chamando a atenção de que, quer os créditos do Estado, quer os créditos da segurança social, representam, em grande número de casos, avultadas somas, pelo que a manterem-se intocados, todo o esforço da devedora ficará a cargo dos credores comuns ou preferenciais da devedora, “que terão de arcar com a modificabilidade e mesmo a supressão dos seus créditos e garantias ante o Estado que, nada cedendo, se coloca numa posição de ius imperii, num processo em que só, excecionalmente, deveria ter tratamento diferenciado[13].
Assim sendo, considerando que o principio da indisponibilidade do crédito tributário é um princípio válido e efetivo, que deve ser observado, mas não é absoluto[14], e que a transformação deste regime especial em regra pétrea, poderá afrontar o principio da proporcionalidade, a doutrina e a jurisprudência começam a defender uma leitura restritiva das normas que compõem o regime tributário, no contexto do plano de recuperação do processo de insolvência ou do PER.
Assim, segundo António Fonseca Ramos “não é de excluir que no plano de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 196º, ns. 1, als. a) e c) do CIRE, cabe o perdão ou redução do valor dos créditos da Autoridade e Tributária ou da Segurança Social sobre o passivo do devedor, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quórum estabelecido no artigo 212º, desde que a intervenção nos créditos do Estado não evidencie uma redução injusta e desproporcional, tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente[15]”.
De qualquer modo, será indiscutível que, sem violação do principio da indisponibilidade do crédito tributário, a AT e a Segurança Social poderão aceitar no âmbito de um plano de recuperação, a concessão de uma moratória no pagamento, nos termos e dentro dos limites do artigo 196º do CPPT e 189º e 190º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social[16].
No caso em apreço, o plano de reembolso previsto para o credor Segurança Social não prevê qualquer extinção ou redução (de juros ou capital), mas uma mera modificação dos prazos de pagamento, consistente num plano prestacional “a autorizar em 40 prestações mensais e sucessivas, no âmbito da execução fiscal”.
Ora, não só, o pagamento prestacional não se encontra abrangido pela indisponibilidade dos créditos fiscais contidos no nº1 do art. 30º, da LGT, como a possibilidade de pagamento em prestações dos créditos da segurança social se encontra expressamente prevista no CRCSPSS e art. 81º do Dec. Regulamentar nº1-A/2021, anteriormente citados e reproduzidos, e em condições mais favoráveis do que a tal respeito se prevê para os créditos da Autoridade Tributária.
E, os termos em que tal plano prestacional se acha vertido no plano de revitalização encontra-se dentro dos parâmetros legais – o número de prestações previstas (40) é largamente inferior ao número máximo de 150 permitido pelo art. 81º do Dec. Regulamentar nº 1-A/2021, sendo que, o legislador não fez depender tal número máximo do montante do crédito em dívida, nem estabeleceu qualquer valor mínimo para cada uma das prestações (ao contrario do que a tal respeito se prevê no artigo 196º CPPT para os créditos fiscais).
Por outro lado, os termos das prestações previstas no plano não se encontram fechados, tratando-se de prestações “a autorizar (…) no âmbito da execução fiscal”.
É certo que os artigos 1º e 2º, ns. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 411/91 de 17 de outubro, fazem depender o pagamento prestacional de contribuições em divida à segurança social, nomeadamente em caso de devedor objeto de processo especial de recuperação de empresas, de autorização da Segurança Social (feita por despacho do membro do Governo que estiver a seu cargo a área da segurança social).
Contudo, essa falta de autorização, sempre constituiria, por si só, uma violação negligenciável, no caso de as restrições impostas pelo plano aos créditos da Segurança Social se conterem dentro dos parâmetros previstos pelas disposições tributárias aplicáveis.
Com efeito, nas palavras de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido[17]”.
Em relação a situações semelhantes, em que a Segurança Social (em posição divergente com a Autoridade Tributária) não deu o seu consentimento ao plano prestacional previsto para os seus créditos, votando contra o plano de recuperação ou revitalização, algumas decisões vêm sendo proferidas pelos tribunais superiores[18] no sentido de que, não contendo o plano a violação de qualquer norma do regime legal de regularização das dívidas à segurança social ou do principio da indisponibilidade dos créditos tributários, nem interferindo com a salvaguarda dos interesses da segurança social, haverá que concluir pela sua admissibilidade legal.
É o caso do Acórdão do TRL de 27-10-2020[19] que, a propósito de um plano que não obteve o voto favorável da segurança social, considerou admissível a medida de pagamento do respetivo crédito em 150 prestações mensais e sucessivas, inserida em plano aprovado pela maioria de credores, incluindo a autoridade tributária, afirmando que o principio da indisponibilidade dos créditos tributários previsto no art. 30º, ns. 2 e 3, da LGT, significa que a AT e a SS não podem discricionariamente alterar a relação jurídica tributária, não significando que qualquer Plano Especial de Revitalização tenha que ter sempre o acordo destes dois credores.
Ora, também no caso em apreço, e sobretudo, quando comparada com a atitude da Autoridade Tributária, que deu o seu consentimento ao plano prestacional para si proposto, em termos que se afiguram semelhantes aos previstos para a Segurança Social (quando os parâmetros legais dentro dos quais pode ser autorizado o pagamento em prestações dos créditos fiscais são muito mais apertados), a ausência de consentimento e o voto contra, por parte da Apelante/SS – relativamente ao plano prestacional previsto para o seu crédito, com o único fundamento de que a fixação de um número de 40 prestações, igual ao previsto para o crédito da AT é violador do principio da igualdade – surgem sem qualquer sustento.
Considerando que a posição a tomar por parte da SS enquanto instituto público envolve poderes/deveres de prossecução do interesse publico, surge mesmo como incompreensível – e contraditória a atitude assumida pelo Estado/Autoridade Tributária que votou favoravelmente o plano – a atitude da Segurança Social quando se nega a dar o seu assentimento a um acordo de recuperação no âmbito do qual todos os restantes credores abdicam de parcelas de pretensão e consentem livremente na restrição das suas posições jurídicas[20].
Por fim, a procedência da pretensão da Apelante à ineficácia do plano relativamente aos seus créditos, levaria mesmo a um tratamento diferenciado, violador do princípio da igualdade, caso, ao contrário dos demais créditos e, sobretudo, face aos demais créditos do Estado, os créditos da SS não viessem a ser, apenas eles, afetados pelo plano.

