Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
480/08.6TBCTB-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
CRÉDITO LABORAL
SUB-ROGAÇÃO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 322º DA LEI Nº 35/2004, DE 29/07
Sumário: I – Tendo o Fundo de Garantia Salarial satisfeito parte dos créditos laborais que os trabalhadores detinham sobre a entidade patronal, o crédito que assim adquire por sub-rogação nos direitos destes, nos termos do artº 322º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, caso concorra, em insolvência, com o crédito remanescente, que tais trabalhadores aí reclamem, não vê a respectiva graduação condicionada pelo disposto no artº 593º, nº 2 do Código Civil.

II - Assim, esses créditos do FGS e tais créditos dos trabalhadores, uns e outros dotados dos privilégios previstos no artº 377º do Código do Trabalho, devem ser graduados a par, ficando sujeitos a rateio.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, por sentença de 02/05/2008, proferida ao abrigo do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], transitada em julgado em 02/06/2008, foi declarada a insolvência da “C…, Lda.”, pessoa colectiva n.° …, com sede em ...

2) - Foram apreendidos para a massa falida:

- Um bem imóvel, no qual era exercida a actividade da devedora, sendo aí que os trabalhadores prestavam serviço (auto de apreensão de fls. 3 e ss. do Apenso A); e

- Os bens móveis identificados nos Autos de apreensão de fls. 3 do Apenso A.

3) - No saneador/sentença que, nos termos do art.º 136 do CPC, veio a ser proferido em 12/10/2010, a Mma. Juiz, depois de, ao abrigo do disposto no artigo 130º, n.º 3 do CIRE e nos exactos termos em que foi elaborada pelo Sr. Administrador da Insolvência, homologar a lista junta a fls. 23 e seguintes, considerou, entre o mais, que os créditos reconhecidos aos trabalhadores da insolvente beneficiavam de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, nos termos do artigo 377.º n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27/08, e que o crédito do Fundo de Garantia Salarial (FGS), por sua vez, resultando de pagamento efectuados aos trabalhadores, assumia a natureza de crédito privilegiado, ficando esse Fundo sub-rogado nos direitos de crédito dos trabalhadores e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios, nos termos do disposto no art.º 322º da Lei nº 35/2004, de 29/07 e 592.º do C. Civil.

4) - Subsequentemente, nesse saneador de 12/10/2010, decidiu a Mma. Juiz, proceder à graduação dos créditos reconhecidos, nos termos que ora se reproduzem:

«-Do produto da liquidação dos bens apreendidos serão pagas em primeiro lugar as dívidas da massa insolvente, previstas no artigo 51º do CIRE, designadamente as custas do processo e seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração e despesas do Sr. Administrador da Insolvência (artigos 46º, n.º 1 e 172º do CIRE);

A - Relativamente aos bens móveis identificados no auto de apreensão de bens de fls. 3 e ss. do apenso A:

1) em primeiro lugar deverá pagar-se o crédito privilegiado do Fundo de Garantia Salarial;

2) Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado dos trabalhadores, fazendo-se rateio entre eles se necessário for;

3) Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Pública, referente a dívidas de IVA, IRS e I.S.;

4) Em quarto lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

6) Depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados de J… e de R…, em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE;

7) Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos comuns e os créditos subordinados de J… e de R…, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos artigos 48.º, al. b) e 177º do CIRE.

B - Relativamente aos bens imóvel identificado no auto de apreensão de bens de fls. 3 e ss. do apenso A:

1) em primeiro lugar deverá pagar-se o crédito privilegiado do Fundo de Garantia Salarial;

2) Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado dos trabalhadores, fazendo-se rateio entre eles se necessário for;

3) Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Pública, referente a dívidas de IMI;

4) Em quarto lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;

5) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

6) Depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados de J… e de R…, em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE;

7) Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos comuns e os créditos subordinados de J… e de R…, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos artigos 48.º, al. b) e 177º do CIRE.».

B) - Inconformados, vieram interpor recurso dessa sentença, posteriormente recebido como apelação, os seguintes credores, ex-trabalhadores da ora insolvente:...

