Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/19.0GBMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO
CORRECÇÃO DA SENTENÇA
LAPSUS CALAMI
Data do Acordão: 05/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 410.º, N.º 2, AL. B), E 380.º, N.ºS 1, AL B), E N.º 2, DO CPP
Sumário: I – A al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP abrange dois vícios distintos, que são:
- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

II – No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.

III – Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

IV – No caso dos autos, o circunstancialismo verificado, relativo ao imputado crime de condução sem habilitação legal, de ter sido dado como provado que o arguido «conduzia um veículo automóvel», e de, na fundamentação de direito, haver ficado escrito que «o arguido conduzia um ciclomotor», embora evidenciando a existência de uma contradição entre a fundamentação e a decisão, deve ser considerado, em função dos elementos objectivos contidos nos autos, referidos no relatório e na fundamentação de facto da sentença recorrida - os quais se revelam inequívocos quanto ao concreto veículo em causa -, tão só, como lapsus calami, susceptível de correcção, por força do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo sumário supra referenciados, que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira – Juiz 2, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

(...)

            Condenar o arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência aos artigos 121º, n.º 1, n.º 4 e 123º, n.º 1, todos do Código da Estrada, na pena de 10 (dez) meses de prisão

            (…).

            Inconformado, recorre o arguido, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

a) Enferma a sentença recorrida de nulidade insanável porquanto ora refere que o arguido conduziu veículo automóvel sem habilitação legal ora refere que o arguido conduziu ciclomotor sem habilitação legal. A divergência não é anódina pois na 1ª hipótese a pena de prisão vai até um ano. Na 2ª hipótese a pena de prisão vai até 2 anos. Ficando assim por definir qual destas molduras penais é afinal aplicável no caso (conforme ponto 1 deste recurso);

b) A medida concreta da pena de prisão encontrada de 10 (dez) meses é desproporcional face à natureza e gravidade do crime praticado (de delinquência menor) ao grau de ilicitude, do dolo e da culpa que são medianos, reputando-se mais justa uma pena de prisão de 5 (cinco) meses (vide a propósito a confirmação de uma sentença por esta Relação, num caso muito semelhante ao dos autos, na qual se fixou a pena de 6 meses de prisão - Ac. de 16-11-2016, em que foi relator o Senhor Juiz Desembargador Orlando Gonçalves, publicado no site www.dgsi.pt) (conforme ponto 2 deste recurso);

c) Não se apurou o tipo de personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta posterior ao crime. Só, pois, com o relatório social que informe destas condições pessoais, familiares e profissionais é que é possível formular ao arguido uma prognose social favorável ou não, ou seja, só assim será possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão ainda de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (conforme ponto 3 deste recurso);

d) Não se equacionou na douta sentença a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade associada à obrigação de se inscrever numa escola de condução e de frequentar as aulas e exames finais da carta de condução e de programas de sinistralidade perigosa e suas consequências, sendo esta pena de substituição um forte sinal de reprovação do crime em causa, um meio de evitar as consequências perversas da prisão (especialmente curtas) na sua vida social, tendo uma finalidade pedagógica no sentido de melhorar a consciência da necessidade de respeitar os valores que tem violado e de alcançar, de forma responsável, a sua ressocialização (conforme ponto 4 deste recurso);

e) Por último, caso se mantenha a pena de prisão decretada ao arguido, deve a mesma ser ainda assim substituída por prisão por dias livres ou prisão em regime de semidetenção consoante o que melhor se ajustar às exigências de proteção dos bens jurídicos e a reintegração

do agente na sociedade (artigo 40º do CP) concedendo-se assim mais uma oportunidade ao arguido para que este, sentindo o peso dos seus atos ilícitos, sofra de facto o cumprimento da pena, mas que esse cumprimento, não ponha em crise a sua vida futura e a sua normal vivência social (conforme ponto 5 deste recurso).

