Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
77/12.6TBAVZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO
QUEIMA DE RESÍDUOS
Data do Acordão: 02/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 58º DO DEC. LEI 433/82 DE 27 DE OUTUBRO, 13.º, N.º 1 E 34.º, N.ºS 2, AL. B) E 3, DO DECRETO-LEI N.º 78/2004, DE 3 DE ABRIL, O ÚLTIMO NA REDAÇÃO INTRODUZIDA ATRAVÉS DO DECRETO-LEI N.º 126/2006, DE 3 DE JULHO
Sumário: 1.- A decisão administrativa no âmbito de um processo contraordenacional deve conter a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, a coima e as sanções acessórias, sendo certo que nesta fase não é de exigir o rigor formal como se em processo penal estivéssemos;
2.- Tal exigência deve respeitar apenas a de uma narração, ainda que sintética, devido à simplicidade e celeridade que norteiam a fase administrativa, e que permita ao arguido efetuar um juízo de oportunidade sobre a conveniência ou necessidade de impugnar judicialmente a decisão e posteriormente, já em sede de impugnação judicial, possibilitar ao tribunal conhecer e aferir sobre o processo lógico da formação da decisão administrativa e respetivos fundamentos.

3.- A prática da contraordenação ambiental grave p. e p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 13.º, n.º 1 e 34.º, n.ºs 2, al. b) e 3, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, o último na redação introduzida através do Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de Julho, pressupõe a verificação dos seguintes elementos objetivos:

- Queima a céu aberto;

- Que os produtos queimados sejam resíduos, na aceção do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, bem como de todo o tipo de material designado correntemente por sucata.

E em termos subjetivos, que a sua prática possa ser imputada a título de dolo ou de negligência.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

1.1. A... –, Lda. com sede em …, Alvaiázere, foi administrativamente sancionada[1] pelo Sub-inspector-geral da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (doravante designada pelo acrónimo IGAMAOT), no pagamento de uma coima cujo montante se fixou em € 2.500,00, isto porquanto incursa na autoria de uma contra-ordenação ambiental grave p. e p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 13.º, n.º 1 e 34.º, n.ºs 2, al. b) e 3, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, o último na redacção introduzida através do Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de Julho.

Inconformada, impugnou-a judicialmente sucedendo que por sentença adrede proferida acabou condenada enquanto autora da aludida contra-ordenação no pagamento da coima de € 3.000,00 (três mil euros), isto para além do demais por ora irrelevante.

1.2. Irresignada com o assim decidido, recorre a mesma arguida para este Tribunal da Relação, extraindo do requerimento por cujo intermédio minutou agora tal discordância, as seguintes conclusões:

1. A decisão administrativa é nula por falta de especificação do facto imputado ao não concretizar os resíduos sólidos a que se refere [art.ºs 58.º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro[2]; 374.º, n.º 2 e 379.º, estes ambos do Código de Processo Penal].

2. A decisão administrativa é ainda nula por falta de motivação, posto não indicar concretamente as provas obtidas, nem fazer tão pouco exame crítico daquelas que serviram para fundamentar a convicção do decisor [preceitos supra citados].

3. O reconhecimento de tais nulidades implicará a devolução do caso à autoridade competente para que repare os vícios não se sancionando o mesmo com a emergência da decisão judicial.

Caso assim se não entenda,

4. Mostra-se prescrito o procedimento contra-ordenacional instaurado, de acordo com o disposto nos art.ºs 28 n.º 3 do RGCO e 40.º, n.º 2 da Lei 50/2006.

5. A decisão judicial recorrida padece de contradição insanável da fundamentação, ou, mesmo que assim se não entenda, mostram-se insuficientes os factos dados como provados para demonstrar a prática da contra-ordenação por parte da arguida, o que tudo acarreta a respectiva absolvição.

Mas, caso assim se não entenda,

7. Deve a decisão recorrida ser julgada como violadora do dispositivo previsto no art.º 72.º-A do mencionado RGCO (Reformatio In pejus), uma vez que não se apurou ter a recorrente sofrido melhoria sensível na sua vida económica, além do que a recorrente não foi notificada por parte do tribunal do documento que a M.ma Juiz atendeu para declarar a existência de tal melhoria, violando-se assim o princípio do contraditório, em prejuízo dos direitos de defesa e garantias da recorrente.

Acaso assim igualmente se não considere,

8. Deve sempre a condenação em coima ser substituída por admoestação nos termos do art.º 51.º, n.º 1, do RGCO, pois estamos perante uma contra-ordenação de reduzida gravidade, sem prejuízo ou dano efectivo para o ambiente, nem benefício económico para a recorrente, como todas as circunstâncias envolventes do caso e do meio o demonstram.

9. Decidindo pela forma em que o fez, a sentença recorrida preteriu, além do mais, o disposto nos art.ºs 13.º, n.º 1 e 34.º, n.ºs 2, al. b) e 3 do Decreto-Lei n.º 78/2004, este último na redacção introduzida através do Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de Julho; 28.º, 41.º 51.º, 58.º, 72.º-A, todos do RGCO; 75.º, da Lei n.º 50/2006; 125.º, 374.º, n.º 2 e 379.º, estes do Código de Processo Penal; 3.º, 4.º, 12.º e 26.º, do Código Penal.

Terminou pedindo que no provimento da impugnação judicial apresentada, seja eximida da responsabilidade contra-ordenacional imposta.

