Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/13.9TBTBU-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
SISTEMA NACIONAL DE CONTABILIDADE
RISCO DE COBRANÇA
PERDAS POR IMPARIDADE
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.186 Nº2 CIRE, DL Nº 158/2009 DE 13/7
Sumário: 1. O SNC passou a definir algumas situações em que se poderá estar perante um risco de cobrança, através da análise de dados observáveis, dos quais resultará a necessidade de efetuar, ou não, o reconhecimento da perda por imparidade.
2. Existindo uma evidência objetiva de que determinado crédito é incobrável, nomeadamente alguma das previstas nas als. a) a f), do parágrafo 27 da NCRF 27, o reconhecimento da respetiva perda por imparidade constituiu, não uma opção contabilística, mas uma obrigação para a empresa.
Decisão Texto Integral:                                                                                                

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

 Decretada a insolvência de H (…), S.A., por sentença de 17 de Dezembro de 2012, nela foi determinada a abertura do presente incidente de qualificação de insolvência relativamente à insolvente.

O credor S (…), Lda., pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, alegando, em síntese:

os administradores da insolvente não diligenciaram, pelo menos judicialmente, para cobrar os créditos que constam nos balanços nos últimos três anos, sendo que um deles pertence a uma sociedade de que é sócio o marido da administradora da insolvente (…) e pai das restantes administradoras; este crédito, sem perspetiva de recuperação, deveria ter sido provisionado de acordo com as boas regras contabilísticas;

a insolvente vendeu mercadorias por menos de 50% do respetivo custo;

a insolvente não tinha contabilidade organizada, ou, pelo menos, tal contabilidade não parece verosímil já que os elementos da mesma quanto ao passivo não coincidem com os credores relacionados pela insolvente nos termos do art. 24.º do Cire;

até ao presente, a requerente não foi notificada dos esclarecimentos dados pela insolvente relativamente ao destino dado aos bens próprios vendidos em 2011, havendo por parte das administradoras uma clara violação dos seus deveres de apresentação e colaboração.

face à diminuição dos capitais próprios da insolvente, quando encerraram a loja que a requerente explorava, as administradoras conheciam a situação da empresa, e deveriam ter-se apresentado à insolvência, tendo o incumprimento deste dever determinado o agravamento da situação de insolvência e impedido os credores de satisfazer pelo menos parcialmente os seus créditos;

a insolvente incumpriu o dever de elaborar e entregar as contas a anuais, de as submeter à devida fiscalização e de as depositar na CRC, o que não acontece desde o exercício de 2010.

Conclui, verificarem-se as previsões das alíneas a), c), f), h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, e também das alíneas a) e b) do n.º 3 da mesma disposição legal, o que determina a qualificação da insolvência como culposa, devendo ser por ela afetadas as administradoras, (…).

O Administrador da Insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita.

Referiu para tanto que, apesar de a insolvente ter incumprido o dever de manter a contabilidade organizada, não se pode depreender que esse facto tenha sido determinante para a insolvência da devedora, que não existem elementos que permitam concluir que a insolvente tenha dissipado o seu património, que tenha utilizado as especiais relações com o cliente angolano em prejuízo da insolvente ou dos seus credores, ou que incumpriu o dever de se apresentar à insolvência.

O Ministério Público pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa.

Salientou, para o efeito, que a insolvente incumpriu o dever de manter a contabilidade organizada e violou o seu dever de colaboração, já que não prestou os esclarecimentos a que se obrigou na Assembleia de Credores quanto ao destino dado ao produto dos bens próprios vendidos em 2011. Para além disso, cessou a sua atividade sem se apresentar à insolvência, o que deveria ter feito porque, já no ano de 2009, apresentava um resultado líquido do período negativo, tendo com isso agravado o seu passivo, desde logo através da acumulação dos juros sobre os montantes em dívida a terceiros.

