Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6732/14.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INABILITAÇÃO
INTERDIÇÃO
ANOMALIA PSIQUICA
FACTO CONCLUSIVO
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.138, 152 CC
Sumário: 1. - Afirmar-se nos factos julgados provados que a anomalia/perturbação (aliás de grau leve) de que o interditando padece o incapacita totalmente de governar a sua pessoa e bens, configura matéria conclusiva/conceitual, que não pode ter assento na parte fáctica da sentença, por revestir valoração privativa da fundamentação de direito da ação de interdição, sob pena de subversão da lógica da sentença (decisão da questão jurídica fora da sede própria), pelo que tal segmento conclusivo/valorativo deve ser excluído do quadro fáctico.

2. - Se tal interditando mostra autonomia e discernimento suficientes para fazer reiteradas e longas viagens sozinho, é capaz de conhecer o dinheiro, de obter habilitações profissionais e, continuando a progredir, de conseguir, no futuro, em meio escolhido/protegido, exercer uma profissão, como elemento útil, embora limitado, da comunidade, então o caso não será de incapacidade total para governar a sua pessoa e bens, com os seus gravosos efeitos, o que afasta a aplicação da figura da interdição (art.º 138.º do CCiv.).

3. - Em tal caso justifica-se, segundo parâmetros de necessidade (ingerência mínima possível), proporcionalidade e liberdade, a medida – menos gravosa, que se não reconduz a uma incapacidade geral – de inabilitação, embora acompanhada de especiais medidas protetivas da pessoa e bens do inabilitando.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I –Relatório

Intentando ação de interdição por anomalia psíquica,

o Exm.º Magistrado do M.º P.º requereu a interdição de E (…), com os sinais dos autos,

alegando, em síntese, que:

-o Requerido, nascido em 01/03/1992, é portador de atraso mental leve, tendo um quociente intelectual total de 60, e que, apesar de ter completado o 9.º ano de escolaridade no ano de 2009, frequentando escola profissional, e apresentar alguma autonomia relativa, conseguindo realizar as tarefas da vida diária, esse quadro clínico afeta-lhe, de forma permanente e irreversível, o entendimento, o discernimento e a vontade, reduzindo-lhe a capacidade de adaptação às normas de independência pessoal e de responsabilidade social, o que torna incapaz de governar a sua pessoa e/ou de gerir e dispor dos seus bens, para tanto necessitando de orientação e supervisão de terceiros (não é independente, agindo de acordo com as instruções que lhe forem dadas);

- por isso, não consegue tomar decisões complexas, a diversos níveis, nem gerir o seu património (reconhece o dinheiro mas não o sabe gerir, nem atribuir-lhe o respetivo valor) e a sua pessoa em termos de completa autonomia, mostrando falta de discernimento para entender o alcance e o significado do exercício dos direitos que lhe assistem (em processo que correu termos pelo DIAP de Coimbra, o procedimento criminal foi iniciado com queixa apresentada por seu pai).

Após afixação de editais e legal publicação de anúncio, foi efetuada a citação, contestando o Requerido, âmbito em que invocou:

- não se mostrarem preenchidos todos os pressupostos da interdição, designadamente, a incapacidade de reger os bens e a pessoa em razão de anomalia psíquica, faltando uma anomalia grave (é mero atraso mental leve o de que padece), atual, habitual e duradoura;

-assim concluindo pela improcedência da ação;

-tanto mais que no ano letivo de 2013/2014 completou o curso de “Técnico de Receção”, com a qualificação de 11 valores, estando apto para exercer atividade profissional, deslocando-se sozinho entre a sua residência e o local de estudo, bem como entre a Guarda e Coimbra, de modo totalmente independente, gerindo o dinheiro que os pais lhe davam, saindo com amigos e estando;

-em suma, mostra-se apto para uma vida dentro da normalidade, também do ponto de vista pessoal, sendo ainda que ambos os pais são professores de educação especial, por isso especialmente vocacionados para o acompanhar e ajudar.

Realizado exame pericial do Requerido, com dedução de oposição, bem como interrogatório daquele, foi dispensada a audiência prévia e foi proferido despacho saneador, determinando-se o objeto do litígio e enunciando-se os temas de prova, que não foram objeto de reclamação.