1.3. Acatado o disciplinado pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando o improvimento do recurso.

1.4. Proferido despacho admitindo-o, e cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos para esta instância.

1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer apontando para idêntica improcedência da oposição.

1.6. Foi dado cumprimento ao disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do mesmo diploma adjectivo.

1.7. Aquando do exame preliminar a que alude o n.º 6 ainda deste normativo, considerou-se não ocorrer fundamento determinante à apreciação sumária do recurso, nem nada obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever o mesmo prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos, o que se verificou, e posterior submissão à presente conferência.

Urge, pois, ponderar e decidir.


*

II. Fundamentação de facto.

2.1. Na decisão recorrida foram considerados como provados os factos seguintes:

1. Em data não concretamente apurada, anterior a 13 de Março de 2009, a Guarda Nacional Republicana – Destacamento Territorial de Pombal levou a cabo uma acção de fiscalização e policiamento geral na Rua … , Alvaiázere, onde verificou a existência de uma amontoado de resíduos provenientes da reparação de veículos, num terreno.

2. Tais resíduos pertenciam à arguida.

3. No local foi verificada a existência de uma queima desses resíduos, ocorrida cerca de 1 mês antes da acção de fiscalização.

4. Um homem médio, colocado nas circunstâncias de tempo e lugar da arguida, deveria prever que os resíduos deveriam ser encaminhados para um lugar apropriado e não ser destruídos através de uma queimada, para além de que deveria prever que uma queima a céu aberto pode colocar em perigo pessoas e bens.

5. Houve omissão de um dever de cuidado, de diligência, por parte da arguida, que com o seu comportamento não evitou a realização dos factos típicos contra-ordenacionais.

6. No ano de 2008 a arguida apresentou, em sede de IRC, um prejuízo fiscal no montante de € 29.899,12.

7. No ano de 2011 a arguida apresentou, em sede de IRC, um lucro tributável no montante de € 569,54.

2.2. Por seu turno, tem o teor que segue a motivação probatória constante da mesma decisão:

Para dar como provados os factos acima mencionados, o Tribunal teve em consideração os factos dados como provados pela autoridade administrativa e não impugnados pela recorrente, as declarações dos legais representantes dos recorrentes e o depoimento das testemunhas inquiridas.

Quanto à data dos factos, suscitavam-se duas questões: a data da acção de fiscalização e a data da queima.

No que respeita à primeira, nem os legais representantes da arguida nem a testemunha da Guarda Nacional Republicana inquirida conseguiram concretizá-la, sendo que, no auto de notícia, constam duas datas.

Confrontado com tal circunstância, o militar da Guarda Nacional Republicana que efectuou a fiscalização admitiu como possível terem-se deslocado ao local por duas vezes.

Assim, o Tribunal entendeu dar como provado que a acção de fiscalização ocorreu em data anterior a 13 de Março de 2009, posto que, do auto de notícia (confirmado pela testemunha da Guarda Nacional Republicana) constam duas datas – 12 de Março de 2009 e 19 de Fevereiro de 2009 – sendo apenas possível concluir que, pelo menos, a fiscalização ocorreu até ao dia 12 de Março de 2009, ou seja, antes do dia 13.

Quanto à data da queima, o Tribunal considerou as declarações do legal representante da arguida, que confirmou ter sido ele quem efectuou tal operação e que terá mediado cerca de 1 mês entre a queima e a fiscalização.

A propriedade dos resíduos (facto 2) não foi questionada pela arguida, sendo que o seu legal representante reconheceu tratar-se de um terreno seu e que o que lá estava provinha da oficina da recorrente.

A discordância da recorrente prende-se com a natureza dos resíduos, pois que defende que apenas queimou papel, tendo o seu legal representante admitido como possível também ter queimado plásticos (fitas que se destinam a fechar embalagens de cartão).

Ainda que a queima dos materiais referidos pela recorrente se afigure, também ela, ilícita e punível com coima (atente-se no conteúdo do ponto xiv da al. u) do artigo 3.º, que classifica como resíduos os produtos que não tenham ou tenham deixado de ter utilidade para o detentor, tais como materiais agrícolas, domésticos, de escritório, de lojas ou de oficinas), certo é que o Tribunal entendeu que os resíduos que foram queimados provinham da actividade de reparação de veículos, pelo que, por natureza, não se limitavam a objectos de papel.

A convicção do Tribunal a este propósito fundou-se no depoimento da testemunha B..., militar da Guarda Nacional Republicana, que participou na acção de fiscalização referida no facto 1, e que, de forma isenta e credível, o que foi reforçado pelos naturais lapsos de memória que demonstrou, referiu, sem manifestar qualquer dúvida, que os resíduos que estavam no local e aqueles que era possível observar como restos da queimada se compunham de pára-choques, bidões e plásticos componentes de veículos.

Esta testemunha ainda acrescentou que a razão para ter sido levantado um auto de notícia se ficou a dever ao facto de existirem no local vestígios de queima de resíduos da oficina, não se confundindo com a queima de papéis.

Quanto aos factos 4 e 5, atinentes ao elemento subjectivo, pese embora o recorrente tenha apresentado defesa em relação a esta questão, no âmbito do procedimento administrativo, certo é que não o impugnou judicialmente, razão pela qual se mostra assente.

