Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/12.1GAFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: DISPENSA DE PENA
INQUÉRITO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DO DESPACHO DE ARQUIVAMENTO PROFERIDO PELO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTIGOS 280.º, N.º 1, E 119.º, ALÍNEA E), DO CPP
Sumário: I - Em caso de dispensa da pena, nos termos do disposto no artigo 280.º, do CPP, encontrando-se o processo na fase de inquérito, o despacho de arquivamento proferido pelo juiz de instrução padece da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea e), do CPP, consubstanciada na violação das regras da competência do tribunal.
II - Efectivamente, no referido caso, a decisão de arquivamento, após concordância do JIC em relação à dispensa da pena, compete ao Ministério Público, como expressamente decorre do artigo 280.º, n.º 1, do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

1 - No processo de inquérito n.º 12/12.1GAFCR, do Tribunal Judicial de Figueira de Castelo Rodrigo, entendeu o Ministério Público determinar o arquivamento dos autos “nos termos do n.º1 do art. 280° do C.P.P., relativamente à prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.143.º n.º1 do C. Penal” tendo remetido os autos ao juiz de Instrução, a fim de obter a sua concordância/ homologação.

2 - Sob proposta do MP foi proferido despacho pelo JIC determinado o arquivamento dos autos, nos termos do art.° 280°, n.° 1, do CPP, por julgar verificados todos os requisitos legais dos artigos 74°, n.° 1 e 143°, n.° 3. al. a) do CP da aplicação aos autos de dispensa de pena.

3 – A assistente A... interpôs recurso desta despacho formulando as seguintes conclusões:

I- )              Ocorreram três momentos distintos: A) - o primeiro deles quando a Assistente - A... - e a Arguida -B... - se agarram mutuamente pelos cabelos até que a testemunha C... as separa, terminando a discussão; B) - o segundo deles passados dez minutos quando chega a mãe da Assistente e começa nova a discussão entre esta e os Arguidos B... e D...; C) - e o terceiro deles quando termina a discussão com provocações do arguido D... à Assistente, enquanto a Arguida - B... - aproveita da desatenção e condição de indefesa desta e lhe desfere uma pancada na cabeça com o ferro da banca de venda do mercado municipal - tudo conforme se apurou em sede de Inquérito de fls. 103 a 105.

II- )              Tal agressão perpetrada pela Arguida contra a Assistente é mais do que a resposta, surgindo como pura atitude retardada de vingança, sem a iminência de qualquer ataque físico da Assistente, e de forma desproporcionada, quer pela violência do meio utilizado — agressão na cabeça com um ferro — quer pelas consequências - traumatismo de natureza contundente na região parieto-occipitalesquerda suturado com 4 pontos, que demandou 30 dias de cura, com 3 (três) dias de afectação da capacidade de trabalho profissionalconforme consta dosRelatórios Médicos n° 1 de fls. 59 e 60 e n° 2 de fls. 188 e 189..

III- Pelo que não pode a Arguida - B... - ser dispensada da aplicação de uma pena, nos termos e para os efeitos do disposto da norma específica do art° 143°, n° 3 al. a) ou b) do Cód. Penal.

Mesmo que assim se não entenda

IV- E preciso ver que a dispensa de pena exige ainda a observância do disposto na norma genérica do art° 74°, n° 1, o que não se verifica.

V-                 O grau de ilicitude é elevado e a culpa agravada porquanto foi desproporcionada a ofensa perpetrada pela Arguida - B... - que se muniu de um instrumento particularmente perigoso, por contundente, à semelhança de um taco de basebol (Ac. RP de 3-12-2008, in CJ V, 2008, pág. 213 e ss) e com ele agrediu a Assistente na cabeça - causando-lhe o supra descrito traumatismo com30 dias de cura e 3 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional -conforme novamente consta dos Relatórios Médicos n° 1 de fls. 59 e 60 e n° 2 defls. 188 e 189 - indefesa e desatenta que estava à investida da Arguida, que, por sua vez, teve tempo para reflectir.

