Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
826/14.8T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
FUNDAMENTOS DE FACTO
CASO JULGADO PENAL
RESPONSABILIDADE CIVIL POR OMISSÃO
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA – J.L. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º, 486º E 493º DO C. CIVIL; 580º, 581º, 619º, 621º E 623º DO NCPC.
Sumário: I – A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.

III - Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.

IV - A norma do art.623º do CPC abrange apenas as condenações em processo penal, ficando de fora as proferidas no âmbito do processo de contraordenação, de natureza diferente.

V - Na situação típica da responsabilidade pela omissão (art.486º CC) exige-se a comprovação de dois requisitos específicos: (i) a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido, (ii) e que o acto omitido tivesse seguramente ou com maior probabilidade, obstado ao dano.

VI - Para além dos casos tipicizados no art.486º do CC, o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo, que impende sobre quem cria ou mantem uma situação especial de perigo.

VII - O nº2 do art.493º CC estabelece uma presunção legal de culpa (presunção “juris tantum”) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa. Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 CC não se altera, contudo, o princípio do art.483º CC de que a responsabilidade depende da ilicitude e da culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.

VIII - Afastada a ilicitude na omissão, não pode convocar-se o regime do art.493º nº2 CC e as peculiares exigências no rigor da prova liberatória.

IX - A responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja, a culpa deste, pelo que devedor só responde, nos termos do art.800º nº1 do CC, se houver culpa do auxiliar, mas cujo espectro normativo se confina à responsabilidade contratual.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            No Processo Principal

1.1A Autora – M... – instaurou (19/12/2014) na Comarca da Guarda acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus

- “Massa Insolvente da E..., Lda”, representada por ...,

- J...,

- P..., com sede  na ...,

- V..., S.A, com sede em ...;

- I..., S.A, com sede na ...

- A..., com sede na Rua ...

Alegou, em resumo:

A Autora é mãe de R..., o qual era trabalhador da E..., tendo com ela celebrado um contrato de trabalho para exercer as funções de chefe de equipa.

No dia 22/11/2011, no lugar de Porto da Carne, encontrava-se a fazer uma substituição de postes de transporte de telecomunicações ao longo da EN 16, sendo a dona da obra a terceira ré, P..., que contratou tais serviços com a quarta ré V..., sendo que esta, por sua vez, subempreitou alguns trabalhos à A... e esta, por sua vez, à E..., os trabalhos respeitantes à zona da Guarda e Viseu, sendo que esta transferiu a responsabilidade por acidentes de trabalho para a ré seguradora.

Na mencionada data ocorreu um acidente mortal do qual foi vítima mortal o seu filho R..., por electrocussão, quando se encontrava ao serviço da 1ª ré, quando procediam ao arvoramento de um poste para substituir um outro que não estava nas devidas condições de conservação. A culpa é imputável aos réus, por violação das obrigações legais de segurança no trabalho.

Em consequência sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe:

A quantia de €80.000 (pela perda do direito à vida);

A quantia de €40.000,00 (pelo sofrimento da própria vítima que antecedeu a sua morte);

A quantia de €30.000,00 (a título de danos não patrimoniais).

            Contestou a Ré F..., S.A. (por incorporação da I... na F...) defendendo-se, em síntese, com a excepção da incompetência material do tribunal e da ilegitimidade passiva, pois os danos não patrimoniais não estão cobertos pelo seguro.

Contestou a Ré P..., S.A por excepção ao arguir a prescrição, a ilegitimidade activa em virtude da autora estar na acção desacompanhada do outro herdeiro, no caso o pai do falecido, e por impugnação.

Contestaram as Rés “V...” e “A...” com a excepção da prescrição e por impugnação.

No Apenso A)

1.2.- A Autora – F..., S.A,  com sede no ..., instaurou (17/2/2014)  acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra os Réus

 - P..., com sede  na Rua ...,

- EDP- Distribuição, S.A 

 - V..., S.A, com sede em ...

- I..., S.A, com sede na Rua ...

- A..., com sede na Rua ...

