Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
142/09.7IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 09/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º E 37º DO CIVA E 105º DO RGIT
Sumário: 1.- O abuso de confiança fiscal verifica-se quando há apropriação de prestação tributária nos termos da lei, que o agente estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário,
2.- O IVA é devido logo que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que ele respeita se realize, não dependendo da efectiva cobrança do imposto aos clientes.
3.- Basta a não entrega dos montantes deduzidos para que se verifique a apropriação, sendo criminalmente punível tal prévia apropriação e consequente não entrega (mesmo que não se prove que o agente se tenha apropriado pessoalmente desses montantes, tendo antes pago despesas sociais com dinheiro que não lhe pertencia).
Decisão Texto Integral: 1

23

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

No processo comum, supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que:
a) Condenou a arguida “AA..., Lda”, como responsável por um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p.p. pelas disposições conjugadas dos art.º 7º, 12º, n.º 2 e 3, 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT, com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de €8,00 (oito euros), no montante global de €1.920,00 (mil novecentos e vinte euros);
Condenou o arguido BB... pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p.p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6.º e 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €600,00 (seiscentos euros);

Inconformado com esta decisão, dela interpuseram recurso os arguidos, AA…, Lda” e BB…” sendo que na respectiva motivação concluíram:
1 - Salvo o devido respeito, vem o presente recurso interposto sobre a matéria de facto e a aplicação dos direitos aos factos porquanto entendemos que o Tribunal a quo não percepcionou bem o "contexto em que os factos ocorreram".
2 - Efectivamente, o arguido BB... declarou a instâncias Mmo Juiz de Direito, inquirido sobre os factos e conforme se encontra registado em registo audio/CD, não tendo recebido atempadamente o montante do imposto, não tinha condições que lhe permitissem "adiantar o pagamento do imposto", "antes de ter recebido o que constava da factura".
3 - Mais declarou o arguido BB…, no qual foi corroborado pela testemunha CC..., que os pagamentos dos montantes liquidados não eram efectuados normalmente, mas com atrasos de 2, 3 e 4 meses, não pagando os montantes em divida (de capital e imposto ), "não tendo conseguido receber a tempo e horas e na totalidade".
4 - Por outro lado, como declarou o arguido, "esta situação se deveu ao contexto de funcionamento da própria empresa, que não tem margem de lucro que lhe permita adiantar estas quantias, quando ainda não recebeu dos clientes".
5 - Por outro lado, a testemunha CC... (T), a instâncias da mandatária do arguido (A), declarou que "ele facturava, entretanto as empresas não cumpriam as datas dos pagamentos e depois, entretanto, acho que havia instruções directamente das finanças a essas entidades, o que causava algum desagrado e depois as empresas acabam por rescindir o contrato com ele" - vd declarações da testemunha conforme acta da audiência de julgamento e gravação em registo audio/CD.
6 - Mais tendo precisado a supra aludida testemunha, "posso dar-lhe uma ideia de uma empresa, nomeadamente, a “W...", que penso que foi entregue facturas nas finanças, e eles acabaram por, acho que não acabaram por conseguir receber" - vd declarações da testemunha conforme acta da audiência de julgamento e gravação em registo audio/CD.
7 - Ora o presente recurso versa sobre a matéria de facto por constituir a forma legal e processualmente admissível para corrigir patentes erros de julgamento sobre tal matéria, o que, como adiante referimos, claramente ocorre no caso vertente - desde logo, o tribunal a quo remete para a factualidade dado como provada "sob os pontos 1 a 9" quando da sentença apenas constam 5 pontos na factualidade provada.
8 - Analisando a prova produzida em audiência, como supra se transcreveu, facilmente se constata existirem razões que justificam alterar a matéria de facto colocada em causa pelo recorrente.
9 - Desde logo, contrariamente ao plasmado na sentença, como declarou o arguido BB…, a actividade por si exercida nesta matéria de cobrança do IVA, no aludido período, foi tudo menos normal!
10 - O arguido BB...declarou que não exerceu normalmente a sua actividade nos períodos correspondentes ao 4° trimestre do ano de 2008, 1º trimestre de 2009 e 3° trimestre de 2009.
11 - Pois declarou, peremptória e inequivocamente, que embora tenha liquidado o IVA devido, declarando-o nas facturas, NÃO recebeu o IVA, ou seja, não logrou receber o IVA normalmente, no prazo de vencimento da obrigação de entrega do dito imposto.
12 – Neste contexto de dificuldades da empresa em que BB...referiu não ter recebido tais montantes do imposto no prazo legal devido, não se constituiu, portanto, nesse período, sequer "depositário" de tais quantias.