Ainda que assim não tivesse sucedido, importa referir que este factos, relativos à culpa negligente, sempre resultariam do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que a culpa não é uma realidade directamente apreensível, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

Concretizando, a arguida, enquanto titular de uma oficina, naturalmente que sabe qual o destino que a lei impõe para os resíduos que produz – tanto sabe que juntou documentos destinados a comprovar que faz uma gestão adequado dos resíduos –, também sabe os perigos de os queimar a céu aberto e tem capacidade de actuar da forma correcta.

Os factos 6 foram dados como provados por força do documento de fls. 27 a 30 e do documento junto a 18 de Junho de 2012.


*

III. Fundamentação de Direito.

3.1. Atentando-se ao disposto pelo art.º 75.º, n.º 1, do RGCO[3], o âmbito do presente recurso apenas pode incidir sobre matéria de direito.

Todavia, como ao processo das contra-ordenações é subsidiariamente aplicável o processo criminal[4], nada impede que se conheça dos vícios da sentença, mesmo relativos à matéria de facto, desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, e desde que tenham alguns dos fundamentos indicados no n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal. Também nada impede que se conheça de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada [n.º 3 deste último preceito].

Ainda de não olvidarmos que o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação [art.º 412.º, n.º 1, do diploma adjectivo penal].

Tudo conjugado, e sendo certo que não descortinamos fundamento impondo qualquer apreciação oficiosa, decorre, então, que o thema decidendum consistirá conforme conclusões da recorrente, e salvo eventual interferência de prejudicialidade de uma relativamente à (s) subsequente (s), em aquilatarmos se:

- O procedimento contra-ordenacional aqui instaurado se encontra extinto, por prescrição.

- A decisão recorrida padece do vício de nulidade, por falta de indicação do facto desvalioso à arguida e por falta de motivação.

- E, dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

- A mesma decisão preteriu ao disposto pelo art.º 72.º-A, do RGCO.

- Concedendo a manutenção da sua condenação, sempre a pena cominada haveria de se traduzir numa mera admoestação.

3.2. Primeiro fundamento do dissídio da recorrente o que contende com uma pretensa prescrição do jus puniendi estadual uma vez que, alega, perante factos ocorridos em 2009, alegadamente consubstanciadores de uma contra-ordenação punível com uma coima de € 2.500 a € 22.400, e dado que não emergem quaisquer causas de suspensão ou interrupção da prescrição, já decorreu o correspondente prazo de três anos.

A invocação da arguida suporta-se em dois patentes equívocos: um primeiro, o de menosprezar que, in casu, e ao invés do que expende, o regime aplicável para a determinação do prazo de prescrição não é o que decorre do RGCO, mas antes o que resulta da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto; um segundo, no exacto ponto em que olvida que a infracção cometida é qualificada pela lei como contra-ordenação grave e não contra-ordenação leve.

Na verdade, atenta a natureza do acto em apreciação, isto é, de um facto ilícito [queima de resíduos a céu aberto] e censurável [actuação negligente da arguida] que preenche um tipo legal correspondente à violação de disposição legal relativa ao ambiente [citado art.º 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril], mostra-se incontroverso deparar-se-nos uma contra ordenação ambiental [cfr. art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 50/2006], que será regulada pelo disposto nessa mesma Lei e apenas subsidiariamente pelo regime geral das contra-ordenações [cfr. art.º 2.º ainda da Lei n.º 50/2006]. Ora, contendo esta mesma lei uma norma específica [seu art.º 40.º] definindo os prazos de prescrição convocáveis às contra-ordenações de natureza ambiental, bem se alcança da dispensabilidade de apelo ao RGCO, tal como começa por fazer a recorrente.

Por outro lado, na típica definição dos citados art.ºs 13.º, n.º 1 e 34.º, n.º 2, al. b), do elencado Decreto-Lei n.º 78/2004, a acção da arguida incorpora uma contra-ordenação grave, logo redundando em que o prazo de prescrição convocável se mostre de cinco anos [de acordo com o art.º 40.º, n.º 1 da Lei n.º 50/2006, O procedimento pelas contra-ordenações graves (…) prescreve logo que sobre a prática da contra-ordenação haja decorrido o prazo de cinco anos, sem prejuízo das causas de interrupção e suspensão previstas no regime geral.]

Tanto bastaria, consequentemente, para que o prazo normal de prescrição apenas emergisse em data não concretamente apurada anterior a Março de 2014.

Isto inclusive à míngua da desconsideração da possível verificação de causas de interrupção ou suspensão da contagem de tal prazo, sucedendo que as primeiras concorrem efectivamente nos autos.

Com efeito, por força da remissão contida no citado art.º 40.º, n.º 1, in fine, importa cuidar que, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 28.º do RGCO, o prazo de prescrição se interrompe com a notificação ao arguido para o direito de audição; ora, a arguida foi notificada, em 7 de Julho de 2009 (fls. 7 e 8), para, querendo, apresentar resposta escrita e prova relativamente aos factos que lhe eram imputados, dos quais foi também informada.

Atenta tal interrupção, o prazo de prescrição começou a correr então de novo [art.º 121.º, n.º 2, do Código Penal].