II - A) - Os Apelantes, nas alegações de recurso que ofereceram, apresentaram as seguintes conclusões:

Terminam pugnando pela revogação da sentença recorrida e pela substituição desta por Acórdão que, dando-lhe precedência relativamente ao crédito do FGS, gradue em primeiro lugar o crédito laboral remanescente dos trabalhadores.

B) - O Fundo de Garantia Salarial, na sua resposta, defendeu que fosse negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

- O Ministério Público, por sua vez, sustentou que não se podia defender outra posição que não fosse a de se pagar na totalidade o crédito do FGS, procedendo-se ao rateio dos créditos aos trabalhadores ainda em débito, não lhe merecendo reparo o saneador/sentença recorrido.


III - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35862[3]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber a ordem pela qual devem ser graduados, no caso de concorrerem entre si, que é o que aqui sucede, os créditos salariais dos trabalhadores dotados dos privilégios previstos no art.º 377.º do Código do Trabalho e o crédito do Fundo de Garantia Salarial, resultante da sub-rogação a que se reporta o artigo 322° da Lei n° 35/2004.

IV - O circunstancialismo processual e a factualidade assente a considerar na decisão a proferir, são os enunciados em I supra.

V - O inconformismo dos Apelantes, centra-se, essencialmente, na circunstância de a sentença recorrida ter graduado à frente dos seus créditos privilegiados o crédito do Fundo de Garantia Salarial, entendendo eles que a sub-rogação não os pode prejudicar, atento o que se preceitua no 593.º do CC. Em todo o caso, não obstante defenderem que os seus créditos devem ser graduados com primazia relativamente ao crédito do FGS, não deixam de admitir (conclusão 5ª) que este crédito e os seus, dado que dotados do “mesmo tipo de privilégio”, pudessem ser seriados na mesma posição.

Vejamos.

a) A Lei aplicável:

De acordo com a sentença impugnada, os créditos reclamados pelo FGS, resultando dos pagamentos efectuados aos trabalhadores, gozam de privilégio creditório, por força do preceituado no art.º 322.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, e 592.º do C. Civil, e os créditos salariais dos trabalhadores gozam do privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário especial, nos termos do artigo 377.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08.

Não nos merece discordância este entendimento, tendo em conta que se revela manifestamente inaplicável o se previa quanto à graduação dos crédito privilegiados detidos pelo FGS em consequência de sub-rogação nos créditos dos trabalhadores, no DL nº 219/99, de 15/06 (cuja redacção foi alterada pelo DL nº 139/2001, de 24/04, a que o FGS faz apelo - conclusão h)), pois que tal DL nº 219/99 foi revogado com a entrada em vigor das normas regulamentares do Código de Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, (art.º 21), regulamentação essa operada através da Lei n.º 35/2004 de 29/07.

Os preceitos daquela Lei n.º 35/2004, relativos ao Fundo de Garantia Salarial, não obstante a mesma também ter sido objecto de revogação pelo novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º7/2009, de 12/02, mantêm-se em vigor enquanto não for publicado o diploma que regulamente este novo Código (art.º 12º, nº 1 b) e nº 6, o), da Lei nº 7/2009).

b) A alteração do regime de graduação dos créditos do FGS.

De acordo com o disposto no art.º 380º do Código do Trabalho, o Fundo de Garantia Salarial assume, nos termos previstos em legislação especial, o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil.

Os artºs 316.° a 326 do RCT (Lei nº 35/2004, de 29 de Julho), regulamentam esta disposição, consignando-se no art.º 317º que o Fundo de Garantia Salarial assegura ao trabalhador, em caso de incumprimento pelo empregador, o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação nos termos dos artigos seguintes.

De acordo com o artº 318º o FGS assegura o pagamento dos créditos, no caso de o empregador ser judicialmente declarado insolvente (nº 1), bem como no caso de se ter iniciado o procedimento de conciliação previsto no Decreto-Lei n.º 316/98, de 20/10 (nº 2).

Os créditos que são abrangidos pelo referido pagamento do FGS estão definidos no art.º 319º, tendo como limite, nos termos do art.º 320º, nº 1, o montante equivalente a seis meses de retribuição, sem que possa o montante desta possa exceder o triplo da retribuição mínima mensal garantida.

