Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
435/22.8T8PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: INCUMPRIMENTO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCIDENTE
INTERESSES IMATERIAIS
VALOR PROCESSUAL
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 303.º, N.º 1, E 304.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
No procedimento relativo ao incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, quer porque apresenta um âmbito potencial de decisão que não se circunscreve à mera verificação do incumprimento (possibilitando a alteração da decisão relativa à regulação, a aplicação de multa e a condenação do remisso em indemnização), quer porque se trata de um incidente do processo de regulação das responsabilidades parentais (ação esta que versa sobre interesses imateriais), o seu valor processual não é compaginável com uma visão redutora assente exclusivamente na sua “utilidade económica imediata”, antes se alargando, também devido à sua dependência face à causa principal, aos interesses imateriais subjacentes, fixando-se, no presente, por efeitos do disposto nos art.s. 303.º, n.º 1 e 304.º, n.º 1 do CPC., em € 30.000,01.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 435/22.8T8PBL-B.C1

Juízo de Família e Menores ...

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, solteira, contribuinte fiscal numero ..., titular do cartão de cidadão número ..., residente na Avenida ..., ... ...

intentou contra

BB, solteiro, contribuinte fiscal número ..., titular do cartão de cidadão número ...

incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais relativamente ao menor, filho de ambos, CC , pedindo, com os fundamentos que aduziu,

se digne ordenar as diligencias necessárias para que se torne efetiva a prestação de alimentos por parte do Requerido, bem como a condenação do progenitor em multa a fixar por Vossa Exa, de acordo com o artigo 41 nº 1 do RGPTC, vindo a final a ordenara notificação a respetiva entidade patronal para que deduza mensalmente no vencimento do mesmo, o valor permitido por lei, até integral liquidação do debito aqui apresentado e reclamado no valor de 735.00€, que se encontra em atraso, e remeta tal valor para o IBAN  ...23 do Banco 1... de cuja conta a Requerente é titular nos termos do artigo 48 nº 1 alínea b) do RGPTC.

                                                                                   *

Citado, o requerido apresentou alegações, peça processual onde pugnou no sentido de ser julgado improcedente o incidente com a sua absolvição no reclamado pagamento de metade das mensalidades do Externato ..., no montante global de € 735, por não ser devido.

                                                                                   *

Por decisão de 12.07.2022 a Sra. Juíza julgou o incidente improcedente.

                                                                                   *

Inconformada, a Requerente veio interpor recurso dessa decisão.

                                                                                   *

Na sequência a Sra. Juíza proferiu a 07.11.2022 o seguinte despacho:

Nos termos do disposto no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi dos artigos 32.º n.º 3 e 65.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

Por conseguinte, sendo o valor da causa (€ 735,00) inferior ao valor da alçada do tribunal de que se recorre e não se verificando nenhuma das circunstâncias elencadas nos nºs 2 e 3 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, desde logo se conclui que a decisão em crise é insuscetível de recurso.

Face ao explanado, não se admite o recurso interposto pela progenitora (artigo 641.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil).

Notifique.

Valor: €735,00 (setecentos e trinta e cinco euros)”.

*

Para além de ter reclamado dessa decisão (na parte respeitante à não admissão do recurso), a Requerente interpôs recurso da mesma, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:

a. O presente recurso tem como objecto o douto despacho, datado de 07-11-2022, que veio fixar o valor da causa em 735,00 € (setecentos e trinta e cinco euros) que é o valor correspondente à utilidade económica do incidente.

b. O valor fixado pelo douto Tribunal a quo corresponde à soma das prestações vencidas e não liquidadas pelo progenitor relativamente à mensalidade do Externato ..., frequentado pelo menor CC.

c. Ao fixar o valor da causa em 735,00 €, o douto Tribunal a quo inviabilizou a possibilidade de Recurso quanto à sentença datada de 12-07-2022, a qual foi recorrida.

d. Foi no despacho de não admissão do Recurso que o Tribunal a quo fixou o valor da causa, do qual se reclamou.

e. Por ter sido este o momento da fixação do valor da causa, 07-11-2022, a Recorrente oportunamente recorre do mesmo.