Na sequência da instrução dos autos depara-se que foram entretanto realizadas diligências de prova requeridas pela arguida, concretamente foram inquiridas as testemunhas por si arroladas, no dia 15 de Janeiro de 2010 e 19 de Janeiro de 2010 (fls. 45 e 46), facto igualmente conducente à verificação da interrupção do prazo de prescrição [art.º 28.º, n.º 1, al. c), do RGCO].

Interrupção a emergir ainda com a decisão da autoridade administrativa e a respectiva comunicação ao recorrente, por força das disposições conjugadas das als. a) e d) do mesmo normativo, que ocorreram, respectivamente, em 23 de Janeiro de 2012 e em 13 de Fevereiro de 2012 (fls. 48 a 79).

Acresce, por fim, não colher a invocação da recorrente no sentido em que ao menos pela aplicação do regime previsto no art.º 28.º, n.º 3, do RGCO, já se encontraria prescrito o procedimento contra-ordenacional.

Reza esse normativo que A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.

Concedendo, por mera hipótese de raciocínio, a colação do regime do prazo de prescrição de três anos [previsto no citado art.º 40.º, n.º 2], curial o decurso então do prazo de quatro anos e seis meses, ou seja, data não concretamente apurada anterior a Setembro de 2013.

Tudo razões sucintas para que se considere improcedente este primeiro fundamento do recurso.

3.3. Segmento seguinte a reclamar ponderação o que contende com a nulidade da decisão recorrida.

A recorrente descortina a emergência deste vício na decisão da autoridade administrativa por falta de indicação do facto desvalioso à arguida e por falta de motivação. Prossegue, na verdade, que a mesma não concretiza os resíduos sólidos ou de outra natureza a que se reporta e também não refere concretamente as provas obtidas, quanto à hipotética queima, nem faz, logicamente, o seu exame crítico, violando por tudo isto o consignado pelos art.º 58.º, n.º 1, al. b), do RGCO, e 374.º, n.º 2 e 379.º, estes do Código de Processo Penal. Consequência, a devolução dos autos àquela entidade administrativa a fim de que sane os vícios detectados [Assento n.º 1/2003].

Constitui entendimento comummente acolhido aquele segundo o qual à fase administrativa de um processo contra-ordenacional, como é o em causa, não presidem exactamente os mesmos princípios que estão subjacentes ao processo criminal, uma vez que, nesse momento, a imputação dos factos susceptíveis de integrar o cometimento de uma contra-ordenação não equivale à prolação de uma acusação, como se em processo penal estivéssemos. O que resulta do disposto no art.º 62.º, n.º 1, parte final, do RGCO: só com a apresentação pelo Ministério Público ao tribunal dos autos provenientes da autoridade administrativa estamos perante uma situação semelhante ou equivalente à prolação de uma acusação. O auto de notícia ou a notificação do arguido para se pronunciar, ser ouvido e exercer o seu direito de defesa não corresponde a uma acusação e, por conseguinte, ulterior discrepância que eventualmente emirja, só por si, nenhuma nulidade ou irregularidade faz nascer, sem mais.

Exigência a respeitar apenas a de uma narração, ainda que sintética, devido à simplicidade e celeridade que norteiam a fase administrativa, e que permita ao arguido efectuar um juízo de oportunidade sobre a conveniência ou necessidade de impugnar judicialmente a decisão e posteriormente, já em sede de impugnação judicial, possibilite ao tribunal conhecer e aferir sobre o processo lógico da formação da decisão administrativa e respectivos fundamentos.

Situação distinta a da decisão judicial que conhece da impugnação apresentada a qual terá sim que obedecer aos requisitos previstos no art.º 374.º, do Código de Processo Penal, e conter a enumeração dos factos provados e não provados que permitem a fixação do objecto do processo e o respeito pelo princípio do ne bis in idem[5].

O que também decorre da conjugação do art.º 64.º, n.º 4 do RGCO quando impõe a fundamentação de facto da decisão judicial, com os art.ºs 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, onde se estabelece a necessidade de fundamentação de facto e de direito dos actos decisórios em geral e com o art.º 208.º, n.º 1, da Lei Fundamental, que consagra imperativamente a necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais.

O citado art.º 58.º define os requisitos da decisão condenatória, emanada pela entidade administrativa competente, na sequência da verificação de uma contra-ordenação e no seguimento do respectivo procedimento.

Como impõe o respectivo n.º 1, tal decisão deve conter a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, a coima e as sanções acessórias.

Tal decisão não pode, contudo, ser avaliada sob a mesma perspectiva ou com o mesmo crivo que seria utilizado para a apreciação de uma sentença criminal.
Escreveu Eduardo Correia
[6], que «a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal.»

Donde que se não mostre exigível, neste tipo de processos, cuja densidade é francamente inferior relativamente aos processos criminais, a adopção de procedimentos absolutamente rigorosos, como nestes deve ocorrer.

Em linha salientou-se nesta Relação de Coimbra[7]: «o que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial possibilitar ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa.»

Ainda uma nota para relembrarmos a consagração constitucional [art.º 32.º, n.º 10], do direito de audição e defesa do arguido nos processos de contra-ordenação. Princípio que o legislador ordinário recolheu no art.º 50.º, do RGCO, sob a epígrafe Direito de audição e defesa do arguido, estabelecendo que Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

Na posse destes simples considerandos, que dizer?

Adiantamos que nada mais além do sufragado, com propósito, pela decisão da M.ma Juiz a quo. Com efeito:

A Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais.