13 - Na verdade, o arguido esclareceu existir falta de liquidez e tesouraria e não ter lucros para "adiantar" os montantes não recebidos até ao prazo de entrega do imposto.
14 - Ora entendemos que a lei não impõe o dever de entregar aquilo que não recebeu (aliás se não recebeu, não houve sequer apropriação).
15 - Também como afirmou a testemunha CC... , que, no essencial, corroborou as declarações do arguido BB...de não ter recebido tais montantes do imposto, precisou a testemunha, inclusivamente, que o arguido entregou a facturação da "W..." ao Serviço de Finanças para que este procedesse à cobrança dos créditos, o que este Serviço de Finanças também não logrou cobrar, nomeadamente, por os credores negarem a existência do crédito.
16 - Donde, é manifesto que a sentença não podia dar como provado, no ponto 4 dos factos provados.
17 - Efectivamente, provou-se apenas que a sociedade arguida exerceu a sua actividade nos períodos correspondentes ao 4º trimestre do ano de 2008, 1º trimestre de 2009, e 3° trimestre de 2009, liquidando o IV A referente às
operações efectuadas.
18 - Contudo, não se provou que o recebeu ou dele se apropriou, não dando cumprimento à obrigação fiscal da entrega respectiva dentro do prazo legal.
19 - Donde não podia a sentença recorrida dar como provado que os arguidos o tenham recebido até ao termo do prazo para a sua entrega (até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam; nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal) - vd. as declarações de BB...e depoimento de CC... Gonçalves registado na acta de Audiência de Julgamento. I
20 - Deste modo, o ponto 4 dos factos provados deve ser alterado e dar-se como provado, apenas, que: "A sociedade arguida exerceu normalmente a sua actividade nos períodos correspondentes ao 4º trimestre do ano de 2008, 1º trimestre de 2009, e 3º trimestre de 2009, liquidando o IVA referente às operações efectuadas ".
21 - É nosso entendimento que não se pode ter como verificado o comportamento ilícito que justifica a punição pelo crime de abuso de confiança fiscal que é a "apropriação dolosa determinada importância que o agente recebeu de terceiro a titulo de imposto para entregar ao estado" (Ac. Do TC nº 312/2000, publicado no DR na Série, de 17-10-2000).
22 - No caso vertente, é manifesto, como resulta das declarações do arguido BB...e da testemunha CC... , supra transcritas, que os arguidos não se constituíram depositários pelo simples facto ou circunstância de não terem, efectivamente, recebido ou se apropriado de tais montantes (não se trata sequer da situação de os terem gasto ou usado em seu proveito próprio ou de terceiros!)
23 - E também não se pode dar como provado o ponto 5 da factualidade da sentença pois apenas se pode dar como provado que: A sociedade arguida não entregou nos cofres do Estado o IVA liquidado nas operações tributáveis efectuadas nos períodos referidos, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam, nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal, no montante de € 25.408, 69 (vinte cinco mil quatrocentos e oito euros e sessenta e nove cêntimos) (..) ..
24 - A lei exige que tenha ocorrido uma "apropriação dolosa" do imposto a cuja entrega estava obrigado até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam, nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal. Não tendo, como no caso vertente, ocorrido "a apropriação dolosa de determinada importância que o agente recebeu” não podia o tribunal a quo ter por verificado o comportamento ilícito que justifica a punição pelo crime abuso de confiança fiscal.
25 - Por outro lado, falta o elemento subjectivo, na medida em que a não entrega do imposto não foi desejada e aceite pelo autor "com a consciência da ilicitude da mesma".
26 - Na verdade, como declarou BB...não conseguiu entregar o IVA liquidado por não o ter cobrado ou recebido. E, ainda, por não ter capacidade ou liquidez para fazer "adiantamentos" ao Estado, por ainda não o ter recebido dos adquirentes dos bens ou serviços.
27 - Por outro lado, além do arguido ter declarado não ter recebido o montante do imposto do IVA devido e facturado ao cliente em tempo e no prazo de vencimento da obrigação, certo é que entregaram, em substituição, os créditos para cobrança a pedido do próprio Serviço de Finanças.
28 - Contudo, verificou-se que o adquirente dos serviços, como declarou o arguido BB…, notificado pelo Serviço de Finanças para pagar ou entregar o imposto, negou a existência do crédito, muito embora, muito mais tarde se apresentasse a pagar.
29 - Por outro lado, o recorrente requereu, em audiência de discussão e julgamento, a junção de certidão comprovativa de que se encontra a liquidar os montantes em divida, conforme acordo de pagamento em curso e que não pretendeu se eximir das suas obrigações.
30 - Donde, é mister que o Tribunal a quo não logrou provar que o recorrente tenha recebido o montante do imposto até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam, nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal.
