Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
441/20.7PBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: IMPUTABILIDADE
INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
IMPUTABILIDADE DIMINUÍDA
SANCIONAMENTO DO AGENTE DECLARADO IMPUTÁVEL DIMINUÍDO
Data do Acordão: 08/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: RECURSO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTS. 14.º, 20.º, N.º 2, 71.º, 83.º, 91.º E 104.º, DO CP
Sumário:
1º - No artigo 20º, n.º 2 do CP, o legislador ofereceu ao juiz uma norma flexível, que lhe permite optar pela imputabilidade [caso em que a imputabilidade diminuída vai influenciar na determinação da pena (art. 71.º)] ou pela inimputabilidade do sujeito (sendo-lhe aplicada uma medida de segurança, de acordo com o art. 91.º).

2º - Assim, uma de três:
· Ou temos uma perfeita e inequívoca imputabilidade – artigo 14º do CP;
· Ou temos uma inequívoca inimputabilidade por anomalia psíquica (artigo 20º, n.º 1 do CP) - para que um agente seja considerado inimputável, de acordo com o artigo 20.º n.º 1 do CP, é necessário que ele sofra uma anomalia psíquica, de tal forma grave que, no momento da prática do facto, o impeça de compreender/avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar em conformidade com essa avaliação;
· Ou temos uma anomalia psíquica grave que pode acarretar dois juízos sentenciais:
o a declaração de uma inimputabilidade, ao abrigo do n.º 2 do artigo 20º do CP; [não uma inimputabilidade “natural” mas uma inimputabilidade jurídica ou, como nos indica Elisabete Monteiro, uma “inimputabilidade fictícia” ou ainda, na expressão de Carlota Pizarro de Almeida, uma “inimputabilidade artificial”, referindo-se a ela Figueiredo Dias como situações de “imputabilidade duvidosa”]; ou
o a declaração de uma imputabilidade diminuída.

3º - A imputabilidade diminuída não é objecto de qualquer preceito legal no Código Penal vigente, quer a nível de definição, quer a nível de efeitos que podem surgir com a sua
aplicação.

4º - À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída - ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente reflectidas no facto.
5º - Em suma, o agente imputável diminuído:
· pode ser sancionado com uma medida de segurança quando seja declarado como inimputável e perigoso;
· pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento prisional comum, não verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento destinado a inimputáveis, verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· pode ser condenado em pena relativamente indeterminada, quando seja declarado imputável e a sua anomalia psíquica coincida com uma tendência para o crime (artigo 83º do CP);
· pode ser condenado em pena atenuada quando seja declarado imputável e não perigoso.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

           

            1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido CC, tendo o acórdão datado de 20 de Junho de 2022 decidido o seguinte:
· Condenar o arguido, pela prática, em autoria material, concurso real e sob a forma consumada:
ü a)- de um crime de violência doméstica previsto e punido no art.º 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) e n.ºs 4, 5 do Código Penal (tendo por vítima AA), na pena de 3 (três) anos de prisão;
ü b)- um crime de violência doméstica previsto e punido no art.º 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) e n.ºs 4, 5 do Código Penal (tendo por vítima BB), na pena de 3 (três) anos de prisão;
ü c)- operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se não suspende.
· Determinar que o arguido se mantenha sujeito à medida de coacção de internamento preventivo até trânsito em julgado do presente acórdão, sem prejuízo da sua revisão periódica e dos prazos máximos admissíveis.
· Julgar procedente o pedido de reparação das vítimas deduzido pelo Ministério Público contra o arguido CC e, em consequência, condenar o arguido e demandado no pagamento a cada um dos ofendidos da quantia de 800,00 € (oitocentos euros).

2. Deste acórdão recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):

«A) O presente recurso visa a reapreciação quer da matéria de facto, quer de matéria de direito esta, designadamente, no que respeita à aplicação de uma medida de segurança ao arguido que deve ser considerado inimputável ou assim, não se entendendo, caso, seja aplicada uma pena de prisão seja o arguido condenado a cumpri-la em meio institucional adequado às suas necessidades e, hipoteticamente sem prescindir da medida da pena aplicada ao arguido.

B) É notório que face à prova documental – elementos clínicos – e, prova pericial junta aos autos os Pontos 70, 73, 77 e 78 da Matéria de Facto Provada na parte em que consideraram provado que o arguido “actuou com o propósito”, “quis provocar”, ”bem sabendo que as suas condutas adequadas à produção daqueles efeitos”, “actuou com o propósito concretizado de atingir”, “agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” foram incorrectamente julgados.

C) Existem muitas contradições ao nível da “anomalia psíquica” que é considerada quer, no Relatório Pericial quer, nos demais elementos médicos, uma vez que não caberá lugar ao diagnóstico de Perturbação da Personalidade (PP), uma vez que a estruturação da mesma foi disfuncional por Défice cognitivo /Oligofrenia /Atraso mental ligeiro e não por falha ao nível do carácter, como no caso dos indivíduos com Perturbações Antissocial da Personalidade.

D) O arguido é portador de uma doença do foro psiquiátrico, deficiência intelectual ligeira a moderada, perturbação de personalidade antissocial e dependência de canabinóides e abuso de álcool.

E) A inteligência do Arguido, foi considerada significativamente inferior aos valores considerados normais para a população em geral (conforme resposta ao quesito 3 do Relatório Pericial) sendo que, as crianças afectadas por esta forma de atraso mental, normalmente, não conseguem atingir um coeficiente de inteligência equivalente ao de uma criança de 11 anos.

F) O arguido demonstrou ainda dificuldades de resistência à frustração. Demonstrou uma elevada permeabilidade a influências externas, devendo ser considerado especialmente vulnerável, especialmente no que a consumos de estupefacientes e comportamentos de risco concerne.

G) Conforme consta do Relatório Pericial juntos aos autos, à data dos factos de que se encontra acusado, o arguido, em virtude da deficiência mental ligeira de que sofre, agravada pelo consumo regular e dependência de canabinóides e abuso de álcool, apresentava capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude dos seus actos e para se determinar de acordo com essa avaliação.