VI- O dolo é intenso e directo, visto que a Arguida agiu livre, voluntária e conscientemente com intenção de magoar e afectar com especial censurabilidade a Assistente na sua saúde física e psíquica, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando da forma supra descrita e contra a vontade da Assistente.

VII- A Arguida - B... - não demonstrou por qualquer forma arrependimento ou vontade de reparar o dano por si causado à Assistente; pelo contrário, antes revelou total insensibilidade face aos valores tutelados pelo direito preenchendo a sua conduta o tipo de ilícito previsto no art° 145°, n° 1 al. a) do Cód. Penal.

VIII- Por último, são elevadas as exigências de prevenção geral, dado ser cada vez mais usual a prática deste tipo de ilícitos, frustrando-se as expectativas socais criadas acerca da norma jurídica violada; como o são as exigências de prevenção especial, para que a Arguida não volte a cometer mais crimes, ressocializando-se, devendo para o efeito aplicar-se-lhe adequada sanção penal.

Pelo exposto, e salvo melhor e certamente mais douta opinião de V. Ex.as, será de revogar a decisão recorrida que concordou na íntegra com a posição do Ministério Público, por julgar verificados os pressupostos dos quais depende a decisão de arquivamento proferida nos presentes autos, nos termos do art° 280°, n° 1 do Cód. Proc. Penal, substituindo-apor uma outra decisão que julgue não verificados tais pressupostos, tudo com as demais consequências legais.

Assim se fazendo a requerida e esperada

JUSTIÇA!

4  – O Ministério Público na 1.ª instância, em resposta, concluiu:

a) Estabelece o artigo 143°, n.° 3 al. a) do Código Penal, no que concerne à prática de crime de ofensas à integridade física simples, que “O Tribunal pode dispensar de pena quando tiver existido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro”, admitindo o poder-dever do Ministério Público arquivar com fundamento de dispensa de pena, quando tenham existido lesões recíprocas (independentemente da proporcionalidade entre si) e inexistir prova bastante de qual dos contendores iniciou a agressão física.

b) Em nosso entendimento, da prova produzida, seja documental, testemunhal, declarações das arguidas e da diligência de acareação, não foi possível apurar, com necessária segurança, certeza e probabilidade séria, qual a sequência dos factos denunciados e, em concreto, qual dos intervenientes agrediu em primeiro lugar, tendo-se assim, por verificados os pressupostos que determinam a admissibilidade de arquivamento por dispensa de pena, nos termos e para os efeitos do artigo 143°, n.° 3 al. a) do Código Penal.

c) É hoje entendimento unânime, seja da doutrina ou jurisprudência, a necessidade, além dos supra mencionados, da verificação dos requisitos, cumulativos, vertidos no artigo 74° do Código Penal, sejam: a ilicitude do facto e a culpa diminuta, o dano ter sido reparado e, por último não se oporem razões de prevenção.

d) Em mesmo sentido, afigura-se-nos que se encontram preenchidos e verificados tais requisitos legais nos termos sufragados no despacho recorrido e, bem assim, nos fundamentos constantes do despacho de concordância proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal.

e) Destarte, considerando o constante da respectiva motivação, os fundamentos alegados pela Recorrente, carecem de fundamento factual e legal, na medida em que se encontram, casuisticamente, preenchidos os requisitos e pressupostos legais que admitem a faculdade de arquivamento do inquérito por dispensa de pena, nos termos do artigo 280° do C.P.P., com concordância da Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, no âmbito do poder jurisdicional que exerce na fase de inquérito, ao abrigo do disposto pelos artigos 143°, n.° 3 al. a) e 74°, ambos do Código Penal.

f) Por tudo o que se encontra explicitado no despacho recorrido, cujo teor integral se deve manter, atenta a produção de prova produzida, e, ainda, por se mostrar proporcional, adequada e justa em função das exigências do caso concreto.