Alegou, em resumo

Em virtude do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a “E..., Lda.”, em que figurava como segurado o falecido R..., bem como P... e A..., efectuou os pagamentos em virtude do acidente de trabalho ocorrido, em que o primeiro faleceu e os outros dois ficaram feridos. Concluiu pela responsabilidade das rés.

Pediu a condenação dos Réus no pagamento à Autora do montante de €34 187,03, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

Contestaram as Rés “V...”, “A...”, EDP Distribuição-Energia, S.A e  P..., S.A negando qualquer responsabilidade.

Apenso B)

1.3.- O Autor -  J...  - instaurou ( 21/12/2014) acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra os Réus

-P... com sede na Rua ...,

- EDP- Distribuição, S.A 

- V..., S.A, com sede em ...;

- I..., S.A, com sede na Rua ... 

- A..., com sede na Rua ...,

Alegou, em resumo

O Autor é pai de R..., o qual era trabalhador da E..., tendo com ela celebrado um contrato de trabalho para exercer as funções de chefe de equipa.

No dia 22/11/2011, no lugar de Porto da Carne, encontrava-se a fazer uma substituição de postes de transporte de telecomunicações ao longo da EN 16, sendo a dona da obra a terceira ré, P..., que contratou tais serviços com a quarta ré V..., sendo que esta, por sua vez, subempreitou alguns trabalhos à A... e esta, por sua vez, à E..., os trabalhos respeitantes à zona da Guarda e Viseu, sendo que esta transferiu a responsabilidade por acidentes de trabalho para a ré seguradora.

Nesse dia o filho morreu por electrocussão, quando se encontrava ao serviço da 1ª ré e procedia ao arvoramento de um poste para substituir um outro que não estava nas devidas condições de conservação. A culpa é imputável aos réus, por violação das obrigações legais de segurança no trabalho.

Em consequência sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de €145.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação.

Contestaram as Rés “V...”, “A...”, EDP Distribuição-Energia, S.A e  P..., S.A negando qualquer responsabilidade.

1.4.-  Por despacho de fls. 140 foi determinada a apensação aos das acções que corriam termos sob os nºs ..., que passaram a constituir os apensos A e B.   

1.5.- Por despacho de fls. 185 foi julgada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no que respeita ao réu J..., em face da declaração de insolvência.

 1.6. – A Autora desistiu da instância em relação à Ré E..., Lda, que foi homologada judicialmente.

1.7. Foi admitida a intervenção acessória da “Companhia de Seguros F..., que contestou concluindo pela improcedência da acção.

            1.8.-No saneador decidiu-se julgar improcedentes:

A excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria;

A ilegitimidade da ré Companhia de Seguros F...;

A ilegitimidade da Autora M...;

A prescrição, invocada pelas rés P..., A... e V...    

1.9.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida (6/2/2017) sentença que decidiu julgar as acções improcedentes e absolver os Réus dos pedidos.

1.10. Inconformada, a Autora F... recorreu de apelação com as seguintes conclusões

...

1.11.- Inconformado, o Autor J... recorreu de apelação com  as seguintes conclusões

...

            Contra-alegou a Ré P..., SA no sentido da improcedência dos recursos.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- Delimitação do objecto dos recursos

            As questões essenciais submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes:

            A impugnação de facto

A violação do caso julgado

A responsabilidade dos Réus.

            2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

...

2.4.- A impugnação de facto

...        

            2.5.- A violação do caso julgado.

            A Apelante F... arguiu a violação do caso julgado, com a alegação de que os factos provados enunciados na sentença de 4/9/2014, proferida no Tribunal do Trabalho, Proc. nº... em que foi decidido pela verificação do acidente de trabalho, se impõem pela autoridade do caso julgado.

            O Apelante J... invocou também os factos descritos na sentença do Tribunal de Trabalho, embora sem explicitar, para concluir que o acidente é da exclusiva responsabilidade do dono da obra (P...) e do empreiteiro.