H) A deficiência mental de que o arguido padece encontra-se presente desde a infância, reveste-se de carácter crónico, não é tratável, limita a sua capacidade de compreender e de interpretar o que o rodeia e de se auto-determinar condicionando o perfil de funcionalidade do arguido CC.

I) Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo”, julgou incorrectamente os factos constantes dos Pontos 70-73-77-78 da Matéria Facto Provada e apreciou indevidamente que o atraso mental que o Arguido padece o impede de compreender, interpretar e agir de outro modo, sendo que, a prova documental e pericial produzida impunha uma decisão diversa da recorrida.

J) A anomalia psíquica de que o arguido CC padece é passível de integrar os pressupostos do artigo 21.º n.º 1 do Código Penal.

K) O Tribunal “a quo” interpretou e aplicou erradamente violando os artigos 14.º, 20.º e 152.º, nº 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e 5, todos do Código Penal e ainda o princípio da tipicidade previsto nos artigos 29.º n.º 1 da C. R. P. e artigo 1.º do Código Penal.

L) Sem prescindir, do supra alegado, “Tratando-se quer a deficiência mental, quer a perturbação da personalidade, condições clínicas crónicas e não abordáveis do ponto de vista estritamente médico, é provável que persistam inalteradas no futuro, podendo vir a condicionar repetição de comportamentos ilícitos de semelhante natureza.” Senhora Perita em resposta ao Quesito 9. do Relatório Pericial supra mencionado. (sublinhado e negrito nosso)

M) Pelo que, conjugado com a gravidade dos factos praticados pelo arguido CC em virtude da sua anomalia psíquica o receio que as vítimas têm de que o mesmo possa “atentar contra a sua integridade física e mesmo contra as suas vidas” (conforme Ponto 75- da Matéria dado como Provada) deve ser aplicado o artigo 91.º n.º 1 do Código Penal.

N) Existe pois, também quanto a esta matéria erro notório na apreciação da prova e ao não aplicar o previsto no artigo 91.º n.º 1 do Código Penal, aderindo à conclusão do exame pericial (resposta aos quesitos 6 e 9 do mesmo), o Tribunal “a quo” interpretou erradamente o artigo 163.º do Código de Processo Penal, violando o mesmo, assim como, o disposto no artigo 40.º n.º 1 e 152.º n.º 1 alínea d), n.º 2 alínea a), n.ºs 4 e 5 todos do Código Penal.

O) A aplicação de uma medida de segurança surge da necessidade de prevenção da prática de factos ilícitos típicos no futuro e, não obstante, em geral, ser aplicada resposta à especial perigosidade de delinquentes imputáveis especialmente perigosos deve também ser aplicada a delinquentes de imputabilidade diminuída quando a pena for considerada insuficiente do ponto de vista das finalidades de prevenção especial, o que, se verifica “in casu” pois, a doença do CC é permanente e não tratável.

P) Ainda que se entenda, que não se encontram reunidos os pressupostos para ao arguido ser aplicada uma medida de segurança, a título cautelar, sempre se dirá que qualquer pena a cumprir pelo arguido deverá ser sempre cumprida em meio institucional revestindo-se “de grande importância a necessidade de supervisão comportamental por parte de terceiros” – conforme resposta ao quesito 9 do Relatório Pericial e no seguimento do Relatório Social do arguido.

Q) As finalidades de prevenção especial que o caso merece e a salvaguarda dos direitos dos deficientes mentais ligeiros apenas serão alcançados com o acompanhamento de terceiros em contexto institucional adequado às necessidades específicas do arguido.

R) Em todo o caso, e sem prescindir de todo o supra alegado, uma pena de prisão a pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução não foi suspensa é excessiva, desproporcional e nem sequer responde às exigências de prevenção geral (ás de prevenção especial nunca responderá atenta a deficiência do Arguido).

S) Note-se que apesar, de o Arguido ter praticado os ilícitos pelos quais vem acusado, o mesmo, padece de uma deficiência mental ligeira, tendo um défice cognitivo inferior à média da população e eventualmente, sofre de uma perturbação de personalidade, condições clínicas que são crónicas e não são tratáveis.

T) Posto isto, é por demais evidente que as necessidades de prevenção especial são médias, e não elevadas, encontrando-se o Arguido actualmente com um comportamento adequado e motivado para as actividades que lhe são propostas no Hospital Prisional onde se encontra.

U) De facto, o Tribunal “a quo” deveria ter aplicado uma condenação mais reintegradora e menos excessiva, atenta a matéria provada, a ausência de antecedentes criminais, a anomalia psíquica de que padece o arguido e as circunstâncias em que os factos ilícitos aconteceram (mormente quando o arguido estava sob o efeito de álcool, não acompanhado medicamente e precisava de dinheiro para os seus vícios não compreendendo o porquê dos seus progenitores lho negarem).

V) Face ao exposto, não sendo de condenar o arguido numa medida de segurança, recorre o Arguido da medida concreta da pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão efectiva que lhe foi aplicada porquanto:

W) A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; e em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. artigos 40.º nº s 1 e 2, 70.º e 71.º do Código Penal).

X) Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração atuam pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes que vão determinar, em última análise, a medida da pena.

Y) Entende, pois, S. M. O. o Recorrente, que caso não lhe seja aplicada uma medida de segurança, a aplicação de uma pena de prisão próxima do limite mínimo da moldura penal a cumprir em instituição adequada às necessidades do arguido, acautelará de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, o que se requer,

Z) Face ao exposto e, ao não entender assim, o Douto Acórdão recorrido violou os artigos 29.º n.º 1 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, e, ainda, os artigos 20.º, 40.º nº s 1 e 2, 41.º, 50.º, 70.º, 71.º, 91.º n.º 1 e 152.º n.º 1 alínea d), n.º 2 alínea a), n.ºs 4 e 5, todos do Código Penal.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, ser o arguido considerado inimputável com a consequente condenação do mesmo numa medida de segurança ou, sem prescindir, entendendo o V. Tribunal haver lugar à aplicação de uma pena de prisão deverá a mesma ser cumprida em meio institucional adequado às necessidades do arguido e, em todo o caso, ser a pena aplicada sempre reduzida para o seu limite mínimo correspondente aos crimes por que foi o recorrente condenado».