Por contra-ordenação ambiental deve entender-se todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima [art.º 1.º, n.º 2].

Sendo que a categoria de legislação e regulamentação ambiental inclui toda a que diga respeito às componentes ambientais naturais e humanas, tal como enumeradas na Lei de Bases do Ambiente [art.º 1.º, n.º 3].

Contra-ordenações ambientais reguladas por essa mesma Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações [art.º 2.º].

Nesta perspectiva, a disciplina inserta no Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, configura legislação ambiental, como decorre do respectivo preâmbulo, integrando as contra-ordenações aí previstas e sancionadas a categoria de contra-ordenações ambientais, como consequência ao abrigo do regime definido pela Lei n.º 50/2006, e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações.

No intuito de aferir da validade da descrição factual efectuada pela administração na decisão condenatória importará, em primeira linha, verificar dos pressupostos à verificação da contra-ordenação imputada à arguida.

Nos termos dos art.ºs 13.º, n.º 1 [Proibição da queima a céu aberto], e 34.º, n.ºs 2, al. b), e 3 [Contra-ordenações e coimas], do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril:

1. É expressamente proibida a queima a céu aberto de quaisquer resíduos, na acepção do Decreto-Lei n.º 239/97, de 9 de Setembro, bem como de todo o tipo de material designado correntemente por sucata. [art.º 13.º]

2. Constitui contra-ordenação grave, punível com coima de € 500 a € 3700, no caso de pessoas singulares, e de € 5000 a € 44 800, no caso de pessoas colectivas:

b) A violação da proibição de queima a céu aberto prevista no n.º 1 do artigo 13.º;

3. A tentativa e a negligência são puníveis, sendo nesse caso reduzidos para metade os limites mínimos e máximos das coimas referidos no presente artigo.[art.º 34.º]

Conforme citado Decreto-Lei n.º 239/97 Resíduos eram quaisquer substâncias ou objectos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer, nomeadamente os previstos em portaria dos Ministros da Economia, da Saúde, da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente, em conformidade com o Catálogo Europeu de Resíduos, aprovado por decisão da Comissão Europeia.

Este Catálogo Europeu de Resíduos foi, entretanto, substituído pela Lista Europeia de Resíduos prevista na Portaria n.º 209/2004, de 3 de Março, ao passo que aquele Decreto-Lei n.º 239/97 foi revogado pelo art.º 80.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, dispondo o seguinte n.º 2 que As remissões legais e regulamentares para os diplomas identificados no número anterior consideram-se feitas para o presente decreto-lei e para a legislação e regulamentação complementar nele previstas.

Ou seja, por força deste normativo, a remissão do art.º 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, para o Decreto-Lei n.º 239/97, de 9 de Setembro, passou a fazer-se para as disposições correspondentes do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro.

Neste, a definição de resíduos é como segue:

“Artigo 3.º Definições

Para os efeitos do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:

(…)

u) «Resíduo» qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer, nomeadamente os identificados na Lista Europeia de Resíduos ou ainda:

i) Resíduos de produção ou de consumo não especificados nos termos das subalíneas seguintes;

ii) Produtos que não obedeçam às normas aplicáveis;

iii) Produtos fora de validade;

iv) Matérias acidentalmente derramadas, perdidas ou que sofreram qualquer outro acidente, incluindo quaisquer matérias ou equipamentos contaminados na sequência do incidente em causa;

v) Matérias contaminadas ou sujas na sequência de actividades deliberadas, tais como, entre outros, resíduos de operações de limpeza, materiais de embalagem ou recipientes;

vi) Elementos inutilizáveis, tais como baterias e catalisadores esgotados;

vii) Substâncias que se tornaram impróprias para utilização, tais como ácidos contaminados, solventes contaminados ou sais de têmpora esgotados;

viii) Resíduos de processos industriais, tais como escórias ou resíduos de destilação;

ix) Resíduos de processos antipoluição, tais como lamas de lavagem de gás, poeiras de filtros de ar ou filtros usados;

x) Resíduos de maquinagem ou acabamento, tais como aparas de torneamento e fresagem;

xi) Resíduos de extracção e preparação de matérias-primas, tais como resíduos de exploração mineira ou petrolífera;

xii) Matérias contaminadas, tais como óleos contaminados com bifenil policlorado;

xiii) Qualquer matéria, substância ou produto cuja utilização seja legalmente proibida;

xiv) Produtos que não tenham ou tenham deixado de ter utilidade para o detentor, tais como materiais agrícolas, domésticos, de escritório, de lojas ou de oficinas;

xv) Matérias, substâncias ou produtos contaminados provenientes de actividades de recuperação de terrenos;

xvi) Qualquer substância, matéria ou produto não abrangido pelas subalíneas anteriores;”

Atentando-se na definição legal, a contra-ordenação imputada à arguida pressupõe a verificação dos seguintes elementos objectivos:

1) Queima a céu aberto;

2) Que os produtos queimados sejam resíduos, na acepção do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, bem como de todo o tipo de material designado correntemente por sucata.

Em termos subjectivos, a contra-ordenação pode ser praticada a título de dolo ou de negligência.

Concede-se ser parca a descrição feita na decisão administrativa dos factos imputados à arguida.

Porém, como começado por referir-se, curial é que, malgré tout, preencham os apontados elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito contra-ordenacional.