Assim, o despacho recorrido deve ser mantido nos seus precisos termos, declarando-se totalmente improcedente o recurso interposto pela Assistente.

VOSSAS EXCELÊNCIAS, porém, apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA.”

5 - A recorrida/arguida B... também respondeu concluindo:

I) O Recurso em apreço é admissível, apenas no que respeita à verificação dos pressupostos que permitem, legalmente, a decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena;

II) Os referidos pressupostos encontram-se integralmente verificados;

III)  Os factos recolhidos do Inquérito indiciam agressões recíprocas entre a assistente e a arguida, não se tendo logrado apurar quem deu início à contenda;

IV) Dos factos recolhidos em sede de Inquérito resulta que os mesmos são sequenciais e contínuos, tendo, assistente e arguida, agido e reagido em função do comportamento da outra;

V) Encontra-se, assim, verificado o pressuposto previsto na alínea a) do n.° 3 do artigo 143° do Código Penal, que justifica a aplicabilidade do instituto da dispensa de pena ao caso concreto;

VI) A norma prevista no n.° 3 do artigo 143° do Código Penal é especial e prevê a aplicação da dispensa de pena numa situação específica (apenas referente ao tipo de crime “ofensa à integridade física simples”) distinta da norma “genérica” prevista no artigo 74° do mesmo Código;

VII) No caso concreto, sempre se encontrarão acauteladas, as condições previstas nas alíneas a), b) e c) do n.° 1 do referido artigo 74°;

VIII) A moldura penal prevista para o tipo de crime “ofensa à integridade física simples” enquadra-se no conceito de pequena criminalidade que justifica a aplicabilidade da dispensa de pena;

IX) As agressões recíprocas que decorrem, indiciariamente, do Inquérito relevam para a determinação da culpa, que atenta a reciprocidade das agressões se deve considerar diminuta;

X) A reparação do dano, além de não se encontrar provado e quantificado e, por isso, irreparável, mostra-se compensado pela actuação recíproca da assistente e da arguida;

XI) O (eventual) comportamento da arguida integra os pressupostos da punibilidade, nomeadamente a acção culposa, embora o legislador permita a carência de punição do facto, atento o carácter bagatelar que tal acção pressupõe;

XII) A arguida não tem antecedentes criminais, as lesões sofridas pela assistente não se podem considerar graves, tratando-se, ainda, de um episódio isolado;

XIII) Encontrando-se, assim, devidamente acauteladas as exigências de prevenção geral e especial sendo que as mesmas se não opõem à dispensa de pena.

Pelo exposto e nos mais de Direito, por se verificarem os pressupostos da dispensa de pena relativamente à arguida B..., nos termos do n.° 1 do artigo 280° do Código de Processo Penal, deverá manter-se a decisão recorrida fazendo-se assim a sempre e costumada JUSTIÇA!”

6  - Na vista a que refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo que:

“(…)
4 - Sobre o objecto do recurso, começaremos por suscitar uma questão prévia.

Na verdade, parece-nos que a decisão recorrida está inquinada por uma nulidade insanável, de acordo com o disposto no art ° 119°, al. e) do CPP.

Com efeito, a Mm.a Juíza de Instrução Criminal no despacho recorrido de fls. 212 e 213, determinou o arquivamento dos autos, após considerar verificados todos os pressupostos do instituto legal da dispensa de pena a aplicar à situação dos autos, em concordância com o Ministério Público.

Ora, os autos encontravam na fase de inquérito, no momento da prolação dos despachos quer do Ministério Público, quer da Juiz de Instrução Criminal, não tendo sido deduzida qualquer acusação pelo Ministério Público.

Nesta fase processual, nos termos do art.° 280°, n.° 1 do CPP, cabe ao Ministério Público proferir despacho de arquivamento, após obter concordância do Juiz de Instrução, aliás, à semelhança com instituto legal da suspensão de inquérito (arts. 281° e 282° do CPP).