Defende estarem verificadas as previsões do art. 186.º, n.º 2, al. i), e n.º 3, als. a) e b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Citada a devedora e as requeridas (…) vieram estas deduzir oposição, com os seguintes fundamentos:

a administração efetiva da insolvente era exercida em exclusivo pela requerida (…) pelo que na hipótese de a insolvência vir a ser qualificada como culposa tal classificação não deverá afetar as oponentes (…) e (…);

as requeridas prestaram toda a colaboração devida ao administrador da insolvência, reunindo com este e prestando informações através do técnico oficial de contas da insolvente;

a insolvente optou pela sua dissolução por considerar que não estava em situação de insolvência, já que o seu ativo era superior ao seu passivo, estando a decorrer o prazo da liquidação quando foi requerida a insolvência, não tendo incumprido o dever de se apresentarem à insolvência;

mesmo que se entendesse que tinham incumprido esse dever, inexiste nexo causal entre esta eventual violação e a criação ou agravamento da insolvência, tal como sucede com o incumprimento da obrigação de depositar as contas anuais na Conservatória.

Concluíram pela qualificação da insolvência como fortuita.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:

a) Qualificar como culposa a insolvência de H (…), S.A.;

b) Julgar afetadas pela qualificação as administradoras (…);

c) Declarar (…) inibidas para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, bem como declarar as requeridas inibidas, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas requeridas (…) e condená-las na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

e) Condenar as requeridas (…), solidariamente, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor constante da lista de créditos reconhecidos apresentado pelo administrador da insolvência, até às forças dos respetivos patrimónios.


*

Não se conformando com a mesma, as requeridas dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

(…)


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O Ministério Público apresentou contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, as questões a decidir são unicamente as seguintes:
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

“1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões ;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

A criação de um tal ónus de alegação a cargo do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação, encontra-se justificada no preâmbulo do Dec. Lei nº 39/1995, de 15.02 (que veio estabelecer a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida): “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

(…)

