Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/10.0T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 28º AL. D) RGCOC
Sumário: É a data que consta da decisão e não a da sua notificação ao recorrente que deverá ter-se em conta na apreciação da prescrição contra-ordenacional .
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 170/10.0T2ILH do Juízo de Média Instância Criminal de Ílhavo, na comarca do Baixo Vouga, em que é recorrente o arguido A..., por despacho datado de 28 de Abril de 2010, foi julgado procedente o recurso, tendo-se declarado extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional movido contra o recorrente, ordenando-se o arquivamento dos autos.
A decisão administrativa foi datada de 12 de Fevereiro de 2010, tendo condenado o recorrente A... na coima de € 249,94 pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 98º, n.º 1, alínea d) do DL 555/99 de 16/12, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109/2001 de 24/12.

2. Inconformado, o Ministério Público recorreu do despacho, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A sentença recorrida, ao considerar que só a notificação da decisão administrativa, que aplicou a coima ao arguido, poderia interromper o procedimento contra-ordenacional, nos termos da alínea d) do n° 1 do artigo 28° do RGCOC, extravasou os limites interpretativos impostos pela letra da lei, tendo em conta os critérios gerais de interpretação previstos no art.° 9º do Código Civil;
2. Efectivamente, enquanto na alínea a) do n° 1 do artigo 28° do RGCOC se faz referência à “comunicação” ou “notificação” de “decisões” tomadas contra o arguido, na alínea d) fala-se apenas em “decisão” da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima;
3. A fixação da coima pela entidade administrativa constitui uma clara manifestação da intenção punitiva do Estado, que deverá ser tida em conta para efeitos de interrupção da prescrição;
4. O procedimento contra-ordenacional pelos factos imputados ao arguido ainda não se encontra prescrito, uma vez que o prazo aplicável de 5 anos sofreu interrupções em 15/02/2005, 12/02/2010 e 26/02/2010, nos termos do preceituado nas alíneas c), d) e a) do n° 1 do artigo 28° do RGCOC, não se encontrando igualmente ultrapassado o prazo máximo previsto no n° 3 do mesmo artigo;
5. A sentença recorrida violou, assim, o disposto na alínea d) n° 1 do artigo 28° do RGCOC e art.° 9° Código Civil.
Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo a douta decisão ser revogada e substituída por outra que não considere prescrito o procedimento contra-ordenacional, ordenando, em consequência, o prosseguimento dos autos».

3. Não houve resposta do arguido.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 71, com um mero «visto».

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCOC), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCOC, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber:
- se é a data que consta da decisão administrativa que aplica uma coima ou é antes a data da sua notificação ao recorrente que deverá ter-se em conta na apreciação da causa interruptiva da prescrição prevista no artigo 28º/1, alínea d) do RGCOC.

2. DO DESPACHO RECORRIDO
2.1. Tem o seguinte teor a decisão recorrida:
«O recorrente A..., interpôs recurso nos autos de contra-ordenação 268/04 que lhe foram instaurados pela Câmara Municipal de Ílhavo e nos quais havia sido condenado pela prática da contra-ordenação ao disposto na al. d) no n° 1 do art. 98 do DL 555/99 de 16 de Dezembro na coima de 249,94€.
Invocou, além do mais, a prescrição do procedimento contra-ordenacional.
A autoridade administrativa entende não estar ainda prescrito o procedimento, posição que mereceu a concordância do Ministério Público.
O tribunal é competente.
Cumpre conhecer da invocada excepção, uma vez que os autos já contêm elementos bastantes que o permitem.
Os factos imputados ao arguido remontam a 14.09.2004 (fls 17).
Nos termos do artigo 27° do RGCOC o procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição e tendo em conta a moldura da coima (com o mínimo de 498,80€ e máximo de 99.759,58€) logo que, sobre a prática de contra ordenação, tenham decorrido 5 anos.
Em termos de limite máximo a ter em conta dispõe o artigo 28°, n° 3 do RGCOC que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição, acrescido de metade.
As causas de suspensão estão previstas no artigo 27-A do RGCOC e têm no caso das alíneas b) e c) do n° 1 o limite de seis meses (n.º 2 do artigo 27-A).
Tal como no processo penal podemos afirmar que ocorre a interrupção do procedimento contra-ordenacional quando a pretensão punitiva do Estado e as suas exigências de punição são confirmadas através de certos actos de perseguição contra-ordenacional (de que são exemplo a comunicação ao arguido de despachos, decisões ou medidas tomadas ou qualquer notificação, designadamente para o exercício de direito de audição e, bem assim, a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação de coima) — artigo 28°, n° 1, a) a d) do RGOC.
Ocorre a suspensão da prescrição do procedimento criminal ou contra-ordenacional quando têm lugar determinados eventos que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou de continuar. Uma vez eliminado o obstáculo, isto é, cessada a causa de suspensão o resto do prazo de prescrição deve voltar a correr (cfr. F. Dias in Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime — Aequitas Editorial Noticias, 1142 e 1149).
Com a notificação do arguido para o exercício de direito de defesa e com as declarações por ele prestadas, em 15.02.2005 no exercício desse direito (fls 22) ocorreram causas de interrupção, começando a correr, de novo, o prazo de prescrição de 5 anos. Portanto, em 15.02.2005 começou, de novo, a correr o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, tendo-se esgotado os 5 (cinco) anos em 15 de Fevereiro de 2010.
Colhe-se dos autos que a decisão de que o arguido recorre — e que constituiria também causa de interrupção — está datada de 12.02.2010, mas apenas foi notificada ao recorrente em 26.02.2010 (fls. 38).
A questão está então em saber se é a data que consta da decisão ou a da sua notificação ao recorrente que deverá ter-se em conta na apreciação da invocada prescrição, na medida em que nos termos da alínea d) do artigo 28° do RGCOC constitui causa de interrupção “a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima”.
A resposta não poderá deixar de ter em conta o que, como atrás se disse, deve entender-se como causa de interrupção. Recorde-se que ocorre uma causa de interrupção quando o Estado confirma através de certos actos a sua pretensão punitiva. E confirma-os quando os dá a conhecer ao arguido.
Isto é, a interrupção ocorre, não com a data que consta da decisão, (que poderá não ter correspondência com a realidade), mas com a chegada ao conhecimento do destinatário que fica assim a saber que se mantém a pretensão punitiva do Estado.
É que havendo, como há, duas partes envolvidas no processo (autoridade administrativa e arguido) não se vê razão para afastar o carácter receptício ou recipiendo relativamente à decisão da autoridade administrativa de acordo com a unidade e espírito do sistema jurídico.
De igual modo a data a ter em conta, por exemplo, nas declarações prestadas pelo arguido no exercício do direito de defesa não é a que ele coloca no texto que envia à autoridade administrativa, mas aquela que legalmente se considera como de entrada nos serviços a que se dirige.
Nesta conformidade e não tendo havido qualquer causa de suspensão do procedimento contra-ordenacional, nem outra qualquer causa de interrupção após 15.02.2005 e até 15.02.2010, forçoso é concluir estar efectivamente prescrito o procedimento contra-ordenacional.
Termos em que, concedendo provimento ao recurso interposto, se declara extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional contra o arguido/recorrente A... e se ordena o arquivamento dos autos.
Sem custas.
Deposite e notifique.