Seguindo Paulo P. de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 4a edição, pág. 755:

“O processo é o seguinte: havendo indícios suficientes da prática de um crime para o qual a lei prevê a possibilidade da dispensa da pena, o MP deve apurar in concretu os pressupostos da dita dispensa. Caso não se verifiquem estes pressupostos, o MP deduz acusação ou pondera a suspensão provisória do processo. Caso se verifiquem os pressupostos da dispensa de pena, o MP deve colher a concordância do juiz de instrução para o efeito. Se o juiz concordar, o MP determina o arquivamento do processo. Se não concordar, o MP pode acusar ou ponderar a suspensão provisória do processo ou ainda recorrer do despacho judicial.” (sublinhado nosso).

E nos autos, conforme se verifica, foi a Mma. Juíza de Instrução que proferiu despacho final, carecendo de competência legal para tal.

Tem o Juiz de Instrução Criminal competência para a decisão, em caso de dispensa de pena apenas nos termos do disposto no n.° 2 do citado art.º 280° do CPP.

Atento o exposto, afigura-se-nos que se verifica a nulidade insanável prevista no art.° 119°, al. e) do CPP, consubstanciada na violação das regras da competência do tribunal ao proferir despacho final de arquivamento em processo de inquérito, não tendo competência para tal.

Tal nulidade, sendo de conhecimento oficioso e declaradas em qualquer fase do processo (art.° 119° do CPP), apenas poderá levar à declaração de nulidade do despacho judicial, cabendo a posteriori ao Ministério Público proferir despacho final, com eventual separação de processos quanto à situação em que já existe acusação particular e/ou eventual reponderação dos argumentos usados nos autos em face da argumentação expendida pela recorrente.

4.1 - Quanto ao recurso apresentado, e para a hipótese de não ser considerada a questão prévia suscitada, de forma sucinta dir-se-á que não nos repugna que seja ponderada, designadamente, a desproporção existente na gravidade das lesões causadas e sofridas por cada uma das arguidas, ocorridas nas agressões mútuas e, ao que se indicia, em momentos sucessivos, embora muito próximos temporalmente.

Desproporção essa, que relevará para que se considere não verificado o pressuposto legal para a dispensa de pena, relativo à reparação do dano, em termos de compensação mútua.

*

Nestes termos, face a tudo o que ficou exposto, somos de parecer que deverá ser declarada a nulidade do despacho recorrido com as legais consequências.

(…)”

*

7 – Transcreve-se o parecer do M.P. sobre o qual veio a recair despacho judicial, que seguidamente vai também transcrito:

A - parecer do MP em 1ª instância

“(…)

No que concerne ao crime de Ofensas, cujas ofendidas são B... e A...:

Os presentes autos tiveram origem na denúncia de fls. 2 e 3, na qual B... se queixa contra A..., por esta, no dia 20 de Janeiro de 2012, pelas 08:30 horas, no Mercado Municipal, Figueira de Castelo Rodrigo, a ter agredido, além do mais, com um corte, nos dedos da mão direita, tendo-lhe causado lesões no terço médio do dedo médio da mão direita, (fls. 128 e 129)

Por sua vez, A... apresentou queixa contra B..., por esta, na mesma ocasião e lugar lhe, a ter agredido com um ferro que, tendo-lhe causado lesões no crânio e membro superior esquerdo, (cfr. fls. 59 e 60).

Encontram-se os dois processos em fase de Inquérito, tendo os factos denunciados ocorrido na mesma data, hora e local e tendo sido praticados reciprocamente pelas ofendidas e arguidas, foram aqueles apensados, nos termos do disposto no artigo 24°, n.° 1 al. e) e 29° do C.P.P.. (cfr. fls. 38)

Os factos acima descritos consubstanciam a prática pelos arguidos de um crime de “Ofensa à Integridade Física Simples”, p. e p. pelo artigo 143°, n.° 1 do Código Penal.

