Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1501/15.1T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO A REPARAÇÃO
IMPENHORABILIDADE
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – JUIZO DO TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 78º DA LEI Nº 98/2009, DE 4/09 (LAT); 736º NCPC; 59º, Nº 1, AL. F) DA CRP.
Sumário: I – A dignidade humana da vítima de acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído.

II – O artº 78º da Lei 98/2009, de 4/09, ao consagrar a impenhorabilidade do direito à reparação por acidente de trabalho, constitui uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana do sinistrado (artº 1º CRP) e o direito consagrado no artº 59º, nº 1, al. f) da CRP.

III – Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado.

Decisão Texto Integral:



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório

A... intentou execução de sentença contra B... , no âmbito da qual requereu a penhora dos créditos que sejam devidos à executada provenientes do acidente de trabalho em que a mesma foi sinistrada, em relação ao qual corre termos o P. 756/16.9T9GRD.

Por despacho com data de 21/09/2016 (ref. 24546072), decidiu-se:

«Fls. 28-32/ Referência 697957:

De acordo com o artigo 78º da Lei dos Acidentes de Trabalho:

“Os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis, e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho” [o sublinhado é nosso].

Indefere-se pois a requerida penhora de créditos.»

Não se conformando com esta decisão, veio a exequente interpor recurso da mesma, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

[…]

Não foram apresentadas contra-alegações.

Admitido o recurso, os autos subiram ao Tribunal da Relação, tendo sido observado o preceituado no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida.

Não foi oferecida resposta ao parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. Objeto do Recurso

            É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

            Em função destas premissas, a única questão que importa decidir é a de saber se o crédito proveniente do direito à reparação do acidente de trabalho da titularidade da ora recorrida, na qualidade de sinistrada, é penhorável.


*

            III. Matéria de Facto

            A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para a qual remetemos, sem necessidade da sua repetição.


*

IV. Direito

            A questão que importa dilucidar e resolver é exclusivamente de natureza jurídica e respeita, como já referimos anteriormente, em saber se o crédito proveniente do direito à reparação do acidente de trabalho da titularidade da ora recorrida, na qualidade de sinistrada, é penhorável.

Desconhecemos em que data terá ocorrido o alegado acidente de trabalho que vitimou a ora recorrida e, como tal, o específico regime legal que se lhe aplica (Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, Lei 100/97, de 13 de setembro ou Lei 98/2009 de 4 de setembro).

Todavia, tal questão não é significativa uma vez que a norma que urge interpretar e que foi aplicada como justificação para o despacho que indeferiu a penhora tem-se mantido igual nos sucessivos regimes de reparação dos acidentes de trabalho no que concerne à consagração da natureza impenhorável, inalienável e irrenunciável do crédito proveniente da reparação de um acidente de trabalho [1].

O tribunal a quo considerou que atento o preceituado no artigo 78.º da Lei 98/2009, o crédito proveniente do alegado acidente de trabalho que vitimou a executada/recorrida é absolutamente impenhorável, indeferindo, assim, a requerida penhora do mesmo.

Alega a apelante que a norma em causa terá de ser interpretada com respeito pelo princípio ínsito no artigo 62.º da Lei Fundamental que comporta a proteção do credor à satisfação do seu crédito.

Analisemos a questão.

Na motivação do recurso, a apelante baseia a sua tese no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/04/2004, P. 479/04-1, acessível em www.dgsi.pt.

Escreveu-se no identificado aresto:

«O artº 35º da Lei nº 100/97, reproduzindo ipsis verbis o que já dizia a Base XLI da Lei nº 2127, determina que os créditos provenientes dos direitos às prestações estabelecidas pela lei de acidentes de trabalho são impenhoráveis.

A decisão recorrida interpretou todavia este normativo à letra, sem atender aos ditames da restante ordem jurídica.

Mas tal interpretação sempre seria inaceitável, pois que tal norma, fixando em termos absolutos a impenhorabilidade dos bens a que se refere, contenderia pelo menos com o princípio ínsito no artº 62º da CRP, de que o direito do credor à satisfação do seu crédito é ainda manifestação.