Realizada também a audiência de julgamento, com produção de provas, foi proferida sentença, pela qual foi decretada a interdição do Requerido por anomalia psíquica, fixando-se como data do seu início o dia 01/03/1992, nomeando-se tutor D (…) e elementos do conselho de família V (…) e O (…) (protutor e vogal, respetivamente).

Inconformado com o assim decidido, veio o Requerido interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

(…)

Pugna, assim, na procedência do recurso, pela revogação da sentença de interdição, a ser substituída por decisão de declaração de inabilitação.

O M.º P.º apresentou contra-alegação recursória, onde concluiu por:

(…)

Nestes termos e nos demais de direito, entendemos que, in casu, resultam verificados os pressupostos de aplicação do instituto da Inabilitação.” ([2]).

O recurso foi admitido, como de apelação, com efeito suspensivo e subida imediata e nos próprios autos, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursório.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II –Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([3]) –, está em causa na presente apelação saber ([4]):

a) Se deve corrigir o Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no art.º 614.º do NCPCiv., invocados lapsos de escrita imputados à decisão da matéria de facto da 1.ª instância (e que esta não corrigiu);

b) Se foi devidamente impugnada a decisão de facto, devendo ser alterada; e se ocorre pendor conclusivo ou contraditório nessa decisão de facto, mormente quanto ao ponto 10. dado como provado na sentença;

c) Se, em matéria de direito, não se verificam os pressupostos da interdição, mas apenas da habilitação, com adição das medidas elencadas pelo M.ºP.º em sede de contra-alegação.

III –Fundamentação

         A) Das pretendidas alterações de lapsos na decisão de facto

         Pretendia o Recorrente, desde logo, a correção de invocados “lapsos de escrita”, ao abrigo do disposto no art.º 614.º do NCPCiv., no concernente a pontos determinados da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, e que esta não corrigiu – era o caso da afirmação de existência de anomalia psíquica inata/desde a nascença, bem como a quanto à qualificação do Apelante como “técnico de recepção” e não “técnico de reparação” (conforme certificado junto com a contestação).

Ora, se é certo que o art.º 614.º do NCPCiv. permite a correção de erros materiais ou lapsos de escrita da sentença, tal tarefa corretiva cabe ao Juiz a quo (ao qual é permitido lançar mão, sem prejuízo do esgotamento do poder jurisdicional, dos mecanismos dos art.ºs 613.º e seg. do NCPCiv.) e, no caso de recurso, somente até ao momento da expedição do recurso para o tribunal superior (n.º 2 daquele art.º 614.º).

A esse Juiz cabe também, sendo o caso, proceder à reforma da sentença, nas situações a que alude o art.º 616.º do NCPCiv..

Já ao Tribunal ad quem cabe, sob arguição da parte, conhecer das causas de nulidade da sentença (art.º 615.º do NCPCiv.).

Todavia, tal não impede que o Tribunal de 1.ª instância se pronuncie, previamente, sobre a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma, precisamente, em caso de recurso, no despacho em que se decida quanto à sua admissibilidade (art.º 617.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Em suma, a retificação de erros materiais da sentença cabe, nos termos legais, ao Tribunal que a proferiu, não cabendo nas competências do Relator do Tribunal superior, para quem vale o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal recorrido (cfr. art.ºs 652.º e segs. do NCPCiv.).

A intervenção do Tribunal de recurso será, sim, no plano do julgamento da matéria de facto, quanto a erros (ou lapsos) de julgamento, no quadro do disposto nos art.ºs 640.º (impugnação da decisão de facto, com observância dos ónus legais a cargo do impugnante) e 662.º (modificabilidade da decisão de facto), ambos do NCPCiv., em sede de acórdão a proferir (art.º 663.º do mesmo Cód.).

Assim, se poderia a 1.ª instância ter procedido, oportunamente, a qualquer retificação de erro material ou lapso de escrita que entendesse ocorrer, o que não fez, já a este Tribunal ad quem, esgotado o poder jurisdicional da 1.ª instância e subindo os autos em recurso, não cabe suprir eventuais lapsos do Tribunal recorrido, que este entendeu não retificar.

B) Se foi devidamente impugnada a decisão de facto, devendo ser alterada

O Recorrente não foi rigoroso na observância dos ónus a seu cargo a que aludem as al.ªs a) a c), do n.º 1 do art.º 640,º do NCPCiv., não exprimindo com toda a clareza os concretos meios de prova que impunham decisão diversa, nem o sentido decisório fáctico pretendido, o que se compreende por ter configurado a situação como de correção de meros lapsos e não de erro de julgamento de facto.