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A. Matéria de Facto
São os seguintes os factos dados como provados pelo juiz a quo e que não foram objeto de qualquer alteração:
1. A insolvente é uma sociedade e anónima com sede na Rua (...) Tábua, NIPC (...) , e com o capital social de € 50.000,00.
2. O objeto social da insolvente é a importação, exportação e comércio a retalho de vestuário.
3. São membros do conselho de administração da insolvente as acionistas (…) (Presidente), (…) (Vogal) e (…) (Vogal).
4. A insolvente foi constituída em 17 de dezembro de 2002[2], sob a denominação H (…), Lda., com o capital social de € 5.000,00, titulado por duas quotas de € 2.500,00 cada, pertencentes a D (…) Limited e A (…), Limited.
5. À data da constituição, foram nomeadas gerentes da sociedade as atuais administradoras (…) e (…).
6. Em julho de 2011 foi inscrito o aumento do capital social da insolvente para € 45.000,00, distribuído pelos seguintes sócios: (…), com uma quota de € 10,00, (…), com uma quota de € 5,00, (…), com uma quota de € 5,00, (…), com uma quota de € 24.990,00, e (…)com uma quota de € 24.990,00.
7. Em 6 de setembro foi inscrita no registo a transformação da insolvente em sociedade anónima, com o capital social de € 50.000,00, titulado por 1000 ações com o valor nominal de € 5,00 cada, e a designação dos atuais órgãos sociais.
8. Em março de 2011 a insolvente adquiriu mercadorias à sociedade Século XXI, Lda. no valor de € 20.852,60, das quais pagou € 1.525,47.
9. Em 15 de setembro de 2011 a sociedade deliberou a respetiva dissolução, deliberação esta inscrita no registo no dia 21 de setembro de 2011.
10. Fundamentou tal decisão no facto de “a atividade social tem gerado sucessivos resultados negativos” e “face aos sucessivos prejuízos apresentados”.
11. A insolvente encerrou a única loja/estabelecimento comercial que explorava, sita na Avenida (...) , em Leiria, e para onde a requerida lhe enviava mercadoria.
12. No dia 5 de abril de 2013 a S (…), Lda. requereu a declaração de insolvência da H (…)
13. A H (…) deduziu oposição ao pedido de declaração de insolvência.
14. Na sua oposição, a requerida alegou deter ainda alguma mercadoria no valor de € 112.068,19 e ser titular de um crédito no valor de € 964.530,88 sobre a sociedade M (…) Lda., com sede em Angola.
15. E indicou como seus dois únicos credores a sociedade S (…) Lda. e a sociedade J(…), S.A.
16. A insolvência da H (…) foi declarada por sentença proferida no dia 17 de maio de 2013.
17. No âmbito da assembleia de apreciação do relatório, realizada no dia 8 de julho de 2013, solicitou-se à insolvente para prestar esclarecimentos acerca da titularidade do imóvel arrendado onde se encontravam os seus bens móveis e sobre o destino dado ao produto dos bens próprios vendidos no último ano de atividade.
18. A insolvente, por requerimento de 7 de agosto de 2013, informou que o imóvel onde se encontravam os bens móveis da insolvente é propriedade das sociedades (…) S.A. e (…), S.A.
19. O administrador da insolvência remeteu à insolvente, em 3 de setembro, 18 de outubro de 2013 e 12 de novembro de 2013, e-mails insistindo pelo esclarecimento do destino dos bens vendidos no ano de 2011. 
20. A insolvente nunca prestou esclarecimentos sobre o destino dos bens vendidos em 2011.
21. A insolvência veio a ser declarada por insuficiência da massa, em virtude de o administrador da insolvência apenas ter logrado apreender bens no valor de € 100,00.
22. A insolvente não juntou aos autos o documento previsto no art. 24.º, n.º 1, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
23. O administrador da insolvência teve acesso às demonstrações financeiras da insolvente através da consulta das declarações de Informação Empresarial Simplificada referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, últimas declarações entregues pela insolvente.
24. De 2009 para 2010 a insolvente viu aumentar ligeiramente os seus proveitos, tendo registado em 2009 o valor de € 494.005,39 e € 502.021,77 em 2010, os quais no ano de 2011 caíram para € 175.612,98.
25. Ao nível de custos, a devedora registou em 2009, 2010 e 2011 os seguintes valores: € 559.337,45, € 596.196,69 e € 563.773,07.
26. Os resultados líquidos da devedora passaram de € 65.332,06 (negativos) em 2009 para € 94.174,92 (negativos) em 2010 e € 388.160,09 (negativos) em 2011.
27. Em face do que os capitais próprios da insolvente passaram de € 1.259.699,50 para € 1.106.125,55 em 2010 e € 678.236,79 em 2011.
28. A insolvente apresentou a última declaração anual em 31.07.2012 e não chegou a encerrar as contas referentes ao exercício de 2012.
29. As contas da insolvente não estão certificadas por nenhum ROC, nem foram objeto de parecer do órgão de fiscalização.
30. A insolvente não deposita as contas na Conservatória de Registo Comercial desde 2010.
31. De todas as vendas efetuadas nos últimos três anos pela insolvente, num total de € 1.155.392, esta apenas recebeu € 190.000,00.
32. A insolvente nunca reclamou judicialmente a diferença dos montantes supra referidos.
33. Em 2011 a insolvente efetuou vendas no valor de € 175.613, cujo custo foi de € 381.486.
34. A insolvente tem registado nos balanços contabilísticos de 2009 a 2011 um crédito de uma sociedade denominada (…), Lda., com sede em Angola, no valor de € 964,530,88.
35. É sócio dessa sociedade (…), casado com (…).
36. O referido (…) é pai das outras administradoras da insolvente, (…) e (…)
37. Tal crédito nunca foi objeto de reclamação judicial.
38. Este crédito deveria, de acordo com as boas regras contabilísticas, ter sido provisionado.
39. No âmbito da insolvência foram relacionados os seguintes créditos sobre a insolvência: um crédito da Fazenda Nacional, no valor de € 11.765,41, e o crédito da requerente, no montante de € 22.166,05.
40. O técnico oficial de contas da insolvente contactou telefonicamente o administrador judicial, a quem prestou vários esclarecimentos e facultou documentação contabilística.
41. No âmbito do incidente foi por despacho de 24 de março de 2014 determinada a notificação das requeridas para depositarem no tribunal os elementos de contabilidade referentes à insolvente no prazo de 10 dias, com a advertência de que a recusa seria livremente valorada para efeitos probatórios no que concerne aos factos referentes ao cumprimento do dever de manter a contabilidade organizada, e para efeitos de colaboração prestada com o processo insolvencial.
42. A insolvente e as oponentes não deram resposta a esta notificação.
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B. O Direito
1. Se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
A sentença recorrida veio a qualificar a insolvência da requerida como culposa, com fundamento na previsão das alíneas h) e i) do nº2, bem como a das alíneas a) e b), do nº3, do artigo 186º do CIRE.
O Juiz a quo considerou estar demonstrada a prática de irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente (al. h) do nº2 do art. 186º), com base no seguinte raciocínio:
É que a insolvente tem registado nos balanços contabilísticos de 2009 a 2011 um crédito sobre a sociedade (…), Lda., no valor de € 964,530,88, que deveria, de acordo com as boas regras contabilísticas, ter sido provisionado. Conforme esclareceu o administrador da insolvência em sede de audiência de julgamento, a insolvente deveria a ter considerado este crédito como incobrável já nos anos de 2010 e 2011, e provisioná-lo integralmente. Este provisionamento, dado que o crédito representa cerca de 80% do ativo da insolvente, determinaria uma acentuada diminuição do capital próprio da empresa e, consequentemente, que a respetiva contabilidade evidenciasse, já então, uma situação de falência técnica. (…)
E, no caso, a irregularidade cometida mascarou efetivamente a real situação financeira e patrimonial da insolvente, permitindo que a contabilidade passasse uma imagem de solvência quando, na realidade, dela deveria resultar a situação de falência técnica em que a insolvente estaria em 2010 e 2011 se encontrava. Com isso impediu que fosse cognoscível a sua situação patrimonial em geral, o que assume particular relevo no caso por se verificar que o débito para com a requerente da insolvência foi contraído quando já se verificava uma situação de insolvência técnica, que deveria estar refletida na contabilidade”.