A apelação é de improceder.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.      

                                                                Coimbra, 26 de abril de 2022

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…)



[1] “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina (2019, Reimpressão), p. 435.
[2] Sara Luís Dias, “A afetação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa e no plano especial de recuperação”, “Revista de Direito da Insolvência”, Nº0 – 2016, p.251.
[3] Neste sentido, entre outros, Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, pp. 474-475,  Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, p. 461, Acórdãos do TRC de 27-06-2017, relatado por Isaías Pádua, e de 18-02-2020, relatado por Arlindo de Oliveira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[4] “A Par Conditio Creditorum como Igualdade Formal dos Credores: Expectativa vs. Realidade – Do Cumprimento Voluntário à Insolvência- Liquidação”, Almedina, pp. 18-20.
[5] Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da Republica Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2007, p.339,
[6] “A Par Conditio Creditorum como Igualdade Formal dos Credores: Expectativa vs. Realidade – Do Cumprimento Voluntário à Insolvência- Liquidação”, Almedina, p. 177.
[7] “A Par Conditio Creditorum como Igualdade Formal dos Credores: Expectativa vs. Realidade – Do Cumprimento Voluntário à Insolvência- Liquidação”, Almedina, p. 20-21.
[8] Carolina Cunha, obra citada, p. 21 e Gomes Canotilho e Vital Moreira, obre citada, p. 340.
[9] Acórdão relatado por Renata Linhares de Castro, disponível in www.dgsi.pt.
[10] António Fonseca Ramos, “Os Créditos Tributários e a Homologação do Plano de Recuperação da Insolvência”, III Congresso de Direito da Insolvência, 2015, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp.367-369.
[11] Acórdãos do STJ de 13-11-2014, relatado por Salreta Pereira, e do TRP de 14-04-2015, relatado por Vieira e Cunha, disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. quanto a tal questão, Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, pp.444-446, e, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 18.02.2014 e de de 13.11.201, relatados por Fonseca Ramos, Acórdãos do TRC de 13-09-2016 e 25.05.2021, relatados pela aqui relatora, Ac. TRE de 25.01.2015, relatado por Conceição Saavedra, disponíveis in www.dgsi.pt.
[13] António Fonseca Ramos, artigo citado, pp. 378-379.
[14] Joaquim Freitas da Rocha, “A blindagem dos Créditos Tributários, o processo de insolvência e a conveniência de um Direito Tributário flexível”, in I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, Coord. Catarina Serra, 2014, Almedina, p.188.
[15] Artigo e local citado, p.380.
[16] Sara Luís Dias, “A afetação do crédito tributário (…), p. 261.
[17] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Iuris, 3ª ed., 2015, p. 781.
[18] Cfr., entre outros, Acórdãos do TRL de 22-09-2020, relatado por Amélia Sofia Rebelo, de 22-02-2022, relatado por Renata Linhares de Castro, Acórdão do TRP de 22-03-2021, relatado por Fernanda Almeida, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[19] Acórdão relatado por Manuela Espadaneira Lopes, disponível in www.dgsi.pt.
[20]Joaquim Freitas da Rocha, “A blindagem dos créditos tributários (…), p. 189, e Acórdão do TRL de 22-09-2020, relatado por Amélia Sofia Rebelo. Ou, Ou, como se afirma no Acórdão do TRL de 22-09-2020, sendo o Estado Português uno (art. 6º CRP), e considerando que o próprio Estado vem sucessivamente a afirmar e a reiterar a priorização da recuperação de empresas como vetor absolutamente estruturante no quadro da legislação insolvencial portuguesa, no mínimo permanece incompreensível a divergência, relativamente à mesma realidade empresarial, de sentidos de voto divergentes no seio do próprio Estado (Autoridade Tributária e Segurança Social) – Acórdão relatado por Amélia Sofia Rebelo, nota 20.