Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
163/17.6GAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
FALTA DE INDICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
NULIDADE
GARANTIAS DE DEFESA
PRINCÍPIOS DO ACUSATÓRIO E DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 358.º, N.º 1; 61.º, N.º 1, AL. C) E 379.º, N.º 1, AL. B), TODOS DO CPP; ART.º 32.º, N.ºS 1 E 5 DA CRP
Sumário: I – A comunicação a fazer ao arguido na situação prevista no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, da alteração não substancial dos factos, deve abranger não só o facto ou factos objeto da alteração, mas também a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação dos novos factos com relevo para a decisão.

II - Só esta concretização permitirá ao arguido identificar o objeto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo quiçá outros que, em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes e entretanto comunicados.

III – A condenação do arguido pelos novos factos sem cumprimento desta exigência, constitui a nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, pois a condenação ocorre fora do condicionalismo e exigências legais do artigo 358.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral:










             Acordam em conferência, na 4.ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

            1. Nos autos supra identificados, foi o arguido

            IP, filho de (...), natural da freguesia de (...), concelho da (...) , nascido em (...), casado, aposentado, com residência na Rua da (...), ...

            Condenado:

            - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros), num total de € 720 (setecentos e vinte euros).

            - A pagar ao demandante RM o montante de € 1.415,63 (mil quatrocentos e quinze euros e sessenta e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, e absolvendo-o do demais peticionado.

            2. Desta decisão/sentença recorre o arguido, que formula as seguintes conclusões:

            (...)

            3. Entretanto na audiência de 17.1.2019, pelo tribunal recorrido, foi proferido o seguinte despacho:

            “O Tribunal procede, neste momento, à comunicação a que alude o artigo 358°, n. ° 1 do CPP, operando uma alteração não substancial dos factos, uma vez que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultou que foi o arguido IP que desferiu uma pancada na nuca de RM”.

            3.1. Na sequência deste despacho pelo arguido IP foi requerido o prazo de cinco para exercer o seu direito de defesa.

            3.2. No exercício deste direito, veio o arguido apresentar o seguinte requerimento:

            1º A alteração não substancial dos factos tutelada pelo citado normativo deverá estar sustentada num conjunto credível de meios de prova, ou num meio de prova particularmente credível, de tal forma que em relação aos mesmos se possa formar um juízo de indiciação suficiente semelhante àquele que esteve subjacente à dedução da acusação, nos termos contidos no artigo 283.°, n.º 2 do CPP.

            2° Consequentemente, as garantias de defesa impõem que sejam identificadas, com rigor e precisão, as concretas provas em que se sustenta a alteração preconizada.

            3° Pois só dessa forma o arguido estará devidamente habilitado a posicionar-se sobre essa hipotéticas provas e exercer, cabal e plenamente, o contraditório, eventualmente indicando outras que refutem aqueloutras hipotéticas.

Com efeito, da mesma forma que, para a acusação, se exige essa indicação (cfr. citado artigo 283.°, n.ºs 2 e 3 do CPP), tal imperativo também haverá de ser exigido para a comunicação a que alude o artigo 358.°, n.º 1 do CPP, até por força do comando previsto no n.º 5 do artigo 95.º do mesmo Código.

            ln casu, o despacho que pretende traduzir a referida comunicação, não cumpre os enunciados requisitos, contemplando uma formulação, vaga, genérica e meramente tabelar, estando, por isso, inquinado de nulidade, por aplicação analógica, intra-sistemática, dos artigos 283.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1 do CPP - o que se invoca.

            4º Desde já se suscitando a inconstitucionalidade do artigo 358.º n.º 1 do CPP, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP, na medida em que seja interpretado em sentido contrário ao propugnado nos precedentes arts.

            3.3. Sobre este requerimento foi proferido o seguinte despacho:

            “- Cumpre apreciar e decidir.