            3. Respondeu em 1ª instância o Ministério Público a este recurso, defendendo a sua improcedência.

4. O Exmº Procurador da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.
           
            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

             II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].

             Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber se:
· 1º- Foram ou não incorrectamente dados como provados os factos 70, 73, 77 e 78 da Matéria de Facto Provada?
· 2º- Deveria o arguido ser julgado inimputável e, em consequência, deveria ter-lhe sido aplicada uma medida de segurança?
· 3º- Subsidiariamente, a pena de prisão aplicada foi excessiva e desproporcional?

2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NO ACÓRDÃO RECORRIDO (em transcrição)

2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte:

«1- AA e BB nasceram em 29/04/1966 e 26/09/1967, respectivamente.

2- AA e BB viveram juntos, como se de marido e mulher, partilhando cama, mesa e habitação, durante 22 (vinte e dois) anos e casaram em 29/08/2019.

3- O arguido CC nasceu em .../.../2001 e é filho de AA e BB.

4- O arguido vivia em casa dos pais, sita na Estrada ..., ..., em ..., ... (...), juntamente com o irmão mais velho, DD.

5- AA padece de um atraso mental ligeiro e foi submetida, por duas vezes, a intervenções cirúrgicas ao ouvido direito, onde tem um implante.

6- AA é de estatura física baixa (tem cerca de 1,55 metros de altura).

7- Em 2012, BB sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), tendo, desde então, ficado com dificuldades de locomoção, tendo a perna e o braço direitos afectados, estado em que permanece até ao dia de hoje.

8- AA exerce as funções profissionais de copeira no Restaurante “O...” e BB é operário fabril, auferindo ambos €635,00 mensais.

9- Quando completou 18 anos, o arguido CC esteve inserido numa comunidade terapêutica, em ....

10- Em Novembro de 2019, o arguido saiu da referida comunidade.

11- Desde então, o arguido regressou para casa dos progenitores, não tomava a medicação, não ia às consultas de psiquiatria e vinha revoltado com eles e, diariamente, exigia-lhes dinheiro para fazer face às suas despesas e aos seus vícios.

12- Sempre que os seus pais se recusavam a entregar-lhe o dinheiro que lhes exigia, em média uma vez por mês, o arguido ficava exaltado e tornava-se agressivo, partindo os objectos em casa, agredindo as vítimas e dirigindo-lhes expressões injuriosas e ameaçadoras.

13- Perante tais comportamentos do arguido, e, temendo pela sua integridade física e mesmo pelas suas vidas, muitas vezes, os pais acabavam por entregar a CC o dinheiro que ele lhes exigia.

14- No dia 22/02/2020, cerca das 18h55mn, no interior da residência comum, o arguido exigiu à mãe dinheiro para comprar tabaco.

15- Como AA retorquiu, dizendo-lhe que não lhe dava dinheiro nenhum e para ele ir trabalhar, o arguido ficou irritado, dirigindo-se à sua mãe nos seguintes termos: “és uma puta, uma vaca”.

16- De seguida, AA disse ao arguido que não lhe admitia que lhe chamasse tais nomes.

17- Após, o arguido agarrou num chinelo e desferiu com o mesmo uma pancada no braço esquerdo de AA.

18- No dia 01/04/2020, cerca das 18h55mn, no interior da residência comum, o arguido exigiu dinheiro aos pais, que recusaram.

19- De imediato, o arguido ficou agressivo e revoltado e em consequência, envolveram-se todos numa discussão.

20- No decurso da referida discussão, o arguido desferiu um encontrão na mãe, fazendo com que a mesma deixasse cair ao chão o seu telemóvel de marca “NOKIA”, no valor de €29,00.

21- De imediato, AA agarrou no telemóvel para chamar a polícia e, mal o arguido se apercebeu, agarrou no telemóvel de AA e partiu-o, deixando-o inutilizado.

22- No dia 05/08/2020, cerca das 23h30mn no interior da residência comum, mal AA chegou a casa, vinda do trabalho, foi de imediato, abordada pelo arguido, que lhe exigiu dinheiro.

23- Perante a recusa da progenitora, que não dispunha de qualquer quantia monetária para lhe dar, o arguido começou a partir diverso mobiliário existente no interior da residência, designadamente uma cadeira e um banco e, munido de uma marreta, começou a partir o estore da janela do quarto do irmão, DD.

24- Ao mesmo tempo que se dirigia a AA, em tom de voz alto, sério e ameaçador, nos seguintes termos: “agarro numa faca, vou arranjar uma pistola, vou-vos matar” (referindo-se a AA e a BB), sua vaca, sua cabra, sua puta, dou cabo de ti, estavas tão bem era no cemitério”, referindo-se a AA.

25- Após, o arguido arremessou uma tesoura da poda contra AA, atingindo-a com a parte bicuda na perna esquerda, causando-lhe um corte e um hematoma.

26- Para defender AA, BB intrometeu-se, tendo-lhe o arguido retirado das mãos o capacete e lhe desferiu, com o referido objecto, várias pancadas nos braços.

27- Nesse dia, a vítima chamou as autoridades, que compareceram no local e tomaram conta da ocorrência.

28- Após, AA teve que se deslocar às urgências do Centro Hospitalar ..., onde recebeu assistência médica.

29- Em consequência dos factos supra descritos, o arguido provocou em AA, sua mãe, as seguintes lesões: “Membro inferior esquerdo: equimose arroxeada com áreas amareladas no bordo posterior lateral do terço médio da coxa, medindo 6x4cm, no seio da qual eram visíveis duas escoriações, medindo 3 cm de comprimento cada.”

30- As lesões supram descritas causaram mal-estar psicológico e dores a AA e foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 8 (oito) dias, todos sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

31- No dia 24/08/2020 (segunda-feira), cerca das 23h30mn, quando AA se encontrava numa divisão da residência própria para passar a roupa a ferro, o arguido abordou-a, uma vez mais, exigindo-lhe dinheiro.