Todavia, logra-se compreender a sua pretensão, cujo objeto é suficientemente percetível, podendo ser apreciado nesta perspetiva.

Ora, começa o Apelante por afirmar que não está afetado desde a nascença por anomalia psíquica (conclusão 2.ª), assim dissentindo da parte inicial do facto 2. da sentença, onde se deu como provado ser ele portador de atraso mental leve desde a nascença ([5]).

Compulsada a fundamentação da convicção probatória da decisão em crise, constata-se que esta se fundou no que consta de fls. 109 a 112 (relatório de perícia médico-legal), de 147 a 150 (parecer médico que acompanha o Recorrente desde a idade pré-escolar) e ainda em depoimentos testemunhais.

Quanto ao ponto agora em análise – saber se há, ou não, afetação de nascença/congénita (por anomalia psíquica) – releva sobremaneira, como bem se compreende, a prova pericial/científica.

E, quanto a esta, da conclusão do relatório de perícia médico-legal (Perícia Psiquiátrica) do INML, Delegação do Centro, de fls. 111 v.º dos autos em suporte de papel, consta que “O examinando é portador (certamente, desde os primeiros dias de vida) de um Atraso mental (F70.0 da CID-10)”.

De fls. 147 a 150 (parecer médico junto pelo Requerido) não resulta o contrário quanto ao tempo de eclosão do dito atraso verificado.

Donde que, nenhum erro havendo nesta parte – a convicção da 1.ª instância assentou na prova pericial produzida, que, mostrando-se credível, não resultou abalada –, seja de manter a alusão fáctica objeto da discordância do Recorrente (dito ponto 2. dos factos provados), não se vendo, por outro lado, que o verificado atraso (atenta a sua natureza) não seja compatível com a ausência de manifestações fisicamente detetáveis a nível crânio-encefálico (tanto mais que se não trata de uma pura doença mental que fosse decorrente de “origem sequelar”, inexistindo “alterações/malformações encefálicas” visíveis, como também resulta da perícia psiquiátrica médico-legal realizada pelo INML - Delegação do Centro).

Quanto à conclusão 4.ª – se a qualificação obtida é de “técnico de receção” e não, como consta da sentença, “técnico de reparação” (cfr. facto 5.) –, é certo que do documento/certificado de fls. 89 consta “Diploma” como “Técnico de Recepção”, donde que haja erro na resposta do Tribunal, a dever ser alterada pela via recursória, o que se fará, no local próprio.

Por fim, esgrime o Apelante que há contradição inconciliável entre segmentos diversos de factos dados como provados, o que, a ocorrer, seria inaceitável.

Considera o Recorrente que, acolhendo-se, como provado ([6]), que o seu atraso mental é leve, que realiza, autonomamente, as tarefas da vida diária (vestir-se, alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal), que logrou completar o 9.º ano de escolaridade, bem como curso de técnico de receção (não de reparação), com a classificação global de 11 valores, conferindo nível 4 de qualificação, que, durante a frequência desse curso, se deslocava sozinho entre o local de estudo e a residência, usando transportes públicos nessas deslocações e nas que, também de forma independente, fazia entre as cidades da Guarda e de Coimbra, conhecendo as notas e moedas em circulação e o seu valor facial, assim gerindo as quantias que os pais lhe davam para atos do quotidiano, e lidando com as novas tecnologias (telefones, móveis e fixos, ferramentas informáticas), tal é contraditório com outra factualidade dada como provada (mas de sentido oposto).

Seria o caso do facto do ponto 10., com o seguinte teor:

«O atraso mental leve de que padece o requerido, associado a limitações na comunicação com terceiros características do “espectro do autismo”, é uma condição com carácter irreversível que, de forma permanente, lhe afecta o entendimento, o discernimento e a vontade, incapacitando-o totalmente de governar a sua pessoa e bens».

Ora, não se vê que o mencionado – e aceite – atraso mental leve e as atividades e realizações que, por ser leve, permite que o Recorrente execute/realize no seu dia-a-dia, com alguma margem de independência e autonomia e até com algum salutar sucesso escolar/formativo, bem como o demais quadro antes mencionado, possam conflituar com o facto de o seu atraso mental leve ([7]), associado a limitações na comunicação características do “espectro do autismo” – distúrbio também presente e, obviamente, limitador da pessoa ([8]) –, assumam caráter irreversível/permanente, afetando-lhe o entendimento, o discernimento e a vontade, em maior ou menor grau.