Certo que em caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu crédito e o direito fundamental ao percebimento das pensões emergentes de acidente de trabalho, opta a lei por sacrificar o direito do credor. Mas isto só na medida do necessário. Na realidade, só pareceria ser conforme à CRP uma interpretação que limitasse a impenhorabilidade de tais créditos ao quantum tido por razoavelmente necessário para a subsistência condigna do titular dos créditos (v. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 4ª ed., pág 164). E isto vale integralmente para o caso da remição do capital, pois que também aqui estamos perante um direito de crédito, sucedâneo do direito de crédito ao recebimento periódico das pensões.

Acontece que, ciente de que normas como a que está em causa não seriam conformes à CRP, veio a lei estabelecer que a impenhorabilidade não tem que valer em termos absolutos. Efetivamente, o artº 12º do DL nº 329-A/95 é muito claro quanto a isto, ao prescrever que não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artº 824º do CPC. Portanto, o que não pode ser penhorado em processo civil são apenas 2/3 das pensões pagas por acidente de trabalho, de acordo com o constante da alínea b) do nº 1 do artº 824º do CPC. O 1/3 remanescente é suscetível de penhora.

Isto não significa, bem entendido, que esse 1/3 remanescente possa ser sempre penhorado (o nº 3 do artº 824º é aliás claro quanto a isto). É que se com a penhora se colocar em causa a subsistência do devedor, tem o artº 824º, nº 1 b) do CPC (na redação anterior à atual, que é a aplicável ao caso) que ser interpretado de forma conveniente, sob pena de violação da CRP. E essa forma conveniente leva a que pelo menos até ao valor do salário mínimo nacional a penhora não possa ser ordenada. Isto foi aliás já definido pelo TC. Com efeito, no Ac nº 177/2002 (DR-I-A, de 2.7.2002) declarou o TC com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do supra citado normativo, quando interpretado no sentido de que a penhora podia atingir rendimentos inferiores ao salário mínimo mensal, posto que o executado não fosse titular de outros bens suficientes para satisfazer a dívida exequenda. Este entendimento foi aliás levado em linha de conta pelo legislador, conforme resulta agora do nº 2 do artº 824º do CPC, na redação introduzida pelo DL nº 38/2003

Ora, pelo que fica dito se vê que in casu nada impedia que à partida se ordenasse a penhora em 1/3 do valor das pensões percebidas pelos executados, exatamente como começou por fazer o Mmº juiz. Na realidade, esta penhora só poderia deixar de ser ordenada se acaso se mostrasse que os executados não possuíam outros meios de subsistência, pois que neste caso a penhora seria inadmissível por contender contra o princípio da garantia de um mínimo de subsistência. Acontece todavia que nenhum elemento de facto constante do processo sugeria que os meios de subsistência dos executados se confinavam às pensões que recebiam.

Donde, tem o agravante razão ao sustentar que o despacho recorrido, ao recusar a penhora com fundamento na impenhorabilidade dos créditos nomeados, é ilegal. Na realidade, só se posteriormente, em face de eventual oposição à penhora (v. artºs 863º-A e 926º do CPC), se viesse a mostrar que a penhora ordenada ofendia o falado princípio da garantia de um mínimo de subsistência, é que cabia vetá-la, repristinando-se aos executados as quantias que lhes tivessem sido entretanto retiradas.

Portanto, cabe sujeitar aos fins da presente execução, na medida do que ainda for possível, os créditos nomeados à penhora (sendo que o crédito da executada Augusta se converteu no capital de remição).

E dizemos “na medida do que ainda for possível” pois que os autos revelam que o Mmº juiz do Tribunal de Trabalho decidiu (mal, como se vê, além de que a sujeição do capital de remissão aos fins da execução é assunto da exclusiva competência do tribunal da execução) que a seguradora não estava autorizada a descontar no capital de remição a porção penhorada. Não sabemos portanto se, em cumprimento da obrigação imposta no processo corrente pelo Tribunal do Trabalho, a Seguradora entregou à credora tal capital.»