31 – Pressuposto para a verificação do crime é que, como vem defendendo a jurisprudência superior, tendo o sujeito uma posição de «intermediário" na cobrança do imposto, devendo entregá-lo, por inteiro, ao Estado - a não ser que demonstre que sobre este tem um contra - crédito resultante das transacções efectuadas no período correspondente, em que tenha suportado, por sua vez, pagamento de IVA.., sendo que neste caso e dentro do condicionalismo referido, de proceder à sua dedução -, ao receber nos termos legais dinheiro do IVA deve entregá-lo ao credor tributário no prazo devido - vd Ac. TRC de 16-12-2009, in www.trc.pt
32 - Ora como se provou resulta das declarações do arguido BB...e da testemunha CC... Gonçalves, a sociedade arguida não recebia o dinheiro do IVA por forma a poder entregá-lo a Estado no prazo devido.
33 - Por outro lado, sendo uma sociedade com falta de liquidez e de tesouraria, também não tinha capacidade para "adiantar" o montante do imposto (não recebido) ao Estado, como declarou o arguido BB… .
34 - A lei não impõe que o contribuinte tenha que adiantar o montante dos impostos que não recebe. Estipula sim que liquidando o imposto, o mesmo deva ser entregue por inteiro ao Estado logo que ele seja depositário. São portanto situações distintas e que, salvo o devido respeito, o aresto em crise não acautelou ou valorizou.
35 - A questão que ora se discute é, portanto, a de saber como é que o Direito Penal Económico trata as situações de facto, em que o agente económico como contribuinte de direito que é, em que durante períodos sucessivos de obrigação de entrega periódica do IVA liquidado nos Cofres do Estado o não fez, apesar de não ter recebido dos contribuintes de facto o imposto - o que é obviamente distinto de ter efectivamente em seu poder quantias monetárias pagas pelos seus clientes a titulo do IVA e, contudo, não as entregar ao credor tributário Estado, apesar de legalmente estar obrigado a fazê-lo, conduta que recai na .
previsão legal do o tipo legal em análise.
36 _ Na verdade, passou o legislador a olhar para este crime de resultado, praticado na forma omissiva, como um crime em que há uma presunção legal - juris et de jure - de apropriação e de inversão do título de posse, porquanto, tendo, por força de lei, o sujeito passivo sido investido na qualidade de fiel depositário legal da prestação tributária e, colocado temporariamente, a sua detenção precária com vista apenas e só à sua entrega ao Estado-Fisco, o não faz.
37 - Desta falta de cumprimento da obrigação legal de entrega da prestação tributária ao credor, intui o legislador que o sujeito passivo se apropriou dela e inverteu o título de posse, assando a incorporar no património o tributo que apenas detinha a título precário como legal depositário e em vista só da entrega no prazo legal ao credor.
38 - Mister é a prova de que os arguidos tenham recebido os montantes do imposto e não tenham procedido à sua entrega quando tenham decorrido mais de noventa dias sobre o termo do prazo da entrega da prestação ao credor, porquanto até aí caem na alçada da contra-ordenação prevista no artº 14° do mesmo diploma legal.
39 - Ora essa prova não resultou feita, conforme as declarações do arguido BB...corroborados, no essencial, pela testemunha CC... , que, inclusive, relataram, pormenorizadamente, todo o relacionamento mantido com a Administração Fiscal, por exemplo, oferecendo créditos (facturação de clientes/adquirentes) para cobrança, apresentando e cumprindo planos de pagamento, efectuando pagamentos parciais ou por conta, etc.
40 – Por outro lado a conduta dos arguidos que envidaram todos os esforços para colmatar o imposto em falta ( nomeadamente entregando créditos para cobrança ou efectuando pagamentos parcelares) não pode ter o mesmo desvalor e punição daquele contribuinte que efectivamente recebe o imposto ou dele se apropria (fazendo uso para outros fins) e não o entrega, voluntariamente, no prazo da sua entrega, à Administração Fiscal.
41 - Entendemos que a sentença recorrida, salvo o devido respeito, não cuidou de valorar a prova carreada e a distinção (provada) entre a conduta dos arguidos e a de um contribuinte omisso.
42 - Por outro lado, o tipo objectivo na actual lei incriminadora basta-se com a não entrega ao credor da prestação tributária a que o legal depositário estava obrigado, isto é, é suficiente a quebra da relação fiduciária entre os sujeitos desta relação jurídico-tributária.
43 - Efectivamente o Abuso de Confiança Fiscal só existe se tiver havido retenção na fonte e a empresa, dolosamente não tiver cumprido a obrigação de entrega do tributo ao Estado-Fisco.
44 - Contudo, no caso vertente, os arguidos não receberam, a tempo do cumprimento das suas obrigações fiscais, o imposto liquidado e devido, por inteiro, não podendo ou não estando em condições de fazer adiantamento(s) deste imposto.
45 - Por outro lado, come se provou, o arguido nunca recusou pagar o imposto liquidado ou pretendeu-se eximir às suas obrigações fiscais ou privilegiou outros credores, nem se apropriou do montante do imposto, apenas, não o tendo recebido, foi oferecendo os créditos para cobrança e/ou efectuando pagamentos parcelares no âmbito dos acordos de pagamento encetados com Administração Fiscal, entre outros - vd certidão fiscal junta aos autos em audiência de julgamento e declarações do arguido BB… .