Realizado o inquérito, verifica-se que dos elementos de prova recolhidos nos autos se conclui terem resultado da contenda lesões para ambas as intervenientes (cfr. fls. 89 a 105, 178 e 179), não tendo sido possível apurar, com necessária segurança, qual a sequência dos factos participados ou, mais concretamente, qual dos intervenientes agrediu em primeiro lugar.

Com efeito, cada um dos arguidos afirma ter sido o outro a dar início à agressão, e as testemunhas indicadas em nada contribuíram para o esclarecimento dos factos, pois por um lado são intervenientes processuais e familiares dos mesmos e têm interesse directo nos presentes autos, à excepção da testemunha C... que relata uma agressão mútua e contínua entre as assistentes/arguidas.

Não se vislumbram, aqui chegados, outras diligências úteis com interesse para a descoberta da verdade material.

Relativamente ao crime de “Ofensa à Integridade Física Simples”, prevê a al. a) do n.° 3 do artigo 143° do Código Penal, a possibilidade de dispensa de pena quando tiver havido lesões recíprocas (não relevando a eventual diferença de gravidade das mesmas) e não tiver existido prova que consigne qual dos contendores agrediu primeiro.

Durante as diligências do presente inquérito procurou-se responder à falta de sustentáculo probatório no que concerne à forma como os factos se desencadearam, nomeadamente ao factor temporal, não tendo sido possível a sua determinação, permitindo, deste modo, o julgador dispensar de pena os intervenientes na agressão recíproca.

Afigura-se-nos, assim, face ao quadro probatório recolhido e aos factos globalmente considerados, encontrarem-se reunidos os pressupostos do arquivamento, por dispensa de pena.

A dispensa de pena é um instituto legalmente reservado aos casos assim chamados de “bagatelas penais”, ou seja, em que, verificando-se, embora, todos os pressupostos da punibilidade, não se justifica, porém, a aplicação de qualquer sanção penal, já que tanto não seria exigido pelos fins das penas (cf., neste sentido, Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.a edição, p. 259).

Aliás, não é outra que não esta, a posição assumida por Leal Henriques e Simas Santos (in Código Penal Anotado, 3.a edição, Editora Rei dos Livros, 2000, vol. II, pp. 226 e 227 e vol. I, pp. 888 e 889), segundo os quais, a previsão do artigo 143.°, n.° 3 do Código Penal visa responder ainda à dificuldade de prova sobre a forma como os factos ocorreram e os motivos que lhe estiveram subjacentes, razão pela qual o legislador permite que o julgador, não sendo possível determinar a ordem cronológica das condutas e, consequentemente, ficando por apurar a existência de uma eventual legítima defesa por parte daquele que actua em segundo lugar, possa sobrestar na censura, dispensando da pena os intervenientes na agressão recíproca.

E como se a lei partisse, tal como se escreve no Comentário Conimbricense do Código Penal (parte especial, tomo I, 1999, p. 220), de uma ideia/princípio de compensação e de desnecessidade da pena, uma vez que ambos os agentes/intervenientes foram simultaneamente agressor e agredido.

Por outro lado, preceitua o artigo 280°, n.° 1 do C.P.P. que “ Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa”, sendo hoje entendido, de forma dominante a existência de um verdadeiro poder-dever.

Para que se possa proceder a um arquivamento do inquérito com fundamento em dispensa de pena, necessário se torna que esteja suficientemente indiciada a prática do crime para o qual a lei penal preveja expressamente a possibilidade de dispensa de pena e, bem assim, os pressupostos daquela dispensa, quais sejam os previstos no artigo 74.°, n.° 1 do Código Penal, aplicável por remissão do n.° 3 da mesma norma legal.