32- Mal a mãe lhe disse que não tinha dinheiro para lhe dar, o arguido dirigiu-se à mãe, empurrou-a e cuspiu-lhe na cara, deixando AA enojada, revoltada e triste, a chorar.

33- De seguida, o arguido agarrou no sofá que aí se encontrava e deitou-o “de pernas para o ar”.

34- No dia 24/09/2020, cerca das 00h57mn, encontrando-se alcoolizado, o arguido pediu €10,00 à mãe para adquirir produto estupefaciente.

35- Como ela recusou porque não dispunha de dinheiro no momento, o arguido ficou irritado, tendo, de imediato, desferido um pontapé no balde de lavar o chão e, após, desferiu um empurrão na mãe.

36- Em consequência, AA caiu ao chão.

37- No dia 25/10/2020, cerca das 12h30mn, o arguido pediu o ciclomotor do pai emprestado e a quantia monetária de €10,00 (dez euros).

38- Como o pai recusou, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com o capacete do ciclomotor na cabeça.

39- Após, BB teve que se deslocar ao Centro Hospitalar ..., onde foi assistido e recebeu tratamento médico.

40- Em consequência dos factos supra descritos, o arguido provocou em BB, seu pai, as seguintes lesões: “Crânio: área tumefacta com equimose equimótica vermelha local, na metade direita da região occipital, dolorosa à palpação, medindo 2 cm de maior eixo”.

41- As lesões supra descritas causaram mal-estar psicológico e dores a BB e foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 5 (cinco) dias, todos sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

42- No dia 03/11/2020, cerca das 23h00mn, na sequência de mais uma discussão em que o arguido pediu o telemóvel emprestado a AA e ela recusou, ele desferiu-lhe um empurrão, que a projectou com a cabeça contra a porta do frigorífico.

43- Em consequência, AA ficou com um hematoma, pôs gelo e chamou as autoridades, que compareceram no local.

44- Em consequência dos factos supra descritos, o arguido provocou em AA, sua mãe, traumatismo do crânio e dores.

45- No dia 25/12/2020, cerca das 18h00mn, o arguido pediu dinheiro à mãe e, como ela lhe negou, ele bateu-lhe com o pau de uma vassoura na anca direita.

46- Em consequência, AA ficou com dores e com hematomas em várias zonas do corpo.

47- Após, AA chamou as autoridades, que compareceram no local.

48- No dia 27/12/2020, o arguido pediu boleia ao pai para ir a um sítio, e, como o pai recusou, o arguido CC agarrou numa pedra para a atirar ao pai, o que apenas não veio a suceder porque BB se defendeu com uma enxada.

49- No dia 08/01/2021, às 18h40mn, na sequência de uma discussão com o arguido, por AA se ter recusado a entregar-lhe dinheiro para comprar tabaco, no quarto desta, o arguido ficou irritado e tentou à força puxar-lhe a mala onde AA tinha o dinheiro e que trazia ao ombro, até ter rasgado a asa, mas não conseguiu.

50- De seguida, o arguido desferiu um empurrão com ambas as mãos nos braços de AA, em consequência do que ela caiu em cima da cama.

51- Após, o arguido desferiu-lhe dois pontapés na coxa esquerda.

52- Em consequência dos factos supra descritos, o arguido provocou em AA, sua mãe, as seguintes lesões: - “Membro inferior esquerdo: na metade distal da face anterior da coxa, 4 equimoses arroxeadas com discreto halo amarelado, medindo a maior 6cmx3cm de maiores eixos e a menor com 2 cm de diâmetro; no terço proximal da face anterior da perna, equimose arroxeada com discreto halo amarelado, medindo 4cmx1,5cm”.

53- As lesões supra descritas causaram mal-estar psicológico e dores a AA e foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 6 (seis) dias, 3 (três) dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

54- No dia 11/01/2021, cerca das 01h50mn, AA e BB encontravam-se a dormir no seu quarto, com a porta trancada à chave, como faziam todas as noites para se defender do arguido, seu filho.

55- A dada altura, o arguido começou a bater com muita força na janela do quarto dos pais, na parte exterior da residência, e a gritar “abram a porta, abram a porta, caralho.”

56- De seguida, o arguido muniu-se de uma machada, com a qual partiu a fechadura da porta do quarto dos pais, os quais acordaram sobressaltados.

57- Após, o arguido colocou a machada no chão e irrompeu no quarto dos pais, exigindo à mãe que lhe emprestasse o telemóvel.

58- Como a mãe recusou, o arguido exaltou-se.

59- Em consequência, CC partiu louça que se encontrava no móvel da sala, mobiliário e a porta interior principal da residência.

60- De seguida, AA chamou as autoridades, que compareceram no local.

61- Depois de os ânimos acalmarem e o ambiente estar calmo, as autoridades abandonaram o local.

62- Passado pouco tempo, o arguido dirigiu-se ao quarto dele, local onde foi buscar uma trela de passear o cão.

63- Após, o arguido dirigiu-se a AA e desferiu-lhe por três vezes chicotadas no braço esquerdo com o referido objecto.

64- DD escondeu-se numa esquina a ver o que se passava, ao mesmo tempo que CC voltou a agredir a mãe com a trela.

65- De seguida, AA e DD agarraram o arguido com força, para se defenderem dele.

66- Em consequência, o arguido ficou ferido e AA chamou o 112, que conduziu o arguido ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de ....

67- No dia 12/01/2021, o arguido foi internado no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar de ..., do qual teve alta clínica no dia ....

68- À data da prática dos factos supra descritos, o arguido padecia dos diagnósticos de “Deficiência Intelectual Ligeira”, “Perturbação da Personalidade Antissocial”, “Dependência de Carabinóides” e “Abuso de Álcool.”.

69- Em virtude da referida deficiência mental ligeira de que o arguido sofria, agravada pelo consumo regular e dependência de carabinóides e de abuso de álcool, à data da prática dos factos, o arguido apresentava “capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude dos seus actos e para se determinar de acordo com essa avaliação.”.

