Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1517/17.5PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
RECUSA DE DEPOIMENTO
PROVA PROIBIDA
INVALIDADE DO JUÍZO VALORATIVO DO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 18.º, N.º 2, 20.º, N.º 4, E 32.º, N.ºS 1 E 5, DA CRP; ART. 6.º DA CEDH; ARTS. 122.º, N.ºS 1 E 2, 128.º, N.º 1, 129.º E 134.º, N.º 1, AL. A), DO CPP
Sumário: I – Não basta chamar a testemunha de que se ouviu dizer a depor para que o depoimento de ouvir dizer possa ser valorado; necessário é também que a dita testemunha preste depoimento.

II – A valoração de depoimento de testemunha de ouvir dizer quando a testemunha de que se ouviu dizer se remete, em julgamento, ao silêncio, consubstancia prova proibida, determinante da elaboração de nova sentença, no tribunal a quo, expurgada de juízo valorativo decorrente da referida prova legalmente inadmissível.

Decisão Texto Integral:

















Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal singular 1517/17.5PBCBR da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra, Juiz 1, após realização da audiência de julgamento, em 15 de Janeiro de 2019 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto:

1. Julgo a acusação pública parcialmente provada e procedente e, consequentemente, decido:

a) Condeno o arguido, como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de dois anos e seis de prisão.

b) Ao abrigo do disposto nos artigos 50°, e 53°, do Código Penal, atenta a personalidade do arguido, às condições da sua vida e às circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, concluo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção, pelo que decido suspender na sua execução a pena de dois anos e seis meses de prisão, ora imposta ao arguido, pelo período de dois anos e seis meses, sujeita a regime de prova, assente num plano de reinserção social, por forma a alcançar os seguintes objectivos:

- Prevenir o cometimento pelo arguido no futuro de factos de idêntica natureza;

- Permitir o confronto do arguido com as suas acções, de forma a que o mesmo adquira competências pessoais e sociais tendentes a determinar-se no futuro de acordo com o direito, evitando a reincidência;

2. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pelo (…), contra o arguido/demandado provado e procedente e, consequentemente, condeno o arguido a pagar ao demandante a quantia de € 112,07, acrescida de juros de mora, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

3. Condeno o arguido nas custas criminais, com taxa de justiça que se fixa em 3 uc.

4. Não há lugar a custas civis atento o montante do pedido.

Inconformado, recorreu o arguido (…), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1 - Nos presentes autos não foi produzida prova (testemunhal) concludente a permitir dar como provados os factos imputados ao arguido.

2 - Do depoimento da testemunha (…) resulta que o arguido não praticou os factos ou quaisquer maus tratos físicos ou psíquicos à sua companheira, antes pelo contrário, respeita-a, ajuda-a, trata bem, apoia e relaciona-se amorosamente até a actualidade, como aliás vem provado.

3 – O depoimento da testemunha (…), não se mostra credível e não podia o Tribunal a quo valorar, uma vez que a testemunha está de relações cortadas com o arguido, sendo por isso manifesta a falta de credibilidade.

4 - Do depoimento da testemunha (…), que é irmão da ofendida, em momento algum este afirmou que assistiu a agressões físicas, não tendo conhecimento de factos.

5 - Na douta sentença dá-se apenas como provado os factos com base no “diz que disse” e apenas por as testemunhas referirem que foi a ofendida que “contou”, o que não é correcto.

6 - A douta sentença recorrida incorre em vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e bem assim erro na apreciação da prova (cfr. art. 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), dando o Tribunal a quo por provados factos que nunca se verificaram, não se podendo ser valorados os depoimentos das testemunhas como erradamente se valorou e concluir por uma realidade que não aconteceu.

7 - O recorrente considera errada e incorrectamente julgada a decisão sobre a matéria de facto provada constante dos pontos identificados sob os n.ºs 2 a 15 da douta sentença, devendo os mesmos serem dados como NÃO PROVADOS, devendo consequentemente o arguido ser absolvido do crime em que foi condenado, por força do princípio in dúbio pro reu (art. 32.º, n.º 2, da CRP).

8 - Vem provado que o arguido e a sua companheira (…) reataram o relacionamento, situação que se mantém residindo o casal em casa da mãe do arguido, suportando as despesas domésticas consigo e com a sua companheira e perante tal realidade e quadro de incerteza da prática dos factos, não deve desfavorecer-se o arguido.

9 - Não se encontrando verificados e preenchidos os elementos integradores, quer objectivos, quer subjectivos, do tipo de crime de violência doméstica, devendo o arguido ser absolvido por força do princípio in dúbio pro reu.