O caso julgado material (arts.619 e 621 do CPC) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado ( cf., para a distinção de ambas as figuras, cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções elementares de processo Civil, pág. 320, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, e “O objecto da sentença  e o caso julgado material “, BMJ 325, pág.171).

A excepção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (arts.580, 581 CPC) e distingue-se da autoridade do caso julgado, onde este se manifesta no seu aspecto positivo.

Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere Teixeira de Sousa -  “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ).

            A jurisprudência tem acolhido esta distinção (cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24 ), sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige, segundo entendimento prevalecente, a coexistência da tríplice identidade (cf., por  ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.320, Ac do STJ de 13/2/2007, em www dgsi.pt).

            Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:

            A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas;

A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica).

Contudo, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial prevalecente.

Neste sentido, elucida Antunes Varela ( Manual de Processo Civil, 1984, pág 697) – “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.
Também Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577), para quem “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”.

No âmbito jurisprudencial, por ex. Ac do STJ de 2/03/2010 ( proc. n.º 690/09.9), disponível em www.dgsi.pt/jstj, onde se afirma – “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente (…)”.

No mesmo sentido, o Ac STJ de 5/5/2005 ( proc. nº 05B691), disponível em www dgsi.pt, ao decidir que “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”.

            Por outro lado, perspectivando-se no âmbito do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados num processo não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento (dos actos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados. Daqui resulta, na esteira de Calamandrei, a rejeição de qualquer “eficácia probatória“ das premissas de uma decisão ( cf. Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág.114 e segs.).

            O caso julgado e as implicações da condenação proferida no processo contraordenacional nº...

            Por sentença de 13/2/2014, transitada em julgado foi confirmada a decisão da Autoridade Nacional para as Condições do Trabalho que aplicou à arguida V..., SA a coima de €9.200,00 pela prática da contra-ordenação prevista nos arts.14 nº1, 2 e 4, 20 a), c), d), 25 nº3 c) do DL nº 273/2003 de 29/10.

            A sentença refere, a dada altura, que esta decisão não faz caso julgado.

            O Apelante J... convoca os factos provados nesta sentença  para concluir pela responsabilidade da Ré V..., partindo do pressuposto de que eles se impõe inelutavelmente aqui, se bem que nem sequer o justifica.

A partir da reforma instituída pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, foi retirada à sentença penal condenatória a eficácia erga omnes, imposta pelo art.153 CPC/1929.

A eficácia probatória extraprocessual da decisão penal condenatória, transitada em julgado, é actualmente feita com a atribuição de uma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, e esta presunção pode ser invocável relativamente a terceiros, ou seja, aos sujeitos da acção cível.

Preceitua o art.623 CPC que “a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.

Esta norma reporta-se à condenação em processo penal e questiona-se se também abrange a condenação proferida em processo contraordenacional.

Deve adoptar-se o entendimento de que não abarca as condenações em processo de contraordenação.

Tanto do argumento literal, como do preâmbulo do diploma legal (DL nº 329 -A /95) que introduziu esta norma (então com o art.674 A), onde se justifica a adequação da decisão penal condenatória e apenas desta à eficácia “erga omnes”, resulta a interpretação no sentido de que a norma do art.623 CPC abrange apenas as condenações em processo penal, ficando de fora as proferidas no âmbito do processo de contraordenação, de natureza diferente  (cf. neste sentido Ac STJ de 5/4/2016 (proc. nº 127/10), em www dgsi.pt).

            2.6.- A responsabilidade civil das Rés

            A sentença recorrida, situando o problema em sede responsabilidade civil extracontratual, julgou a acção improcedente por considerar que a morte de R... não pode ser imputada às demandadas, mas apenas exclusivamente à vítima.