(…)

            O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que considera verificar-se contradição entre o que ficou provado e a fundamentação de direito e a decisão, pronunciando-se pela parcial procedência do recurso e reenvio do processo à 1ª instância.

Não houve resposta.

Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que deverão ser apreciadas as questões seguintes:

- Nulidade decorrente de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

- Excesso da medida concreta da pena;

- Ausência de averiguação das condições pessoais do recorrente;

- Substituição da prisão por trabalho a favor da comunidade, ou outra medida alternativa.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 4 de Março de 2019, pelas 22h30, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo 19, com a matrícula (…), na Rua D. Sancho I, em Penedono, sem ser titular da necessária carta de condução.

2. O arguido sabia que, não tendo carta de condução, não se encontrava legalmente habilitado para conduzir veículos automóveis na via pública.

3. O arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.

4. Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:

- Processo sumário n.º 798/02.1GTSTB, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática, em 21/12/2002, de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, tendo sido condenado por sentença de 23/12/2002, já transitada em julgado, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 4,00€, já extinta por prescrição;

- Processo Sumário n.º 10/03.6PBLMG, do anterior 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, pela prática, em 07/01/2003, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, tendo sido condenado por sentença de 07/01/2003, transitada em julgado em 22/01/2003, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 2,00€, extinta pelo pagamento;

- Processo Comum Singular n.º 53/03.0TAMDA da anterior Secção única do tribunal Judicial de Mêda, pela prática, em 18/09/2003, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, tendo sido condenado por sentença de 03/11/2004, transitada em julgado em 09/02/2005, na pena de quatro meses de prisão, suspensa por um ano e seis meses, extinta pelo cumprimento;

- Processo Comum Singular n.º 115/05.9TAPRG do primeiro Juízo do tribunal judicial do peso da Régua, pela prática, em 16/04/2004, de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas e serviços, previsto e punido pelo artigo 220.º do Código penal, tendo sido condenado por sentença de 02/05/2006, transitada em julgado em 19/07/2006, na pena de 30 dias de multa à taxa diária de 5,00€;

- Processo Comum Singular n.º 140/04.7GESTB, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática, em 29/03/2004, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, tendo sido condenado por sentença de 22/03/2007, transitada em julgado em 16/04/2007, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 1,50€, já extinta;

- Processo Comum Singular n.º 5/09.6GBMDA, da Secção Única do Tribunal Judicial de Mêda, pela prática, em 22/01/2007, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, tendo sido condenado por sentença de 05/07/2010, transitada em julgado em 02/02/2011, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, posteriormente convertida em prisão subsidiária, extinta pelo cumprimento;

- Processo Comum Singular n.º 11/14.9GBMDA do Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira, J1, pela prática, em 15/04/2014, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º do CP, tendo sido condenado por sentença de 23/09/2015, transitada em julgado em 02/02/2016, na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa pelo mesmo período

- Processo Sumário n.º 398/17.1GBSSB do Juízo de Competência Genérica de Sesimbra, J2, pela prática, em 30/05/2017, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, tendo sido condenado por sentença de 29/06/2017, transitada em julgado em 28/09/2017, na pena de três meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, num total de 540,00€.


Relativamente ao não provado consignou-se na sentença recorrida inexistirem factos não provados com relevo para a decisão da causa.

O julgamento de facto foi fundamentado nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida em julgamento, analisada segundo as regras da experiência comum, e do princípio da livre convicção do julgador, tendo como pano de fundo os princípios da imediação e da oralidade.

A convicção do Tribunal formou-se com base no depoimento da testemunha (…), militar da GNR, na altura dos factos a exercer funções no Posto de Penedono. Este foi o agente da autoridade que elaborou o auto de notícia de fls. 2 e 3, que foi conjugado com o teor dos demais documentos juntos aos autos. A testemunha foi a única presencial, teve conhecimento dos factos e relatou-os de modo coerente, pormenorizada, sem contradições ou hesitações, de forma espontânea e segura. Foi também verosímil, pelo que se considerou credível o seu depoimento.