10 - Ainda que assim não se entenda, o que não se concede e apenas se está a admitir por mero dever de patrocínio, sempre a pena aplicada pelo Tribunal a quo se mostra desproporcionada, mostrando-se inadequada e excessiva atentas as circunstâncias do caso, violando as regras de determinação da medida da pena.

11 - O arguido não tem registado qualquer antecedente criminal da idêntica natureza, tendo o arguido e a sua companheira, que são pessoas jovens, reatado o relacionamento amoroso, situação que se mantém actualmente até ao presente sem registo de quaisquer incidentes, encontrando-se socialmente inserido, sendo que os episódios de discussão que ocorreram no casal eram mútuos e de parte a parte e apenas se verificaram num período pontual do relacionamento, sem que porém tenha existido qualquer desavença ou violência, seja física ou verbal.

12 - Considerando-se as circunstâncias favoráveis, o conjunto dos factos, a personalidade do arguido, a ausência de antecedentes criminais pela prática do mesmo crime, entende o recorrente que igualmente se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, determinar-se a fixação da pena no mínimo legal, suspendendo-se igualmente a sua execução como se decidiu e bem.

13 - A douta sentença viola, entre outros, o disposto no art.º 32.º, n.º 2, da CRP, art.º 40º, 71º, e 152º, n.º 1, al. b) do C.P e art.º 127.º, 374º, n.º 2, al.s a) e c), do nº 2 do art.º 410º do C.P.P.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença proferida e o arguido absolvido do crime imputado ou caso assim não se entenda, deverá ser reduzida a pena ao mínimo legal, suspensa por igual período de tempo na sua execução.

Vª. Exª. farão, porém, a v/ esperada e costumada, JUSTIÇA.

(…).

            A sentença recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido e (…), viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, como se marido e mulher fossem, durante cerca de 4 anos, primeiro em casa da mãe de (…), e depois numa residência sita no r/c na Rua (…), em (…), até 13.12.2017, data em que (…) abandonou a casa de morada do casal.

2. Desde o início da relação marital, o arguido revelou possuir uma personalidade muito possessiva, controladora e ciumenta para com a sua companheira (…), não permitindo, designadamente, que a mesma saísse sozinha de casa para convívio, o que motivou a existência de discussões frequentes entre o casal.

3. Na madrugada do dia 06 de Maio de 2017, o arguido, de forma não concretamente apurada, e em local não concretamente apurado, agrediu fisicamente a (…), causando-lhe como consequência directa e necessária de tal actuação, uma ferida incisa sangrenta na região frontal direita (por cima da sobrancelha).

4. Em consequência de tal actuação do arguido, no dia 06.05.2017, (…) deu entrada no Serviço de Urgência do (…), onde foi assistida, tendo aí sido suturada a ferida que apresentava, tendo a mesma aí justificado que tinha caído.

5. No dia 13 de Dezembro de 2017, a hora não concretamente apurada, no interior da residência de casal, por motivos não concretamente apurados, o arguido desferiu diversas pancadas no corpo de (…), utilizando para tanto, designadamente, um pau de madeira.

6. Em consequência de tal conduta do arguido, (…) sofreu dores na região da nádega esquerda e no membro inferior esquerdo, apresentando nesta última parte do corpo uma área equimótica arroxeada no quadrante infero-lateral da nádega, medindo 9 cm de comprimento por 5,5 cm de largura.

7. As mencionadas lesões determinaram para a sua cura um período de doença de 7 dias, com afectação da capacidade de trabalho em geral.

8. Na sequência de tal actuação do arguido, (…) abandonou nesse dia a casa de morada do casal, e foi para a casa da sua mãe, sita na Rua (…).

9. A partir do referido dia 13 de Dezembro de 2017, o arguido tem vindo a ameaçar a família de (…), designadamente a mãe desta, dizendo que “acaba com todos”.

10. Em dia não concretamente apurado do mês de Dezembro de 2017, situado após o dia 13 e antes do Natal, à noite, (…), juntamente com o seu irmão (…), e uma sua amiga, encontravam-se no interior de um bar sito na Praça da (…), tendo o arguido entretanto aí chegado.

11. Após, quando (…) se deslocava para a casa de banho desse estabelecimento, o arguido seguiu-a e agarrou-a pelo braço à força.

12. Nessa altura, o irmão de (…) vendo tal, dirigiu-se a ambos, tendo (…) empurrado o arguido a fim de se separar dele.

13. Nessa ocasião, o arguido foi expulso de tal estabelecimento pelos seguranças deste.

14. No dia 16 de Dezembro de 2017, à noite, cerca das 21.00 horas, (…) encontrava-se no interior da residência do pai de seu amigo (…), sita nesta cidade de (…).

