Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316/13.6GAPMS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: DISPENSA DE PENA
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
ASSISTENTE
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CRIMINAL - JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 280.º E 286.º E SS., DO CPP
Sumário: O requerimento de abertura da instrução não é meio processual legalmente admissível para o assistente reagir contra despacho de concordância de juiz de instrução com a decisão de arquivamento de processo em caso de dispensa da pena.
Decisão Texto Integral:
ACORDÃO NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Nos autos de Inquérito que sob o número em epígrafe, correram termos pelos serviços do Ministério Público na comarca de Leiria, entre o mais que ora não importa, finda essa fase processual, relativamente aos crimes de ofensa á integridade física simples foi entendido «estarem verificados os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos A... e B... do instituto do arquivamento em caso de dispensa de pena, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 3 e 74º, nº 1, alíneas a), b) e c), ex vi do nº 3, todos do Código Penal, e artigo 280º, nº 1 do Código Penal». No mais, foi ordenado o arquivamento dos autos.

Na sequência, foi ordenada a remessa dos «autos à distribuição como acto jurisdicional, requerendo-se ao M.mo Juiz de Instrução que se pronuncie acerca da aplicação aos arguidos do instituto do arquivamento em caso de dispensa de pena, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 280º do Código de Processo Penal.

Remetidos os autos ao JIC, viria este a proferir despacho através do qual mostrou a sua concordância com a proposta de arquivamento; após, o MP, obtida essa concordância, determinou o arquivamento dos autos, por dispensa de pena.

Posteriormente, o queixoso e ofendido A... requereu a sua constituição como assistente, a qual foi admitida por despacho judicial.

Seguidamente formulou requerimento de abertura de instrução relativamente a todo o objecto do inquérito, nele incluído o crime relativamente ocorrera aquele arquivamento, por dispensa de pena (crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo artº 143º, 1, do CP).

Em despacho liminar, o M.mo JIC indeferiu a instrução relativamente a este crime, «por inadmissibilidade legal»; argumentou, a propósito: «não obstante as divergências na jurisprudência quanto à legitimidade do assistente impugnar (através de recurso) a decisão de concordância do juiz quanto ao arquivamento do inquérito, em caso de dispensa de pena (apenas quanto à verificação dos respectivos pressupostos e requisitos legais e já não quanto ao juízo de oportunidade) considera-se que tendo o Ministério Público, com a concordância do Juiz de Instrução, arquivado o inquérito com fundamento nesse instituto, não pode o assistente requerer a abertura da instrução relativamente a esses factos.

Na verdade, ainda que se considerasse admissível um controlo judicial da decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena, este só poderia ser viabilizado por meio da interposição de recurso para um tribunal superior, na medida em que um órgão judicial (juiz de instrução) já se pronunciou acerca da verificação dos pressupostos substantivos da dispensa da pena».

Inconformado com tal decisão, o assistente interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. Particularidade não despicienda do caso concreto, o recorrente é, simultaneamente arguido e assistente, tendo o MP entendido ter ele próprio agredido o arguido (e queixoso) B..., com alegados elementos probatórios/indiciários suficientes recolhidos em inquérito que sustentassem acusação contra ambos o ora recorrente e B....

2. A aplicação do instituto do arquivamento em caso de dispensa de pena depende da apreciação e conclusão do MP sobre a prova produzida e de quanto consta do inquérito sobre os factos objecto de queixa, assentando a aplicação daquele instituto no entendimento do MP de que havia (e de que há) indícios suficientes da prática de um crime de ofensa à integridade física simples por ambos os arguidos, o recorrente e B....

3. Encerrado o inquérito pelo MP, o ora recorrente foi notificado, enquanto arguido e também denunciante, por ofício de 13 de Março de 2014, do despacho do MP de fls. 154 a 166 (acompanhado do despacho judicial de fls. 170 e do despacho de fls. 175), por que foi decidido arquivar o inquérito, nos termos do artº 277º do CPP, e para efeitos do previsto no artº 287º, 1, do mesmo diploma, ou seja, para requerer, querendo, a abertura de instrução.

4. Como referido no requerimento de abertura de instrução de 10 de Abril de 2014, « A... é tanto assistente como arguido, estando ao seu alcance, como faz, requerer a abertura de instrução tanto por factos pelos quais se deverá atender a indícios bastantes da respectiva prática por B..., com vista à pronúncia deste (artº 287º, 1, b), do CPP) como por factos por que se tenha considerado estar indiciado (artº 287º, 1, a), do CPP), designadamente como pressuposto da dita possibilidade de dispensa de pena e inerente arquivamento dos autos».

5. A pronúncia judicial de 7 de Março de 2014 cingiu-se à necessária concordância, verificados os pressupostos e requisitos legais, com a aplicabilidade do arquivamento em caso de dispensa de pena, como proposto pelo MP e exigido por força do previsto no nº 1 do artº 280º do CPP para que o MP pudesse, em conformidade com o que era de seu entendimento sobre o inquérito e ao abrigo daquele instituto, proferir despacho de arquivamento substitutivo de uma acusação contra o aqui recorrente e o outro arguido B....

