Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1380/14.6T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: CRÉDITO LABORAL
PRESCRIÇÃO
IMPUGNAÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA - INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-D E 17º-E DO CIRE; 337º, Nº 1 DO CÓDIGO DO TRABALHO.
Sumário: I – A prescrição é uma causa extintiva de um direito decorrente da inércia do seu titular durante um determinado período de tempo e existe para garantir a segurança jurídica.

II – O artº 17º-E, nº 1 do CIRE, apesar de obstar à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor, viabiliza, em relação aos credores, a garantia do acesso ao direito e à tutela jurisdicional, através dos mecanismos da impugnação e reclamação de créditos previstos nos nºs 2 e 3 do artº 17º-D do mesmo código.

III – Uma trabalhadora que se arroga titular de créditos emergentes do contrato de trabalho, mas que não impugnou o seu crédito apresentado pela empregadora/devedora em processo especial de revitalização, nem reclamou outros créditos já vencidos, neste processo, tendo tido tal possibilidade, nem se manifestou por qualquer acto considerado meio adequado a interromper a prescrição, vindo a intentar uma ação judicial quando já havia decorrido o prazo previsto no artº 337º do Código do Trabalho, manteve uma atitude de inércia que lhe é imputável e que originou a prescrição de outros seus eventuais créditos sobre a sua empregadora.

Decisão Texto Integral:





Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

Corre termos na Comarca de Leiria – Leiria – Inst. Central – 1.ª Sec. Trabalho – J1, uma ação de processo comum, em que é autora A... e ré B... , ambas com os demais sinais de identificação nos autos, na qual foi peticionada a condenação da ré a pagar à autora: a) a parte vencida e não paga do subsídio de natal referente ao ano de 2012 e correspondente diferença entre os créditos laborais reconhecidos nos autos de P.E.R. n.º (…), no valor de € 11,00, acrescido dos juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento; b) 11 dias de férias não gozadas e o subsídio de férias correspondente, vencidas em 1 de janeiro de 2013, no valor de € 774,00, acrescido dos juros de mora vencidos, à taxa legal e bem assim dos vincendos até efetivo e integral pagamento; c) o valor correspondente aos proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal relativos ao ano de 2013, tudo no montante de € 903,00, acrescido dos juros de mora vencidos à taxa legal e bem assim dos vincendos até efetivo e integral pagamento; d) a quantia de € 782,25, a título de crédito de horas de formação profissional contínua não ministrada e até ao trânsito em julgado da sentença condenatória; e) a indemnização a que alude o n.º 1 do artigo 396.º do Código do Trabalho, em montante não inferior a 35 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de trabalho ou fração, acrescida dos juros de mora vencidos, à taxa legal, e bem assim dos vincendos até efetivo e integral pagamento, liquidando-se até ao momento da propositura da ação, o valor de € 6.675,20.

No essencial, alegou a demandante que resolveu com justa causa o contrato de trabalho que havia celebrado com a ré, devido ao incumprimento, por esta, da obrigação de pagamento das retribuições.

Realizada a audiência de partes, na mesma não foi possível obter a conciliação dos intervenientes processuais.

Contestou a ré, invocando a exceção da prescrição dos créditos laborais peticionados, por a ação ter sido interposta quando já havia decorrido mais de um ano desde que o contrato de trabalho cessara.

A autora respondeu, alegando, em síntese, que esteve impedida de interpor a ação judicial, devido à circunstância de ter estado a correr o Processo Especial de Revitalização relativo à ré, pelo que nos termos do artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) não estão os seus direitos prescritos.

Por despacho judicial proferido na audiência de julgamento, o tribunal de 1. ª Instância decidiu indeferir a exceção da prescrição invocada.

Inconformada, veio a ré interpor recurso de tal decisão, rematando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:

[…]

TERMOS EM QUE NESTES E NOS MELHORES DE DIREITO, os quais V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrida e substituindo-se o mesmo por um Acórdão que julgue totalmente procedente a exceção perentória de prescrição invocada, fazendo-se desse modo: JUSTIÇA!»

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido pelo tribunal de 1. ª Instância como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

Tendo os autos subido à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, propugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Objeto do Recurso

É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

Em função destas premissas, a única questão que importa conhecer respeita à alegada verificação da prescrição dos créditos laborais peticionados.


*

III. Matéria de Facto

Resultam dos autos os seguintes elementos factuais, com relevância:

1- A autora cessou o contrato de trabalho celebrado com a ré em 31-07-2013;

2- A ré apresentou-se a processo especial de revitalização (doravante designado por PER), em 7-10-2013, tendo tal processo corrido termos sob o n. º (…), na 1. ª Secção do Comércio – J 2, da Instância Central do Tribunal da Comarca de Leiria;

3- No PER foi proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório, em 23-10-2013;

4- Em 28-07-2014, foi proferida sentença que homologou o plano de revitalização da devedora, que foi publicada em 30-07-2014;

5- A petição inicial da presente ação foi apresentada em 28-11-2014.


*

IV. Enquadramento jurídico

Conforme referido anteriormente, a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se na situação dos autos se verifica a exceção perentória da prescrição invocada pela ré, ora apelante.