15. Nessa ocasião, o arguido compareceu junto de tal residência, e começou a bater à porta com violência.

O arguido só abandonou o local porque se apercebeu que chamaram a polícia.

O arguido sabia que, ao agir da forma supra descrita, humilhava e maltratava física e psiquicamente a ofendida, atingindo-a na sua integridade física, na sua auto-estima e dignidade, sendo esse o seu propósito reiterado e conseguido, apesar de saber que lhe devia um particular respeito, por ser seu companheiro e ex companheiro.

18. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento que os seus comportamentos eram proibidos e penalmente puníveis por lei.

19. Na ficha de avaliação risco da vítima, foi o mesmo calculado como “Elevado”

20. Os encargos com a assistência hospitalar prestada pelo (…), à ofendida, supra referida em 4. dos factos provados, importou na quantia de € 112,07, não paga.

21. O arguido e (…) reataram o relacionamento marital em finais de Dezembro de 2017, situação que se mantém actualmente, residindo o casal em casa da mãe do arguido.

22. O arguido suporta as despesas domésticas correntes consigo e com a sua companheira (…), desempregada.

23. O arguido está desempregado, encontrando-se inscrito no Centro de Emprego há cerca de um ano, auferindo a título de subsídio de desemprego, a quantia mensal de cerca de € 300,00.

O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

O arguido já foi condenado pela prática dos seguintes crimes:

- Crime de condução sem habilitação legal, cometido em 26.04.2007, em pena de multa, por sentença transitada em julgado em 11.05.2007, pena essa já declarada extinta pelo cumprimento.

- Crime de condução sem habilitação legal, cometido em 28.08.2007, em pena de multa, por sentença transitada em julgado em 20.09.2007, pena essa já declarada extinta pelo cumprimento.

- Crime de furto qualificado, cometido em 04.08.2006, em pena de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade, por sentença transitada em julgado em 11.03.2008, pena essa já declarada extinta pelo cumprimento.

- Crime de furto qualificado, cometido em 28.10.2005, em pena de prisão suspensa na sua execução com regime de prova, por sentença transitada em julgado em 26.11.2008, pena essa já declarada extinta.

- Crime de roubo na forma tentada, cometido em 02.09.2007, em pena de prisão suspensa na sua execução com regime de prova, por sentença transitada em julgado em 09.01.2012, pena essa já declarada extinta.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, para além dos supra referidos e, nomeadamente, que:

1. Durante o período de vivência marital entre o arguido e a ofendida, o arguido não permitiu que a ofendida tivesse amigas ou que falasse com alguém.

2. Em data e dia não concretamente apurados, mas no início do ano de 2017, no âmbito de uma discussão, o arguido desferiu um pontapé na zona lombar da ofendida, tendo-­lhe provocado imensas dores, obrigando-a a ir ao hospital, onde disse que tinha caído de umas escadas, por ter receio do arguido.

3. Na noite de 5 para 6 de maio de 2017, na altura da queima das fitas, o arguido acompanhou a ofendida a um jantar de trabalho, uma vez que nunca a deixava ir sozinha.

4. No percurso para casa discutiram, sendo que, quando chegaram a casa o arguido saiu do carro e arremessou-lhe um objecto não identificado, tendo a ofendida desmaiado e posteriormente sido levada pelo arguido ao Hospital (CHUC).

5. No dia 13 de Dezembro de 2017, cerca das 12.30 horas, quando a ofendida ainda se encontrava a dormir, o arguido visualizou uma mensagem no seu telemóvel, enviada por um seu amigo de nome (…), em que dizia que “ia estar sempre contigo”.

6. Tendo o arguido, exaltado, começado a desferir-lhe murros.

7. A ofendida levantou-se, momento em que o arguido começou a desferir-lhe pontapés no corpo.

8. De seguida, começou a bater com uma cana de madeira na cama, intimidando-a.

9. Enquanto lhe batia, dirigiu-lhe os seguintes epítetos "és uma puta, és uma cabra, és pior que as tuas amigas, nunca foste mulher, nunca vais ser, nunca vais ser feliz". 10.10. A ofendida mantém-se separada do arguido, a residir com sua mãe, em casa desta, sita na Rua (…).

11. A partir do dia 13 de Dezembro de 2017, o arguido tem vindo a ameaçar a família da ofendida, nos seguintes termos: dizendo que “vai atear fogo à casa da mãe, que mata a sua família, que se for preso por sua causa, quando sair, mata todos”.

12. O arguido também já ameaçou o amigo da ofendida, (…), dizendo que o vai matar, tendo solicitado a vizinhos e amigos para o avisarem se virem o (…) na rua.

13. A ofendida encontra-se de baixa médica na sequência das condutas do arguido, tendo tomado conhecimento de que o arguido foi visto junto ao seu local de trabalho, por várias vezes.