O entendimento manifestado neste aresto, foi seguido pelo Acórdão da Relação de Coimbra, de 24/01/2012, proferido no P. 159-I/1993.C1, disponível na mesma base de dados, onde se pode ler:

«Para além dos casos que são enumerados nas diversas alíneas do artº 822º do CPC, são ainda absolutamente impenhoráveis, por força do estatuído no corpo do artigo, os “bens isentos de penhora por disposição especial.”

De acordo com o art.º 824º, n.º 1, al. a), do CPC, na redação do DL nº 38/2003, de 08/03, são impenhoráveis dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado.

Por sua vez, a alínea b) desse nº 1 estabelece serem impenhoráveis “Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.”.

Finalmente, o artº 35º da Lei nº 100/97, de 13/09, preceitua: «Os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estas na classificação legal.»[3].

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 177/2002, (DR - I Série A, de 02/07/2002) declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resultava da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permitia a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não fosse titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não fosse superior ao salário mínimo nacional.

Tal juízo de inconstitucionalidade teve por base a violação do princípio da dignidade humana plasmado nas disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, al. a) e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Através do DL n.º 38/2003, de 08/03/2003, veio-se expurgar a declarada inconstitucionalidade por via da alteração do referido art.º 824º, passando este a consagrar no respetivo n.º 2: “A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”.

O Prof. Menezes Leitão refere que “…a reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho não tem um carácter estritamente reparatório, sendo a sua função antes de carácter alimentar. As suas características são como as que de uma obrigação de alimentos fundada numa situação de necessidade o que, só por si explica o seu carácter limitado (cf. o artigo 2004 do Código Civil)"[4].

Ora, o que aqui está em causa é saber se o disposto no artº 35º obsta, em absoluto, a que, no âmbito do processo civil, seja atingido pela penhora o crédito às prestações emergentes de acidente de trabalho (aqui, em particular, para satisfação coerciva da obrigação de alimentos).

Esta questão, salvo o devido respeito por opinião diversa, merece resposta negativa, de acordo com o entendimento que é de fazer do disposto no mencionado artº 35º, à luz do art.º 12º do DL n.º 329-A/95, de 12/12, e dos preceitos do CPC que disciplinam a penhora.

Efetivamente, segundo o art.º 12º do DL n.º 329-A/95, “não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no art.º 824.º do Código de Processo Civil.”.

Comentando o disposto no artº 822º do CPC e os exemplos que dá de impenhorabilidade imposta por lei especial - v.g., os créditos provenientes do direito à indemnização por acidente de trabalho (artº 302º do CT) -, observa o Cons. Amâncio Ferreira[5]: «Tenha-se todavia em conta que as disposições referidas, que estabelecem a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no art. 824º, não são invocáveis em processo civil, nos termos do art.º 12º do DL 329-A/95, que mais não é do que emanação da jurisprudência do TC.».

Como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, em ambos os acórdãos a justificação para a possibilidade da penhora dos créditos emergentes de acidente de trabalho assentou na norma consagrada no artigo 12.º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12-12[2], entretanto revogada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil.

Vejamos então se face ao ordenamento jurídico vigente é possível a penhora do crédito, requerida.

É consabido que a ação executiva visa assegurar ao credor a satisfação coativa de uma obrigação que lhe é devida e que não foi voluntariamente cumprida (artigos 10.º, n.º 4 do Código de Processo Civil e 817.º do Código Civil).

Constituindo o património do devedor uma garantia geral de cumprimento das suas obrigações, através da ação executiva para pagamento de quantia certa (a que nos interessa para o caso vertente) procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado com vista ao pagamento da dívida exequenda.

De harmonia com o princípio geral estabelecido no n.º 1 do artigo 735.º do Código de Processo Civil estão sujeitos à execução todos os bens do devedor que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.

Por sua vez, o artigo 736.º, alínea a) estipula que são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial, as coisas ou direitos inalienáveis.

Ou seja, não podem ser penhorados os bens ou direitos que uma lei especial declare isentos de penhora ou que por serem inalienáveis, não há possibilidade de serem ulteriormente transmitidos (v.g. pela sua venda).

Ora, o artigo 78.º da Lei 98/2009, prevê a impenhorabilidade e a inalienabilidade dos créditos provenientes do direito à reparação por acidente de trabalho.