O pagamento pelo FGS depende de requerimento do trabalhador, requerimento esse que é efectuado e instruído de acordo com o disposto nos art.ºs 323º e 324º e na Portaria n.º 473/2007, de 18 de Abril[4].

De harmonia com o citado art.º 322º, o Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente, nos privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos.

Decorre expressamente deste preceito, pois, bem assim como do estatuído, quanto aos efeitos das sub-rogação, no art.º 593º, nº 1, do Código Civil (CC), que o privilégio dos créditos que o FGS adquire, nos termos do supra citado regime, por força dos pagamentos que efectua aos trabalhadores, é o privilégio que tais créditos possuíam quando na esfera jurídica destes credores originários.

Assim, na graduação a fazer em insolvência em que se verifique o concurso de tais créditos, deverão, em princípio, os créditos do FGS e os créditos salariais dos trabalhadores, porque igualmente privilegiados, ser graduados a par, procedendo-se a rateio entre eles (art.º 745.º, n.º 2 do CPC e 175º do CIRE).

Outra era a solução na vigência do DL nº 219/99 de 15 de Junho (após as alterações introduzidas pelo DL nº 139/2001, de 24/04), pois que, no seu art.º 6º, nº 4, resolvia de modo diverso a posição relativa dos créditos do Fundo e dos créditos laborais, em caso de concurso, estabelecendo que os créditos do Fundo seriam “…graduados imediatamente a seguir à posição dos créditos dos trabalhadores de acordo com a graduação estabelecida no artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho…”.

Assim, no domínio do DL nº 219/99 de 15 de Junho (após a redacção do DL nº 139/2001), ainda que o FGS tivesse satisfeito apenas parte dos créditos salariais que os trabalhadores possuíssem sobre a entidade patronal, em caso de concurso com o remanescente que estes reclamassem, os créditos adquiridos por sub-rogação pelo FGS, em função de tais pagamentos, eram sempre graduados depois destes créditos dos trabalhadores.

Contrariando o entendimento perfilhado na sentença recorrida, defendido pelo Apelado, bem como pelo Ministério Público, sustentam os Apelantes que, por força do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, o crédito remanescente que reclamaram devia ter sido seriado em primeiro lugar e o crédito sub-rogado do FGS em segundo lugar.[5]

Preceitua o nº 1 do art.º 593º do CC, que “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.”.

De acordo com o disposto no nº 2 deste art.º 593º, no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.

Regra alguma existe, salvo o devido respeito, nem vemos como extrair esse entendimento do plasmado nas normas citadas na decisão recorrida, que imponha a preferência do crédito do FGS relativamente aos créditos salariais reclamados pelos trabalhadores.

Na sentença afirma-se, merecendo a nossa concordância, que «…quando o Fundo de Garantia Salarial reclama nos autos o pagamento está apenas a "ocupar" a posição jurídica daqueles trabalhadores a quem adiantou o pagamento dos seus créditos laborais. Isto é, tudo se passa como se fossem os trabalhadores a concorrer na graduação…». Mas conclui-se, depois, na sentença, sem que nesta se encontre explicação cabal para tal, que “…face à legislação vigente, deve entender-se que, primeiro se paga na totalidade o crédito do FGS, procedendo-se o rateio dos créditos dos trabalhadores ainda em débito…”. Cita-se em abono de um tal entendimento - é o que faz o FGS -, o Acórdão de Relação de Lisboa de 20/11/2007 (processo nº 8484/2007-8), mas, em boa verdade, nem esse Acórdão - que também é citado na reprodução que se faz, no Acórdão da Relação do Porto de 17/02/2009 (Agravo nº 7363/08 - 2ª Sec.),[6] de um trecho da decisão que aí era objecto de recurso -, tira uma tal conclusão, nem esta é passível de ser extraída do explanado no texto desse aresto de 20/11/2007.

A sub-rogação apenas legitima o Fundo a reclamar as importâncias pagas e a invocar a garantia, no caso, os privilégios creditórios, que acompanham os créditos, mas, esses privilégios não conferem ao FGS, relativamente aos trabalhadores que com ele concorram, reclamando a parte dos créditos salariais que aquele Fundo não satisfez, qualquer preferência que lhe dê primazia no pagamento a fazer-se pelo produto dos bens que integram a massa insolvente.