14. No dia 15 de Dezembro de 2017, quando a ofendida se encontrava no interior do bar (…) sito nesta cidade, com o seu irmão e uma amiga, o arguido viu-a e disse-lhe “estás com a puta da tua amiga, és pior que ela”.

15.15. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, após o arguido ter agarrado a ofendida pela forma supra descrita em 11. dos factos provados, o arguido, quando o irmão da ofendida se abeirou de ambos, tentou agredir fisicamente este, tendo sido impedido pela ofendida que o empurrou.

16. No dia 16 de Dezembro de 2017 (sábado de manhã), quando a ofendida se preparava para sair de casa com o seu irmão, apareceu o arguido à porta da sua habitação, e entrou sem autorização, dizendo que queria falar com a ofendida a sós, mas esta recusou.

17. Nesse mesmo dia, 16 de Dezembro de 2017, a ofendida foi jantar com o seu irmão (…) a casa do pai do (…), sita nesta cidade, sendo que decorridos alguns minutos o arguido ali apareceu dizendo “vocês não vão sair daqui hoje com vida, o teu namorado vai morrer”.

18. No dia 17 de Dezembro de 2017, da parte da manhã, o arguido foi novamente a casa da mãe da ofendida, com o pretexto de levar o cão, dizendo que ia entrar para levar duas bicicletas que aí se encontravam, tendo forçado a sua entrada, quando a mãe da ofendida disse que ele não entrava.

19. Os comportamentos do arguido para com a ofendida fazem com que esta se sinta privada de liberdade e despoletam na mesma sentimentos de medo e inquietação, fazendo-a temer pela sua integridade física e mesmo pela sua vida e dos elementos da sua família.

 

MOTIVAÇÃO

Relativamente à factualidade provada, o tribunal fundou a sua convicção na conjugação crítica e sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, dos seguintes elementos de prova:

- Auto de denúncia de fls. 34 a 36 (156 a 158), e aditamento, de fls. 97 (173).

- Relatório da perícia de avaliação do dano corporal de 47 e 48.

- Elementos Clínicos de fls. 70 a 75.

- Certificado de Registo Criminal do arguido, de fls. 105 a 109.

- Factura de fls. 233.

- Ficha RVD-2L, de fls. 252.

- Declarações do arguido, quanto às suas condições pessoais e de vida, e quanto ao facto de ter reatado o relacionamento marital com a ofendida (…), esclarecendo que vivem juntos em casa de sua mãe, únicos factos a que prestou declarações.

- Depoimento da testemunha (…), mãe da ofendida, que num registo coerente e consistente, embora pouco concretizado, relatou que o casal composto pelo arguido e sua filha, que em sua casa residiu durante algum tempo no início do relacionamento, mudando-se depois para uma residência sita em (…), sempre teve altos e baixos, com frequentes discussões entre ambos, sabendo pela boca de sua filha e pelas marcas no corpo que lhe viu, que o arguido batia em sua filha, tendo sido por via de uma acesa discussão entre o casal, a que assistiu, ocorrida em sua casa, onde então moravam, que mandou o arguido sair de sua casa, tendo-se após o casal mudado para (…). Relatou e concretizou sobre o carácter possessivo, ciumento e controlador do arguido para com a ofendida. Relatou que em meados de Dezembro de 2017, a sua filha abandonou a casa de morada do casal, por causa de desavenças entre o mesmo, abrigando-se em sua casa, tendo-­lhe visto na ocasião marcas de agressões no corpo, tendo-lhe a filha relatado que tinha sido agredida pelo arguido, esclarecendo que a filha, nessa ocasião foi ao Hospital por causa das lesões que apresentava. Mais relatou que em ocasiões anteriores, já havia visto marcas de agressões no corpo de sua filha, designadamente, numa ocasião, um ferimento na cabeça que foi suturado, tendo-lhe a filha na ocasião dito que havia caído, mas mais tarde, após se ter separado do arguido em meados de Dezembro de 2017, contou-lhe que havia sido o arguido que lhe provocou tal ferimento. Referiu que desde finais de Dezembro de 2017, o casal reatou o relacionamento, vivendo desde então de novo juntos.