A testemunha afirmou convictamente que tinham já sido alertados para o facto de o arguido estar a conduzir sem ser portador de título de condução, e que a pessoa que estava a conduzir o veículo em causa era o arguido, a quem deu ordem para parar, e pediu os documentos de identificação e a carta de condução, tendo o arguido apresentado o cartão de cidadão, e afirmado ser portador de título de condução. Todavia, os colegas que se encontravam no Posto territorial fizeram as competentes pesquisas nas bases de dados averiguando que efectivamente o arguido não era titular de qualquer título de condução.

A corroborar o que foi relatado pela testemunha, consta dos autos a informação do IMT a fls. 28 e 29, revelando que a pesquisa efectuada com os dados respeitantes ao arguido é inexistente.

O juízo formulado no tocante aos atinentes ao fim com que o arguido agiu, ao conhecimento e vontade com que actuou, bem como à sua consciência quanto à ilicitude da conduta levada a cabo, foi extraído dos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso

Foi considerado o teor do CRC do arguido, junto aos autos.

            Vejamos então as questões suscitadas pelo recorrente, começado desde logo pela contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício com sede legal na parte final da al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP.

Trata-se, à semelhança das demais previsões do citado nº 2, de vício de oficioso conhecimento pelo tribunal de recurso, abrangido no âmbito da revista alargada, pressupondo-se que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Importa clarificar que o âmbito de afirmação daqueles vícios como nulidades geradoras de reenvio do processo para novo julgamento se limita às situações que impossibilitem a decisão do recurso, eventualidade que foi ressalvada pelo legislador no nº 1 do art. 426º, ao consagrar que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». A expressão sempre que, por existirem os vícios (…) não for possível decidir da causa, (…) é restritiva, decorrendo da interpretação a contrario sensu que embora existindo um dos vícios previstos, se o tribunal de recurso entender que pode decidir da causa, deve fazê-lo. Será assim nas situações em que, devendo conhecer de facto e de direito, seja requerida a renovação da prova e o tribunal de recurso entenda que aquela permitirá evitar o reenvio do processo, como se encontra expressamente previsto no art. 430º, nº 1. Será assim, pelo menos nos casos de verificação do vício da al. c) do nº 2 do art. 410º (erro notório na apreciação da prova), se do processo constarem todos os elementos de prova considerados na decisão de facto ou se, estando a prova documentada (o que actualmente é obrigatório), tiver sido validamente impugnado o julgamento de facto, hipóteses previstas no art. 431º, alíneas a) e b). E também assim será, pelo menos relativamente aos vícios das alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º (contradição insanável …/ erro notório…) se a contradição ou o erro, ainda que patentes, evidenciarem constituir uma das situações previstas no art. 380º, nº 1, b), do CPP, a saber, erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade. O art. 380º constitui um mecanismo de segurança que protege o labor do juiz de lapsos involuntários e sanáveis sem prejuízo para os interessados, tutelando simultaneamente a eficiência do sistema judicial e a sua credibilidade, que seriam afectadas se a rigidez de procedimentos impedisse o aproveitamento de decisões maculadas por um qualquer lapso ou incongruência claramente perceptível e rectificável à luz do senso comum. Na verdade, sendo a escrita um meio de comunicação complexo, orientado para a exteriorização da elaboração intelectual através de uma representação gráfica, pode não traduzir correctamente a construção da sequência lógica subjacente ao raciocínio, seja porque pontualmente não o acompanha, seja porque inadvertidamente o subverte. Nessa medida, devem considerar-se abrangidas por aquela norma todas as situações em que ocorra erro, ainda que reportado ao objecto do processo, bem como casos de obscuridade ou ambiguidade no tratamento de questões concretas, desde que o erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade se evidenciem através de uma leitura global da sentença e a respectiva eliminação não importe modificação susceptível de afectar o fundo da causa, maxime, a decisão proferida.