6. Ao ora recorrente não foi sequer assegurada possibilidade de pronúncia (e contraditório) sobre o proposto pelo MP em 7 de Março de 2014, porquanto se tratava tão somente de obter a concordância judicial sobre a aplicabilidade legal – sem que tal se confunda minimamente com efectivamente apreciar ou reapreciar o inquérito e a dita existência de indícios suficientes de agressões mutuas – do instituto do arquivamento em caso de dispensa de pena.

7.Como resulta expressamente do nº 3 do artº 280º do CPP, a decisão de arquivamento proferida nos termos deste preceito legal não é susceptível de impugnação – tratando-se, de resto, de decisão do MP.

8. No que respeita à possibilidade de se suscitar a intervenção hierárquica, também se refere, desde logo, no nº 2 do artº 278º, do CPP que se trata, à partida, de opção do assistente – não sequer do arguido – caso não requeira a abertura de instrução, não se vendo tenha, de resto, devida aplicação ao caso concreto o acautelado no nº 1 do mesmo preceito legal.

9. Muito menos seria expediente atendível, neste caso, a reclamação hierárquica como prevista no nº 2 do artº 279º do CPP, ou seja uma reacção hierárquica a decisão sobre pedido de reabertura do inquérito, quando esgotado o prazo para requerer a abertura de instrução e se surgissem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo MP no despacho de arquivamento – nada do que aqui estava e está em causa, reportado ao próprio inquérito, o que dele consta e a decisão do MP no sentido da acusação, pressuposto da aplicação do instituto previsto no artº 280º daquele mesmo diploma legal.

10. Sendo, no caso, a aplicação daquele instituto alternativa à dedução de acusação contra ambos os arguidos, não se lhes pode vedar o adequado expediente legal e processual tendente a reapreciação – que não pelo MP –de efectiva existência ou não de indícios que permitissem a acusação e, consequentemente, a sua substituição pelo arquivamento por via do aludido instituto.

11. Não tem o recorrente que se conformar, mesmo enquanto arguido, com um entendimento em comos e justificava acusá-lo, por alegada existência de indícios bastantes de que praticou um crime e com que foi nesse pressuposto que se entendeu arquivar o processo, antecipando-se mesmo que seria considerado culpado em julgamento, mas dispensado de pena.

12. O processo penal exige-se equitativo, pautado pelo princípio fundamental da igualdade de armas, estando em causa verdadeiro respeito pelos princípios, direitos e garantias fundamentais previstos no artº 20, 1 e 4 e 32º, 1, 2, 4 e 7 da Constituição da República Portuguesa, bem com o que de fulcral se consagra no artº 6º, 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

     Remata pedindo a revogação da decisão recorrida.

     Respondeu o arguido B..., concluindo pelo não provimento do recurso.

     Também respondeu o MP junto do tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões:

1.Tendo o MP, com a concordância do Juiz de Instrução, arquivado o inquérito com base no instituto de dispensa de pena (artº 280º, CPP), não pode o assistente requerer a abertura de instrução relativamente a esses factos, por inadmissibilidade legal.

2. Não pode ser comprovada judicialmente uma decisão sobre a qual já incidiu um despacho judicial, in casu, o despacho de concordância proferido pelo M.mo Juiz de Instrução quanto à proposta de arquivamento pelo MP.

3. Não foram violadas quaisquer normas legais ou princípios gerais de Direito.

     Remata concluindo pelo não provimento do recurso.

     O M.mo Juiz proferiu despacho, sustentando a sua decisão recorrida.

     Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo nos seguintes termos:

«o recurso interposto pelo assistente/arguido (…) merece provimento na parte em que alega que interpõe o presente recurso invocando a existência de elementos de prova suficientes para pronunciar o arguido B... pela prática de um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo artº 143º, 1, do CP, sendo que a aplicação do instituto de dispensa de pena não pode vedar o adequado expediente legal e processual tendente à reapreciação - que não pelo Ministério Público – de efectiva existência ou não de indícios que permitissem uma acusação, a serem apreciados em sede de instrução».

DEDIDINDO:

Resulta da disposição do artº 280º, 1, do CPP, que a encerrar a fase de inquérito, ao MP é lícito arquivar o processo, se este respeitar a «crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena». Mor é que se verifiquem os pressupostos daquela dispensa da pena e que seja obtida a concordância do juiz de instrução (necessariamente fiscalizadora da reunião daqueles pressupostos no caso concreto).

Proferida uma acusação, ainda assim, o juiz de instrução pode arquivar o processo, enquanto esta decorrer, nas mesmas circunstâncias, desde que seja obtida a concordância do arguido e do MP (nº 2).

Em qualquer das hipóteses (nºs 1 e 2) a decisão de arquivamento não é susceptível de impugnação (nº 3).