Segundo os Apelantes, tal crédito não está provisionado, quer porque a insolvente considerou não ser incobrável, quer porque no ano de 2011 foi, entretanto, deliberada a dissolução da sociedade, sendo que facto de o crédito estar refletido nas dívidas de clientes e não estar provisionado, traduziria uma mera “opção contabilística”, subjetiva e não sindicável.

A questão que aqui se discute respeita a saber se, sendo a insolvente titular de um crédito sobre a sociedade M (…), Lda., no valor de € 964,530,88, na sequência de fornecimentos que lhe efetuou, e encontrando-se registado nos balanços contabilísticos de 2009 a 2011, na conta cliente, sem que o mesmo tenha sido “provisionado”, tal circunstância constituiu uma irregularidade contabilística censurável.

Como refere Jorge Carrapiço[3], não definindo claramente o POC (Plano Oficial de Contabilidade) o que constitui um risco de cobrança, existindo alguma subjetividade no registo dos referidos ajustamentos das dívidas de clientes, a maioria das entidades optava por efetuar os ajustamentos com base nos critérios fiscais definidos pelo Código do IRS, em vez da realidade financeira das várias situações.

Contudo, os critérios de incobrabilidade definidos nos arts. 35º a 36º do Código do IRS[4] destinam-se unicamente a determinar quais os créditos que podem ser deduzidos como custos fiscais – perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis –, sendo que, se só são dedutíveis os créditos que se mostrem provisionados, nem todos os créditos provisionados serão custos dedutíveis para efeitos fiscais.

Substituído o POC pelo SNC (Sistema Nacional de Contabilidade), aprovado pelo DL 158/2009, de 13 de julho, este passou a definir algumas situações em que se poderá estar perante tal risco de cobrança, através da análise de dados observáveis, dos quais resultará a necessidade de efetuar, ou não, o reconhecimento da perda por imparidade.

Segundo o parágrafo 87 da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística (EC), constante do Aviso nº 15652/2009, de 7.09.2009, DR, 2ª Série, uma das condições necessárias para o reconhecimento de um ativo é que seja provável que fluam para a entidade benefícios económicos futuros, ou seja, no caso concreto de um crédito sobre um cliente, é necessário que a entidade tenha uma expectativa de vir a recuperar o crédito devido (valor recuperável).

Tendo em conta aquela premissa, um ativo não deve ser reconhecido quando não for expectável que fluam para a empresa benefícios económicos futuros.