Donde que não possa, salvo o devido respeito, sempre devido, acompanhar-se nesta parte a argumentação do Recorrente, não se vislumbrando contradição nem erro na apreciação da prova, aliás prova pericial qualificada.

Onde o Apelante parece ter razão é quando se insurge contra a dimensão conclusiva da parte final do aludido ponto 10. do quadro fáctico da sentença.

Com efeito, a inclusão no quadro fáctico do segmento “incapacitando-o totalmente de governar a sua pessoa e bens” (terminus do dito ponto 10.) constitui, neste tipo de ação (ante os respetivos pedido e causa de pedir), matéria claramente conclusiva/conceitual ([9]), que não pode ter assento na parte fáctica da sentença, por revestir conclusão que apenas em sede de fundamentação de direito, perante os concretos factos apurados, poderá ser sufragada, ou não, sob pena de se subverter a lógica da sentença, decidindo-se a questão jurídica fora da sua sede própria.

Termos em que, por manifestamente conclusivo/valorativo, se suprimirá este segmento final do facto 10. da sentença ([10]).

Procedem nesta parte as razões do Apelante, alterando-se em conformidade a decisão de facto da causa.

Em tudo o mais, subsiste o juízo fáctico da 1.ª instância.

C) Quadro fáctico da causa

Na 1.ª instância foi julgada provada, e agora pontualmente alterada, a seguinte factualidade ([11]) a atender:

«1E (…) nasceu em 1.Março1992, sendo filho de D (…) e V (…);

2. O requerido é portador, desde a nascença de atraso mental leve, tendo um Quociente Intelectual Global de 60 (valor que se situa na Classe Muito Inferior que abrange as pontuações inferiores a 69), apresentando “importantes limitações intelectuais” e limitações na comunicação com terceiros – neste aspecto “mostrando atitudes e estereotipias típicas das perturbações do espectro do autismo” – revelando incapacidade para efectuar cálculos aritméticos simples, com erros grosseiros e, patenteando, ainda, dificuldades ao nível do pensamento abstracto, quando confrontado com testes simples em contexto associativo”;

3. O requerido realiza, de forma autónoma, as tarefas da vida diária como vestir-se alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;

4. O requerido completou o 9º ano de escolaridade no ano de 2009;

5. E no ano lectivo de 2013/2014 completou o curso de “Técnico de Recepção”, na Escola Profissional Profitecla, em Coimbra, com a classificação global de 11 valores, conferindo o nível 4 de qualificação do Quadro Nacional de Qualificações”[alterado];

6. O requerido durante a frequência desse curso, deslocava-se sozinho do local de estudo para a sua residência, e vice-versa, usando transportes públicos nessas deslocações e naquelas que, também de forma independente, fazia entre Guarda e Coimbra

7. O requerido conhece as notas e moedas em circulação no espaço europeu, bem como o seu valor facial,

8. O requerido gere as quantias que os pais lhe davam para actos do quotidiano, como aquisição de títulos de transporte ou de géneros alimentícios;

9. O requerido lida com as novas tecnologias, manuseando telefones, móveis e fixos, e ferramentas informáticas, comunicando por e:mail, dispondo de página de “facebook”;

10. O atraso mental leve de que padece o requerido, associado a limitações na comunicação com terceiros características do “espectro do autismo”, é uma condição com carácter irreversível que, de forma permanente, lhe afecta o entendimento, o discernimento e a vontade»[alterado].

D) Substância jurídica do recurso

1. - Da não verificação dos pressupostos da interdição e da adequação da habilitação, com adição de medidas de reforço/proteção

O Tribunal a quo, na visão lançada sobre os factos que julgou provados – onde não terá sido desprezível o agora alterado facto 10. –, deixou-se, seguramente, impressionar pelo seguinte segmento dado como apurado (aquele facto 10. originário):

«O atraso mental leve de que padece o requerido, associado a limitações na comunicação com terceiros características do “espectro do autismo”, é uma condição com carácter irreversível que, de forma permanente, lhe afecta o entendimento, o discernimento e a vontade, incapacitando-o totalmente de governar a sua pessoa e bens» (itálico aditado).