3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCOC (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas – DL n.º 433/82 de 27/10, actualizado pelo DL n.º 356/89 de 17/10 e Lei n.º 109/2001 de 24/12).
A única questão a resolver consiste em saber o que se deve entender pela causa interruptiva da prescrição do procedimento contra-ordenacioonal prevista no artigo 28º/1 d) de tal diploma.

3.2. Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.
Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.
Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).
Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.
As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.
No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

3.3. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.
Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.
«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).
Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).
No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).
Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.
O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC).
No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:
«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.
Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.
A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».
O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.
O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».
A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).
Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.
Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:
«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.

3.4. Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.
Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCOC).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.
Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.
Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas do artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.
Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.
Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.).
Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:
«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).
Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».
Quanto às sanções contra-ordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Oliveira Mendes):
«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).
Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exm.º Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.
Tal como decorre do texto legal – art.18º, n.º 1, do RGCC –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contra-ordenação».
Na linha do preceituado pelo artigo 18º, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».

3.5. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso.
O prazo da prescrição do procedimento contra-ordenacional, no nosso caso, é de 5 anos (e não um ano, como insinua o arguido, a fls 7), tendo em conta a moldura abstracta da coima (de € 498,80 a € 99.759,58) e o teor do artigo 27º, alínea a) do RGCOC.
Tal prazo conta-se desde «o dia em que o facto se tiver consumado» (artigo 119º/1 do CP, aqui aplicável subsidiariamente por força do já citado artigo 32º do RGCOC) – no caso, essa data é 14 de Setembro de 2004 (cfr. fls 17).
Vejamos agora se estão ou não perfectibilizadas algumas causas de suspensão e de interrupção de tal prazo de prescrição (e tais causas são, tão só, as constantes do DL 433/82 de 27/10, tendo perdido toda a acuidade o decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 6/2001, publicado em DR, I-A de 5/3/2020, o mesmo acontecendo com o entendimento vertido no Acórdão n.º 2/02 do mesmo STJ, datado de 17/1/2002 e publicado no DR I-A de 5/5/2001, no que respeita às causas de suspensão e de interrupção do procedimento contra-ordenacional).
A suspensão implica que durante o período em que a mesma vigorar, não corre tal prazo de prescrição (artigo 120º/3 do CP, ex vi do artigo 32º do RGCOC).
Por seu lado, a interrupção inutiliza o prazo já decorrido, começando a correr novo prazo prescricional a partir do evento que tem a virtualidade de interromper o primitivo prazo (artigo 121º/2 do CP, ex vi do artigo 32º do RGCOC).
Contudo, existe aqui um prazo máximo de prescrição – no nosso caso, e por força do normatizado no n.º 3 do artigo 28º do RGCOC, a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu início (14/9/2004) e ressalvado o tempo da suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade (logo, sete anos e seis meses – 5 anos + 2 anos e seis meses).
Analisemos, de seguida, as causas de interrupção, a única figura em causa neste recurso.