            Como é sabido, as nulidades insanáveis encontram-se previstas no artigo 119° do código de processo penal, e as nulidades dependentes de arguição no artigo 120° do mesmo código, podendo estas últimas ser também cominadas noutras disposições legais. A não indicação no despacho que procede à comunicação de uma alteração não substancial dos factos, das provas consideradas para fundamentar tal alteração não se encontra elencada no artigo 119° do código do processo penal e por isso não configura qualquer nulidade insanável. Por outro lado, o artigo 358°, n.º 1 do código de processo penal que regula a alteração não substancial dos factos descritos na acusação não estabelece qualquer nulidade, pelo que também não estamos perante as nulidades dependentes de arguição previstas no artigo 120°. Acresce que o arguido nem indica a concreta forma de nulidade que imputa à decisão em apreço, limitando-se a defender a aplicação analógica intersistemática dos artigos 283º n.º 3 e 379º n.º 1 do código de processo penal, sendo que não se vislumbra qualquer analogia entre um despacho de acusação, uma sentença e um despacho que comunica uma alteração não substancial de factos, o qual, de resto, encontra-se especificamente regulado em normativo próprio, o artigo 358°, n.º 1 do código de processo penal. No limite, podia tratar-se apenas de uma irregularidade prevista no artigo 123° do código de processo penal, contudo as mesmas carecem de ser arguidas no próprio acto quando os interessados ao mesmo tenham assistido, como é o caso. Como tal, uma vez que o arguido não invocou qualquer irregularidade na audiência em que foi comunicada a alteração não substancial dos factos, apenas o vindo a fazer posteriormente, conclui-se que tal arguição é manifestamente extemporânea. Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que o despacho cumpre escrupulosamente os requisitos exigidos para a comunicação da alteração não substancial de factos, nada na lei exigindo que se indique as provas que sustentaram tal decisão, tanto mais que tal indicação e motivação deverá ter lugar em sede de sentença. Por esta razão também não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade ou postergação dos direitos de defesa do arguido, posto que a pretendida indicação e análise dos meios de prova será efectivamente realizada na sentença, destinando-se a comunicação a que alude o artigo 358.º n.° 1 do código de processo penal tão somente a permitir que o arguido tome conhecimento de factos com os quais ainda não foi confrontado e que o tribunal entende terem resultado da prova produzida, permitindo produzir prova quanto aos mesmos. Por último, dir-se-á ainda que sem prejuízo de se ter entendido estar em causa uma alteração não substancial dos factos, por ser a posição que melhor salvaguarda os direitos de defesa do arguido, na verdade o que está em causa é apenas a concretização de factos que já constavam da acusação, e, por isso, face ao exposto indefiro o requerido por extemporaneidade e não admissibilidade legal”.

            4. Deste despacho também recorreu o arguido IP, que formula as seguintes conclusões:

            1ª - A alteração não substancial dos factos tutelada pelo artigo 358.º, n.º 1 do CPP, deverá estar sustentada num conjunto credível de meios de prova, ou num meio de prova particularmente credível, de tal forma que em relação aos mesmos se possa formar um juízo de indiciação suficiente semelhante àquele que esteve subjacente à dedução da acusação, nos termos contidos no artigo 283.º, n.º 2 do CPP.

            2ª - As garantias de defesa impõem que, na comunicação regulada nesse artigo, sejam identificadas, com rigor e precisão, as concretas provas em que se sustenta a alteração preconizada, pois só dessa forma o arguido estará devidamente habilitado a posicionar-se sobre essa hipotéticas provas e exercer, cabal e plenamente, o contraditório, eventualmente indicando outras que refutem aqueloutras hipotéticas.

            3ª - É que, da mesma forma que, para a acusação, se exige essa indicação (cfr. citado artigo 283.º, n.ºs 2 e 3 do CPP), tal imperativo também haverá de ser exigido para a comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 1 do CPP, até por força do comando previsto no n.º 5 do artigo 95.º do mesmo Código.

            4ª - O despacho de 17-0 1- 20 19, não cumpre os enunciados requisitos, contemplando uma formulação, vaga, genérica e meramente tabelar, estando, por isso, inquinado de nulidade, por aplicação analógica, intra-sistemática, dos artigos 283.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1 do CPP - o que se invoca.

            5ª - Em consequência, deduzida defesa pelo arguido dentro dos 5 dias que lhe foram concedidos, nos termos da parte final do n.º 1 do citado artigo 358.º do CPP, através da qual suscitou o vício denunciado na conclusão anterior, deveria ter sido este - no despacho ora recorrido de 07-02-2019, declarado, e anulado aquele despacho de 17-01-2019, substituindo-o por outro que respeitasse os requisitos elencados nas conclusões 1ª a 3ª.