O art.º 138.º, n.º 1, do CCiv. dispõe, quanto ao que ora importa, poder ser interdito quem por anomalia psíquica se mostrar incapaz de governar a sua pessoa e bens.

A incapacidade (total) de governar a sua pessoa e bens pode determinar, pois, a interdição, tratando-se, repete-se, de matéria obviamente conclusiva/valorativa ou conceitual, como tal a não poder ter assento na parte fáctica da sentença.

Configura, isso sim, conclusão que em sede de fundamentação de direito, no confronto com os factos, poderá ser sufragada, ou não, sob pena de subversão da lógica da sentença (decisão da questão de direito fora da sede própria). Daí a sua supressão do quadro fáctico apurado da causa.

Pretende, por seu lado, o Recorrente – no que é mesmo acompanhado pelo M.º P.º junto desta Relação – que as exigências de proporcionalidade, adequação e liberdade não permitem/suportam que a leveza verificada da anomalia/perturbação/fragilidade de que padece o Apelante seja coberta com uma medida de interdição, com o seu efeito gravoso para a vida diária do visado, mas sim com a simples inabilitação, de pendor menos gravoso para ele ([12]).

Na verdade, perpassa dos factos que o Apelante não está, ao que se vê, totalmente impedido/incapacitado de governar a sua pessoa e bens.

É certo que enfrenta limitações sérias no dia-a-dia em sociedade, se não estiver em ambiente protegido, faltando-lhe discernimento e autonomia – a autodeterminação suficiente que é apanágio do comum das pessoas – necessárias a cuidar, sem ajuda, da sua pessoa e bens.

É seguro que o atraso mental leve de que padece, associado às limitações conexionadas com o “espectro do autismo”, traduzem condição irreversível, que, de forma permanente, lhe afetará o entendimento, o discernimento e a vontade, mas o que não o impede de viver a sua vida com alguma autonomia (a possível), sendo capaz de fazer viagens, de conhecer o dinheiro, de obter habilitações profissionais e, continuando a progredir, de conseguir, em meio escolhido, protegido e dedicado, exercer uma profissão, como elemento útil, embora limitado, da comunidade.

Concorda-se, pois, que a situação não é de incapacidade total para governar a sua pessoa e bens, o que afasta a aplicação da figura da interdição (art.º 138.º do CCiv.) ([13]).

Porém, tratando-se de escolher uma medida que proteja a pessoa e os seus bens, ante a fragilidade de que é portadora, a medida de inabilitação (art.º 152.º do CCiv.), que se afigura mais adequada ([14]), haverá, como bem assinala o M.º P.º, de ser acompanhada de medidas complementares protetivas.

Assim, é pertinente a nomeação do pai, D (…), para o exercício do cargo de Curador e da mãe, V (…) para o cargo de Sub-Curador.

Quanto ao suprimento da incapacidade relativa do Recorrente (nas vertentes pessoal e patrimonial):

1. - No plano pessoal, o necessário suprimento mediante a assistência/supervisão do Curador, quanto às atividades da vida pessoal quotidiana do filho, sem prejuízo da definição de um círculo de autonomia pessoal compatível com as suas capacidades naturais em cada momento, justificando-se que caiba ao Curador, em exclusivo, o controlo quanto a:

a) Assegurar o regular e adequado acompanhamento médico e psicopedagógico essencial ao seu equilíbrio, bem-estar e preservação das capacidades, bem como prevenção quanto a eventual evolução clínica desfavorável;

b) Promover a sua integração socioprofissional através de frequência de instituição e emprego apoiado.

2. - Na vertente patrimonial, não sabendo o Apelado efetuar uma correta gestão do dinheiro/riqueza, dependendo, por isso, de terceiros, deverá o Curador:

a)Assisti-lo em todos os atos de disposição de bens e atos negociais para contrair obrigações, dando a sua autorização à prática dos mesmos, sendo-lhe assegurados, para tanto, expressos poderes necessários à movimentação das contas bancárias (ou gestão de aplicações financeiras) juntamente com o filho, sob condição de movimentação/intervenção conjunta;

b) De acordo com o prudente critério do Curador, quando adequado, segundo as aptidões que o filho revele em cada momento, promover a atribuição de dinheiro de bolso (“mesada”), que poderá ajudar a estimular as faculdades do requerido/Recorrido nesse âmbito.