A tal respeito, refere ainda o parágrafo 5 da NCRF (Norma Contabilística e de Relato Financeiro) 12 – Imparidade de Ativos: “Uma entidade deve avaliar em cada data de relato se há qualquer indício de que o ativo possa estar em imparidade. Se existir qualquer indicação, a entidade deve estimar a quantia recuperável do ativo”. O parágrafo 24 da mesma norma refere ainda que se a quantia recuperável de um ativo for menor do que a sua quantia escriturada, a quantia escriturada deve ser reduzida para a sua quantia recuperável (reconhecimento de uma perda por imparidade). O parágrafo 25 é ainda mais específico quanto a tal dever: uma perda por imparidade deve ser imediatamente reconhecida nos resultados.

Recorrendo agora à NCRF 27 – Instrumentos Financeiros, dispõe o seu parágrafo 23 que versa sobre o reconhecimento de uma imparidade em ativos financeiros:

À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.”

Como explicita Ana Cristina Silva[5], não pode ser ignorada a necessidade de se dispor de informação regular sobre os créditos em mora, incluindo o prazo de mora e o valor total, e da probabilidade de se obter o seu pagamento, sobretudo em setores onde é normal a venda a crédito:

“Esta aferição tem de ser realizada no fim de cada exercício, para que as demonstrações financeiras dessa entidade reflitam de forma verdadeira e apropriada a sua posição financeira o seu desempenho e as alterações dessa posição financeira. Está em causa o reconhecimento de perdas por imparidade em relação aos créditos concedidos que não sejam mensurados pelo respetivo valor.

E tal reconhecimento deve ser realizado quando existir uma evidência objetiva de que tal crédito está em imparidade. Não deve o reconhecimento da imparidade ser efetuado apenas no período em que pode tal gasto inerente vir a ser aceite fiscalmente, nomeadamente por causa do período de mora.”

Por sua vez, o parágrafo 24 da citada NCRF 27, enumera algumas situações exemplificativas de evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade:

(a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;

(b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;

(c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria;

(d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;

(e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor;

(f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiros individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.

No parágrafo 26 da citada norma, dispõe-se ainda que “os ativos financeiros que sejam individualmente significativos e todos os instrumentos de capital próprio devem ser avaliados individualmente para efeitos de imparidade”.

“Com a verificação destas evidências objetivas, a entidade passará a reconhecer a perda por imparidade, reduzindo ou anulando na totalidade o valor do ativo, por contrapartida de gastos do período[6]”.

De tais normas extrai-se que a obrigação de reconhecimento de perdas por imparidade (equivalente à anterior “provisão) não constituiu uma “opção” contabilística, como defendem as Apelantes, mas antes uma obrigação.

A tal respeito se pronuncia Ana Cristina Silva:

“Está em causa o reconhecimento de perdas por imparidade em relação aos créditos concedidos que não sejam mensurados ao justo valor. E tal reconhecimento deve ser realizado quando existir uma evidência objetiva de que tal crédito está em imparidade. Não deve o reconhecimento ser efetuado apenas no período em que pode tal gasto inerente vir a ser aceite fiscalmente, nomeadamente por causa do período em mora.[7]

Tal obrigação mais se justificava no caso em apreço, atendendo a que o reconhecimento de perdas por imparidade relativamente ao crédito da (…), Lda., dado o seu elevado montante (964.530,88 €), representando cerca de 80% dos ativos da devedora insolvente, determinaria, como se afirma na sentença recorrida, uma acentuada diminuição do capital próprio evidenciando já em 2010 e 2011 uma situação de falência técnica[8].

É certo que o crédito da (…) como as apelantes insistem em afirmar, estava refletido na contabilidade. Só que estava aí inscrito na conta de clientes, representando um ativo da empresa, o que não refletia claramente a realidade desta, face à situação de mora em que o mesmo se encontrava desde 2009, constituindo tal situação uma evidência objetiva de imparidade, pelo menos ao abrigo da alínea b) do parágrafo 24 da NCRF 27.