46 - Efectivamente, o arguido referiu em audiência de julgamento ter entregue quantias muito significativas a titulo de pagamento das importâncias devidas, a titulo de pagamento por conta ou de acordos de pagamentos.
47 - Tal ânimo rebate a verificação do elemento subjectivo e do dolo (mesmo que como se refere na sentença recorrida não seja necessário um dolo especifico).
48 - Por outro lado, o arguido, consciente das suas obrigações fiscais e dos montantes em divida, confiou que todos os esforços por estes encetados para o pagamento dos montantes do imposto devido, nomeadamente em concerto com a Administração Fiscal, correspondiam à manifestação inequívoca - como entendemos corresponderá - dos arguidos não desejaram, nem aceitaram estar em incumprimento - vd. as declarações do arguido supra transcritas e da testemunha CC... .
49 - Donde entendemos, em suma, não estar verificado, manifestamente, o elemento subjectivo do dolo.
50 - Deste modo, impõe-se a alteração da factualidade provada, dos pontos 4 e 5 que considera incorrectamente julgados, como supra vertido e bem assim, a alteração da decisão proferida por outra que absolva os arguidos da prática do crime de abuso de confiança fiscal, por manifesta violação do art.s 7°, 12°, 105° do RGlT e 30 nº 2 do CP e face às provas constantes das declarações do arguido BB..., da testemunha CC... e a certidão fiscal junta aos autos tudo conforme acta de audiência de julgamento os quais não foram valorados pelo Tribunal a quo e consubstanciam erro notório na apreciação da prova (art. 410°, nº 2, al c), e 412°, nº 3, b), do CPP).