            Diz a sentença:

 “ É, pois, manifesto que deste enquadramento fáctico não decorre a possibilidade de imputação do facto danoso e lesivo dos direitos dos autores, que no caso é a morte do seu filho R..., às rés, mas ao próprio falecido. Foi, sem dúvida, como resultou provado, a selecção do poste de 10 metros pelo falecido, ao invés do poste de 8 metros, como haviam sido as orientações da P..., que determinou a invasão do espaço, que não podia ser invadido, relativamente à linha de alta tensão. Por outro lado, também o modo como foi arvorado o apoio, ou seja, na vertical, acabou por determinar, necessariamente, a invasão de tal espaço. Acresce que resultou também provado que o falecido tinha formação em riscos eléctricos e segurança em trabalhos em altura, entre outras acções de formação que frequentou; e que o trabalhador P... detinha ainda formação específica para a realização de trabalhos em tensão (TET), conhecendo as medidas de segurança que se impunham acautelar na instalação do referido poste de madeira na proximidade de linha eléctrica em tensão. Por outro lado provou-se que o R..., na qualidade de chefe de equipa, e o electricista/manobrador P..., estavam habilitados a efectuar a instalação do poste de madeira de 8 metros na vizinhança da linha eléctrica em tensão, em segurança, em conformidade com as medidas de segurança previstas no mencionado “Procedimento Especifico de Segurança – Trabalhos Próximos de Instalação em Tensão”.   Provou-se também que o R... conhecia já as características do local, designadamente, a existência da linha eléctrica de 60 KW e que a linha eléctrica cruzava o local, o que foi confirmado previamente no local antes do dia do acidente. Resulta desta factualidade que os trabalhadores e, em particular, o R... tinha formação para este tipo de trabalhos e conhecia já o local, sabendo, designadamente, que ali se encontrava uma linha de alta tensão.

Não subsistem, pois, quaisquer dúvidas de que o falecido, por um erro seu, invadiu o espaço aéreo, de 60 cm, que não poderia ter invadido, não se tendo provado qualquer outra causa que o tenha determinado.

(…)”

            Em contrapartida, a Apelante F... alega que a responsabilidade das Rés P..., V... se funda no facto de se tratar de uma actividade perigosa e as demandadas não comprovaram o emprego de todas as diligências para prevenir o perigo (art.493 nº2 CC), bem como por aplicação do art.503 nº3 CC.

            Para o Apelante J... o dono da obra (P... ) e o empreiteiro (V...) são os únicos responsáveis por haverem violado as nomas do DL nº 273/2003 de 29/10, e por outro lado, também com fundamento no art.800 CC.

            São pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual ou delitual o facto ilícito ligado ao agente por nexo e imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto. Incumbe ao autor (art.342 nº1 do CC) a prova dos factos constitutivos do seu direito, designadamente da culpa.

            Segundo a norma positivada no art.486 do CC, as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente de outros requisitos legais, haja por força da lei ou de negócio jurídico o dever de praticar o acto omitido.

Nesta situação típica da responsabilidade pela omissão, exige-se a comprovação de dois requisitos específicos: (i) a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido, (ii) e que o acto omitido tivesse seguramente ou com maior probabilidade, obstado ao dano ( cf. Vaz Serra, BMJ 84, pág.108; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág.369 ).

Postula-se, assim, a causalidade da omissão, pois que o art.486 do CC não dispensa o nexo de causalidade, genericamente exigido pelo art.483 CC, sendo a finalidade daquele preceito apenas a de esclarecer que as omissões podem juridicamente ser havidas como causa de um facto danoso, sem dispensar a prova de que o acto omitido teria obstado ao dano, com certeza ou com a maior probabilidade.

Aliás, fora dos casos tipicizados no art.486 do CC o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo. Este princípio foi, há muito, objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs ao admitirem vários deveres de tráfego baseados “ na ideia de abrir uma fonte de perigos funda o dever jurídico de adoptar as precauções para o evitar “, como informa Vaz Serra ( BMJ 84, pág.109 e segs. ).

O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação em razões de natureza ética, no princípio geral do “ neminem laedere “ e entre nós Antunes Varela (RLJ ano 114, pág.77 e segs.) veio enfatizar no plano dogmático este princípio geral do direito civil, o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do Código Civil, no sentido de que “a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados“.

A responsabilização das Rés P..., V..., A...