            6ª - Não o tendo feito, por entender que o despacho de 17-01-2019 cumpriu tais requisitos e ao decidir-se pela extemporaneidade e pela inadmissibilidade legal do requerimento-defesa do arguido de 22-01-2019, invocando o regime das irregularidade processuais, o Tribunal a quo, no despacho recorrido de 07-02-2019, violou os normativos citados nas conclusões 1ª a 5ª.

            7ª - Essa violação resultou da circunstância de os ter interpretado no sentido:

            a) De que a comunicação prevista no n.º 1 do artigo 358° do CPP, não tem que respeitar a exigências enunciadas nas conclusões 1ª a 3ª.

            b) De que, mesmo tendo o requerimento do arguido sido apresentado dentro do prazo de 5 dias que lhe foi concedido para defesa, os vícios que aponta ao despacho de 17-01-2019 deveriam ter sido invocados neste dia e no próprio acto da respectiva comunicação/notificação, nos termos do artigo 123.º do CPC.

            8ª - Deveria tê-los interpretado em sentido contrário. Justamente no sentido que ficou expresso nas mencionadas conclusões 1ª a 3ª.

            9ª - E no sentido de que:

            a) Ainda que se considerasse ser o regime de invocação das irregularidades o aplicável, tendo o requerimento-defesa do arguido sido, em 22-01-2019, apresentado dentro do prazo de 5 dias que lhe foi concedido para defesa, haveria de ter-se tal irregularidade como tempestivamente deduzida, competindo ao Tribunal a quo alterar, somente, a respectiva qualificação, não podendo ser essa a justificação do indeferimento;

            b) Com os mesmos fundamentos desse requerimento, o Tribunal a quo poderia e deveria, inclusive ex oficio, ter declarado a existência de irregularidade processual (em vez de nulidade), exactamente com iguais efeitos anulatórios que resultariam da verificação de nulidade (cfr. artigo 123.º, n.ºs 1 e 2 do CPP), revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro que respeitasse os requisitos elencados nas conclusões 1ª a 3ª.

            10ª - Na sequência do que ficou expresso nas conclusões anteriores, terá de manter-se suscitada a inconstitucionalidade do artigo 358.º, n.º 1 do CPP, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP, na medida em que seja interpretado em sentido contrário ao propugnado nas conclusões 1ª a 3ª.

            11ª - Nesta conformidade, e na procedência do presente recurso, apela-se ao Tribunal ad quem:

            a) Que anule o despacho recorrido e determine a sua substituição por outro que revogue o despacho de 17-0 1- 2019, e que, por sua vez, substitua este por outro que fundamente e identifique, com rigor e precisão, as concretas provas que, no entendimento do Tribunal a quo, conduziram à alteração não substancial dos factos que preconizou;

            b) Que, por efeito dessa anulação, determine, também, a anulação da sentença, ordenando que os autos regressem à fase em que foi proferido o despacho de 17-01- 2019, retomando a sua normal tramitação com a reparação desse despacho, de harmonia com o que se propugna.

(...)

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.                                                          

II

Questões a apreciar:

Recurso intercalar:

1. Necessidade de, no despacho proferido ao abrigo do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, serem comunicados ao arguido os meios de prova indiciária que fundamentam a alteração não substancial dos factos.

2. A natureza do vício dessa não comunicação e a tempestividade da sua arguição.

(...)

IV

Apreciando:

Recurso intercalar:

1ª Questão: a necessidade de, no despacho proferido ao abrigo do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, serem comunicados ao arguido os meios de prova indiciária que fundamentam a alteração não substancial dos factos.

1. Diz o recorrente:

As garantias de defesa impõem que, na comunicação regulada nesse artigo, sejam identificadas, com rigor e precisão, as concretas provas em que se sustenta a alteração preconizada, pois só dessa forma o arguido estará devidamente habilitado a posicionar-se sobre essa hipotéticas provas e exercer, cabal e plenamente, o contraditório, eventualmente indicando outras que refutem aqueloutras hipotéticas”.