A questão concretamente suscitada nos autos prende-se com o disposto na al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP.

A referida alínea b) abrange, na verdade, dois vícios distintos:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

 No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível” [1].

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

No caso vertente, depois de ter dado como provado, sob o nº 1 da matéria de facto, que «no dia 4 de Março de 2019, pelas 22h30, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, (…)» e no nº 2 que «o arguido sabia que (…), não se encontrava legalmente habilitado para conduzir veículos automóveis na via pública», o tribunal a quo refere na discussão jurídica da causa que «no caso concreto, decorre da matéria de facto provada que o arguido conduziu um ciclomotor na via pública (…)[2], evidenciando-se assim a existência de uma contradição entre a fundamentação e a decisão. Contudo, logo no início do ponto III, 3.1, da sentença recorrida consta a menção ao (…) art. 3º, nº 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro (…), aliás, transcrito no parágrafo imediatamente seguinte, o que é coincidente com a menção à acusação do M.P. constante do relatório da sentença. A indicação do nº 2 do artigo a que nos reportamos seria incompatível com a incriminação pela condução de ciclomotor, mas corresponde à incriminação pela condução de veículo automóvel. A fundamentação do provado, por seu turno, remete para o auto de notícia, do qual consta que o arguido, na ocasião em que foi fiscalizado, conduzia um veículo automóvel. Na menção da pena abstracta correspondente ao crime vem indicada a moldura penal cominada para o crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal. Por fim, também no dispositivo é mencionado o normativo que pune a condução de veículo automóvel sem habilitação legal.

Isto dito, não restam dúvidas de que a Mmª Juiz teve presente, na elaboração da sentença, que o arguido havia conduzido um veículo automóvel sem habilitação legal e não um ciclomotor, como por lapsus calami, confusão momentânea ou menor atenção, acabou por ser mencionado num curto segmento do texto. A conclusão a retirar é a de que esta contradição, que de facto existe, não reveste natureza insanável, não tendo, pois, aptidão para desencadear o funcionamento do disposto no art. 410º, nº 2, b), do CPP, antes devendo ser tratada como erro susceptível de correcção, nos termos previstos no art. 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2, visto a sua eliminação não contender com o fundo da causa.

Vejamos agora as questões relativas ao fundo da causa:

O art. 3º, nº 2, do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, comina a pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias para quem conduzir veículo automóvel em via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada.

O tribunal recorrido optou pela pena de prisão, graduando-a em 10 meses.

Entende o arguido que a pena concretamente fixada é excessiva, pugnando pela sua redução para uma pena de 5 meses de prisão, eventualmente substituída por trabalho a favor da comunidade associada à obrigação de se inscrever numa escola de condução e de frequentar as aulas e exames finais da carta de condução e de programas de sinistralidade perigosa e suas consequências ou, caso se mantenha a pena de prisão decretada, que esta seja ainda assim substituída por prisão por dias livres ou prisão em regime de semidetenção.

Como é sabido, “são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação” [3], escolha que dependerá essencialmente de considerações atinentes às necessidades de prevenção especial de ressocialização e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