- Depoimento da testemunha (…), que era amigo do casal composto pelo arguido e pela ofendida, com o mesmo privando com frequência, estando actualmente de relações cortada com o arguido, atribuindo tal corte de relações à circunstância de o arguido ter interpretado mal uma mensagem via TM que ele testemunha enviou para a ofendida, esclarecendo que o envio de tal mensagem ocorreu em data que não sabe precisar, mas após a separação do casal, não se recordando do teor de tal mensagem, mais relatando que após, em ocasião em que se encontrava com a ofendida em casa de seu pai, o arguido apareceu ali, batendo à porta e fazendo barulho, exaltado, dirigindo-se no exterior de tal residência à ofendida, aos berros, dizendo que não percebeu o que o arguido na ocasião dizia, mas tendo ficado com a ideia de que o mesmo pensava que ele testemunha e a ofendida teriam algum relacionamento, não lhe tendo aberto a porta na ocasião, e cortado relações com ele a partir de então. Mais relatou que perante tal comportamento do arguido, a ofendida chamou ao local a PSP que aí se deslocou. Mais relatou que nas ocasiões em que privou com o casal, assistiu a diversas discussões entre o mesmo.

- Depoimento da testemunha (…), irmão da ofendida, que classificou a relação do casal como “sinistra”, explicitando tal, mais relatando sobre o carácter impulsivo e autoritário do arguido para com a ofendida, esclarecendo que o casal inicialmente residia em casa de sua mãe, mudando-se posteriormente para outra residência. Relatou que nunca assistiu a agressões físicas perpetradas pelo arguido na pessoa da ofendida, mas que durante o período da vivência marital de ambos em apreciação nos autos, viu por 2/3 vezes marcas de agressões no corpo da ofendida, designadamente em Dezembro de 2017, na altura em que a ofendida abandonou a residência do casal e se acolheu em casa de sua mãe, onde ele testemunha na ocasião também vivia, concretizando os ferimentos/lesões que então viu no corpo da ofendida, e as partes do corpo em que os mesmos se localizavam, compatíveis com as lesões documentadas no relatório médico de fls. 47/48, contando-lhe a ofendida que o arguido lhe tinha batido com um pau, e que por tal decidiu abandonar a residência do casal e acolher-se em casa da mãe, tendo ideia que face a tal comportamento do arguido a ofendida apresentou queixa contra o mesmo. Mais relatou que numa outra ocasião, em data que não soube precisar, viu a ofendida com um sobrolho “deitado abaixo”. Relatou que após a ofendida se ter acolhido em casa da mãe, em Dezembro de 2017, onde permaneceu cerca de um mês, reconciliando-se após com o arguido, vivendo de novo juntos actualmente, aquele por diversas vezes se dirigiu a casa da mãe onde então a ofendida vivia, designadamente à noite e de madrugada, proferindo ameaças, designadamente contra a sua mãe, que concretizou. Relatou que em Dezembro de 2017, na ocasião em que a arguida já vivia em casa da mãe, foi com ela ofendida, e com uma amiga desta a um bar sito na Praça da (…), em (…), sendo que o arguido também ali apareceu, dirigindo-se à ofendida, agarrando-a de forma violenta, o que motivou que se abeirasse dos mesmos e tivesse chamado os seguranças do estabelecimento, que expulsaram do mesmo o arguido, esclarecendo que a ofendida conseguiu libertar-se do arguido, empurrando-o.

Não valorou O tribunal o depoimento da testemunha (…), pai do arguido, por na sua globalidade se ter mostrado incoerente, inconsistente, e incongruente, e patentemente interessado, na clara tentativa de eximir o arguido de responsabilidade. Procurou, sem convencer, fazer crer que o casal, já actualmente reconciliado, com o qual disse sempre ter privado com frequência, sempre teve bom relacionamento, era muito unido, tratando-se mutuamente com muito amor e carinho, até de forma excessiva, não conseguindo, porem, explicar perante tal relacionamento que assim traçou, e perante a convivência que disse ter com o casal, os motivos pelos quais a ofendida, em Dezembro de 2017, abandonou a casa de morada do casal (e apresentou queixa contra o arguido). Referiu, inclusivamente, que no Natal de 2017, o relacionamento do casal estava como antes o traçou, residindo o arguido e a ofendida juntos, sendo certo que nessa ocasião no âmbito dos presentes autos, o arguido estava sujeito a medida de coacção de proibição de contactar com a ofendida, por qualquer meio, bem como proibição de frequentar a zona da residência da ofendida, como se documenta nos autos (cfr. auto de interrogatório de arguido detido de fls. 119 e segs.).

Não obstante o arguido, no uso do seu direito ao silêncio não tenha prestado declarações sobre os factos de que vem acusado, a ofendida não tenha prestado depoimento, e as testemunhas ouvidas não terem presenciado as agressões físicas perpetradas pelo arguido na pessoa da ofendida descritas em 3. e 5. dos factos provados, não ficou o tribunal com dúvidas de que nos dias 06 de Maio de 2017 e 13 de Dezembro de 2017, o arguido agrediu a ofendida, sua então companheira, pela forma aí descrita, provocando-lhe os ferimentos e lesões também aí descritos.