Deste modo, à luz do preceituado no artigo 736.º do Código de Processo Civil, o direito em causa é absolutamente inapreensível.

Assim o considerou o tribunal de 1.ª instância na interpretação que fez do aludido artigo 78.º.

Refere a apelante que tal interpretação viola os artigos 18.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Salvaguardado o devido respeito, que é muito, não concordamos com a apelante.

É certo que da garantia constitucional do direito de propriedade privada prevista no artigo 62.º da Lei Fundamental se extrai a garantia (constitucional também) do direito ao credor à satisfação do seu crédito (Acórdãos do Tribunal Constitucional 494/94, de 12/07/1994, da 2.ª secção e 770/2014, de 12/11/2014). Contudo a própria Constituição prevê a possibilidade de restrição de direitos constitucionais.

Estipula o nº 2 do artigo 18.º:

«A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Sobre o conteúdo da proporcionalidade prevista na Constituição, tem-se pronunciado o Tribunal Constitucional em jurisprudência produzida ao longo de anos.

Por exemplo, escreveu-se no Acórdão n.º 634/93, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:

«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

Conforme se escreveu no Acórdão da Relação de Guimarães de 25/06/2015, P.309/09.8TTBCL.C.P1.G1, «A reparação dos sinistros laborais tem um cunho marcadamente social e protecionista, visando dar cumprimento aos comandos constitucionais dos artigos 59.º, 1, al. f) e 63.º, 3 da CRP».

O regime jurídico dos acidentes de trabalho é imperativo e «pretende garantir ao sinistrado, diminuído nas suas capacidades físicas com rebate profissional, a manutenção das condições materiais que tinha antes do sinistro, preservando-se a sua dignidade – artº 1 da CRP» (citação retirada do mesmo acórdão).

A indemnização prevista no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho não mortais visa alcançar a recuperação física e psíquica do sinistrado, de modo a aproximar-se o mais possível da restauração natural ou quando tal restauração não for possível, nos termos gerais do direito das obrigações, fixa-se uma indemnização pecuniária sucedânea (artigos 562.º e 566.º do Código Civil).

A conservação da dignidade humana da vítima do acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído.

E para garantir o cumprimento da reparação assegurada por tal regime, o legislador consagrou como garantia a inalienabilidade, impenhorabilidade e irrenunciabilidade dos créditos provenientes do direito à reparação.

O regime instituído constitui um corolário das garantias constitucionais consagradas nos artigos 1º (dignidade da pessoa humana) e 59.º, n.º 1, alínea f) (direito das vítimas de acidentes de trabalho à assistência e justa reparação).

Consagrando assim o artigo 78.º da Lei 98/2009 uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana, contido no espírito do Estado de Direito, afigura-se-nos que tal normativo não afronta o direito do credor à satisfação do seu crédito.

Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado.

A restrição do direito do credor à satisfação do seu crédito é pois adequada, exigível e proporcional.

Por conseguinte, não consideramos que a interpretação do artigo 78.º da Lei 98/2009 assumida pelo tribunal a quo, com a qual concordamos, viole os artigos 18.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.


*

            V. Decisão

            Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.

            Notifique.

            Coimbra, 9 de fevereiro de 2017

Relatora: Paula do Paço

1º Adjunto: Ramalho Pinto

2º Adjunto: Azevedo Mendes

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Sumário elaborado pela Relatora:
I- A dignidade humana da vítima do acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído.
II- O artigo 78.º da Lei 98/2009, ao consagrar a impenhorabilidade do direito à reparação por acidente de trabalho, constitui uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana do sinistrado (artigo 1.º CRP) e o direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da Constituição da República Portuguesa.
III- Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado.


[1] - Base XLI da Lei 2127, de 3-8-1965: «Os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estes na classificação legal.»
- Artigo 35.º da Lei 100/97 de 13-9: «Os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estes na classificação legal.»
- Artigo 78.º Lei 98/2009, de 4-9: «Os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.»

[2] Artigo 12.º do DL 329-A/95, de 12/12: «Não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 284.º do Código de Processo Civil.»