Percorrendo o texto da sentença recorrida na senda do alegado pelo recorrente, verifica-se que a opção pela pena de prisão decorreu, em primeira linha, do facto de o arguido já ter sofrido anteriormente condenações pelo mesmo crime em pena de prisão. Pode ler-se na sentença, a propósito da escolha da pena aplicável, o seguinte: “(…) considerando que o arguido já sofreu várias advertências anteriores que não surtiram qualquer efeito, pois que o mesmo voltou a cometer crimes e crimes da mesma natureza do que presentemente está a ser julgado, tendo já sofrido condenações em penas de prisão pelo mesmo, conclui-se que as penas não privativas da liberdade se mostram totalmente desajustadas (…)”. Essa afirmação, na parte que sublinhámos, se vista à luz dos factos concernentes ao passado criminal do arguido, carece de alguma precisão, uma vez que se verifica que de entre as cinco condenações sofridas por condução sem habilitação legal, apenas duas foram sancionadas com pena de prisão, uma delas, punida com quatro meses de prisão suspensa na sua execução por um ano e seis meses (Processo Comum Singular n.º 53/03.0TAMDA), tratando-se de crime cometido em 18/09/2003, com sentença de 03/11/2004, mediando cerca de 15 anos entre a data daquela condenação e o crime a que se reportam os presentes autos; e a outra, mais recente, por crime cometido em 30/05/2017 (Processo Sumário n.º 398/17.1GBSSB), datando a sentença de 29/06/2017, em que o arguido foi condenado na pena de três meses de prisão, substituída por 90 dias de multa. As outras três condenações por crime de condução sem habilitação legal foram punidas com pena de multa. Segue-se, pois, que vista a actuação do arguido à luz do quadro da renovação homótropa das condutas, afigura-se como algo precipitada a conclusão constante da sentença recorrida, de que as penas não privativas da liberdade se mostram totalmente desajustadas.

Claro que para a valoração das exigências de prevenção especial ou da personalidade do arguido não relevam apenas os crimes da mesma natureza, mas todos os crimes cometidos, não havendo que prescindir da consideração de o recorrente ter sofrido, para além das já mencionadas, uma condenação por crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas e serviços (Processo Comum Singular n.º 115/05.9TAPRG), em que lhe foi imposta, por sentença de 02/05/2006, a pena de 30 dias de multa; uma condenação por crime de detenção ilegal de arma (Processo Comum Singular n.º 5/09.6GBMDA), em que lhe foi imposta, por sentença de 05/07/2010, a pena de 220 dias de multa, ulteriormente convertida em prisão subsidiária; e ainda  uma condenação por crime de furto qualificado (Processo Comum Singular n.º 11/14.9GBMDA), punida por sentença de 23/09/2015 com a pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa pelo mesmo período. Esta última condenação é, de todas as que o arguido sofreu, a mais grave, atento o tipo de crime em questão e a medida da pena aplicada, verificando-se ainda que o crime de condução sem habilitação legal agora em apreço foi cometido menos de um ano depois do fim do período de suspensão (o trânsito em julgado daquela sentença ocorreu em 02/02/2016), circunstância que revela insensibilidade às anteriores condenações, implicando um maior grau de culpa.

Não há dúvida que a postura assumida pelo arguido relativamente às anteriores condenações deixa evidenciada a insuficiência da pena de multa para assegurar a protecção do bem jurídico tutelado pela norma repetidamente violada. Ajusta-se, pois, a opção pela pena de prisão e a sua graduação concreta em 10 meses, inferior ao ponto médio da moldura penal, é perfeitamente adequada ao circunstancialismo apurado.

O recorrente insurge-se contra a falta de averiguação das suas condições pessoais, sustentando a respectiva imprescindibilidade para a opção pela pena detentiva, alegando a propósito a verificação da nulidade do nº 1, al. c) do art. 615º do CPC, que diz ser aplicável por força do art. 4º do CPP. Não lhe assiste qualquer razão neste particular aspecto, posto que o Código de Processo Penal prevê um regime próprio de nulidades nos arts. 118º e seguintes, não havendo lugar à consideração em processo penal, por analogia, de nulidades previstas no Código de Processo Civil. A circunstância de não trem sido averiguados factos concernentes à sua situação pessoal é-lhe imputável em primeira linha, visto não ter comparecido em audiência nem justificado a falta, pelo que não foi possível ouvi-lo quanto às suas condições de vida. Acresce que o processo sumário está vocacionado para um julgamento célere de questões menores, como expressamente resulta das normas que regem a sua tramitação, devendo a sentença ser proferida de imediato, não havendo que suspender os termos do processo após a audiência para elaboração de relatório social que, aliás, no caso vertente se teria certamente revelado impossível ou inconclusivo, atenta a informação constante de fls. 47 dos autos.