A resposta, dissemo-lo já, é afirmativa. Vejamos porquê.

Na alínea e), a autoridade administrativa refere a queima de resíduos e, na alínea d), descreve que o local em questão é um terreno.

Ora, pese embora a insuficiência descritiva mencionada, face à evidência de se tratar de uma vulgar “queima a céu aberto”, verdade é a apreensibilidade denotada inclusive pela arguida que sequer se insurgiu contra esta parte da factualidade objectiva, apenas o fazendo relativamente ao elemento objectivo acima identificada como n.º 2, ou seja a definição dos resíduos encontrados no local.

Já no que concerne, pode ler-se na alínea b) da factualidade provada que no local estava um “amontoado de resíduos provenientes da actividade de reparação de veículos”.

Sem que se nos depare uma redacção particularmente incisiva, assumindo contornos algo genéricos, certo é referir-se que os resíduos em causa eram oriundos da actividade de reparação de veículos. Esta comporta no senso comum, peças inutilizadas, pneus, plásticos, enfim, tudo aquilo que compõe um veículo e que já não é reutilizável. Por outro lado, ela é também a noção de sucata que, como enfatiza a decisão recorrida pode ser entendida como “1. Nome genérico de toda a espécie de artefactos metálicos, fora de uso, que podem ser refundidos e entregue o metal de novo à indústria. 2. Depósito de artefactos ou aparelhos deteriorados. = FERRO-VELHO 3. [Por extensão] Aquilo que está inutilizado ou que tem pouco valor.”

Ou seja, os tais resíduos provenientes da actividade de reparação de veículos reconduzem-se à definição de sucata e, desta forma, integram o segundo elemento do tipo objectivo.

Acresce, como bem continua a decisão sub judicio, que, mesmo que se entendessem como sucata apenas os objectos metálicos provenientes da tal actividade de reparação – deixando de fora os pneus e plásticos – sempre o conceito de resíduos estava devidamente preenchido, agora ex vi da remissão operada para o Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, concretamente seu art.º 3.º, al. u), xiv), o qual identifica como resíduos os produtos que não tenham ou tenham deixado de ter utilidade para o detentor, tais como materiais de oficinas.

Isto é, seja por integrar o conceito de sucata, seja por se incluir numa das definições do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, está factualmente preenchido na decisão o 2.º elemento do tipo objectivo da contra-ordenação imputada à arguida.

Em termos subjectivos, a autoridade administrativa considerou (fls. 53 e 54) que “um homem médio, colocado nas circunstâncias de tempo e lugar da arguida, deveria prever que os resíduos deveriam ser encaminhados para um lugar apropriado e não ser destruídos através de uma queimada, para além de que deveria prever que uma queima a céu aberto pode colocar em perigo pessoas e bens” e “houve omissão de um dever de cuidado, de diligência, por parte do arguido, que com o seu comportamento não evitou a realização dos factos típicos contra-ordenacionais”, sendo que, pese embora esta factualidade não se encontre elencada juntamente com a demais atinente ao elemento objectivo, não deixa de poder ser considerada como tal.

Conclusão, consequentemente, a de que igualmente perfectibilizado o indispensável elemento subjectivo da infracção na decisão administrativa.

Inverificado o primeiro segmento da nulidade denotado pela arguida, outro tanto sucede com o segundo deles, qual seja da falta da sua fundamentação, “posto não indicar concretamente as provas obtidas – quanto a hipotética queima – nem fazer tão pouco o exame crítica das provas que serviram para fundamentar a convicção do decisor.”

Denotando, é certo, alguma amálgama entre fundamentação de facto e fundamentação de direito, lendo-se a decisão administrativa certo é todavia que, de forma breve, se descortina a razão pela se concluiu pela prova dos factos elencados, designadamente a fls. 73, os quais que se referem aos elementos objectivos da infracção. Especificando, escreveu-se que a autoridade administrativa fundou a sua convicção “tendo por base os factos vertidos no Auto de Notícia (…) assim como no registo fotográfico junto ao Auto por Contra-Ordenação” (fls. 73).

No que respeita ao elemento subjectivo, decorrendo – como qualquer elemento subjectivo – da factualidade dada como provada atinente ao elemento objectivo, posto que se trata de uma realidade não directamente apreensível, também ele foi sopesado e considerado na mesma decisão, como resulta de fls. 76, classificando-se mesmo sob uma forma menos intensa, pois que negligente.

Tudo a determinar que se não descortine na decisão administrativa nenhuma das nulidades que a recorrente lhe opôs.

3.4. Recorrente que descortina na mesma decisão a emergência de dois dos vícios prevenidos pelo art.º 410.º, do Código de Processo Penal, quais sejam de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [seu n.º 2, al. a)] e de contradição insanável da fundamentação [mesmo n.º 2, mas sua al. b)].

Vícios que, sabe-se, hão-de configurar-se sem apelo a quaisquer elementos externos à própria decisão, e traduzidos (o primeiro) em se colher da decisão recorrida a falta de elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, e (o segundo) quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que tal fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.

In casu a alegação pretextada pela recorrente a propósito mais não redunda do que numa mera “roupagem”, destrinçada da que antecede pela atribuição de um distinto e pretenso diferente vício.

Na realidade, embora a coberto dos vícios mencionados o que almeja é descortinar na decisão recorrida as nulidades que antes abordámos, denegando a sua verificação.