Consubstanciam, assim, em face do n.° 1 do artigo 74.°, do Código Penal, requisitos cumulativos para a dispensa de pena, os seguintes: ilicitude do facto e culpa diminutas; reparação do dano e necessidade de, à dispensa de pena, não se oporem razões de prevenção.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

Compulsados os autos, constata-se que os mesmos indiciam a existência de lesões recíprocas, não sendo possível, atento o carácter contraditório das declarações de ambas as arguidas e a ausência de demais prova sustentável, determinar quem agrediu em primeiro lugar.

Ora, tendo presente o teor da alínea a) do n.° 3 do artigo 143.°, do Código Penal, terá de concluir-se que se mostram preenchidos os requisitos dessa norma.

Para além de que, considerado o contexto que circunda a prática dos factos em causa nos autos e ponderando as consequências do envolvimento físico entre ambas as arguidas, ao que acresce a consideração da moldura penal prevista para o tipo de crime ora em causa, típica daquilo a que o legislador denomina de pequena criminalidade, fica demonstrada a diminuta ilicitude dos factos e, bem assim, a diminuta culpa.

Relativamente à reparação do dano, é, nosso entendimento o de que, tendo ocorrido uma lesão recíproca, tal dano é recíproco, isto é, tais agressões são equivalentes, estando como que compensadas e tornando, pois, desnecessária a respectiva reparação, que deve ter-se já por naturalmente realizada.

No que concerne às razões de prevenção, ponderando nomeadamente a gravidade das lesões e, bem assim, a ausência de antecedentes criminais por parte das arguidas, entendemos que o juízo de dispensa de pena, mantendo ainda uma conotação de censurabilidade penal, é ainda suficiente para acautelar as finalidades visadas com a punição, incluindo as de prevenção geral, que ficarão devidamente salvaguardadas com a aplicação do presente regime, afigurando-se-nos que o presente caso se enquadra perfeitamente no espírito que presidiu à consagração do n.° 1 do artigo 280° do C.P.P..

Assim, afigura-se-nos que se encontram preenchidas, como acima se referiu, as condições previstas na al. a) do n.° 3 do artigo 143° do Código Penal, com expressa possibilidade das arguidas serem dispensadas de pena, e mostrando-se assim verificados os pressuposto previstos no artigo 74° do C.P. e 280°, n.° 1 do C.P.P., entendo ser de arquivar o presente inquérito, ao abrigo do disposto nos supra citados artigos 143°, n.° 3 do Código Penal e 280°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

*

Conclua os autos à Meritíssima Juiz de Instrução, nos termos e para os efeitos do artigo 280°, n.° 1 do C.P.P..”

(…)”

*

B - despacho judicial recorrido

“O Ministério Público, no termo do inquérito e fazendo uso de um mecanismo processual de consenso, proferiu despacho de arquivamento dos autos, nos termos do disposto nos artigos 143°, n.° 3, alínea a), do CP e 280°, n.° 1, do CPP.

São-nos os presentes autos conclusos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 280°, n.° 1, do CPP, a fim de ser obtida a concordância do Juiz de Instrução Criminal quanto àquele arquivamento.

Nos termos do disposto no art. 143°, n.° 3, al. a), do Código Penal, «O tribunal pode dispensar de pena quando: a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro».

Por seu turno, de harmonia com o disposto no art. 280°, n.° 1, do CPP «Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa».

Consubstanciam, assim, em face do n.° 1 do art. 74°, do Código Penal, requisitos cumulativos para a dispensa de pena, os seguintes: ilicitude do facto e culpa diminutas; reparação do dano e necessidade de, à dispensa de pena, não se oporem razões de prevenção.

O   Ministério Público, no despacho proferido, considera que os autos indiciam a prática, pela arguida A... e a arguida B..., de factos susceptíveis de integrar a prática do ilícito típico a que alude o art. 143°, 1, do Código Penal (crime de ofensa à integridade física simples).

Tendo em consideração o teor das diligências efectuadas em sede de inquérito, os autos apenas contêm indícios suficientes de que houve agressões físicas e lesões recíprocas entre ambas as arguidas supra identificadas, não se conseguindo descortinar quem foi a primeira agressora.