70- O arguido sabia que as vítimas são seus progenitores, pessoas com debilidades físicas e mentais, e, sempre que adoptou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado, de os ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

71- O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos físicos e psicológicos aos seus progenitores, humilhando-os e sujeitando-os a tratamentos degradantes e causando-lhes um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

72- Actuou sempre o arguido sabendo dever respeito a BB e AA, particularmente por serem seus progenitores, pessoas que o acolheram e o sustentavam.

73- O arguido quis provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa de AA e BB, bem sabendo que os provocaria, tendo em conta as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que as suas descritas condutas eram adequadas à produção daqueles efeitos.

74- Mais, sabia o arguido que, com os comportamentos supra descritos, colocava em causa o sentimento de autonomia, liberdade e sensação de segurança dos ofendidos.

75- Ao ouvir as expressões supra referidas dirigidas pelo arguido, AA e BB ficaram receosos, temendo que aquele viesse, num futuro próximo, em concretização das aludidas ameaças, a atentar contra a sua integridade física e mesmo contra as suas vidas.

76- Com as condutas supra descritas, o arguido quis e conseguiu provocar medo e inquietação a seus pais, prejudicando a sua liberdade de determinação, o que concretizou, chegando estes últimos a recear pela sua integridade física e até pela sua vida, bem sabendo que o fazia contra a vontade daqueles.

77- Actuou ainda o arguido com o propósito concretizado de atingir AA na sua honra, consideração e dignidade.

78- O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

-Pessoais do arguido

79- Natural de ..., e o mais novo de dois filhos de um casal de modesta condição socioeconómica, o processo evolutivo de CC decorreu no núcleo familiar de origem, constituído pelos pais e irmão mais velho; os pais sempre mantiveram actividades laborais remuneradas, o progenitor e irmão como operários fabris, e a mãe, como funcionária num restaurante há mais de três décadas.

80- O arguido cresceu na zona de ..., em habitação arrendada, que dispõe de condições de habitabilidade para todos os elementos do agregado.

81- CC apresentou desde sempre uma atitude comportamental irreverente, com agravamento progressivo no início da adolescência, com repercussões no seu aproveitamento escolar, marcado por sucessivas retenções.

82-Durante a frequência escolar foi encaminhado para a vertente de ensino especial por alegadas limitações cognitivas e, já após a sua transição para o terceiro ciclo do ensino básico, foi necessária a intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, por este apresentar reiteradamente condutas desajustadas, evidenciando desinteresse pelas actividades lectivas, que culminou em absentismo e fugas do recinto escolar para acompanhar amigos com semelhantes comportamentos, tendo nesse contexto dado início ao consumo de estupefacientes.

83- Com catorze anos de idade, foi institucionalizado na Casa de Trabalho de ..., onde viria a permanecer entre 2016 e 2019.

84- Após uma fase inicial de adaptação positiva na instituição, o arguido alterou o seu comportamento, não só pelo convívio com outros jovens com comportamentos disruptivos, mas também pelo gradual desinteresse no seu processo formativo, rejeitando a frequência escolar, onde beneficiava de um curriculum alternativo.

85- Intensificou ainda os consumos de haxixe, passando a manifestar comportamentos instáveis e violentos em contexto institucional, o que levou ao seu encaminhamento para o Centro de Respostas Integradas (CRI) e, através desta Unidade Clínica, transitou para a Comunidade Terapêutica ..., em ..., onde permaneceu de 05.10.2019 a 21.11.2019.

86- Quando perfez dezoito anos de idade, CC optou por abandonar a instituição, sem alta clínica, regressando a casa dos pais, onde permaneceu até ser sujeito a [1].

87- CC não tem hábitos de trabalho e não detém rotinas laborais, mantendo-se dependente do apoio económico dos pais.

88- Teve uma pequena experiência laboral de cerca de um mês, no sector da construção civil, tendo sido dispensado pela entidade patronal, por ter apresentado uma atitude pouco adequada com cliente.

89- A nível social, os comportamentos do arguido são conhecidos desde a sua infância, sendo rotulado por uma imagem social negativa, associada a confrontos familiares e à toxicodependência.

90- Em Janeiro de 2021, CC foi internado no serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar de ..., ... em 12.01.2021, onde teve alta clínica em 27.01.2021.

91- No Hospital ... CC tem mantido um comportamento adequado, beneficiando de acompanhamento especializado na clínica de psiquiatria, colaborando com as várias actividades terapêuticas que lhe são propostas.

92- Do seu CRC não constam condenações».

2.2. Inexistem factos NÃO PROVADOS.

2.3. Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição):

«Por força do art. 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o art. 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença, determina que ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou a que este valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 -5.ª).”2 É o que se passa a fazer de imediato.

Assim, o Tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria de facto, no que concerne aos factos pelos quais vinha o arguido acusado, na confissão quase integral e sem reservas deste. Refira-se que, face ao relatório pericial psiquiátrico junto aos autos (cf. fls. 669 a 682), não se colocam dúvidas sobre o carácter livre e esclarecido da confissão que fez, pelo que se deram como provados os factos constantes da acusação. O arguido apenas não admitiu ter batido com um pau de vassoura na sua mãe (art. 54 da acusação), mas resulta das declarações para memória futura prestadas por esta que tal sucedeu. Refira-se que, ainda que não tenham sido lidas em audiência de julgamento, tais declarações podem/devem ser consideradas na decisão da matéria de facto. Aliás, nesse sentido pronunciou-se já o Venerando Supremo Tribunal de Justiça: “As declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271.º, do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código.”