            2. No seu parecer referencia o Ministério Público o ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de  14-01-2015, proferido no Processo 72/11.2GDRST.C1 (consultável em www.dgsi.pt), no qual se decidiu que «a lei não impõe, aquando da comunicação da alteração de factos, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º, a indicação dos meios de prova, o que bem se compreende por se tratar de factos indiciados e não factos provados, perante os quais a defesa, se assim o entender, ainda pode apresentar novos meios de prova, o que o arguido, no caso em apreço, não fez”.

Não é este o entendimento que sufragamos, conforme decidido no acórdão desta mesma Relação de Coimbra de 13.12.2011, proferido no processo .º 878/07.7TACBR.C1, em que somos Relator – publicado e consultável em www.dgsi.pt.

No essencial, sobre esta temática, decidiu-se em tal aresto:

            “Ora, a alteração dos factos, quer seja substancial quer seja não substancial, traduz-se sempre numa alteração do objecto inicial do processo definido ou delimitado pelo teor da acusação (pública ou particular). Com efeito, o nosso processo penal tem natureza/estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório – n.º 5, do artigo 32.º, da CRP/76. O que significa que o objecto do processo a discutir e a apreciar pelo tribunal, ou dito de outro modo, os factos em apreciação e o seu enquadramento jurídico, estão delimitados pelo teor da acusação.

            Define o legislador, no artigo 1.º, alínea f), do CPP, o conceito de “alteração substancial dos factos” como sendo aquela situação que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

            A estas situações responde o legislador no artigo 359.º, n.º 1, do CPP, dizendo que esta alteração não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, a não ser que, como se ressalva no n.º 3 do preceito, que exista acordo entre MºPº, arguido e assistente, com a continuação do julgamento pelos novos factos.

            Não definindo o legislador o conceito de “alteração não substancial dos factos”, o mesmo terá de resultar de uma interpretação a contrario, do conceito da alteração substancial.

            Com o esclarecimento ou ajuda do disposto sobre a matéria no artigo 358.º, n.º 1, do CPP ao dizer e exigir que só deverá ser atendida uma alteração dos factos que, não se traduzindo numa imputação de crime diverso ao arguido nem agravando os limites máximos das sanções aplicáveis (de acordo com o teor da acusação), tal alteração tem, contudo, algum relevo para a decisão final a proferir.

            Assim, se surgir, com a discussão em audiência, matéria factual diferente ou diversa da acusada, mas que não releve em nada para a decisão final, não faz sentido falar de uma alteração não substancial dos factos. Tudo se passará como se essa matéria não tivesse surgido na discussão. Se porventura essa diferente matéria factual implicar qualificação diversa ou agravamento dos limites das sanções previsíveis e aplicáveis, será a dita situação de alteração substancial, pelo que também não poderá ser levada em conta a não ser que exista o tal acordo dos sujeitos processuais na continuação do julgamento pelos novos factos.

            Quando o tribunal entende[1], pois, que existe uma alteração não substancial, de relevo, e entende ainda que a deve levar em conta na decisão a proferir, surge então a necessidade de dar cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, que se traduz em comunicar esta alteração ao arguido.

            Esta exigência ou necessidade de comunicação surge por dois motivos:

            - Desde logo porque, vigorando o apontado princípio do acusatório, qualquer alteração à acusação deve ser comunicada ao arguido, no sentido de esclarecê-lo que, para além dos factos que já constam da acusação, o tribunal apreciará ainda mais os que se traduzirem em tal alteração.

            - Em segundo lugar porque vigora também o princípio do contraditório, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que o arguido não seja condenado por factos dos quais não se defendeu, que não seja sujeito de uma decisão/surpresa.

            Pelo que se exige que, para além da comunicação, seja concedido ao arguido, se o requerer, o tempo estritamente necessário[2] para a preparação da defesa.

            (…)

            Regressando agora ao teor do despacho de alteração não substancial dos factos, no seguimento do que se disse sobre a natureza acusatória do nosso processo penal, do direito do arguido ao exercício efectivo da sua defesa perante novos factos que o tribunal entenda apreciar na sentença, no pressuposto de que, se o tribunal entende proceder à dita alteração não substancial é porque tal alteração se reveste de interesse ou, no dizer da lei, de relevo, significa que a comunicação a que se refere o artigo 358.º, deve obedecer a determinados requisitos, nomeadamente formais e substanciais, sob pena de, a não se entender assim, o princípio do contraditório não ser observado e respeitado na sua plenitude e o arguido acabar por ser surpreendido com uma decisão diferente do expectável.