Ora, tendo presente o teor da alínea a), do n.° 3, do art. 143°, do Código Penal, terá de concluir-se que se mostram preenchidos os requisitos dessa norma.

Para além de que, considerado o contexto que circunda a prática dos factos em causa nos autos e ponderando as consequências do envolvimento físico entre ambas as arguidas, ao que acresce a consideração da moldura penal prevista para o tipo de crime ora em causa, típica daquilo a que o legislador denomina de pequena criminalidade, fica demonstrada a diminuta ilicitude dos factos e, bem assim, a diminuta culpa.

Relativamente à reparação do dano, é entendimento do Tribunal o de que, tendo ocorrido uma lesão recíproca, tal dano é recíproco, isto é, tais agressões são equivalentes, estando como que compensadas e tomando, pois, desnecessária a respectiva reparação, que deve ter-se já por naturalmente realizada.

No que concerne às razões de prevenção, ponderando nomeadamente a fraca gravidade das lesões e, bem assim, a ausência de antecedentes criminais por parte das arguidas, é entendimento do Tribunal o de que o juízo de dispensa de pena, mantendo ainda uma conotação de censurabilidade penal, é ainda suficiente para acautelar as finalidades visadas com a punição, incluindo as de prevenção geral, que ficarão devidamente salvaguardadas com a aplicação do presente regime.

Pelo que acima ficou dito, e concordando na íntegra com a posição da Digna Magistrada do Ministério Público, julgo verificados os pressupostos dos quais depende a decisão de arquivamento do processo proferida nos presentes autos (Cfr., art.º 280°, 1, do CPP).

Pelo exposto, arquivem-se os presentes autos.

Remeta os autos aos serviços do Ministério Público.”

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.

*   

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1, do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, e como é unanimemente entendido, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, pág. 103).

      Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir resume-se a saber se estão verificados os pressupostos que determinam a admissibilidade de arquivamento por dispensa de pena, nos termos e para os efeitos do artigo 143°, n.° 3 al. a) do Código Penal, assim como os requisitos, cumulativos, vertidos no artigo 74° do Código Penal.

Questão prévia: nulidade do despacho proferido pelo Juiz de Instrução na fase de inquérito

A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal - art 263º, nº 1 do CPP - e consubstancia uma consequência da estrutura acusatória do processo penal português - acs do TC nº 7/87 e 23/90.

Em instrução, o juiz pode conhecer de vícios ocorridos a montante desta fase (nomeadamente decretando a nulidade por falta ou insuficiência de inquérito) – cf. arts. 286.º e ss. do CPP, maxime 288.º, 289.º e 290.º. Porém, em sede de inquérito, o juiz de instrução tem a sua competência reservada aos actos constantes dos arts. 268.º e ss. do CPP, ou seja, intervém como salvaguarda de direitos fundamentais. Daqui resulta claramente que as intervenções do MP e do juiz de instrução são independentes nas respectivas fases que cada um deles dirige. Assim, ao MP, em inquérito, compete efectuar todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262.º do CPP). E ao juiz de instrução, em instrução, cabe-lhe a prática dos actos que entenda levar a cabo com vista à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (arts. 286.º e 289.º do CPP). Assim, só em instrução – fase cuja direcção lhe compete – é que o juiz de instrução pode (deve) sindicar o inquérito com vista a decidir da correcção da acusação ou do arquivamento -ACSTJ de 2000-06-18.

Em suma, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos no Código de processo Penal - art 17º do CPP.

O art.143º nº3, alínea a) do CP estabelece que “o tribunal pode dispensar da pena quando tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agiu primeiro”.

Nos termos do art. 280º, nº1 do CPP, se o processo for de crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade da dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificaram os pressupostos daquela dispensa.