3.6. Dispõe o artigo 28º/1 do RGCOC que:
«1. A prescrição do procedimento por contra-ordenação INTERROMPE-SE:
a)- Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b)- Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames ou buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c)- Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d)- Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima».
No nosso caso, o prazo dos 5 anos foi interrompido em 15 de Fevereiro de 2005, com o exercício por escrito do seu direito de defesa [artigo 28º/1 c) do RGCOC] – cfr. fls 22.
Como tal, novo prazo de 5 anos iniciou a sua contagem, tendo sido inutilizado o anterior a tal data.
Contudo, volta a haver nova causa de interrupção de tal prazo em 12/2/2010, data em que foi proferida a decisão administrativa que acabou por aplicar a coima em causa nestes autos.
De facto, a decisão administrativa da Câmara Municipal de Ílhavo foi proferida em 12 de Fevereiro de 2010 (cfr. fls 31 a 36).
Ora, tal prolação de decisão é, por si, causa de interrupção do prazo prescricional em curso.
E é aqui que discordamos em absoluto da posição jurídica da Exmª Juíza «a quo» - ela considerou que apenas teve virtualidade interruptiva a notificação ao arguido de tal decisão, e já não a decisão em si.
Pelo nosso lado, entendemos que temos aqui duas causas de interrupção:
- a 1ª- com a prolação da decisão administrativa que aplicou a coima [artigo 28º/1 d) do RGCOC];
- a 2ª – com a notificação ao arguido de tal decisão [artigo 28º/1 a) do RGCOC]
A nossa lei é clara e, por isso, não se complique aquilo que parece indubitável face à letra do próprio texto legal.
Note-se que a alínea d) foi acrescentada pela Lei 109/2001 de 24/12, na revisão que fez do RGCOC.
Ora, se tal passou a ser consignado é porque não bastou ao nosso legislador a mera notificação dessa decisão que aplica a coima, já por si constante do elenco das causas interruptivas apostas na alínea a) do preceito.
Quis a lei consignar que a própria prolação da decisão condenatória já tinha em si capacidade interruptiva do prazo prescricional em curso, exactamente porque ela revela, sem qualquer margem de dúvidas, o interesse do Estado na punição do infractor (no fundo, não se confirma a intenção do Estado em punir com a notificação da sua decisão ao infractor mas com a própria redacção da decisão).
Discorda-se do tribunal «a quo» quando escreve:
«É que havendo, como há, duas partes envolvidas no processo (autoridade administrativa e arguido) não se vê razão para afastar o carácter receptício ou recipiendo relativamente à decisão da autoridade administrativa de acordo com a unidade e espírito do sistema jurídico».
Não se encontra razão jurídica válida para tal afirmar, sendo essa tese desmentida pelo próprio texto legal, numa interpretação razoável e quase literal, guiada pelos critérios normais de interpretação de leis, ínsitos no artigo 9º do Código Civil.
Repare-se: na alínea a) já se fala em notificações e comunicações ao arguido de quaisquer decisões tomadas contra si. Se assim é, por que repetir numa nova alínea d) aquilo que já conta da a)? Não faz qualquer sentido.
Nem se faça o lugar paralelo com o artigo 121º/1 b) do CP, quando exige a «notificação da acusação» como causa de interrupção do procedimento criminal - de facto, aí temos uma mera acusação, e aqui temos uma decisão final da fase administrativa do processo, que embora administrativa, tem de valer mais do que um mero libelo acusatório (ou até que uma decisão instrutória, na medida em que esta não é a final)…
António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 8ª edição, p. 88, é claro - «na alínea d) não se exige que o arguido já esteja notificado da decisão condenatória; basta que esta tenha sido proferida».

3.7. Voltemos, então, ao nosso caso.
O prazo dos 5 anos interrompeu-se em 12/2/2010 (prescreveria o procedimento contra-ordenacional, se não fosse esta causa de interrupção, em 15/2/2010, mas acontece que 3 dias antes ocorreu esta inequívoca causa de interrupção), voltando-se a interromper em 26/2/2010 (fls 38).
E se assim é, então o prazo de 5 anos voltou de novo a correr desde 26/2/2010 (tendo-se inutilizado o prazo anterior em curso), não estando ainda expirado o prazo máximo previsto no artigo 28º/3 do RGCOC – sete anos e seis meses, a que deverão acrescer seis meses de suspensão -, prazo este contado desde 14/9/2004.
Tal basta para se concluir que o despacho recorrido não tem base legal, urgindo revogá-lo e determinar o prosseguimento dos autos com vista ao conhecimento e julgamento do mérito substantivo do recurso intentado pelo arguido, pelas formas possíveis do artigo 64º do RGCOC, resolvida que foi esta questão da prescrição.
Desta forma, só pode proceder o recurso.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido datado de 28 de Abril de 2010, devendo os autos prosseguir os seus normais trâmites com vista ao julgamento do mérito do recurso intentado pelo arguido A..., resolvida que foi a questão prévia da prescrição (considerando-a não perfectibilizada).
Sem tributação.
Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Vieira Marinho)