Isto porque,

f. O Tribunal a quo considerou que o valor da causa a fixar seria com base no valor correspondente à utilidade económica do incidente.

g. A jurisprudência maioritária que defende a posição que valor do incidente deve ser fixado nos termos do artigo 303.º, n.º 1 do C.P.C, pois versa sobre o estado das pessoas.

h. Esta é também a posição defendida pela Recorrente, Para tanto,

i. A Recorrente mobilizou vários arrestos para fundamentar a sua pretensão, nomeadamente o Acórdão número 2601/19.4T8AVR-P1, que correu termos no Tribunal da Relação do Porto e que foi sumariado da seguinte forma: “No incidente de incumprimento da prestação alimentícia o valor do incidente não é o total que resulta da soma das prestações concretamente incumpridas, correspondendo, pelo contrário, ao valor da própria causa principal que versa sobre o estado das pessoas (€30.000,00 mais €00,1).

j. Ainda que o processo principal tenha corrido termos na Conservatória do Registo Civil ..., tem valor de caso julgado como seria em sede de Tribunal Judicial, nos termos do artigo 274.º - A, n.º 6 do Código do Registo Civil.

Mais,

k. Recentemente o Tribunal da Relação de Évora, no processo número 1790/20.0T8STR-D.E1, sumariou a sua decisão da seguinte forma: - “A posição dominante na jurisprudência vai no sentido de considerar que o valor do incidente de incumprimento de prestação alimentícia é o valor da própria causa principal que versa sobre o estado das pessoas, pelo que o valor do incidente deverá ser de € 30.000,01 (independentemente do valor pecuniário da soma das prestações em dívida).”

l. É esta a posição defendida pela Recorrente, pois, caso contrário vê-se impossibilitada de Recorrer de uma decisão que considera desfavorável à pretensão vertida no requerimento inicial do incidente.

m. Estamos perante um processo sobre o estado das pessoas, relações pais e filhos, em que se pretende ver analisado o contratado num acordo sobre a Regulação das responsabilidades parentais

n. Este processo, denominado incidente não tem um quantum económico diferente da ação principal em si, pois visa colher a interpretação judicial a um clausulado, firmado pelas partes intervenientes no contrato/acordo de regulação das responsabilidades parentais

o. No fundo, e em ciência de direito no incidente de que se recorre, a Recorrente pretende ver protegido o direito de cada um dos progenitores liquidar metade das prestações com as despesas efetuadas com saúde, educação, e outras contempladas em tal contrato.

p. Assim, no incidente de cuja sentença se recorre o bem protegido é a pessoa humana, e o seu direito á alimentação e educação,

q. Sendo este o cerne da questão, o valor do processo terá que ser indubitavelmente os 30.000,01€

r. O despacho recorrido violou quo violou os artigos 608.º, n.º 2, artigo 2.º, n.º 1, ex vi artigo 627.º, e 303 nº 1 todos do C.P.C., e, também, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”.

Rematou pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que fixe o valor da ação em € 30.000,01.

                                                                                   *

O Ministério Público, relembrando que a questão já anteriormente fora levantada por si na primeira parte da resposta ao recurso da decisão final do incidente de incumprimento, e admitindo que a questão é controvertida, manteve “o entendimento ali vertido, no sentido de que o valor do incidente de incumprimento da obrigação de alimentos a filhos menores coincide com o valor económico do pedido, em colisão com a tese sufragada pela ora recorrente”.

                    

                                                                          *

     O Requerido não respondeu.

                                                                                         *

Dispensados os vistos, foi realizada conferência, na qual foram obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

*

II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é a de saber se deve ser fixado em € 30.000,01 o valor do incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais deduzido pela ora recorrente.

                                                                                  *

III-Fundamentação

Do exame do requerimento inicial apresentado pela ora recorrente decorre que o mesmo tem como objeto o alegado incumprimento pelo Requerido do pagamento das mensalidades vencidas a título de encargos/despesas com educação do menor, devidas desde Setembro de 2021, no total de € 735.00 à data da instauração do incidente.

Como é sabido, o valor da ação representa a utilidade económica imediata do pedido, sendo que, nos casos em que pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa (arts. 296.º, n.º 1 e 297.º, n.º 1, ambos do CPC).

Contudo, consabido que muitas das pretensões carreadas para juízo não apresentam, em si mesma, uma utilidade económica imediata, antes se movendo no âmbito de interesses imateriais ou sobre estado das pessoas, o legislador, sobretudo motivado no sentido da proteção dos interesses associados à recorribilidade das decisões proferidas nesses processos, considerou que as mesmas têm sempre o valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (art. 303.º, n.º 1 do CPC); ou seja, no presente, de € 30.000,01 (art. 44.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

De relevo nesta sede também o art. 304.º, n.º 1 do CPC que preceitua que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com as regras gerais.