No despacho posto em crise, a questão foi assim apreciada:

«Da questão prévia de prescrição dos créditos laborais peticionados pela autora:

Em sede de contestação a ré veio alegar a exceção de prescrição dos créditos peticionados pela trabalhadora alegando que a ação foi proposta em 28.11.2014, tendo a ré sido citada em 22.12.2014.

Que o contrato de trabalho cessou em virtude da invocada resolução por justa causa pela trabalhadora em 26.07.2013.

Que, assim, já decorrera há muito o prazo prescricional de 1 ano previsto no art 337º, nº 1 do C.T. pelo que daí devem retirar-se as necessárias consequências.

A autora respondeu invocando que a apresentação em tribunal de um processo especial de revitalização impedia a autora de prosseguir com ação de cobrança de dívidas, pelo que nos termos do art 17º, nº 1 – E do CIRE não estão os seus direitos prescritos.

Cabe decidir.

O despacho de nomeação de Administrador judicial provisório tem, para além de outros, como efeito obstar à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor, durante o período de negociações, suspendendo, igualmente, durante esse período todas a ações em curso com idêntica finalidade quanto ao devedor.

As mesmas ações extinguir-se-ão logo seja aprovado e homologado o plano de recuperação, a menos que este preveja a sua continuação (art 17º-E, nº1 do CIRE).

Assim, tendo sido nomeado administrador judicial provisório em 23.10.2013 (cfr fls 48), a partir dessa data e até à homologação do plano de recuperação, por despacho transitado em julgado em 20.08.2014, estava a autora impedida de instaurar ação para cobrança de créditos, pelo que, tendo o contrato de trabalho cessado em 31 de julho de 2013 e tendo a autora peticionado os seus créditos em 28.11.2014, não se encontra o seu crédito prescrito.

Pelo exposto se indefere a exceção de prescrição invocada pela ré.»

Apreciemos.

De harmonia com o preceituado no n.º 1 do artigo 337.º do Código do Trabalho, o crédito do empregador ou do trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.

É consabido que a prescrição constitui uma forma extintiva de direitos pelo seu não exercício por um dado lapso de tempo fixado na lei. É uma consequência que penaliza o titular de um direito que durante um tempo legalmente determinado mantém uma atitude de inércia relativa ao exercício desse direito.

            Nos contratos de trabalho, a regra geral é a de que todos os créditos que dele resultem, bem como da sua violação ou cessação, se não forem reclamados no prazo de um ano contado a partir do dia seguinte àquele em que cessou o vínculo contratual, os mesmos extinguem-se por efeito da prescrição.

                   Reportando-nos agora ao caso dos autos, resulta do pedido formulado que a autora reclama créditos laborais derivados da violação e cessação do contrato de trabalho que vigorou entre as partes processuais, excluindo do pedido, os créditos laborais reconhecidos nos autos de PER, n. º (…), que correu termos na 1. ª Secção do Comércio – J 2, da Instância Central do Tribunal da Comarca de Leiria.

            Embora o vínculo laboral tenha cessado em 31-07-2013, a presente ação apenas é interposta em 28-11-2014, ou seja, após o decurso do prazo de um ano contado a partir do dia seguinte àquele em que o contrato de trabalhou cessou, razão pela qual a ré invoca que os créditos laborais peticionados estão prescritos.

            Entendemos que lhe assiste razão.

            Não obstante a autora venha alegar que o direito à propositura da presente ação apenas pôde ser exercido a partir da data da publicação da sentença homologatória do PER a que a ré se apresentou, ou seja, a partir de 30-07-2014, estando impedida anteriormente de intentar qualquer ação judicial, nos termos previstos pelo artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE, na verdade a autora, ao contrário do que refere, não esteve impossibilidade de aceder ao direito e à tutela jurisdicional com referência aos aludidos créditos.

            Vejamos,

            Prescreve o artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE:

A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.

Deste modo, o despacho que nomeia o administrador judicial provisório[1] tem os efeitos consagrados no normativo citado.

Entre os mesmos prevê-se a impossibilidade de instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor.

Sobre a abrangência da expressão “ações para cobrança de dívidas”, esta Secção Social já se pronunciou em diversos arestos[2] considerando que tal expressão inclui quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor - ações declarativas e ações executivas - concluindo que conhecendo o legislador o tipo de ações previstas no Código de Processo Civil, ao se referir no artigo 17.º-E, n.º 1, às ações que tem por fim a cobrança de dívidas, aí fez incluir quer as ações declarativas de condenação, quer as ações executivas desde que atinjam o património do devedor.

No mesmo sentido se tem pronunciado maioritariamente a jurisprudência, mormente a do Supremo Tribunal de Justiça[3]. E afirmamos maioritariamente porque não desconhecemos que existe uma interpretação menos abrangente do conceito utilizado pela lei[4].

Considerando o entendimento que temos defendido, do mesmo decorre que a ação declarativa para reconhecimento e condenação no pagamento de créditos laborais (como sucede com a presente ação), está abrangida pela previsão do normativo, pois o objetivo último a alcançar é a satisfação de obrigações pecuniárias pelo devedor, com alcance sobre o seu património.