Com efeito, as testemunhas (…), e (…), referiram de forma unânime, que durante o período de vivência do casal, em duas/três ocasiões, viram ferimentos e lesões no corpo da ofendida, que concretizaram, consentâneas com as documentadas nos relatórios e informações médicas juntos aos autos, designadamente a fls. 47 e 48, e 70 a 75, tendo a testemunha (…) mais relatado que a ofendida nessa ocasião, recebeu tratamento hospitalar, mais se documentando nos autos, que em 13 de Dezembro de 2017, a ofendida apresentou queixa contra o arguido. Tais testemunhas relataram sobre a personalidade e carácter do arguido para com a ofendida, pela forma que supra se expôs, ressumando desses depoimentos já acima apreciados, que o casal sempre teve altos e baixos, com frequentes discussões entre ambos, como supremacia do arguido relativamente à ofendida, que a controlava, tendo a testemunha Tiago classificado o relacionamento do casal como “sinistro”.

Mais referiram tais testemunhas que quando a ofendida em Dezembro de 2017 se acolheu em casa de sua mãe, lhes disse que o arguido a tinha agredido, mostrando-lhe as marcas que tinha no corpo, e mais referindo a testemunha (…) que nessa ocasião, a ofendida também lhe confidenciou que o ferimento que antes tivera no sobrolho, que teve de ser suturado, havia sido provocado por agressão do arguido. Não obstante a ofendida não tenha prestado depoimento, valorou o tribunal os depoimentos (credíveis e consistentes) das testemunhas, quanto ao relato que lhe fez a ofendida, que o tribunal na valoração crítica e à luz das normais regras da experiência comum da globalidade da prova produzida teve por verdadeiro, por entender não se tratar de depoimento indirecto, pois as testemunhas relataram factos que a ofendida lhe contou, e de que as testemunhas directamente tiveram conhecimento na conversa que estabeleceram com a vítima (cfr. neste sentido acórdãos do TRC de 12.10.2011, e 21.03.2012, in www.dgsi.pt).

A falta de prova dos factos supra enunciados ficou a dever-se à insuficiência de prova produzida em julgamento, uma vez que nenhuma das testemunhas revelou conhecimento dos mesmos, e o arguido e a ofendida os não relataram, tendo o facto referido em 10.10. resultado infirmado das declarações do arguido e das testemunhas (…).


***

            III. Apreciação dos Recursos

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões dos recursos, as questões a apreciar são as seguintes:

1. Despachos recorridos

(…).

2. Sentença recorrida

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada no sentido pugnado pelo recorrente, com a sua consequente absolvição;

- Na improcedência da questão anterior, se a pena deve ser reduzida ao mínimo legal.

Apreciando:

Recurso dos despachos de indeferimento de justificação de faltas

(…).

Recurso da sentença

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, no que concerne aos factos provados 2 a 15, como indica na motivação, essencialmente porque não foi produzido qualquer depoimento directo sobre a autoria dos factos por parte do arguido, o que devia ter conduzido o Tribunal a quo a decidir com base no princípio in dubio pro reo.

Entende que esses factos devem ser considerados não provados e que deve ser absolvido.

Compulsada a decisão recorrida verificamos que a convicção do Tribunal se baseou entre o mais nos depoimentos das testemunhas (…), respectivamente mãe e irmão da ofendida na parte em que referiram que tiveram conhecimento da autoria dos factos através exclusivamente do que lhes foi referido por esta, apenas tendo presenciado que esta apresentava lesões físicas.

Considera o Tribunal a quo não estarem em causa depoimentos indirectos pois as testemunhas relataram factos que a ofendida lhes contou e de que directamente tiveram conhecimento na conversa que com ela tiveram.

Cremos ser evidente que, seguindo a lógica exposta, nenhum depoimento poderia ser considerado indirecto. Por definição será indirecto todo o depoimento em que se interponha uma pessoa entre o autor dos factos e aquele que os relata porque deles teve conhecimento pela pessoa interposta que os presenciou e transmitiu esse conhecimento.

A testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos e tem conhecimento indirecto dos factos quando, do que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 3ª Ed., pág. 158).

Perante o exposto importa concluir que os referidos depoimentos são efectivamente indirectos na parte em que transmitiram o que lhes foi contado pela ofendida sobre a autoria dos factos em causa.

A ofendida, companheira do arguido, não prestou declarações em audiência no uso da faculdade conferida pelo artigo 134º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, devendo questionar-se se nessas circunstâncias podem ser valorados os referidos depoimentos na parte em que são indirectos.