A decisão recorrida mostra-se, dissemo-lo, com factualidade provada bastante e igualmente fundamentada nos termos sobreditos.

Donde que também claudique este fundamento do recurso da arguida.

3.5. Arguida que, acto contínuo, vislumbra na decisão recorrida a preterição ao disposto no art.º 72.º-A, do RGCO.

No concreto segmento que ora controverte, consta dessa decisão que, e citamos «Quanto à coima aplicável, de acordo com os artigos acima transcritos, por se tratar de uma pessoa colectiva e de uma situação de negligência, a contra-ordenação por que a arguida deve ser condenada é punida com coima de € 2.500 a € 22.400.

O artigo 72.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro consagra o princípio da proibição da reformatio in pejus, o que significa que, caso o arguido impugne a decisão administrativa no seu exclusivo interesse, não pode o Tribunal condená-lo em sanção mais grave do que a aplicada pela autoridade administrativa.

Contudo, este princípio tem uma derrogação quando a situação económica do arguido tenha melhorado, ou seja, o Tribunal pode aplicar uma coima mais grave que a aplicada pela autoridade administrativa quando a situação económica do arguido tenha melhorado de forma sensível entre o momento da decisão administrativa e o momento da decisão judicial (artigo 72.º-A, n.º 2).

De acordo com a factualidade apurada pela autoridade administrativa, a arguida, no ano de 2008, declarou um prejuízo de € 29.899,12, sendo este o único elemento utilizado para aferir da situação económica da arguida.

Considerando o facto 7, a arguida, no exercício de 2011 não só não teve qualquer prejuízo como, inclusivamente, teve lucro tributável, no montante de € 569,54, pelo que não pode deixar de se concluir que a sua situação melhorou de forma sensível entre o ano de 2008 e o de 2011.

Face a tal melhoramento, nada obsta a que o Tribunal, tendo em consideração a mais recente situação económica da arguida, lhe aplique uma coima mais grave.

Por outro lado, a Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, tem uma norma especial quanto a esta matéria, que permite a reformatio in pejus (artigo 75.º) pelo que, mesmo que não houvesse uma alteração da situação económica da arguida – que existe – sempre seria admissível a condenação em coima superior à aplicada na decisão administrativa, por força do mencionado normativo (sendo que a arguida foi advertida da inaplicabilidade da reformatio in pejus na parte final da decisão administrativa).

Face ao exposto, tudo ponderado, o Tribunal entende ser justo e adequado aplicar à arguida uma coima de € 3.000 (três mil euros).» (sublinhados nossos)

Visto o último sublinhado referido logo se alcança que in casu não era vedado ao Tribunal a quo proceder, como o fez, a uma eventual reformatio in pejus, agravando a condenação que antes fora imposta à arguida; isto pela singela razão de que está em causa contra-ordenação ambiental, com o regime específico constante do citado art.º 75.º, logo arredio ao convocado art.º 72.º-A, do RGCO.

Agravação da coima que a M.ma Juiz a quo justificou dever fazer-se atentando na sensível melhoria da situação económica da arguida denotada e plasmada entre os documentos que são fls. 27/30 – junto pela própria arguida a instância da autoridade administrativa (despacho de fls. 2) –, bem como fls. 149/153 – este junto oficiosamente (despacho judicial de fls. 134) –, traduzidos nas declarações para efeitos de IRC da recorrente reportadas aos anos de 2008 e 2011, e das quais perpassa, respectivamente, um prejuízo fiscal de € 29.899,12 e um lucro tributável de € 569,54.

Documentos, acresce, ambos elaborados pela própria recorrente e que assim não pode invocar a preterição do contraditório quanto a eles.

Seja, pois, da improcedência também deste fundamento do recurso.

3.6. Última questão decidenda então a de apurarmos se a sanção devida à arguida deveria ser a imposição de uma mera admoestação, nos termos do art.º 51.º, n.º 1, do RGCO, pois, sustenta, estamos perante uma contra-ordenação de reduzida gravidade, sem prejuízo ou dano efectivo para o ambiente, nem benefício económico para a recorrente, como todas as circunstâncias envolventes do caso e do meio o demonstram.

Tem sido entendido que, pese embora a inserção sistemática do preceito em causa no Capítulo III, daquele Diploma Legal – “Da aplicação da coima pelas autoridades administrativas”, é de entender que a referência a “entidade competente” usada na redacção do referido normativo leva a que a admoestação possa ser aplicada, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso judicial da decisão administrativa.

No caso, o tribunal não ponderou da aplicabilidade, ou não, de tal pena.

A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal [art.º 60.º, n.º 4, do Código Penal].

No processo de contra-ordenação, a admoestação é proferida por escrito [art.º 51.º, n.º 2 do RGCO].

Dispõe o elencado art.º 51.º, mas seu n.º 1 que, Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.

Assim, a aplicação da admoestação – como autêntica coima de substituição – no processo de contra-ordenação depende de ser reduzida a gravidade da infracção e da culpa do agente[8].

E, por isso, conserva esta sanção um carácter meramente simbólico – o que até justifica que o Código de Processo Penal omita qualquer norma regulamentadora da execução da mesma –, o que não recomenda, de todo em todo, a sua aplicação in casu pois estamos perante uma contra-ordenação grave, logo insusceptível de ser qualificada de reduzida, sucedendo que a recorrente violou uma elementar regra legal de protecção do meio ambiente procedendo à queima a céu aberto de resíduos/sucata resultantes do exercício da sua actividade industrial.