Tendo o FGS, ainda que pague a totalidade daquilo que a lei lhe impõe, pago apenas um parte dos créditos que cada trabalhador possui sobre a entidade patronal - o que será a situação normal face às limitações decorrentes do citados art.ºs 319º e 320º - ou seja, havendo sub-rogação nos direitos dos trabalhadores na parte em que estes tenham sido pagos por aquele Fundo, os créditos salariais que restarem por satisfazer aos trabalhadores mantêm os privilégios que a lei lhes confere.

Salvo o devido respeito não se pode fundar a apontada preferência do FGS na circunstância de este, pretender, como é legítimo, reaver da massa insolvente aquilo que pagou/adiantou aos trabalhadores, nem, também, no facto de se preverem na lei, como receitas do “Fundo”, entre outras, (...) as provenientes da recuperação de créditos pagos aos trabalhadores no exercício das suas atribuições. Esse desiderato pode também ser alcançado - embora que em condições mais adversas, concede-se -, sem a existência de qualquer preferência sobre os créditos salariais reclamados pelos trabalhadores, caso o FGS seja graduado a par destes, ou mesmo, imediatamente a seguir a eles, sendo, até, esta última situação que ocorria na vigência do DL nº 219/99, após a alteração introduzida pelo DL nº 139/2001.

Por isso, uma de duas: ou procede a interpretação que os apelantes fazem do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, caso em que o pagamento dos créditos por eles reclamados e julgados verificados terá primazia sobre o pagamento do crédito do FGS, ou, entendendo-se que essa interpretação não colhe, ter-se-á de concluir que, como acima se referiu, os créditos em confronto, gozando de igual privilégio, têm de ser graduados a par, cabendo fazer rateio entre eles, se tal se vier a mostrar necessário.

Importará, pois, ver se é de acolher a interpretação que os Apelantes fazem do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC.

c) O art.º 593º, nº 2, do Código Civil.

No art.º 593º, nº 2, do Código Civil estabelecem-se os efeitos da chamada sub-rogação parcial, consignando-se que “no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.”.

Aparentemente, os dois créditos resultantes da sub-rogação parcial - o que fica a deter o sub-rogado e aquele que, do crédito global, sobra na titularidade do credor original - possuindo a mesma origem, deveriam ter tratados de igual modo em todos os aspectos. Que assim não é, todavia, salienta o Prof. Inocêncio Galvão Teles, referindo que, em face do estabelecido no nº 2 do art.º 593º, o credor originário goza de preferência sobre o sub-rogado. Em consequência desta preferência, «em caso de insolvência do devedor, aquilo que for afecto ao pagamento do crédito global destina-se em primeiro lugar ao credor primitivo; só o excedente, se o houver, aproveita ao sub-rogado.».[7]

Saliente-se que esta observação do Professor Galvão Teles, relativamente à insolvência, não nos fornece quaisquer dados suplementares sobre a concreta situação de sub-rogação a que se reporta. Sabendo-se, obviamente, que respeita a uma sub-rogação parcial, seguro, no entanto, é que não podia ter subjacente, porque então inexistente, o regime de sub-rogação que veio a ser estabelecido para o FGS.

No domínio de legislações estrangeiras que com a nossa se aparentam na regulação da sub-rogação, a legislação italiana, não confere esta preferência ao credor originário.[8]

O Código Civil Francês, por seu turno, tem uma disposição muito semelhante à nossa, conferindo preferência ao credor primitivo.[9]

Também no Código Civil Brasileiro, essa preferência é afirmada de modo claro, ao referir-se, no art.º 351º, que “O credor originário, só em parte reembolsado, terá preferência ao sub-rogado, na cobrança da dívida restante, se os bens do devedor não chegarem para saldar inteiramente o que a um e outro dever.”.

Subjacente à preferência conferida ao credor originário no caso da sub-rogação parcial está a ideia de que esta não pode prejudicar este credor que, se previsse essa circunstância, não desejaria, provavelmente, que essa sub-rogação ocorresse, ideia esta plasmada no brocado latino “nemo contra se subrogasse censetur”. Se o credor originário, não sendo obrigado a fazê-lo, aceita um pagamento parcial, a lei presume que pretenderá, todavia, ter preferência relativamente ao terceiro relativamente à parte do crédito que continua a deter.