Deixadas as premissas normativas, cumpre agora aferir, em concreto, qual o valor a conferir ao procedimento em causa.

Independentemente da pouca valia que apresente a sua classificação dogmática que temos vindo a assumir ao longo deste acórdão, e divergindo aqui do entendimento assumido, ao demais, na Coleção Formação Contínua do CEJ (Família e Crianças: as Novas Leis – Resolução de Questões Práticas, Janeiro de 2017, p. 54)[2], parece não sobrarem dúvidas de que o incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, tal como sucedia na velha OTM, apresenta caráter incidental relativamente ao processo (judicial ou parajudicial) onde foi firmada a decisão relativa à regulação.

Do que se trata, pelo menos “ab initio”, é da verificação do cumprimento dessa mesma decisão, mas que viabiliza, se tanto o exigir o interesse da criança, a possibilidade de modificação da decisão original e mesmo a condenação do progenitor remisso em multa – que pode atingir o máximo de 20 Uc´s, ou seja, a poder ascender hodiernamente a € 2040 – e em indemnização a favor da criança (art. 41.º do RGPTC).

Temos por firme que, no caso, o objetivo da Requerente ao propor o incidente de incumprimento foi, tão só, o de obter a satisfação do montante de € 735 em falta, relativo às despesas com a educação do menor.

Trata-se de quantitativo que, mau grado a sua eventual inexigibilidade, se insere ainda no âmbito da prestação de alimentos, tal como estes se encontram concetualizados no art. 2003.º do Cód. Civil.

A jurisprudência conhecida inclina-se maioritariamente[3] no sentido de conferir ao incidente de incumprimento, mesmo quando esteja em causa somente a prestação de alimentos, o valor de € 30.000,01, embora por razões distintas.

Assim,

- no acórdão do TRP de 12.10.2020 (Processo 2601/19.4T8AVR.P1)[4], apoiando-se no “âmbito potencial de decisão”, decidiu-se “não obstante estarem em causa apenas valores monetários concretos relativos ao incumprimento da prestação de alimentos, a verdade é que no incidente de incumprimento, os progenitores podem acordar sobre os termos de outros segmentos do regime das responsabilidades parentais e a esses termos, porque pertinentes ao estado das pessoas, não pode deixar de se considerar pertinente o valor que resulta do disposto no art. 303.º, n.º1, CPC”.

Já os acórdãos do TRE de 13.01.2022 (processo 1790/20.0T8STR-D. E1) e do TRC de 07.09.2021 (processo 2866/04.6TBCLD.C1), obtendo o mesmo resultado, basearam-se na premissa de estarmos perante bens imateriais, ou seja, perante uma situação que diz mais respeito ao estado das pessoas do que aos concretos valores monetários relativos ao incumprimento da prestação de alimentos, pelo que não pode deixar de se considerar adequado o valor que resulta do disposto no artigo 303.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Da nossa parte, e acompanhando ambos os fundamentos, afigura-se-nos que, ante as características especiais do procedimento em causa, com o âmbito potencial de decisão supra enunciado (verificação do incumprimento, possibilidade de alteração da decisão relativa à regulação, possibilidade de aplicação de multa e de condenação do remisso em indemnização) e se apresentar como incidente ao processo de regulação das responsabilidades parentais (a versar sobre interesses imateriais), o valor processual não é compaginável com uma visão redutora assente exclusivamente na sua “utilidade económica imediata”, antes se alargando, também na decorrência da sua dependência ao processo principal, aos interesses imateriais subjacentes por efeitos do disposto nos art.s. 303.º, n.º 1 e 304.º, n.º 1 do CPC.

Assim, no caso, independentemente do seu objeto imediato se circunscrever à falta de pagamento do montante fixado a título de alimentos, o valor a conferir à ação é o de € 30.000,01.


    *

Sumário[5]:

(…).

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida na parte em que fixou o valor da ação em € 735 (setecentos e trinta e cinco euros), fixando-se esse valor em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).

                                                                                    *

Custas do recurso a cargo do recorrido (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                                      *

Coimbra, 7 de fevereiro de 2023

(Paulo Correia)

(Helena Melo)

(José Avelino)



[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Ebook Disponível em https://cej.justica.gov.pt
[3] - Diverge desse entendimento, embora sem acrescentar fundamentação acrescida, o acórdão do TRG de 07.04.2022, proferido no processo 1826/20.4T8VCT-A.G1.
[4] - Todos os acórdãos citados encontram-se disponíveis em www.dgsi.pt
[5] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).