            É deste modo que no ac. do STJ de 16.1.2003, proferido no proc. n.º 02P4424[3] se afirma que “a obrigação de advertência ou comunicação de alteração, substancial ou não, dos factos, imposta pelos artigos 358.º e 359.º, do CPP, implica que tal comunicação seja feita com todo o rigor, já que tal diligência se destina a permitir que o visado exerça, em plenitude, o seu direito de defesa, que não resultaria salvaguardado se o tribunal, afinal, pudesse ultrapassar, unilateralmente, os limites daquela alteração nos termos precisos em que lhe foi transmitida” – sublinhado nosso.

            Também Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 2009, Coimbra Editora, 17.ª Edição, fls. 814, entende que os dispositivos do artigo 358.º, do CPP “são um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz por parte do arguido”.

            3. O respeito pelos princípios do acusatório e do contraditório, a propósito da questão da alteração substancial e não substancial dos factos, encontra-se igualmente presente no decidido no acórdão desta Relação de Coimbra de 08-02-2017, proferido no processo n.º 196/13.1PAACB.C1[4], onde se afirma:

            I - O princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento.

            II - A lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o CPP regula nos arts. 1.º, 358.º e 359.º.      

            III - Estaremos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem.

            (…)

            VI - O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia assegura as garantias de defesa do arguido, pretendendo a lei obstar à sua condenação por factos diferentes dos acusados que não lhe foram dados a conhecer em tempo útil.

            4. Cumpre analisar se no concreto caso, pelo tribunal a quo foi observado este rigor na comunicação, de modo a permitir ao arguido o pleno exercício do contraditório, logo, da sua defesa.

Compulsado o teor do primeiro despacho judicial de 17.1.2019, tem o mesmo o seguinte teor:

- O Tribunal procede, neste momento, à comunicação a que alude do artigo 358.°, n.º 1 do CPP, operando uma alteração não substancial dos factos, uma vez que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento[5] resultou que foi o arguido IP que desferiu uma pancada na nuca de RM.

Na sequência do exercício do seu direito de defesa no prazo para o efeito concedido – cinco dias – e no qual o recorrente suscitou a questão de lhe serem comunicadas ou identificadas “com rigor e precisão, as concretas provas em que se sustenta a alteração preconizada”, corolário das suas garantias de defesa, decidiu o tribunal a quo, entre outras coisas:

“Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que o despacho cumpre escrupulosamente os requisitos exigidos para a comunicação da alteração não substancial de factos, nada na lei exigindo que se indique as provas que sustentaram tal decisão, tanto mais que tal indicação e motivação deverá ter lugar em sede de sentença”.

            Quanto ao concreto facto objeto da alteração não substancial, não suscita dúvidas o despacho quanto ao cumprimento do legalmente exigido, pois o mesmo (facto) é identificado e concretizado: foi o arguido IP que desferiu uma pancada na nuca de RM.

            O mesmo não acontece quanto à indicação do concreto meio ou meios de prova indiciária em que o tribunal recorrido se apoia para comunicar a alteração, ou seja, a indiciação deste facto.

            A mera referência a “prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento” é, em nosso entender, vaga e imprecisa. Pelo que, manifestamente a decisão não deu cumprimento ao exigido nem ao cumprimento fiel do que deve ser feito: a concretização dos meios de prova de onde resulta esta indiciação dos novos factos com relevo para a decisão.

            A este propósito, mais se decidiu no supra referido ac. desta Relação de 13.12.2011, processo n.º 878/07.7TACBR.C1:

            “Neste concreto caso da comunicação da alteração não substancial dos factos, ainda não se está perante uma valoração final da prova com vista a dar os factos que estão “na mente do julgador” como assentes ou não. Este apenas percepciona que, segundo determinados elementos de prova já produzidos, podem e devem ser dados como provados, para além dos factos que já integram a acusação, mais alguns factos com relevo para a sentença. São exactamente esses os factos que devem integrar a tal comunicação. Com certeza que são ainda e apenas factos indiciários, porque sujeitos ainda ao contraditório. A valoração do julgador não é ainda definitiva. Pode acontecer que com a produção de novos elementos de prova, tais indícios percam consistência ou apontem noutro sentido. A comunicação e o exercício do direito de defesa do arguido podem levar a esse efeito. Que pode ser conseguido ou simplesmente manter e reforçar os indícios já existentes. Ora, nos mesmos termos que, na sentença, o julgador deve indicar os meios de prova com o respectivo exame crítico em que se apoiou para dar os factos como provados ou não provados, assim esclarecendo e convencendo da bondade do decidido, para os sujeitos processuais ficarem a saber o raciocínio seguido pelo julgador na valoração da prova produzida – constituindo nulidade esta não explicitação ou fundamentação -, também aquando do cumprimento desta comunicação, tem o julgador o dever de indicar ao arguido, que os factos (novos) se mostram indiciados com base em determinados e concretos meios de prova. Só esta concretização permitirá ao arguido identificar o objecto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo quiçá outros que, em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes. Mas, mais uma vez, temos que distinguir entre o exercício pleno e efectivo do arguido deste seu direito, do resultado final de toda a sua defesa, que tanto pode abalar os indícios como não os afectar, de todo.

            Sempre se devendo raciocinar e julgar no sentido de que, apesar de já produzida prova sobre a matéria, o raciocínio feito sobre os novos factos, é sempre um raciocínio provisório, só adquirindo a forma de definitivo, com a prolação da sentença. É neste espaço que medeia entre a comunicação e a sentença, que é dada a oportunidade ao arguido do exercício legítimo da sua defesa, de poder contrariar os indícios, a propensão do julgador para confirmar esses indícios, quer criando dúvida sobre a sua prática quer contrariando mesmo a sua efectiva ocorrência[6].

            De todos estes considerandos resulta clara a necessidade de o julgador a quo dar cumprimento ao artigo 358.º, n.º 1, do CPP, não só com rigor mas também segundo uma leal transparência para com a defesa. A qualidade e a posição de arguido, independentemente da responsabilidade e consequências que lhe possam advir da prática dos factos é, por natureza do funcionamento das regras processuais, uma parte mais débil[7], sujeita ao cumprimento de prazos no exercício dos seus direitos, podendo a todo o momento ser surpreendido com novos factos e mesmo prova de que terá que se defender”.

5. Esta exigência da comunicação dos concretos meios de prova indiciária que justificam ou fundamentam a comunicação da alteração do novo facto em causa, é essencial, pois podem ser produzidas durante a audiência inúmeras e variadas provas e só com essa indicação está o arguido habilitado e exercer, com o dito rigor, na sua plenitude, o seu direito de defesa. Sob pena deste “exercício de defesa”, não passar de mera formalidade sem defesa efetiva.

E não se diga que na sentença serão indicados os concretos meios de prova que determinaram a convicção do julgador quanto ao “novo facto”, podendo o arguido exercer, com o direito ao recurso, a sua efetiva defesa.

Não é a mesma coisa. E não se trata da mesma defesa. E não é essa a ratio da exigência legal da comunicação da alteração não substancial ao arguido.

A defesa a exercer no momento da comunicação, tem natureza diferente da defesa a exercer após a sentença.

Na primeira situação, o arguido tem a oportunidade de, antes do julgador formular o seu juízo de convicção sobre as provas até então produzidas, produzir outra prova que contrarie os indícios até então existentes. E dessa ponderação, poderá resultar uma convicção e valoração diferente caso não tivessem sido produzidos esses meios de prova pelo arguido. Digamos que aos indícios existentes o arguido tem a possibilidade de oferecer contraindícios.

A defesa do arguido quanto ao teor da sentença, mesmo no que respeita à impugnação da matéria de facto provada, obedece a outras formalidades e exigências legais – v. artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal -, sendo tal impugnação apreciada pelo tribunal de recurso e não pelo julgador de primeira instância, sabendo-se da limitação legal em termos de excecionalidade da apreciação da matéria de facto impugnada pelo tribunal ad quem.

Para além destas limitações ou restrições apreciadas de um modo mais genérico que fundamentam a necessidade de ao arguido serem comunicadas as provas indiciárias relativamente ao novo ou novos factos, de modo a poder contraditá-las – pois o facto só será dado como provado ou não provado segundo a consistência, idoneidade e força das provas produzidas quanto ao mesmo – importa dizer que, segundo a fundamentação do tribunal recorrido quanto a este concreto caso, não é de todo esclarecedora quanto ao concreto meio de prova para a formação da convicção.