Ocorrendo a morte da vítima R... quando trabalhava por conta da empresa E..., Lda (subempreiteira), questiona-se da responsabilidade da dona da obra (P...), da empreiteira (V...) e subempreiteira (A...).

O DL nº 273/2003 de 29/10 regula as condições de segurança e saúde no trabalho, mas porque a obra executada não é de trabalhos de construção de edifícios e outros no domínio de engenharia civil”, não era exigível um “plano de segurança“ (arts. 2 nº1 h), 6º e 7º).

            Contudo, porque a obra foi executada na proximidade de linhas eléctricas de alta tensão ( art.7º d), implicando um risco especial, “a entidade executante” deve elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que comportam tais riscos e assegurar que os trabalhadores intervenientes na obra tenham conhecimento das mesmas” (art.14 nº1).

            Na situação dos autos verifica-se que na execução da obra era legalmente exigível os procedimentos de segurança, por parte da “entidade executante”, ou seja, a que executa a totalidade ou parte da obra (art.3º h) ).

Comprovou-se que a Ré V... (empreiteira ) elaborou  “Procedimento de Segurança – Trabalhos Próximos de Instalação em Tensão” que continha a informação relevante para assegurar a instalação do poste de madeira de 8 metros naquele local.  Esses procedimentos foram transmitidos pela E... (subempreiteira e empregadora) ao trabalhador R..., enquanto chefe de equipa, sendo certo que ele tinha formação em riscos eléctricos e segurança em trabalhos em altura, e tanto ele como o manobrador P..., estavam habilitados a efectuar a instalação do poste de madeira de 8 metros na vizinhança da linha eléctrica em tensão, em segurança, em conformidade com as medidas de segurança previstas no mencionado “Procedimento de Segurança – Trabalhos Próximos de Instalação em Tensão”(cf. pontos 41  a 45).

Note-se até que o poste de 8 metros veio a ser instalado posteriormente, no preciso local onde a equipa da E... procedia à sua colocação quando se deu o acidente, com recurso aos mesmos meios técnicos e segundo a metodologia prevista no Procedimento de Segurança elaborado pela R. V..., com aprovação da ACT (cf. pontos 47, 48 e 49).

Muito embora não tenham elaborado fichas de procedimento de segurança especificamente para a implantação daquele poste em concreto (cf. ponto 40), sabe-se que o procedimento de segurança continha a informação relevante para assegurar a instalação do poste de madeira de 8 metros naquele local, o que tanto basta para alcançar o desiderato legal, ou seja, a prevenção do risco na execução daquele trabalho.

Daqui resulta que realizados os procedimentos de segurança e transmitidos ao trabalhador R..., não houve sequer violação do art.14 nº1 do DL nº 273/2003.

Por conseguinte, não está comprovada a imputada disposição legal e regulamentar que visa tutelar interesses alheios, significando inexistir ilicitude na omissão, como um dos requisitos da obrigação de indemnização.

Mesmo que porventura se aceitasse a violação das regras de segurança por o procedimento de segurança não se referir aquele poste em concreto, a verdade é que sempre faltaria o nexo de causalidade da omissão, ou seja, que o acto omitido tivesse com certeza ou com maior probabilidade obstado aos danos, o que equivale a dizer não estar demonstrada a objectiva imputação do dano, cuja produção o obrigado teria podido e devido impedir.

Pois bem, só admitida a ilicitude no facto voluntário omissivo (violação das normas legais de segurança no trabalho), e sem entrarmos na problemática do finalismo no direito civil a propósito das omissões relevantes, é que se colocaria o problema da culpa.

            Como regra geral incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.487 nº1 CC ). O nº2 do art.493 CC estabelece uma presunção legal de culpa (presunção “juris tantum”) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa. Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 CC não se altera, contudo, o princípio do art.483 CC de que a responsabilidade depende da ilicitude e da culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.