Sobre o tema, aliás, pode ler-se em recente acórdão do Supremo tribunal de Justiça[5], a respeito de uma ação laboral que visava a qualificação do negócio jurídico como contrato de trabalho e os créditos derivados desse vínculo contratual:

«Desde logo, porque a lei não distinguiu, nem excecionou, as ações em que estejam em causa – simultaneamente com a condenação do Réu ao pagamento de uma quantia determinada, devida por falta do pagamento de retribuições e salários – o pedido de reconhecimento da natureza do contrato celebrado entre as partes.

E sendo certo que, in casu, se discute – de acordo com a causa de pedir e o pedido formulado pelo A. - direitos alegadamente emergentes da relação de trabalho, o certo é que esses direitos, quer no que respeita às indemnizações pedidas, quer quanto às retribuições peticionadas, reconduzem-se a uma expressão numérica: são valores determinados, relativos a montantes em dívida. São créditos laborais.

E uma vez decidida a condenação da Ré no seu pagamento, assume a plena natureza de direito de crédito do A./trabalhador sobre a Ré/devedora, por conseguinte, é o património desta que sempre terá de responder por esse crédito.

Quer isto dizer que se a ação do A. fosse julgada procedente a consequência seria a condenação da Ré nas quantias peticionadas – no todo ou em parte. Com reflexos diretos no património da Ré, podendo, a partir de então, ser exigidas.

E se é verdade que uma ação de reconhecimento do contrato de trabalho não é uma ação de cobrança de dívida, não deixa de se assumir – porque o é – como uma ação declarativa de condenação. Em que a condenação se cifra num montante determinado, num crédito, a exigir da Ré e com consequências diretas no património e ativo desta.

Quando é sabido que a Ré, se apresentou, requerendo por sua iniciativa, um processo especial de revitalização.

Por conseguinte, entendemos que, situações como a descrita nestes autos, constituem ações de idêntica finalidade e, como tal, mostram-se abrangidas pelo n.º 1 do art. 17.º-E, do CIRE.

O objetivo central de tal ação é, inquestionavelmente, o reconhecimento de um crédito emergente de contrato de trabalho e, por isso, justifica a sua inserção no conceito de ações para “cobrança de dívidas contra o devedor”, porquanto neste conspecto trata-se de “ações em curso com idêntica finalidade”.»

                        Assim, não obstante a presente ação estivesse abrangida pela previsão do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, na verdade a autora não estava impedida de reclamar no PER os créditos laborais agora peticionados.

                        Efetivamente, estes créditos já se encontravam vencidos e eram conhecidos da autora no momento em que,  no âmbito da tramitação processual do PER, lhe foi facultada a possibilidade de reclamar ou impugnar créditos, nos termos previstos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 17.º D do CIRE.

                        Deste modo, a tramitação processual do PER assegurava-lhe o acesso ao direito e à tutela jurisdicional dos créditos já vencidos, nomeadamente os agora peticionados.

                        Contudo, a demandante não impugnou o crédito apresentado pela devedora nem reclamou outros créditos, tendo deixado decorrer o prazo de um ano contado a partir do dia seguinte ao da cessação do contrato de trabalho, sem exercer o direito de que se arroga titular ou manifestar por qualquer ato considerado meio adequado, a intenção de exercer o referido direito, por forma a interromper a prescrição.

                        Acresce que o legislador não consagrou em relação ao processo especial de revitalização uma norma como a que se encontra prevista no artigo 100.º do CIRE[6], que prevê a suspensão da prescrição.

                        Destarte, consideramos que na concreta situação dos autos, a inércia assumida pela autora no exercício do seu direito durante o prazo previsto no artigo 337.º do Código do Trabalho (e que lhe é exclusivamente imputável), tem como consequência a verificação da invocada exceção da prescrição.

                        Concluindo, o recurso mostra-se procedente, impondo-se a revogação da decisão recorrida, com a consequente absolvição da ré de todos os pedidos formulados pela autora.


*

V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso de procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, absolvendo-se a ré de todos os pedidos formulados pela autora.

Custas pela recorrida.

Notifique.

Coimbra, 13 de outubro de 2016


(Paula do Paço)

(Ramalho Pinto)

(Azevedo Mendes) 



[1] Despacho previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º-C do CIRE

      [2] A título de exemplo: Acórdãos de 27-02-2014, P. 1112/13.6TTCBR.C1; de 10-09-2015, P. 73/13.6TTFIG.C1; de 28-01-2016, P. 791/15.4T8GRD.C1
[3] Acórdãos de 28-11-2015, P. 1190/12.5TTLSB.L2.S1 e de 31-05-2016, P. 7976/14.9T8SNT.L1.S1
[4] A título de exemplo: acórdãos da Relação de Lisboa de 27-01-2016, P. 213/14.8TTFUN-4 (José Eduardo Sapateiro) e de 11-07-2013 (Leopoldo Soares)
[5] Acórdão de 17-03-2016, P. 33/13.7TTBRG.P1.G1.S2

[6] Artigo 100.º do CIRE: «A sentença de declaração da insolvência determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante o decurso do processo.»