No crime de ofensa à integridade física simples, a possibilidade de dispensa da pena, pressupõe a verificação dos requisitos cumulativos previstos nos arts.143º, nº3 e 74º nº 1 do CP, o que resulta expressamente do nº 3 do art. 74º do CP (aditado pelo DL 48/95 de 15/3).

Reportando-nos aos presentes autos, constata-se que os despachos do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal, foram proferidos na fase de inquérito, não tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público.

Na fase de inquérito é da competência do MP a decisão de arquivamento, após obtenção da concordância do Juiz de Instrução.

O processamento como assinala Paulo P. de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, pág. 755, é o seguinte:

“… havendo indícios suficientes da prática de um crime para o qual a lei prevê a possibilidade da dispensa da pena, o MP deve apurar in concretu os pressupostos da dita dispensa. Caso não se verifiquem estes pressupostos, o MP deduz acusação ou pondera a suspensão provisória do processo. Caso se verifiquem os pressupostos da dispensa de pena, o MP deve colher a concordância do juiz de instrução para o efeito. Se o juiz concordar, o MP determina o arquivamento do processo. Se não concordar, o MP pode acusar ou ponderar a suspensão provisória do processo ou ainda recorrer do despacho judicial.”.

Conforme se verifica com clareza, foi a Juiz de Instrução que proferiu despacho final, carecendo de competência legal para o efeito.

Em caso de dispensa de pena, o Juiz de Instrução Criminal só tem competência para a decisão nos termos do disposto no n.° 2º do citado art.º 280° do CPP.

De notar que a decisão do MP de arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena deve conter uma narração dos factos suficientemente indiciados que fundamentariam a aplicação de uma pena ou medida de segurança (sendo aplicável o disposto no art 283º, nº 3, al b), a justificação da possibilidade legal da dispensa da pena e a menção ao acordo do Juiz de instrução. ( PPA ob cit pág 730).

E o despacho de concordância do Juiz pode estruturar-se da seguinte forma:

“Está expressamente consagrada na lei a possibilidade de dispensa de pena para o crime de ofensa à integridade física (art°s 280°/1 do Código de Processo Penal, 143°/3 do Código Penal).

Encontram-se preenchidos os pressupostos gerais do art.° 74° do Código Penal (grau de ilicitude e culpa diminutos, reparação do dano e não oposição de razões de prevenção) e especiais (lesões recíprocas, retorsão da conduta ilícita).

Em face do exposto, concordo com o arquivamento do processo nos termos constantes do despacho do Ministério Público de fls.---. “

É obrigatório que revele de forma expressa que o despacho definitivo é do MP, como titular da acção penal. O juiz deve manifestar-se apenas a favor ou contra.

Atento o exposto, a decisão de arquivamento na fase de inquérito pelo JIC integra a nulidade insanável prevista no art.° 119°, al. e) do CPP, consubstanciada na violação das regras da competência do tribunal.

A referida nulidade é de conhecimento oficioso, pode ser declarada em qualquer fase do processo (art.° 119° do CPP), e conduz à declaração de nulidade do despacho judicial.

Em novo despacho o JIC deverá ponderar a necessidade de averiguar em concreto qual a natureza e quantificação dos respectivos danos, pois de outra forma carece de substrato factual a asserção da reciprocidade dos danos, para os dar como compensados, e, por esta via, integralmente reparados.
Acresce que a própria lei civil exclui a compensação quando os créditos provenham de factos ilícitos dolosos (art. 853º a) CC), sendo a exclusão extensível aos casos em que ambos os créditos recíprocos tenham essa origem (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., pág.198; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág.801) - Ac Rel Porto de 29 de Janeiro de 2003.

III - DISPOSITIVO

Termos em que, em conformidade com quanto ficou exposto, se decide DECLARAR A NULIDADE INSANÁVEL do despacho de arquivamento proferido pela JIC e, em consequência, determinar que profira despacho de concordância ou discordância.

Sem tributação.


 (Isabel Valongo - Relatora)

 (Joaquim Correia Pinto)