Atenta a confissão do arguido foi dispensada a produção de prova testemunhal. Sem prejuízo, para esta matéria foi também relevante a seguinte prova:

Documental:

- Denúncia apresentada pela “Associação ..., em ...”, fls. 18;

- Auto de notícia por detenção, fls. 304;

- Auto de notícia e aditamentos, fls. 44 a 46, 82, 90, 232, 237, 241, 255 a 257;

- Auto de notícia, fls. 16 (NUIPC 760/20.... – Apenso A);

- Auto de denúncia, fls. 5 a 6 (NUIPC 12/21.... – Apenso B);

- Informação, fls. 18 a 19;

- Informações de serviço, fls. 74 e 236;

- Certidões de Assento de Nascimento, fls. 24 a 26;

- Fotografias de ferimentos, fls. 279 a 282;

- Elementos clínicos do arguido, fls. 162 a 225, 351, 352 a 366, 632 a 634 e 642;

Pericial:

- Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal, fls. 93 a 96, 153 a 156, 227 a 230 e 297 a 301;

- Relatório de Perícia Psiquiátrica realizada ao arguido, fls. 669 a 682.

Relativamente à situação sócio-económica do arguido (Factos Provados 79 a 91), o tribunal teve em conta o teor do relatório social de fls. 737.

Quanto aos antecedentes criminais (ou à sua ausência) do arguido (Facto Provado 92), os mesmos resultam do CRC. de fls. 736.

Finalmente os factos relativos ao seu perfil psicológico/psiquiátrico resultaram do relatório pericial de fls. 669 a 682, que conclui que o arguido não é inimputável, mas, em virtude da deficiência mental de que sofre, agravada pelo consumo regular e dependência de canabinóides e abuso de álcool, apresentava capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude dos seus actos e para se determinar de acordo com essa avaliação».


             3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. SOBRE OS FACTOS

3.1.1. Debrucemo-nos, então, sobre o acórdão preferido pelo tribunal ..., vislumbrando se existe algum erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro vício oficioso descrito no artigo 410º, n.º 2 do CPP, assente que houve impugnação da matéria de facto quanto aos factos 70, 73, 77 e 78 (os apontados pela defesa como mal julgados provados).

São eles:

«70- O arguido sabia que as vítimas são seus progenitores, pessoas com debilidades físicas e mentais, e, sempre que adoptou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado, de os ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

(…)

73- O arguido quis provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa de AA e BB, bem sabendo que os provocaria, tendo em conta as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que as suas descritas condutas eram adequadas à produção daqueles efeitos.

(…)

77- Actuou ainda o arguido com o propósito concretizado de atingir AA na sua honra, consideração e dignidade.

78- O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Diga-se, à entrada desta discussão, que não se compreende muito bem a razão pela qual o recurso não indica também os factos 71, 72, 74, 75 e 76, todos igualmente atinentes ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa e que, a provar-se a inimputabilidade do arguido, não poderiam ser dados como provados.

Considera, assim, a defesa que o arguido deveria ser considerado inimputável pois «não caberá lugar ao diagnóstico de Perturbação da Personalidade (PP), uma vez que a estruturação da mesma foi disfuncional por Défice cognitivo /Oligofrenia /Atraso mental ligeiro e não por falha ao nível do carácter, como no caso dos indivíduos com Perturbações Antissocial da Personalidade».

Para a defesa, «o arguido é portador de uma doença do foro psiquiátrico, deficiência intelectual ligeira a moderada, perturbação de personalidade antissocial e dependência de canabinóides e abuso de álcool», que gera inimputabilidade e não imputabilidade diminuída como decidiu o aresto de ....

3.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas formas:

- pela impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (O QUE NÃO É O NOSSO CASO, mercê do facto de o recorrente não ter dado cumprimento mínimo, na motivação do recurso – nem nas suas conclusões[2] -, ao disposto e comando no artigo 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPP) – cfr. artigo 431º do CPP;

- pela análise dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.

Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)».

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto.

Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.

E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Sabemos que o ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto só se satisfaz com a indicação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, ou seja, do conteúdo específico do meio de prova em que se pretendeu basear a impugnação, bem como com o estabelecimento da necessária correlação entre o concreto meio de prova e o concreto ponto de facto que se almejou contrariar, não havendo lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afectem a motivação do recurso e não apenas as conclusões.

No nosso caso, o recurso, quer na motivação, quer nas conclusões, é completamente omisso quanto a isso (note-se que toda a prova foi prescindida mercê da confissão do arguido)

Assim sendo, não é este erro de julgamento que está em apreciação, restando sindicar a decisão recorrida com base nos vícios oficiosos do artigo 410º, n.º 2 do CPP, acentuando-se que a defesa não coloca em causa a prova dos factos objectivos imputados ao arguido mas apenas o elemento subjectivo do crime de violência doméstica (praticou os factos narrados na acusação mas não pode ser considerado imputável criminalmente).

3.1.3. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente o recurso intentado, explorando, de forma mais demorada, cada um dos vícios oficiosos ínsitos no n.º 2 do artigo 410º do CPP.

Na realidade, estabelece o artigo 410º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

3. Erro notório na apreciação da prova.

            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.

Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso.

Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada.

Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.

3.1.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP?

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[3].

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[4].

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.

Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.

Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[5].

Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

3.1.5. O recurso não alude expressamente a qualquer um destes vícios.

Apenas que o tribunal violou as regras do artigo 163º do CPP, ou seja, que não concluiu juridicamente como devia relativamente à imputabilidade do arguido.

No fundo: presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir-se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.

Para a tese da defesa, no momento da prática dos factos, o arguido estava incapaz de avaliar os mesmos e de se determinar de acordo com a sua correcta avaliação do que não é ilícito, devendo ser declarado inimputável, uma vez que, devido à sua anomalia psíquica, não é susceptível de um juízo de censura, na medida em que não pode comprovar-se que agiu de forma livre, deliberada e consciente, tendo capacidade para avaliar a ilicitude dos factos que praticou.

Para se analisar a decisão recorrida nestes termos há que analisar o seu texto literal e a sua concordância lógica entre o acervo probatório dado como provado e não provado e a respectiva motivação.

E é nessa motivação que reside o cerne de todo o problema e a verdadeira arte de julgar num verdadeiro Estado de Direito onde os tribunais aplicam as leis de forma fundamentada e credível.

Cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista – e um juiz, todos os dias, conquista esse respeito sentenciando de forma justa e motivada com base em provas válidas, num juízo de convicção que, depois de ser criado, tem de ser devida e suficientemente explicado ao mundo.

Neste ponto, e aqui chegados, foquemo-nos na questão da prova e da sua leitura em sede de julgamento para a criação de uma convicção (e aí o juiz convencido tem de se transformar, de forma sábia e suficiente, em juiz convincente)[6].


3.1.6. Com este pano de fundo, vejamos se existe algum vício de sentença.

              Lemos e relemos a decisão recorrida, elaborada na sequência de um julgamento vivido por três Juízes de Direito, atentos à prova testemunhal, documental e pericial.

            E o juízo que aí foi criado foi aquele que resulta da coerente prova dada como provada.

            Houve algum erro notório na apreciação da prova, assente a inexistência dos outros dois vícios do artigo 410º, n.º 2?

Ou seja:
§ Perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, o tribunal recorrido violou as regras da experiência?
§ Efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios?
§ Violaram-se as regras sobre prova vinculada ou das legis artis?

§ O tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados?

§ Estamos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido?

§ Extraiu-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum?

§ Deu-se como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo?

§ A prova foi erroneamente apreciada?

§ O tribunal afastou-se infundadamente de um eventual juízo dos peritos?

§ Deu-se como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica?

§ Na motivação da decisão de facto invoca-se facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso?

§ Declara-se ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido?

§ No âmbito da apreciação da prova indirecta, o tribunal infere de um facto um outro facto, sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão?

§ Houve uma má aplicação do princípio in dubio pro reo?

A todas as perguntas, respondemos NÃO.

Em lado algum do relatório pericial constante dos autos se diz expressamente que o arguido deve ser considerado inimputável criminalmente.

Olhemos para o relatório da Psiquiatria em causa e vejamos o que no essencial diz:

E à pergunta essencial da perícia, responde-se assim:

 

Já no relatório da Psicologia consta o seguinte:




No fundo:

Existe uma deficiência mental ligeira, leve, em todos os parâmetros referidos nos dois relatórios periciais.

O tribunal deu como provados os seguintes factos:

«68- À data da prática dos factos supra descritos, o arguido padecia dos diagnósticos de “Deficiência Intelectual Ligeira”, “Perturbação da Personalidade Antissocial”, “Dependência de Carabinóides” e “Abuso de Álcool.”.

69- Em virtude da referida deficiência mental ligeira de que o arguido sofria, agravada pelo consumo regular e dependência de carabinóides e de abuso de álcool, à data da prática dos factos, o arguido apresentava “capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude dos seus actos e para se determinar de acordo com essa avaliação.”.

E concluiu ainda, em sede de elementos subjectivos do crime em causa:

«70- O arguido sabia que as vítimas são seus progenitores, pessoas com debilidades físicas e mentais, e, sempre que adoptou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado, de os ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

71- O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos físicos e psicológicos aos seus progenitores, humilhando-os e sujeitando-os a tratamentos degradantes e causando-lhes um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

72- Actuou sempre o arguido sabendo dever respeito a BB e AA, particularmente por serem seus progenitores, pessoas que o acolheram e o sustentavam.

73- O arguido quis provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa de AA e BB, bem sabendo que os provocaria, tendo em conta as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que as suas descritas condutas eram adequadas à produção daqueles efeitos.

74- Mais, sabia o arguido que, com os comportamentos supra descritos, colocava em causa o sentimento de autonomia, liberdade e sensação de segurança dos ofendidos.

75- Ao ouvir as expressões supra referidas dirigidas pelo arguido, AA e BB ficaram receosos, temendo que aquele viesse, num futuro próximo, em concretização das aludidas ameaças, a atentar contra a sua integridade física e mesmo contra as suas vidas.

76- Com as condutas supra descritas, o arguido quis e conseguiu provocar medo e inquietação a seus pais, prejudicando a sua liberdade de determinação, o que concretizou, chegando estes últimos a recear pela sua integridade física e até pela sua vida, bem sabendo que o fazia contra a vontade daqueles.

77- Actuou ainda o arguido com o propósito concretizado de atingir AA na sua honra, consideração e dignidade.

78- O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal».

Em sede de motivação da matéria de facto, o tribunal explicita que:

«(…) o Tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria de facto, no que concerne aos factos pelos quais vinha o arguido acusado, na confissão quase integral e sem reservas deste. Refira-se que, face ao relatório pericial psiquiátrico junto aos autos (cf. fls. 669 a 682), não se colocam dúvidas sobre o carácter livre e esclarecido da confissão que fez, pelo que se deram como provados os factos constantes da acusação. O arguido apenas não admitiu ter batido com um pau de vassoura na sua mãe (art. 54 da acusação), mas resulta das declarações para memória futura prestadas por esta que tal sucedeu».

(…)

Finalmente os factos relativos ao seu perfil psicológico/psiquiátrico resultaram do relatório pericial de fls. 669 a 682, que conclui que o arguido não é inimputável, mas, em virtude da deficiência mental de que sofre, agravada pelo consumo regular e dependência de canabinóides e abuso de álcool, apresentava capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude dos seus actos e para se determinar de acordo com essa avaliação».

Mais à frente, aquando da operação da determinação da medida da pena, deixa escrito o seguinte quando se refere aos factores determinantes para tal operação:

«d) A condição pessoal do arguido e a sua situação económica, vertidas nos factos provados, dos quais se pode concluir que:

- O arguido desde cedo consumiu estupefacientes, abusando ainda de bebidas alcoólicas. Padece de um atraso mental, sendo-lhe difícil controlar os seus impulsos, mas é considerado imputável, ainda que se possa considerar uma diminuição da imputabilidade. Porém, como doutamente salienta o Supremo Tribunal de Justiça: “A conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem correspondência na lei penal vigente. O art. 20.º, n.ºs 2 e 3, do CP prevêem casos em que apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do n.º 1). Trata-se de situações de imputabilidade duvidosa. Os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20.º do CP. Se o tribunal considerar o agente imputável, estamos perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. Na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponde uma pena necessariamente mais grave.” Assim, no caso dos autos, face à gravidade global dos factos, tal eventual diminuição de imputabilidade acaba por ser irrelevante».