Termos em que, com o douto suprimento de Vossa Excelência, deve a decisão proferida ser alterada, na factualidade provada (nos pontos 4 e 5 ) da sentença recorrida, e bem assim, substituída por outra que absolva os arguidos da prática do crime de abuso de confiança fiscal pelo qual foram condenados, tudo com as legais consequências.
Assim fazendo acostumada JUSTIÇA!

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de facto e de direito, já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

1. A sociedade “AA..., Lda” é uma sociedade unipessoal por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial da Figueira da Foz com o n.º de matrícula … e tem como objecto social a prestação de serviços às empresas, nomeadamente apoio à manutenção, recepção e outros serviços administrativos;
2. A gerência de tal sociedade é exercida por BB…, seu único sócio, desde a data da sua constituição, em 15 de Fevereiro de 2008, responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado;
3. No que tange ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) a sociedade arguida encontrava-se enquadrada no regime de periodicidade trimestral;
4. A sociedade arguida exerceu normalmente a sua actividade nos períodos correspondentes ao 4.º trimestre do ano de 2008, 1.º trimestre de 2009, e 3.º trimestre de 2009, liquidando e recebendo o I.V.A. referente às operações efectuadas;
5. Contido, a sociedade arguida não entregou nos cofres do Estado o I.V.A. liquidado nas operações tributáveis efectuadas nos períodos referidos, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam, nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal, no montante de €25.408,69 (vinte cinco mil quatrocentos e oito euros e sessenta e nove cêntimos), assim discriminado:

Mês
IVA liquidado
IVA dedutível
IVA a entregar
Jan. – Março 2009
€4.399,02
€4.399,02
€4.399,02
Julho – Out. 2009
€21.009,67
€21.009,67
€21.009,67
Total
€25.408,69
€25.408,69
€25.408,69

6. Os arguidos foram ainda notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, para comprovarem nos autos que procederam ao pagamento das quantias descritas na acusação e respectivos juros de mora, no prazo de 30 dias a contar da notificação, não tendo pago tais quantias no referido prazo (fls. 62-73 e 132-133);
7. Agiu o arguido BB… em nome e no interesse da arguida “AA..., Lda”, bem como no seu próprio interesse;
8. Ao não entregarem nos cofres do Estado o I.V.A. mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado que representaram;
9. Os arguidos sabiam, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
10. O arguido BB… é empresário, auferindo cerca de 500,00€ por mês;
11. Vive com a esposa, que trabalha, e uma filha menor;
12. O casal encontra-se a amortizar um crédito para aquisição de habitação no valor de 270,00€ por mês;
13. O arguido estudou até ao 12.º ano;
14. O arguido sofreu uma condenação anterior, transitada em julgado, pela prática de crimes de ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física grave.

Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que:

A) Os arguidos, não entregaram nos cofres do Estado o I.V.A. liquidado nas operações tributáveis efectuadas nos períodos referidos, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitam, nem decorridos noventa dias sobre o termo de tal prazo legal, no montante de €33,062,89 (trinta e três mil sessenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), assim discriminado:

Mês
IVA liquidado
IVA dedutível
IVA a entregar
Out. – Dez. 2008
€16.107,20
€16.107,20
€16.107,20
Jan. – Março 2009
€16.955,69
€16.955,69
€16.955,69
Total
€54.072,56
€54.072,56
€54.072,56
*
Motivação
A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento, analisada e conjugada criticamente à luz das regras da experiência.
Assim, considerou-se, desde logo, as declarações do arguido BB... que admitiu parcialmente os factos que lhe são imputados, estando a par das faltas de entrega das quantias devidas à administração tributária, tendo relatado o contexto em que os factos ocorreram, esclarecendo sobre as circunstâncias atinentes à vida financeira da sociedade, descrevendo as dificuldades que a mesma atravessou e atravessa, resultante de margens de lucros baixas, associada à falta de liquidez e tesouraria, derivadas, sobretudo, da falta de pagamento atempado por parte dos seus clientes.
Com interesse referiu ainda que tem vindo a envidar sérios esforços no pagamento das quantias ainda devidas, o que faz à custa de bastante sacrifício.
As suas declarações foram ainda relevantes para a prova das suas condições sócio­-económicas, já que neste particular também se afiguraram dignas de crédito
Interessou ainda o depoimento da testemunha DD…, Inspector Tributário na Direcção de Finanças de Coimbra, que depôs de modo isento e credível, referiu que conduziu o processo de averiguações e, no essencial, confirmou a falta de entrega das quantias devidas por parte dos arguidos, que discriminou por montante e períodos, conclusão a que chegou através da análise comparativa, confronto e cruzamento de dados resultantes do sistema informático e do teor dos demais elementos documentais existentes. Confirmou que as facturas em causa (e IVA) foram efectivamente liquidadas à sociedade arguida, visto que contactou directamente com os clientes indicados nas mesmas, os quais enviaram cópia dos extractos da conta corrente e informaram dos respectivos meios de pagamento, exibindo ainda os respectivos recibos de quitação.
O Tribunal socorreu-se também do depoimento da testemunha CC..., que conhece o arguido há muitos 20 anos, tendo atestado as dificuldades económicas com que se debatem os arguidos, demonstrando ainda conhecimento sobre os pagamentos mensais que o arguido vem fazendo por forma a abater à divida da administração fiscal. Abonou ainda o comportamento do arguido BB… .
O Tribunal valeu-se ainda da prova documental junta aos autos, concretamente de fls. 28-41, 45-46, a certidão do teor da matrícula comercial de fls. 42-44, notificação para pagamento no prazo de 30 dias de fls. 62-73, 129-131, 132-133, documentos de fls. 167-264 e 274-275 e informação do Serviço de Finanças da Figueira da Foz 2 de fls. 362 e 363.
Finalmente para demonstração dos antecedentes criminais foi valorado o certificado de registo criminal junto a fls. 339 e 340.
*
Os demais factos considerados como não provados, mereceram resposta negativa por sobre eles não ter sido produzida prova, já que os documentos existentes nos autos, concretamente a informação do Serviço de Finanças da Figueira da Foz 2 junta a fls. 362 e 363, é demonstrativa da existência de pagamentos parciais posteriores que conduzem necessariamente à divergência dos valores inicialmente incluídos na acusação.
*
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelos recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:

- Se os factos apurados foram incorrectamente julgados.


Questão Prévia:
As conclusões apresentadas pelos recorrentes sofrem de algumas deficiências.
Dispõe o art 412 nº 1 do CPP que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Ora, os recorrentes voltam a alegar de facto e de direito como o fizeram na motivação apresentada. Os recorrentes, sem qualquer ordem repetem, novamente, o que em sede de motivação já tinha dito.
Ora, as conclusões têm que ser precisas, claras e concisas, porque são apenas as questões ali colocadas que vão ser objecto de decisão.
As conclusões do recurso têm que ser um resumo dos fundamentos por que se pede o seu provimento e tem como finalidade que elas se tornem fácil e rapidamente apreensíveis pelo Tribunal de recurso.
Dispõe o art 417 nº 3 do CPP que se a motivação não contiver conclusões ou estas não forem conforme ao exigido por lei o relator convida o recorrente a apresentar novas conclusões sob pena de o recurso ser rejeitado.
Já a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem decidido que em caso de omissão das conclusões ou de deficientes conclusões deverá ser feito convite aos recorrentes para a correcção das motivações que apresentem deficiência e no que respeita às conclusões não se justificando, a imediata, rejeição do recurso.
Ora, no caso “sub judice”, a motivação apresenta deficiências em matéria de conclusões mas, da leitura das mesmas retira-se, sem dúvidas, qual o objecto do recurso sendo manifestamente, inútil um convite à correcção.
Assim, tem-se como sanada, tal deficiência

As declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento, encontram-se documentadas conforme o disposto no art 363º do Código Processo Penal. Assim, toda a prova produzida em julgamento encontra-se devidamente gravada.
No entanto, os recorrentes e apesar de pretenderem impugnarem a matéria de facto dada como provada em julgamento não fazem a especificação por referência concreta aos suportes técnicos.
Ora, dispõe o art 412 nº 3 do Código Processo Penal:
“Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar.
a) Os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
E o nº4 “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do art 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Portanto, quando os recorrente impugnem a decisão proferida sobre a matéria de facto devem especificar, além do mais “as provas que impõem decisão diversa da recorrida”, devendo tal especificação fazer-se “por referência ao consignado na acta” em conformidade com o preceituado no nº 2 do art 364.
Os recorrentes não dão satisfação a tal ónus, quer na motivação, quer nas conclusões não especificam, por referência ao consignado na acta, as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da impugnada, não indicam os pontos incorrectamente julgados e não indicou com referência à acta os excertos que, em seu entender, impõe uma decisão diversa. Os recorrentes limitam-se a transcrever partes dos depoimentos de algumas testemunhas para contrariar o que foi dado como provado e criticar a forma como o tribunal apreciou os depoimentos das testemunhas, sem qualquer referência, de partes dos depoimentos prestados.
Assim sendo, o incumprimento daquele ónus acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Aliás, neste sentido decidiu o acórdão nº 140/2004, processo nº 565/2003 de 10/3/2004 (DR II série, nº 91 de 17/4/2004), ainda Ac RLx de 20/10/99, in CJ, XXIV, 4, 153 e Ac RC de 30/1/02, in CJ XXVII, 1, 44 e 45.
É verdade que o art 417 nº 3 do CPP estipula que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art 412º, o relator convida a recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.
No entanto, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (art 417 nº 4 do CPP).
Ou seja, só é possível o convite para a correcção quando essa correcção se processa dentro dos termos da própria motivação e não constitua uma substituição, mesmo que parcial da motivação.
Como vem referido no Ac desta Relação de 2 de Abril de 2008 no processo 604/05.5PBVIS.C1 “quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art 18º nº 2 da CRP que justificam a convite e a consequente possibilidade de correcção.
Porém, quando o recorrente no corpo da motivação do recurso não enunciou as especificações, o convite à correcção não se justifica porque para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso.
No caso vertente, nem na motivação, nem nas conclusões existe qualquer menção ás provas que impõem decisão diversa e apenas de forma genérica se faz referência aos pontos de factos considerados incorrectamente julgados, pelo que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento.
Aliás, do recurso interposto, nomeadamente, das conclusões verifica-se que os recorrentes apenas pretendem atacar a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida.
Assim, tem-se como assente a matéria de facto.

Os arguidos foram condenados pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal.
Sustentam os recorrentes que não procedeu ao pagamento do imposto na medida em que não recebeu as quantias que constavam da factura. Estavam com falta de liquidez e, por isso e, por “não ter lucros para adiantar os montantes não recebidos até ao prazo de entrega do imposto”.
O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como fim a tributação do consumo.
Como vem referido no ac do STJ de 30/6/2011 no proc. nº 680/06.3TVLSB.L1S1 - o IVA, que desde Janeiro de 1986 é a base do nosso sistema fiscal de tributação do consumo, tem como sujeitos passivos dessa concreta relação jurídica tributária, os transmitentes de bens e os prestadores de serviços sobre os quais incide tal imposto (artº 2º do CIVA) mas são, na verdade, os consumidores finais que pagam tal imposto, justamente porque o mesmo é um imposto que incide sobre o consumo.
Como também vem referido no Acórdão do Supremo Tribunal, de 22-04-2004, de que foi Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Oliveira Barros, «são de considerar nessa relação jurídica fiscal dois sujeitos passivos, que são o contribuinte de direito e o contribuinte da facto, sendo o IVA um imposto cobrado por uns, mas posto a cargo de e suportado por outros.
Na perspectiva tradicional, que por tal entendia quem, em último termo, suporta o imposto, são estes últimos quem vem, na realidade, a ser os contribuintes, pois são eles os devedores principais e originários desse tributo, e, nessa óptica, o seu sujeito passivo propriamente dito.
Enquanto o responsável fiscal é chamado a pagá-lo, o contribuinte de direito é responsável também pela falta da oportuna liquidação e cobrança desse imposto a quem efectivamente o desembolsa, ou seja, ao contribuinte de facto»
(Pº 04B837, disponível in www. dgsi. pt)
Assim sendo, cabe aos sujeitos passivos a liquidação e a entrega de tal imposto nos serviços de Finanças mas, por força do disposto no artº 37º do referido Código, tal imposto repercute-se no preço a pagar pelo adquirente dos bens e dos serviços, pois tal inciso legal expressamente dispõe no seu nº 1:
«A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura ou documento equivalente para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços».
Desta forma, porque se trata de um imposto, a vontade do consumidor (adquirente das mercadorias ou utilizador dos serviços) quanto à aceitação do seu pagamento é irrelevante, desde que tenha havido transmissão de bens materiais ou prestação serviços para esse adquirente, que não estejam isentos de IVA.
Também como vem referido no ac da RC de 10/11/2010, Proc nº 67/07.0IDCBR.C1, O IVA é devido logo que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que ele respeita se realize, não dependendo a efectiva cobrança do imposto aos clientes.
Já decidiu o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 que «o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem», adiantando ainda que o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.
Deste modo, torna-se absolutamente irrelevante para a perfectibilização do delito que os serviços tenham sido cobrados ou não.
Mas e como vem referido pelo Mª Pº, ”dando de barato que a recorrente «AA…, Lda.» não recebeu os valores facturados em data coincidente com a da emissão das facturas (mas 2 ou 3 meses depois), o certo é que, de todo o modo, os recebeu efectivamente e os não entregou nos prazos legais - se não nos 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, quanto mais não fosse, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito da Administração Fiscal, a que alude o artigo 105.°, n.º 4. al. b), do RGIT - sendo estes montantes superiores aos valores presentemente estabelecidos na lei (€ 7.500.00) como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal (como decorre da conjugação dos elementos documentais juntos aos autos e do depoimento da testemunha DD...)”.
Como vem referido na motivação:

Interessou ainda o depoimento da testemunha DD..., Inspector Tributário na Direcção de Finanças de Coimbra, que depôs de modo isento e credível, referiu que conduziu o processo de averiguações e, no essencial, confirmou a falta de entrega das quantias devidas por parte dos arguidos, que discriminou por montante e períodos, conclusão a que chegou através da análise comparativa, confronto e cruzamento de dados resultantes do sistema informático e do teor dos demais elementos documentais existentes. Confirmou que as facturas em causa (e IVA) foram efectivamente liquidadas à sociedade arguida, visto que contactou directamente com os clientes indicados nas mesmas, os quais enviaram cópia dos extractos da conta corrente e informaram dos respectivos meios de pagamento, exibindo ainda os respectivos recibos de quitação.
O Tribunal valeu-se ainda da prova documental junta aos autos, concretamente de fls. 28-41, 45-46, a certidão do teor da matrícula comercial de fls. 42-44, notificação para pagamento no prazo de 30 dias de fls. 62-73, 129-131, 132-133, documentos de fls. 167-264 e 274-275 e informação do Serviço de Finanças da Figueira da Foz 2 de fls. 362 e 363.
No que respeita à apropriação e na esteira do ac do STJ acima citado, após a entrada em vigor do RGIT, basta a não entrega dos montantes deduzidos para que se verifique a apropriação, sendo criminalmente punível tal prévia apropriação e consequente não entrega (mesmo que não se prove que o agente se tenha apropriado pessoalmente desses montantes, tendo antes pago despesas sociais com dinheiro que não lhe pertencia.
O artigo 105º fala em «não entrega». Enquanto no abuso de confiança do artigo 205º do CP se exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, o abuso de confiança fiscal basta-se com a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou parafiscal.
A não entrega traduz-se numa apropriação, num fazer sua a coisa alheia.
A nova redacção do artigo 105º - que suprimiu o termo «apropriação» - regressa à redacção da norma do artigo 24º/1 do RJIFNA anterior à alteração introduzida pelo DL394/93 de 24/11.
Nestes termos, o tipo de ilícito prescinde hoje do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.
No que respeita ao elemento subjectivo cumpre referir que não se exige um dolo específico, bastando-se tão só que a acção seja desejada e aceite pelo autor, com a consciência da ilicitude da mesma, tanto mais que não está prevista a punibilidade da negligência.
Tanto mais que no caso de ter havido comunicação à Administração da prestação em falta, como é o caso dos autos, exige a lei uma outra condição objectiva de punibilidade, que vem descrita no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT, introduzida pelo artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007 e entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2007.
Prescreve um tal preceito que “os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se (…) b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
Ora os arguidos não procederam à entrega, e embora tivessem recebido os montantes, correspondentes ao IVA liquidado aos clientes nos períodos a que supra se fez referência.
E não o fizeram nem até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que respeitam as obrigações, nem nos 90 dias posteriores a tal prazo.
Assim, uma vez que os arguidos agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não restam dúvidas que praticaram o crime em causa.
Encontram-se, pois, preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime em causa.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juizes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 5 ucs.


Coimbra,

Alice Santos


Belmiro Andrade