O que nos permite afirmar que, caso tivesse sido comunicado ao arguido, no momento certo, as provas indiciárias quanto a respetivo facto que o tribunal a quo veio a dar como provado, o mesmo tivesse exercido a sua defesa mais eficazmente, quiçá com êxito.

Por todo o exposto somos levados a concluir que a comunicação ao arguido exigida pelo artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não foi realizada nos termos legalmente exigidos.

2.ª Questão: a natureza do vício dessa não comunicação legal e a tempestividade da sua arguição.

1. O disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não qualifica o vício do não cumprimento do que aí se exige quanto à comunicação e termos em que deve ser feita.

Uma coisa é certa, no prazo que lhe foi concedido para exercer a sua defesa quanto ao facto novo que lhe foi comunicado, veio o arguido dizer que, para o exercício desse direito de defesa, precisava de saber as provas indiciárias em que o tribunal sustentava este novo facto. O que lhe foi indeferido. E deste indeferimento, interpôs o arguido o respetivo recurso, cujo objeto está sendo apreciado.

Ora, pode dizer-se que a comunicação feita pelo tribunal a quo ao arguido, da alteração não substancial dos factos, não observou o legalmente exigido quanto à sua fundamentação, que no caso se traduz na explicitação ou concretização dos meios de prova[8] indiciários, nos termos supra referidos, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no artigo 61.º, n.º 1, alínea c) e 358.º, n.º 1, ambos do CPP e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP/76, violador, pois, dos direitos de defesa e do princípio do contraditório.

            Nesta medida, pode afirmar-se e concluir-se que a condenação do recorrente – conforme teor da sentença, que inclui o respetivo facto novo -, por factos que não integravam nestes exatos termos, a acusação, constitui a nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, pois esta condenação ocorreu fora do condicionalismo e exigências legais do artigo 358.º, n.º 1, do mesmo diploma.

V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se:

a)- Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido IP do despacho que lhe indeferiu a comunicação das provas indiciárias em que o tribunal sustentava o facto novo, objeto da alteração não substancial dos factos, para o exercício da sua defesa, o qual deve ser substituído por outro que efetue a comunicação nos termos supra exarados.

b)- Anular todos os atos subsequentes ao despacho recorrido, neles estando incluindo, pois, a sentença, devendo proceder-se a toda a tramitação subsequente à nova comunicação ordenada na alínea a), mas mantendo-se incólumes os atos praticados até esse momento, incluindo a prova até então produzida.

c)- Julgar prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso principal referentes à sentença, entretanto anulada.

Sem custas.

Coimbra, 23 de Outubro de 2019

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

           

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)


[1] Sendo também verdade que esta alteração não substancial dos factos pode ocorrer a requerimento – n.º 1, do artigo 358.º, do CPP.
[2] Que pode ir até dez dias, segundo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 903.
[3] Referenciado por Vinício Ribeiro in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, fls. 743.
[4] Relator Vasques Osório
[5] Sublinhado nosso.

[6] A este propósito decidiu-se no ac. de 20.1.2010, do TRP, proferido no proc. n.º 93/07.0GAMTR.P1, o seguinte:

I - O artigo 358º/1 CPP, ao prever que o tribunal comunique ao arguido a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, está a admitir que o tribunal possa fazer um juízo quanto aos factos antes de proferida a decisão final.

II - Mesmo que o tribunal, na comunicação da alteração dos factos, utilize a expressão «resultaram provados» ou «provaram-se os seguintes factos», é evidente que não o faz em sentido técnico-jurídico rigoroso, pois tal juízo é sempre provisório e dependente do exercício do contraditório.
[7] Sem prejuízo do princípio da presunção da inocência e de caber à acusação a prova dos factos e não ao arguido, a sua não prova.
[8] Esta individualização ou concretização dos meios de prova justifica-se essencialmente quando são produzidas várias provas e possam surgir dúvidas ou dificuldades para o arguido em estabelecer a correspondência entre tais provas produzidas e os novos factos indiciados, dificultando ou impossibilitando a sua defesa de modo eficaz.