Pelas mesmas razões se justifica que não tenham sido consideradas soluções alternativas à pena de prisão efectiva, como a prestação de trabalho a favor da comunidade, que implica a aceitação do condenado (art. 58º, nº 5, do Código Penal) e que este não poderia dar, visto ter faltado à audiência (e não a teria dado em prazo útil se notificado para o efeito, posto que se ausentou para parte incerta por tempo indeterminado – cfr. o ofício de fls. 47); o que justifica também que não tenha sido equacionada a prisão em regime de permanência na habitação, por carecer igualmente do consentimento do condenado (art. 43º, nº 1, do Código Penal).

Não deixa o recorrente de ter razão, no entanto, ao apontar o desvio da sentença relativamente ao provado na parte em que, a propósito da suspensão da pena, refere que o arguido regista “(…) uma propensão para a prática de crimes graves contra o património (…)”, quando o provado apenas dá conta de dois delitos contra o património e somente um deles assume gravidade assinalável em função da medida da pena então determinada.

 Tudo visto e ponderado, pese embora a já evidenciada dificuldade do arguido em se pautar de acordo com o esperado pelo ordenamento jurídico, e apesar de o seu passado criminal reduzir consideravelmente a possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável, este não deverá considerar-se de todo excluído. Haverá assim que optar por uma suspensão da pena de prisão por um período com extensão temporal suficiente para permitir a verificação do bem fundado do juízo de prognose que lhe serve de base, acompanhado pelo cumprimento de uma condição que implique um sacrifício de ordem patrimonial exequível (art. 50º, nºs 1, 2, 4 e 5 e art. 51º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal), oferecendo-se como ajustada uma suspensão da pena por dois anos, com a obrigação de o arguido semestralmente, durante os dois anos subsequentes ao trânsito da decisão, entregar à Prevenção Rodoviária Portuguesa, nos primeiros 15 (quinze) dias de cada mês de Janeiro e de Julho, a quantia de €250 (duzentos e cinquenta euros), comprovando nos autos essa entrega até ao fim do mês em causa, perfazendo assim o montante total de €1000 (mil euros). Esta quantia não poderá ser paga de uma só vez, devendo sê-lo necessariamente na modalidade apontada, visando esta medida renovar na memória do arguido as razões que determinaram a condenação e a circunstância de se encontrar pendente uma pena de prisão suspensa na sua execução, desmotivando assim a prática de novas infracções similares.

III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra nos seguintes termos:

- Rectificam a sentença recorrida nos termos suprarreferidos, conforme previsto no art. 380º, nº 2, do Código de Processo Penal, de modo a que onde se lê «(…) decorre da matéria de facto provada que o arguido conduziu um ciclomotor na via pública (…)» passe a constar veículo automóvel em vez de ciclomotor (penúltima linha de fls. 40 vº dos autos);

- Revogam parcialmente aquela sentença, suspendendo a execução da pena de 10 (dez) meses de prisão imposta ao arguido pelo período de 2 (dois) anos, sob condição de este, semestralmente, durante os dois anos subsequentes ao trânsito da decisão, entregar à Prevenção Rodoviária Portuguesa, nos primeiros 15 (quinze) dias de cada mês de Janeiro e de Julho, a quantia de €250 (duzentos e cinquenta euros), comprovando nos autos essa entrega até ao fim do mês em causa.

Sem taxa de justiça.

                                                                       *

Proceda a secção à rectificação acima indicada, assinalando-a no lugar próprio.

                                                                       *

O tribunal recorrido deverá oportunamente dar conhecimento desta decisão à Prevenção Rodoviária Portuguesa.


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Coimbra, 13 de Maio de 2020

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - Ac. do STJ de 18-02-1998, nº convencional JSTJ00034535.
[2] - Sublinhados nossos.
[3] - Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 331