Postergada a ilicitude na omissão, debalde a convocação do regime do art.493 nº2 CC e as peculiares exigências no rigor da prova liberatória, em que para afastar a responsabilidade, o agente carece de demonstrar que levou a própria diligência “não menos que ao extremo limite“, pois “a previsibilidade do dano está “ re ipsa “ e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para terceiros “ ( Vaz Serra, BMJ 85, pág.376 e 377 ).

            Também não tem sustentação o fundamento da responsabilidade pelo risco, a coberto dos arts.500 e 503 nº3 CC (este apenas aplicável aos acidentes de viação).

No art.500 CC postula-se uma relação de comissão (não no sentido do art.266 e segs, do Código Comercial), concebida como serviço ou actividade realizado por conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa actuação duradoura, e que o comissário seja responsável (em sentido amplo ), repercutindo-se depois a responsabilidade no comitente. O fundamento da responsabilidade do comitente assenta no “risco da empresa”, assumindo uma função de garantia.

O contrato de empreitada caracteriza-se pela autonomia, pois inexiste qualquer mandato ou relação de comissão, logo o dono da obra não é comitente do empreiteiro, para efeitos do art.500 CC.

Coisa diferente é a responsabilidade do dono da obra por facto lícito (dano de obra) como na situação do art. 1348 CC , o que manifestamente não é aqui o caso.

            Os Apelantes convocam em seu abono a aplicação o regime do art.800 nº1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “ actos dos representantes legais ou auxiliares”.

Esta norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.

O art. 800  CC imputa directamente a conduta do auxiliar ao devedor, projectando o comportamento do auxiliar na pessoa do devedor, cuja responsabilidade não pressupõe qualquer dependência ou subordinação do auxiliar em relação ao devedor (como na hipótese do art.500 do CC )( cf. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil Delitual Por Facto de Terceiro, pág.210 e segs.).

A responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja a culpa deste, pelo que devedor só responde, nos termos do art.800 nº1 do CC, se houver culpa do auxiliar, pois que a responsabilidade (objectiva) requer uma imputação do facto ao auxiliar, tal como na responsabilidade do comitente ( cf., por ex., Antunes Varela, Das Obrigações, II, pág.101 ).

Mas o art.800 CC confina-se à responsabilidade contratual, não servindo para tutelar interesses de terceiros perante o dono da obra ou o empreiteiro ( cf., por ex., Ac STJ de 21/10/2010 ( proc. nº 2726/03), em www dgsi.pt ). Ora, na situação dos autos, para além de nem sequer ter existido qualquer situação de responsabilidade contratual, a verdade é que não se provou a culpa do auxiliar, ou seja, do empreiteiro e subempreiteiro.

2.7.- Síntese conclusiva

a) A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.

b) A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.

c) Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.

d) A norma do art.623 CPC abrange apenas as condenações em processo penal, ficando de fora as proferidas no âmbito do processo de contraordenação, de natureza diferente.

e) Na situação típica da responsabilidade pela omissão (art.486 CC) exige-se a comprovação de dois requisitos específicos: (i) a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido, (ii) e que o acto omitido tivesse seguramente ou com maior probabilidade, obstado ao dano.

f) Para além dos casos tipicizados no art.486 do CC, o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo, que impende sobre quem cria ou mantem uma situação especial de perigo.

g) O nº2 do art.493 CC estabelece uma presunção legal de culpa (presunção “juris tantum”) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa. Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 CC não se altera, contudo, o princípio do art.483 CC de que a responsabilidade depende da ilicitude e da culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.

h) Afastada a ilicitude na omissão, não pode convocar-se o regime do art.493 nº2 CC e as peculiares exigências no rigor da prova liberatória.

i) A responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja, a culpa deste, pelo que devedor só responde, nos termos do art.800 nº1 do CC, se houver culpa do auxiliar, mas cujo espectro normativo se confina à responsabilidade contratual.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem

1)

            Julgar improcedente as apelações e confirmar a sentença.

2)

            Condenar os Apelantes nas custas.

            Coimbra, 14 de Novembro de 2017.


( Jorge Arcanjo )

( Isaías Pádua)

( Manuel Capelo )