Não é unânime a resposta jurisprudencial, desde logo neste Tribunal em que se contrapõem, entre outros, os acórdãos 7.10.2015 relatado pelo Exmº Desembargador Vasques Osório (admitindo a valoração do depoimento indirecto quando a testemunha de que se ouviu dizer recusa depor validamente) e de 19.9.2012, relatado pelo Exmº Desembargador Eduardo Martins, ora Adjunto (em sentido contrário) ambos publicados em www.dgsi.pt.

Começando pelo texto legal que versa sobre o depoimento indirecto; artigo 129º do Código de Processo Penal, ele é do seguinte teor:

l - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

A interpretação deste preceito terá de ser articulada, antes de mais, com o disposto no artigo 128º, nº 1 do CPP que define a regra de que “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.

O artigo 129º contém excepções a esta regra. A primeira que é total, no sentido de que o depoimento indirecto pode servir como meio de prova se a inquirição da pessoa de que se ouviu dizer não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada. A segunda, no pressuposto de que a inquirição é possível e a testemunha foi chamada a depor.

As diferentes interpretações a que conduz a leitura do preceito resultam certamente da sua redacção não inteiramente clara porque a propósito da primeira excepção de validade do depoimento de ouvir dizer utiliza a expressão “inquirição não possível” e a propósito da segunda excepção utiliza a expressão “chamar estas a depor”.

Ou seja, na segunda excepção elencada, a interpretação meramente literal do preceito levaria à conclusão de que o depoimento indirecto apenas não seria válido se a pessoa de que se ouviu dizer não fosse chamada, sendo sempre válido quando o fosse, independentemente de esta prestar ou não depoimento.

Certo é que então não faria sentido no primeiro segmento excepcional mencionado (segundo da norma) apelar à impossibilidade de inquirição e não apenas à impossibilidade de chamar a testemunha a depor.

Não cremos, porém, que a utilização das palavras inquirição não possível por morte, anomalia psíquica ou impossibilidade de a testemunha ser encontrada para densificar as situações em que o depoimento indirecto é válido seja apenas casual e fruto de menor rigor de linguagem.

Antes concluímos que em todas as situações em que a testemunha é chamada a depor e, no entanto, não presta depoimento, estando em condições de o fazer, o depoimento indirecto não pode ser considerado válido.

Mas vejamos. O princípio fundamental que determina a regra de que a prova testemunhal deve ser directa e incidir apenas sobre factos de que a testemunha tenha conhecimento pessoal porque a eles assistiu é o do contraditório que deriva directamente da noção que se tenha do processo equitativo e das suas implicações em processo penal. No horizonte do legislador e do intérprete estará sempre o equacionamento destes princípios em confronto com as necessidades da acção penal e de perseguição criminal, conflito de interesses difícil de dirimir (cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP) e que se ressume a questionar até que ponto o direito de contradizer do arguido pode de alguma forma ser comprimido em nome da necessidade colectiva de perseguição criminal e em que medida essa compressão não pode desvirtuar a finalidade do processo que é um meio através do qual se pretende alcançar a justiça.

No equacionar deste conflito não será despiciendo acentuar que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem produzindo jurisprudência no sentido de que a valoração de depoimentos indirectos como único meio de prova para alcançar a condenação viola o disposto no artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na dimensão em que exige que o processo seja equitativo e 6º, nº 3, alínea d), que exige que o arguido possa interrogar as testemunhas de acusação, o que no seu entender só se alcançará com o interrogatório da testemunha de que se ouviu dizer. É o caso do acórdão P.S. versus Alemanha de 20.12.2001 que pode ser consultado no site do Gabinete de Documentação e Direito Comparado (www.gddc.pt) ou na base de dados do próprio TEDH (http://hudoc.echr.coe.int/eng#{"documentcollectionid2":["GRANDCHAMBER","CHAMBER"]). E trata-se de caso em que vítima de ofensa sexual nunca foi ouvida no decurso do processo, baseando-se a condenação do Tribunal Alemão no depoimento de agentes policiais que ouviram relato da vítima logo após a prática do crime (citado por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao artigo 129º).

Claro que neste caso a vítima não foi sequer chamada a depor, mas nada de substancial muda em termos do que o TEDH considera “a fair trial – processo justo” que impõe que o arguido, em alguma medida, tenha tido a oportunidade de contraditar no julgamento, ou em momento anterior, o depoimento directo, o que impunha que tivesse sido prestado.

Não só o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica interna por ter sido ratificada por Portugal como a própria Constituição da República consagra princípios semelhantes nos artigos 20º, nº 4 (exigência de que o processo seja equitativo) e 32º, nºs 1 e 5 (exigência de que o processo penal, nomeadamente na fase de julgamento, se subordine ao princípio do contraditório).