Este entendimento subjacente à norma em análise, tem-se já notado, casa mal com a sub-rogação legal, situações havendo em que a preferência em causa é apontada como injusta.[10]

O antecedente do art.º 593, nº 2, no Código de Seabra, era o art.º 782º, que, ao invés do preceito actual, referia, expressamente, a preferência do credor originário sobre o sub-rogado, assim dispondo:

«O crèdor, que só foi pago em parte, pode exercer os seus direitos, com preferência ao subrogado, pelo resto da dívida.

§ único. Esta preferência, porém, compete ùnicamente aos crèdores originários, ou aos seus cessionários, e não a qualquer outro subrogado.».

O Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 07/11/1991[11], fazendo exemplar e exaustiva análise do art.º 593º, nº 2, do nosso Código Civil, com apoio nos seus antecedentes históricos, na doutrina e no direito comparado, refere a dado passo, citando Vaz Serra[12], e os estudos preparatórios do Código Civil, a propósito da regra “nemo contra se subrogasse censetur”:

«…parece desde logo que não deve observar-se no caso de sub-rogação por vontade do credor, quando o pagamento é feito por iniciativa do credor, que procura a realização imediata do seu crédito: afigura-se que ao credor não deve reconhecer-se, em princípio, preferência em relação ao sub-rogado. Aquela regra funda-se em que "o credor que é pago com os dinheiros de um outro não é obrigado a sub-rogá-lo senão na medida em que a sub-rogação não possa trazer-lhe prejuízo", como dizia Pothier (-); e este fundamento não é válido se o pagamento por terceiro é devido ao interesse e iniciativa do credor. É assim que, em França, a convenção contrária à dita regra se encontra muitas vezes na prática, "sobretudo quando o sub-rogado paga voluntariamente...Quando o pagamento é oferecido espontaneamente ao credor [e, com mais razão, acrescentamos, quando é devido ao interesse e iniciativa do credor] é o sub-rogado quem dita a lei do contrato..."» (47). Parece injusto que o credor que já recebeu parte do seu crédito do terceiro sub-rogado vá ainda ter preferência em relação a ele, pelo resto do crédito, se o devedor estiver insolvente. O mesmo poderá dizer-se se o pagamento é feito no interesse do devedor. Esta solução resulta já da fórmula proposta, ao estudar os efeitos da sub-rogação (na exposição sobre a cessão legal) - a sub-rogação não pode prejudicar os direitos do credor - entendida no sentido de que o credor só terá preferência quando da sub-rogação derive prejuízo para ele - o que não acontece nos exemplos mencionados, nos quais o credor recebeu do sub-rogado uma parte do seu crédito e não fica, com a sub-rogação e concorrência do sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro"».

Subsequentemente, salienta-se no Parecer, que a redacção do artigo que era proposta por Vaz Serra para o anteprojecto, não consignava o termo “preferência”, empregue no CC de 1867, mas antes a palavra “prejuízo” (art.º 6º, nº 3, do anteprojecto), em moldes semelhantes ao que depois foi consagrado no projecto, e semelhantes, também, com a redacção que veio a ser a da norma do nº 2 do art.º 593º do actual CC.

Não se mostrando muito favorável à regra “nemo contra se subrogasse censetur”, Vaz Serra reconhece-se-lhe, todavia, alguma utilidade que obsta à sua total eliminação, admitindo que ela se justificava em casos em que o credor poderia ser prejudicado com a sub-rogação, ficando, por via desta e da concorrência com o sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro. Observa, contudo, que situações existem, de sub-rogação parcial, em que, em rigor, o credor não é prejudicado. E exemplificando, adianta que, nos casos em que o credor “recebe um pagamento parcial de terceiro, que paga espontaneamente, não parece que sofra prejuízo com o concurso do sub-rogado, pois este vai concorrer apenas por uma parte do crédito, que o credor já recebeu desse mesmo terceiro.”.