E o risco de incobrabilidade já era então manifesto, nomeadamente por se tratar de um cliente estrangeiro, com sede em Angola, Estado que dificulta a saída de capitais para o estrangeiro, levantando inúmeros obstáculos e entraves ao comércio, como salienta o Administrador da Insolvência no seu parecer junto a fls. 19 a 24, dificuldades de que a insolvente estaria ciente (um dos sócios de tal sociedade é pai de duas administradoras da insolvente), tanto mais que nunca instaurou sequer qualquer processo judicial com vista à sua cobrança.

A insolvente deveria assim ter “provisionado” tal crédito ou “reconhecido a respetiva perda por imparidade”, sendo que, não o tendo feito, mascarou a situação da empresa ocultando a situação de insolvência em que se encontraria já, de facto, no ano de 2010, com claro prejuízo para os credores, nomeadamente para o credor/requerente, cujo crédito só se veio a constituir em março de 2011, por desconhecimento da verdadeira situação económico-financeira da insolvente.


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O juiz a quo considerou igualmente verificado o incumprimento reiterado, do dever de colaboração previsto no artigo 186º, nº2, alínea i) do CIRE, com fundamento nas seguintes circunstâncias:

“Está demonstrado que no âmbito da assembleia de apreciação do relatório, realizada no dia 8 de julho de 2013, foi solicitado à insolvente que prestasse esclarecimentos acerca da titularidade do imóvel arrendado onde se encontravam os seus bens móveis e sobre o destino dado ao produto dos bens próprios vendidos no último ano de atividade.

A insolvente não deu resposta a esta última questão, tendo-se limitado a, por requerimento de 7 de agosto de 2013, informar da titularidade do imóvel onde se encontravam os bens móveis da insolvente. E apesar de o administrador da insolvência lhe ter remetido sucessivos e-mails (em 3 de setembro, 18 de outubro de 2013 e 12 de novembro de 2013) insistindo pelo esclarecimento do destino dos bens vendidos, a insolvente nunca prestou tais informações. (…) Também aqui a insolvente e as oponentes silenciaram, não dando resposta a esta notificação.

As apelantes manifestam-se contra este entendimento, alegando que, “como resulta do depoimento prestado pelo próprio AI, as apelantes sempre colaboraram. Sendo que foram entregues ao Administrador Judicial todos os documentos existentes acerca da contabilidade da insolvente, que estão em seu poder.” E, em apoio de tal afirmação, transcrevem várias passagens do depoimento prestado pelo AI. das quais resultaria a pouca importância por este dada aos atrasos ou falta de resposta por parte da insolvente.

Contudo, ainda que no decurso da audiência o AI tenha manifestado uma opinião não muito critica quanto ao modo como a insolvente foi respondendo aos seus apelos, o que releva não é a avaliação que este faz quanto ao grau de censurabilidade do incumprimento do dever de colaboração por parte da insolvente, apreciação que incumbe ao tribunal, mas os factos em que se baseia tal incumprimento, factos estes que as apelantes não põem em causa, não procedendo à impugnação da decisão sobre os mesmos.

Como tal, improcedem, nesta parte, as alegações das apelantes.


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Por fim, o juiz a quo considerou ainda verificado o incumprimento do dever de apresentação à insolvência, previsto no art. 186º, nº3, al. a), do CIRE, apoiando-se na seguinte fundamentação:

A insolvente apresenta resultados negativos do exercício desde 2009, agravados no exercício de 2010, e, segundo as boas regras contabilísticas, deveria ter provisionado o crédito sobre a (…) já em 2009 ou 2010, o que, como supra exposto, teria determinado o reconhecimento de uma situação de falência técnica (superioridade do seu passivo sobre o seu ativo). Estaria já então impossibilitada de cumprir a generalidade das suas obrigações, facto de que teria, ou deveria ter, conhecimento pelo menos no final do exercício de 2010, face à incobrabilidade do aludido crédito, mas que certamente quis escamotear contabilisticamente.

E em vez de se apresentar à insolvência, como era seu dever, no prazo de 60 dias, a insolvente, reconhecendo os sucessivos resultados negativos e prejuízos acumulados, optou pela sua dissolução, via que lhe não estava aberta precisamente por se encontrar já em estado de insolvência. Ao omitir o cumprimento do dever de se apresentar à insolvência, a insolvente contribuiu para o agravamento daquela situação não apenas porque a situação patrimonial da empresa se agravou, embora não significativamente, com o débito de juros, mas sobretudo porque contraiu entretanto a dívida que deu origem ao presente processo, a qual representa parte significativa do passivo da insolvente. Como tal, também por via do art. 186.º, n.º 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve a insolvência ser qualificada como culposa.”