Paulo Pinto de Albuquerque no seu Cometário do CPP pronuncia-se no sentido de que o depoimento indirecto só é admissível se a testemunha de que se ouviu dizer prestar depoimento (salva a excepção do segundo segmento do artigo 129º de impossibilidade de ouvir a testemunha).

Quanto a nós e segundo a linha de pensamento que vislumbramos na interpretação efectuada pelo TEDH, não só se impõe concluir que o depoimento indirecto apenas é admissível se a testemunha de que se ouviu dizer for chamada a depor e prestar depoimento sobre os factos em causa, como pode ser questionada a conformidade constitucional da possibilidade de valoração do depoimento indirecto nos casos em que não é possível ouvir a testemunha de que se ouviu dizer, porque também neste caso se afronta do mesmo modo a noção de processo justo e equitativo que está na base da citada interpretação.

Sendo certo que a jurisprudência do TEDH não vincula neste caso (apenas nos casos de reenvio prejudicial para interpretação normativa) os Tribunais Portugueses, nem mesmo que o caso citado fosse em tudo semelhante ao presente, certo é que não deixa de ser um elemento interpretativo a ter em conta, até porque a assunção de decisão contra a sua jurisprudência pode fundamentar processo para condenação do Estado Português por violação da Convenção.

Retomando, porém, a nossa primeira linha de raciocínio com base exclusivamente no texto legal, sem, contudo, o desligar dos princípios que norteiam a configuração das normas jurídicas, entendemos que do próprio texto legal já resulta com alguma evidência que não basta chamar a testemunha de que se ouviu dizer a depor para que o depoimento de ouvir dizer possa ser valorado, necessário é também que a testemunha preste depoimento. De outro modo não se entenderia a referência à impossibilidade de inquirição para justificar a segunda excepção legal que permite a valoração do depoimento indirecto.

E para esta interpretação converge a densidade que deve ser dada ao princípio do processo equitativo e suas implicações na configuração do princípio do contraditório sem ofensa do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Transportando a presente conclusão para o caso dos autos em que a ofendida, embora chamada para ser ouvida em audiência, recusou-se validamente a depor, a conclusão que se impõe é que os depoimentos das testemunhas que ouviram o relato dos factos da acusação da própria ofendida não podem ser valorados nesse aspecto indirecto; o da autoria que não presenciaram.

Importa também salientar o fim de proteção da norma que permite a recusa de prestar depoimento, pretendendo-se evitar o conflito de consciência que resultaria de o depoimento da testemunha poder contribuir para a condenação de um seu familiar ou pessoa em relação à qual tenha relação afim, e por outro lado salvaguardar as relações de confiança e solidariedade no seio da família, aceitando-se sacrificar nesses casos o interesse da descoberta da verdade. E se assim é, admitir nesses casos o depoimento de quem ouviu dizer seria, para além do mais, negar por outra via o que se pretendeu consagrar.

Ainda que se entendessem injustificados os primeiros argumentos sempre por este último haveria que concluir pela impossibilidade de valoração do depoimento indirecto quando a pessoa de quem se ouviu dizer se recusou a depor com o mencionado fundamento legal, sob pena de flagrante conflito entre o disposto no artigo 134º e o artigo 129º, nº 1, sendo suposto que as normas sejam complementares e não conflituantes (cfr. o Acórdão desta Relação acima citado de 19.9.2012).

Por consequência importa concluir que o Tribunal a quo valorou meios de prova que nos termos do artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal não podiam ser valorados, o que consiste numa violação de proibição de prova que deve seguir o mesmo regime de outros meios de prova proibidos (cfr. artigos 125º e 126º, nº 1 do mesmo diploma legal).

Ou seja, mostrando-se a fundamentação da sentença viciada pelo uso de prova nula, tal vício estende-se a toda a decisão por aplicação do disposto no artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal e nos termos do nº 2 do mesmo artigo, implica que deva ser proferida nova sentença expurgada da consideração como meios de prova da parte indirecta dos referidos depoimentos.

Em consequência do exposto fica prejudicada a apreciação do recurso da sentença.      


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em:

- Negar provimento aos recursos interpostos dos despachos de indeferimento de justificação de faltas do recorrente, mantendo-os;

- Declarar nula a sentença recorrida, devendo a Mmª Juiz que proferiu a que ora se invalida proferir nova sentença, expurgada da consideração de meios de prova proibidos nos termos acima consignados.

Pelo seu decaimento nos recursos de despachos condena-se o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça devida por cada um em três unidades de conta (cfr. artigos 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 6 de Outubro de 2019

Texto elaborado e revisto pela relatora.


Maria Pilar de Oliveira (relatora)

José Eduardo Martins (adjunto)