Em todo o caso – como referido no Ac. TRL de 29/06/2006, Proc. 4883/2006-6         (Rel. Fátima Galante), em www.dgsi.pt –, importa ter em atenção que as sentenças de inabilitação são alteráveis por evolução ulterior, para melhor ou para pior das causas de incapacidade para reger o património, designadamente quanto aos actos submetidos à autorização do curador” ([15]).

Procede, portanto, com este condicionalismo, a apelação.


***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Afirmar-se nos factos julgados provados que a anomalia/perturbação (aliás de grau leve) de que o interditando padece o incapacita totalmente de governar a sua pessoa e bens, configura matéria conclusiva/conceitual, que não pode ter assento na parte fáctica da sentença, por revestir valoração privativa da fundamentação de direito da ação de interdição, sob pena de subversão da lógica da sentença (decisão da questão jurídica fora da sede própria), pelo que tal segmento conclusivo/valorativo deve ser excluído do quadro fáctico.

2. - Se tal interditando mostra autonomia e discernimento suficientes para fazer reiteradas e longas viagens sozinho, é capaz de conhecer o dinheiro, de obter habilitações profissionais e, continuando a progredir, de conseguir, no futuro, em meio escolhido/protegido, exercer uma profissão, como elemento útil, embora limitado, da comunidade, então o caso não será de incapacidade total para governar a sua pessoa e bens, com os seus gravosos efeitos, o que afasta a aplicação da figura da interdição (art.º 138.º do CCiv.).

3. - Em tal caso justifica-se, segundo parâmetros de necessidade (ingerência mínima possível), proporcionalidade e liberdade, a medida – menos gravosa, que se não reconduz a uma incapacidade geral – de inabilitação, embora acompanhada de especiais medidas protetivas da pessoa e bens do inabilitando.


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando em parte a sentença recorrida, declara-se a inabilitação, por anomalia psíquica, de E (…) fixando-se como data do seu início o dia 01/03/1992 e, bem assim, nomeando-se Curador D (…) e Sub-Curador V (…).

Mais se decide, nos termos do art.º 901.º, n.º 2 do NCPCiv., que compete ao Curador (como antes referido):

1. - no plano pessoal, a adequada assistência/supervisão quanto às atividades da vida pessoal quotidiana do Inabilitado, sem prejuízo da sua esfera de autonomia compatível com as suas capacidades, cabendo ao Curador, em exclusivo, o controlo quanto a: a) assegurar o necessário acompanhamento médico e psicopedagógico e prevenção quanto a eventual evolução clínica desfavorável; b) promover a sua integração socioprofissional através de frequência de instituição e emprego apoiado;

2. - no âmbito patrimonial: a) assisti-lo nos atos de disposição de bens e atos negociais para contrair obrigações, dando autorização à sua prática, sendo-lhe assegurados, para tanto, expressos poderes necessários à movimentação das contas bancárias (ou gestão de aplicações financeiras) juntamente com o filho, sob condição de movimentação/intervenção conjunta; b) promover a atribuição de dinheiro de bolso (“mesada”), em medida adequada às circunstâncias, de molde a fomentar as faculdades do Requerido nesse domínio;

mantendo-se, por outro lado, o mencionado conselho de família (art.º 154.º, n.º 2, do CCiv.).

Sem custas, porquanto o Requerido a elas não deu causa.

Notifique e oportunamente proceda à comunicação à C. R. Civil.