Assim, conclui Vaz Serra, justificar-se-ia, pois, que em vez da fórmula do art. 782º do Código de 1867, se adoptasse antes a de que a sub-rogação não prejudica os direitos do credor.[13]

Em consonância com tal entendimento, propõe, sem utilização do termo “preferência”, que o preceito projectado tenha a seguinte redacção (semelhante à do já referido nº 3 do art.º 6º, bem como àquela que viria a ser o art.º 144º, nº 2, do articulado geral do anteprojecto sobre o direito das obrigações, bem assim, ainda, como à redacção do nº 2 do art.º 593º do actual Código Civil): “No caso de pagamento parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo estipulando-se o contrário.”[14].

Assim, parece ser de concluir, que a legitimidade da dita preferência poder-se-á afirmar nas situações de cumprimento parcial, ou similares, em que, por via da sub-rogação parcial e da concorrência do sub-rogado, o credor originário fique prejudicado, ou seja, fique em pior situação do que aquela que teria se não tivesse ocorrido essa sub-rogação.

Como se refere no Parecer que se vem acompanhando, “só em similar hipótese de cumprimento parcial será porventura inaceitável o tratamento paritário de sub-rogado e credor.

Obrigado à totalidade da prestação, mas cumprindo apenas numa parte, intoleravelmente se legitimaria aquele a disputar ao último o resíduo de satisfação que era ainda dever seu proporcionar-lhe.”.

Ora, efectuando o FGS o pagamento dos créditos salariais dos trabalhadores, a requerimento destes, nos termos dos citados art.ºs 317º, 318º e 323º, ainda que, face ao disposto nos aludidos art.ºs. 319º e 320º, assim não seja satisfeita a totalidade do que a cada um deles é devido pela respectiva entidade patronal, o FGS, cumpre a obrigação que a lei lhe comete.

Deste modo, tendo o FGS pago a parte que, segundo a lei lhe competia pagar ao trabalhador, nos termos dos citados preceitos, cumprindo, assim, plenamente, a sua obrigação, não parece que se possa concluir pela existência de uma situação similar à do cumprimento parcial, inexistindo, por outro lado, afigura-se, prejuízo dos credores originários, no sentido que se acima se veio a definir, pois que tais credores, em função da sub-rogação e da concorrência com o sub-rogado, não ficam em pior situação do que aquela em que estariam se a sub-rogação não ocorresse.

Repare-se, que, a não ser assim, sucederia que, por via do disposto no citado art.º 593º, nº 2, do CC - não vigorando o DL nº 219/99, que definia o lugar em que deveria ser graduado o crédito do FGS, por reporte ao lugar em que se graduavam os créditos dos trabalhadores (independentemente de estes terem sido, ou não, “sub-rogados parcialmente”) -, o trabalhador que não requeira o pagamento ao FGS, sem hipótese, pois, de invocar o preceituado nessa norma, posto que sub-rogação alguma existe relativamente ao seu crédito, verá este, apesar de gozar do mesmíssimo privilégio creditório que o dos créditos dos restantes trabalhadores a quem o FGS haja pago parte do que lhes era devido pela entidade patronal, graduado, para ser pago pela massa insolvente, a par do crédito do FGS, resultante dessa sub-rogação e, consequentemente, abaixo, desses outros credores.

Ou seja; caso se entendesse aplicável o disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, os trabalhadores que tivessem já recebido parte do seu crédito preteririam, na graduação para o pagamento pelo produto dos bens da entidade patronal insolvente, não só o crédito do FGS, resultante da sub-rogação, como o crédito do trabalhador que nada recebera deste Fundo.

É uma questão de política legislativa conferir preferência, sobre os créditos do FGS, aos créditos dos trabalhadores que só parcialmente hajam obtido deste Fundo o pagamento das importâncias em dívida pela entidade patronal que veio a ser declarada insolvente. Foi essa, como se viu, a opção do legislador do DL nº 139/2001 de 24/04, ao alterar do modo que acima se referiu, a redacção do nº 4 do art.º 6º do DL nº 219/99, de 15/6. Revogado este DL nº 219/99, salvo o devido respeito por entendimento diverso, esse escopo não pode ser alcançado lançando mão do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, porque não se verificam os pressupostos que determinam a sua aplicação.

A conclusão a que se chega é, pois, a de que, concorrendo o crédito dos trabalhadores e o crédito do FGS, resultante de sub-rogação nos direitos daqueles na medida do que lhes pagou, na respectiva graduação relativa não há que ter em conta o disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, devendo tais créditos ser graduados a par, para serem pagos por rateio entre eles.