As apelantes negam que a devedora tenha incumprido tal dever, porquanto em Setembro de 2011 deliberaram a dissolução da sociedade, sendo que a insolvente, em Setembro de 2011, não se encontrava em situação de insolvência – a insolvente tinha um passivo no valor de 19.556,41 € e um ativo composto por várias mercadorias (vestuário) do seu comércio, no valor contabilístico de 112.068,19 €, para além de ser titular de um crédito sobre a (…)no valor de 954.564.530,88 €. Tratando-se de uma sociedade com ativo e com passivo, os acionistas tinham de levar a cabo a sua liquidação, nos termos previstos nos arts. 149º e ss. do CSC, cujo terminus se verificaria a 15 de Setembro de 2013.

Ora, quanto aos factos em que se fundamentam para concluir pela sua insolvência, embora tenham impugnado a decisão que os deu como “não provados” (alíneas i) a l) da matéria de facto dada como não provada), tal impugnação veio a ser julgada improcedente.

Por fim sempre se dirá que, se a insolvente tinha, à data da deliberação da dissolução, 15 de Setembro de 2011, como defendem as apelantes, um ativo no valor contabilístico de 112.068,19 € e se estava a tentar vender as mercadorias para, com o produto da venda, poder pagar aos credores sociais, como explica que a 5 de Abril de 2013, data em que a credora Século XXI veio a requerer a declaração da sua insolvência, cerca de um ano e meio depois, não tenha efetuado qualquer abatimento ao passivo, que se mantem exatamente no valor de 19.556,41 €, como é por si reconhecido na sua oposição à declaração de insolvência? Quanto às existências, não só não apareceu qualquer produto de uma eventual alienação das mesmas, como as que foram apresentadas pela insolvente e que foram apreendidas nos autos se encontram avaliadas em 100 €.

A apelação será de improceder na sua totalidade, confirmando-se a sentença recorrida.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.

                                                     Coimbra, 14 de abril de 2015

Maria João Areias ( Relator )

Fernando Monteiro

Luís Cravo

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O SNC passou a definir algumas situações em que se poderá estar perante um risco de cobrança, através da análise de dados observáveis, dos quais resultará a necessidade de efetuar, ou não, o reconhecimento da perda por imparidade.

2. Existindo uma evidência objetiva de que determinado crédito é incobrável, nomeadamente alguma das previstas nas als. a) a f), do parágrafo 27 da NCRF 27, o reconhecimento da respetiva perda por imparidade constituiu, não uma opção contabilística, mas uma obrigação para a empresa.


 


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] E não a 17.02.2012, como, certamente por lapso de escrita, se fez constar da sentença recorrida, erro que aqui se retifica.
[3] “POC – Versus SNC – Clientes de cobrança duvidosa”, consultor da OTOC, artigo disponível in http://www.otoc.pt/downloads/files/1269613199_41_42cont.pdf.
[4] Artigo 35.º
Perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis
1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:
a) As que tiverem por fim a cobertura de créditos resultantes da atividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;
(…).
“Artigo 36.º
Perdas por imparidade em créditos
1 - Para efeitos da constituição da provisão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade se considere devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:
a) O devedor tenha pendente processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou processo de execução, falência ou insolvência;
b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente;
c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.
2 - O montante anual acumulado da provisão para cobertura dos créditos referidos na alínea c) do número anterior não poderá ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:
a) 25% para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;
b) 50% para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;
c) 75% para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;
d) 100% para créditos em mora há mais de 24 meses.

[5] Assessora do Bastonário da OTC, “As perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa”, artigo publicado na Revista Vida Económica, disponível in http://www.otoc.pt/fotos/editor2/ve27junhoacs.pdf.
[6] Jorge Carrapiço, “POC – Versus SNC – Clientes de Cobrança Duvidosa”, local citado.
[7] “As perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa”, local citado.
[8] Como acaba por ser reconhecido pela própria testemunha (…), técnico de contas da insolvente.