Conclui-se, assim, e sem quaisquer outras considerações, pela não verificação dos requisitos de que depende a aplicação da admoestação no processo de contra-ordenação, assente ainda que comungamos da preocupação do Professor Figueiredo Dias quando escreve o seguinte[9]:

«O fundamento e a eficácia político-criminais de uma pena de substituição como a nossa pena de admoestação são, para o direito penal dos adultos de que aqui exclusivamente se trata, duvidosos e contestáveis.

A medida é indiscutivelmente de saudar e de apoiar num direito como o tutelar de menores (OTM, artigo 18.º, a)[10], ao qual é em absoluto estranho o cariz punitivo (…). Já porém, no direito penal de adultos onde a dimensão punitiva da pena, se bem que exclusivamente justificada por razões de prevenção, é irrenunciável, a pena de admoestação, comprimida entre as verdadeiras penas de substituição, por um lado, e a dispensa de pena, por outro, surge como questionável e, na verdade (na generalidade dos casos), dispensável.»

Se tal assim é no mundo dos adultos/pessoas singulares, também o é no mundo das empresas (pessoas colectivas) em que a própria admoestação – apesar de prevista, não o ignoramos – não terá grande vocação incidental e se calhar grande eficácia (pois as “caras” das pessoas colectivas esbatem-se em frias e distantes inscrições em registo comercial, mutáveis q.b.)[11].

Face ao expendido, concluímos não ser caso de substituição da coima aplicada pela reclamada admoestação.


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IV. Dispositivo.

Em face do exposto, decidimos negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela arguida, com a taxa de justiça fixada em 3 UCs [art.º 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi dos art.ºs 2.º da Lei n.º 50/2006 e 74.º, n.º 4, do RGCO, e 8.º, n.º 4 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais].


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Coimbra, 6 de Fevereiro de 2013



[1] No uso de competência delegada.
[2] Vulgo RGCO, doravante.
[3] «Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões
[4] Art.º 41.º, do RGCO:
«1. Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma
[5] No sentido de que a sentença que conhece da impugnação judicial obedece aos requisitos previstos no elencado art.º 374.º, o Ac. desta Relação de Coimbra, de 6 de Março de 1997.
[6] “Direito penal e de mera ordenação-social”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º XLIX, 1973, pág. 268.
[7] Ac. de 4 de Junho de 2003, in Colectânea de Jurisprudência, T III, pág. 40.

[8] Cfr., a propósito, o consignado no Ac. desta Relação de 10 de Março de 2010 sobre esta «sanção» (Processo n.º 918/09.5 TBCBR.C1): «Algumas dúvidas surgiram na doutrina quanto à natureza da admoestação estabelecida neste normativo, nomeadamente se se trata de uma «sanção de substituição» aproximativa à «dispensa da pena», entendendo-a como o equivalente à “dispensa de coima” (Santos Cabral e Oliveira Mendes, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Coimbra Editora, 2009, p. 174), como uma sanção autónoma de substituição da coima (António Beça Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 8ª edição Coimbra, 2009, pp. 27 e 129) ou antes como um «acto preparatório do arquivamento dos autos ditado pelos princípios da oportunidade e da proporcionalidade e não recorrível» (Frederico Lacerda da Costa Pinto, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VII, fascículo 1 p. 92).

Pese embora o pouco esclarecedor quadro normativo que envolve a «admoestação» no domínio do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (Decreto Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro) entendemos que o modo como o legislador estabeleceu o regime da admoestação não pode deixar de ser visto ainda como uma medida sancionatória de substituição da coima, admissível em qualquer fase do processo (administrativa e judicial) e por isso passível de ser aplicada nesta fase processual, desde que verificados os seus pressupostos. Repare-se que o legislador legitima a «entidade competente» para aplicar a medida, numa afirmação conceptual pouco comum mas nem por isso possível de ser circunscrita à entidade administrativa com competência para aplicar a coima essa possibilidade.

Por outro lado não se encontra qualquer justificação dogmática para impedir o funcionamento da admoestação como medida de substituição à coima na fase jurisdicional do processo de contra-ordenação, verificados os pressupostos substantivos da sua aplicação. É ainda a concretização do princípio da necessidade das sanções que perpassa no ordenamento sancionatório penal e contra-ordenacional que se faz sentir.
Daí que a admoestação a que se alude no artigo 51.º do RGCO, não trata apenas de uma sanção/acto susceptível de ser aplicado na fase administrativa do processo mas, independentemente de o ser, é também uma verdadeira sanção de substituição da coima, traduzida na sua dispensa, aplicada na fase judicial, desde que verificados determinados pressupostos.
[9] In Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Edição Aequitas/Editorial Notícias, 1993, fls. 388.

[10] Entretanto revogado tal normativo, bem como todos os art.ºs 1.º a 145.º da OTM, por força da entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2001, do Novo Direito das Crianças e Jovens, levado a cabo pelas Leis n.ºs 147/99, de 1 de Setembro e 166/99, de 14 de Setembro.
[11] Cfr. Ac desta Relação de 27 de Junho de 2012, in processo n.º 49/12.0 TCBVL.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Paulo Guerra.