Desta resenha legal resulta que o arguido apenas será ouvido se tiver sido já formulada acusação contra si e que o assistente, em caso algum, é ouvido, quando estiver em causa o arquivamento a que se refere esta norma.

E o mérito da decisão em si, não pode ser atacado, seja por via de intervenção hierárquica, seja através da interposição de recurso.

No caso presente o arquivamento foi determinado a encerrar o inquérito, constituindo, assim, decisão do MP; a intervenção acidental do juiz de instrução, fiscalizadora da reunião concreta dos enunciados pressupostos, não constitui uma decisão autónoma e que esteja no âmbito da autonomia intencional do juiz, sendo antes uma decisão vinculada, que apenas pode ir no sentido alternativo da afirmativa ou da negatória relativamente à perfeição da previsão normativa relativamente à reunião dos pressupostos em causa.

Afigura-se ao legislador penal que ao ser proferida uma decisão de arquivamento em consonância com esses ditames se mostram asseguradas as necessidades de perseguição dos crimes e dos seus agentes e a prossecução da paz pública, dadas, por um lado, as diminutas ilicitude do facto e da culpa do agente (artº 74º, 1, a), do CP) a inexistência ou a reparação do dano (al. b)) e a não oposição de razões de prevenção (al. c)). Reunido este quadro necessariamente pouco exigente em termos de perseguição do crime e de prevenção, e atenuados os danos causados à vítima, em sentido lato, compreende-se que a pesada máquina da Justiça cesse por aqui a sua intervenção. Estes argumentos afastam, in limine, a possibilidade de se falar em violação do princípio fundamental da igualdade de armas, a que o recorrente faz apelo ou, sequer dos princípios ínsitos nos artºs 20º, 1 e 4 e 32º, 1, 2, 4 e 7 da Lei Fundamental ou no artº 6º, 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. (Curiosamente, uma das normas constitucionais que o assistente afirma ter sido violada é a do artº 32º, 7, da CRP, segundo a qual «o ofendido tem o direito de intervir no processo nos termos da lei». A norma em causa relega para a lei ordinária a definição das situações em que o ofendido pode ter intervenção no processo e aquelas em que tal intervenção lhe está vedada, e a norma do artº 280º, em estudo, é, precisamente, uma daquelas que procede a tal delimitação, sem ferir o espírito da lei superior).

Traçado este quadro, damos notícia da existência de diversas teses que na doutrina e na jurisprudência se debatem a propósito: a de que o despacho de arquivamento, sendo proferido pelo MP é, pela sua natureza, irrecorrível, assim como é irrecorrível o despacho de concordância do juiz, já que não implica uma decisão judicial em sentido próprio (despacho do Presidente da Relação de Lisboa, proferido no P.0036953, pesquisado em www.dgsi), com a variante, resultante do acórdão proferido no P.761/11.4GDVFR, de que está ao dispor do assistente, nesse caso, a reclamação hierárquica (P.761/11-4GDVFR, pesquisado na mesma fonte) ou da pura e simples admissibilidade de recurso do despacho de concordância do juiz, mas apenas para verificação da reunião, no caso concreto, dos pressupostos e requisitos legalmente exigidos (P.0847713 e 0611706 da Relação do Porto e 719/11.0PWLSB, da Relação de Lisboa, consultados na mesma base documental).

O que se nos afigura é que não pode o assistente, nos casos como o presente, requerer a abertura de instrução, até porque, nos termos legais, o regime da dispensa da pena pressupõe a declaração de um estado de culpa do agente (v. o artº 74º, 1, proémio, do CP) que, todavia, não será sancionada com uma reacção penal; se a existência da culpa está reconhecida, pelo menos em termos indiciários, não se justifica a abertura da fase jurisdicional da instrução que visa, entre o mais, e precisamente, o estabelecimento dessa culpa, com submissão do agente a julgamento (artº 286º, 1, do CPP). Neste sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Évora, proferido no P.3/10.7GCRDD, pesquisado em www.dgsi). Como é sumariado no acórdão da mesma Relação, proferido no P.77/12.6GGSTC, «A cláusula de inimpugnabilidade prevista pelo nº 3 do art. 280º do CPP não vincula o assistente, ficando em aberto para este sujeito processual a possibilidade de impugnar por via de recurso os despachos de concordância proferidos pelo Juiz de Instrução, nos casos regulados pelo nº 1 do referido artigo.»

Em termos de coerência do sistema, se o despacho de arquivamento do inquérito, nestes casos, não pode ser impugnado, por identidade de razão, e até porque pressupõe a formulação de um juízo de culpabilidade, não pode ser questionado em instrução.

Assim sendo, temos de concluir, como o faz o MP em primeira instância e o M.mo Juiz recorrido, no seu despacho de sustentação, que o recurso não pode proceder.

Termos em que, na total improcedência do recurso, se confirma na totalidade a douta decisão recorrida.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 21 de Janeiro de 2015

(Jorge França - relator)

(Fernanda Ventura - adjunta)