Coimbra, 17/10/2017

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

                  Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Que se transcrevem, com negrito retirado.
([2]) Cfr. fls. 190 e v.º dos autos em suporte de papel.
([3]) Processo instaurado após 01/09/2013, data da entrada em vigor daquela Lei n.º 41/2013 (cfr. art.º 8.º).
([4]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([5]) Vide Ac. TRL, de 24/06/2014, Proc. 2228/08.6TVLSB.L1-1 (Rel. Isabel Fonseca), em www.dgsi.pt, constando do respetivo sumário que: “O legislador civil não definiu o conceito de anomalia psíquica, sendo que também não encontramos noutros diplomas elementos que auxiliem nessa delimitação. No entanto, é entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que a mesma abrange perturbações do intelecto, da vontade e da afectividade”. Cfr. também o Ac. TRC, de 10/03/2009, Proc. 469/2000.C1 (Rel. Jaime Ferreira), em www.dgs.pt.
([6]) Vide pontos fácticos 2. a 9. da sentença.
([7]) Pode perguntar-se que limitações/incapacidades acarretaria se fosse num grau mais importante (grave ou severo).
([8]) Note-se que o aludido relatório pericial psiquiátrico – peça científica, relevante e credível, como tal dotada de importante força probatória em matéria de especialidade médica, que não foi abalada – não deixou de enfatizar “limitações associadas” noutras áreas, ligadas as “perturbações do espectro do autismo”, com as inerentes consequências (infelizmente, nefastas) para o desenvolvimento e comportamentos do portador.
([9]) Cfr. art.º 138.º, n.º 1, do CCiv., e respetiva previsão normativa.
([10]) V. Ac. TRC de 12/01/2016, Proc. 1289/08.2TBCBR.C1 (Rel. Carlos Moreira), onde foi sumariado: “Em sede de BI é imperguntável (e, logo, irrespondível), porque não factual mas conclusiva, a expressão «desproporcionadas» (respeitante a despesas feitas), pelo que tal expressão tem de ter-se como não escrita”.
([11]) Que se deixa transcrita.
([12]) Vide Ac. TRC, de 11/11/2014, Proc. 63/2000.C1                (Rel. Maria João Areias), em www.dgsi.pt, onde foi sumariado: “1.- A interdição deve ser concebida como um instrumento que visa tutelar os interesses do incapaz, afirmando-se pela necessidade de cuidado da pessoa, e, implicando restrições aos direitos fundamentais à capacidade civil e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26 da CRP, encontra-se sujeita ao princípio da proporcionalidade. (…) 3.- O conceito de anomalia psíquica é aqui tomado num sentido mais lato, por abranger não só as deficiências patológicas do intelecto, entendimento ou discernimento, mas também as deficiências patológicas da vontade, da sensibilidade e afectividade, que afectem a pessoa no todo ou em parte, para gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais. // 4.- Envolvendo a inabilitação para o inabilitado a incapacidade de praticar actos de disposição de bens, manterá, em princípio, a capacidade para praticar actos de mera administração dos seus bens, ou seja, actos que não afectem a sua substância, e outros previstos na lei, devendo o julgador adaptar a incapacidade de exercício do inabilitado à sua incapacidade natural.”.
([13]) Cfr. o já aludido Ac. TRL, de 24/06/2014, Proc. 2228/08.6TVLSB.L1-1, em cujo sumário se refere que em certos casos, dir-se-ia de anomalias leves, “não tem cabimento a imposição de limitações tão gravosas como as que decorrem da instituição da interdição, quer à sua capacidade de gozo quer de exercício, afigurando-se-nos suficiente ou bastante para a defesa dos interesses do requerido – como se sabe, esse é o principal valor jurídico protegido –, decretar a inabilitação, que não conduz a uma incapacidade geral, antes se reporta apenas a determinados actos (arts. 153º e 154º do Cód. Civil)”. V. também o Ac. TRC, de 10/03/2009, Proc. 469/2000.C1 (Rel. Jaime Ferreira), em www.dgs.pt.
([14]) Cfr., nesta perspetiva, Ac. TRL de 13/07/2016, Proc. 1215/13.7TVLSB.L1-2 (Rel. Jorge Leal), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: “Demonstrando o quadro factual estabelecido na ação que a Requerida se encontra capaz de gerir o seu dia-a-dia, mas padece de anomalias do ponto de vista cognitivo que a impedem de avaliar corretamente o significado e as consequências de opções de maior complexidade, nomeadamente as atinentes à disposição do seu património, que é bastante avultado, pelo menos em comparação com a média da população portuguesa, conclui-se que a Requerida carece de apoio nessa vertente, apoio que deverá ser prestado através do instituto da inabilitação”.
([15]) Podendo ler-se no sumário deste aresto: “O processo de interdição reveste um carácter duplamente concreto: por um lado, a correlação entre o distúrbio psíquico e a capacidade de agir há-de ser averiguada em termos estritamente individuais, assim como individual é a doença e o seu diagnóstico; por outro lado, a valoração do distúrbio e a sua incidência na vida do interdicendo deve ir referida à “qualidade” dos seus interesses e à necessidade de a eles provir, ponderando-se, nomeadamente, a sua personalidade, a condição social e a importância dos interesses ou assuntos de distinta índole (patrimonial ou não) cuja gestão lhe pertença”.