Em conformidade com o exposto, revoga-se, parcialmente, a sentença recorrida, alterando-se a que aí foi efectuada, pela seguinte graduação:

A - Relativamente aos bens móveis identificados no auto de apreensão de bens de fls. 3 e ss. do apenso A:

1) Em primeiro lugar, para serem pagos por rateio entre eles, graduam-se o crédito privilegiado do Fundo de Garantia Salarial e o crédito privilegiado dos trabalhadores;

2) Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Pública, referente a dívidas de IVA, IRS e I.S.;

3) Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;

4) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

5) Depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados de J… e de R…, em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE;

6) Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos comuns e os créditos subordinados de J… e de R…, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos artigos 48.º, al. b) e 177º do CIRE.

B - Relativamente aos bens imóvel identificado no auto de apreensão de bens de fls. 3 e ss. do apenso A:

1) Em primeiro lugar, para serem pagos por rateio entre eles, graduam-se o crédito privilegiado do Fundo de Garantia Salarial e o crédito privilegiado dos trabalhadores;

2) Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Pública, referente a dívidas de IMI;

3) Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;

4) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.

5) Depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados de J… e de R…, em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE;

6) Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos comuns e os créditos subordinados de J… e de R…, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos artigos 48.º, al. b) e 177º do CIRE.».

Sumário: “I - Tendo o Fundo de Garantia Salarial satisfeito parte dos créditos laborais que os trabalhadores detinham sobre a entidade patronal, o crédito que assim adquire por sub-rogação nos direitos destes, nos termos do art.º 322.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, caso concorra, em insolvência, com o crédito remanescente, que tais trabalhadores aí reclamem, não vê a respectiva graduação condicionada pelo disposto no art.º 593º, nº 2, do Código Civil.

II - Assim, esses créditos do FGS e tais créditos dos trabalhadores, uns e outros dotados dos privilégios previstos no art.º 377.º do Código do Trabalho, devem ser graduados a par, ficando sujeitos a rateio.”.

VI - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgando a apelação parcialmente procedente, revogar a sentença impugnada, na parte em que a alteram, passando a valer a graduação que acima se discriminou, em tudo o mais se mantendo tal sentença.

Estando isento de custas o FGS, não se condenam os apelantes nas custas correspondentes ao seu parcial decaimento, atento o benefício do apoio judiciário.


Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias


[1] Código este aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, doravante designado por CIRE.
[2] Código este a considerar na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante se citarem sem referência de publicação.
[4] Portaria esta que revogou a Portaria n.º 1177/2001, de 9 de Outubro.
[5] Nesse sentido invocam o Acórdão da Relação do Porto de 14/07/2010 (Apelação nº 147/08.5TBLSD-D.P1), que pode ser consultado em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[6] Consultável em “http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel08_7363.html”.
[7] Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 3ª edição, 1980, págs. 234 e 235.
[8] O art.º 1205º do Codice Civile, sob a epígarafe “Surrogazione parziale”, apenas estabelece que “Se il pagamento è parziale, il terzo surrogato e il creditore concorrono nei confronti del debitore in proporzione di quanto è loro dovuto, salvo patto contrario.”.
[9] Artº 1252º : «La subrogation établie par les articles précédents a lieu tant contre les cautions que contre les  débiteurs : elle ne peut nuire au créancier lorsqu'il n'a été payé qu'en partie ; en ce cas, il peut exercer ses droits, pour ce qui lui reste dû, par préférence à celui dont il n'a reçu qu'un paiement partiel.».
[10] Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1989, pág. 285.
[11] Relatado pelo Sr. Cons. Lucas Coelho e homologado em 15/04/1992, “in” BMJ nº 415, pág. 55 e ss..
[12] VAZ SERRA, “Sub-rogação nos Direitos do Credor”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 37 (Julho de 1953), págs. 17 e ss..
[13] “Cessão de créditos ou de outros direitos”, Boletim do Ministério da Justiça, número especial, 1955, págs. 5 e ss..
[14] O preceito correspondente, no articulado geral do anteprojecto sobre o direito das obrigações, foi o nº 2 do art.º 144º, com o seguinte teor: “No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo se outra coisa se estipular.”.