A defesa entende que a anomalia psíquica de que o arguido CC padece é passível de integrar os pressupostos do artigo 20.º[7] n.º 1 do Código Penal.

O tribunal não concordou com essa conclusão, declarando o CC imputável.

Note-se que seria de boa prática processual o tribunal ter dissertado sobre a questão da imputabilidade/inimputabilidade/imputabilidade diminuída do arguido, não na fase da determinação da medida da pena (no Direito), mas no segmento do sentenciado referente à apreciação da matéria de facto e sua fundamentação (pois a questão da imputabilidade passa, antes de mais, pelos factos, retirando-se depois a conclusão jurídica face aos factos tidos como provados).

É verdade que o não fez no local adequado mas concluiu sem sombra de dúvida pela imputabilidade do arguido.

Analisemos mais demoradamente a questão no ponto seguinte.


3.1.7. A questão da imputabilidade criminal do arguido

Foi devidamente declarado imputável o CC?

Ou deveria antes ter sido considerado inimputável, ao abrigo dos artigos 20º e 91º do CP, tal como pretende a defesa?

A verdade é que nunca até à fase do recurso a defesa impugnou o teor dos dois relatórios periciais constantes dos autos.

E poderia tê-lo feito, aditando quesitos complementares ou requerendo respostas mais fundamentadas e esclarecedoras.

E a verdade é que nunca o relatório psiquiátrico, ao quesito sobre esta imputabilidade penal, responde que o CC deve ser considerado inimputável.

Diz apenas:

Daqui não se retira qualquer declaração pericial de inimputabilidade penal, como é bem de ver.

Seguimos aqui de perto o sentenciado por Helena Bolieiro no seu acórdão desta Relação, datado de 23/5/2018 (Pº 198/12.5GAOFR.C1):

«(…) Estamos, pois, perante uma situação que o julgador considerou ser de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, prevista no artigo 20.º do Código Penal, a qual, como é sabido, obsta à condenação do agente com base na culpa, face à incapacidade de no momento da prática do facto avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com tal avaliação.

Verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).

Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.

Assim, para o apontado juízo de inimputabilidade não basta a comprovação do substrato biopsicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto.

Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída pressupõe, em sede de apuramento factual, a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integra o apontado conceito de anomalia psíquica, na medida em que o mesmo tem por base factos cuja percepção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.

Por sua vez, cabe ao tribunal efectuar a comprovação do elemento normativo da inimputabilidade, ajuizando da verificação do nexo de relação causal entre a anomalia psíquica detectada e o facto concreto praticado, a partir dos elementos científicos fornecidos pela perícia que constituem, assim, contributos essenciais para tal tarefa decisória. Cf. Pedro Soares de Albergaria, “Aspectos judiciários da problemática da inimputabilidade”, in RPCC, Ano 14 (2004), n.º 3, págs.384-385.

Neste contexto, como se assinala no Acórdão da Relação de Évora de 20-05-2010 Aresto proferido no processo n.º 401/07.3GDSTB-A.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>., existe “consenso doutrinal quanto a caber à perícia psiquiátrica a percepção e apreciação dos elementos relevantes para a decisão sobre a verificação, ou não, do chamado elemento biopsicológico da inimputabilidade, ou seja, no essencial, a verificação de anomalia psíquica (ou anomalia psíquica grave não acidental, para efeitos do disposto no art. 20º nº2 do CP), cabendo ao tribunal decidir plenamente sobre a verificação do chamado elemento normativo da inimputabilidade, decidindo se o arguido é ou não inimputável por considerar, ou não, que, naquele caso concreto, o arguido não foi capaz de avaliar a ilicitude do seu acto ou de se determinar de acordo com tal avaliação mercê da anomalia psíquica de que padecia no momento do facto”.

Nas palavras de Figueiredo Dias, também citado no referido aresto, «na caracterização deste substrato biopsicológico, da sua gravidade e intensidade, a primeira e mais importante palavra pertence aos peritos das ciências do homem, sendo aí diminuta, para não dizer nula, a capacidade de crítica material por parte do juiz. (…) À luz do paradigma emergente nas ciências do homem, a distinção entre modos de actuação “compreensíveis” segundo o sentido” e modos de actuação só “causalmente explicáveis” é cientificamente aceitável e dominável pelos peritos. Por isso deve esperar-se destes um auxílio decisivo para o juiz também quanto à comprovação do elemento normativo; aqui, porém, a última palavra pertencerá sempre ao juiz e a sua capacidade de crítica material será irrestrita nesta parte e medida continuando a caber-lhe com justeza o cognome de peritus peritorum». Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs.573-574.

Como acima foi dito, a declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.

Contudo, se agente do facto ilícito típico declarado inimputável revelar um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança, dentro dos pressupostos estabelecidos no artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal, o qual dispõe o seguinte:

«Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».

Temos, assim, que a aplicação de uma medida segurança de internamento depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- prática de um facto ilícito típico (crime);

- inimputabilidade por anomalia psíquica do agente; e

- formulação de um juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faça supor o cometimento de outros factos da mesma espécie.

Em relação ao último requisito indicado, assinalam Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques que o juízo de perigosidade corresponde a uma prognose desfavorável em que ocorre “uma acentuada possibilidade de que o agente volte a praticar factos típicos, derivada da consideração conjunta da anomalia psíquica, da natureza e da gravidade do facto típico praticado”. Cf. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 5.ª ed., Rei dos Livros, 2016, pág.319.

Por outro lado, como sublinhou a Comissão de Revisão do Código Penal, “uma medida de segurança só pode ser aplicada (imposta) para salvaguarda de um interesse público preponderante”, tendo presente que esta matéria é dominada por um princípio de proporcionalidade acolhido no texto constitucional e no Código português, pelo que a medida de internamento deve ter uma correlação com a gravidade do facto praticado.

Gravidade essa a apurar, não em função de uma determinada moldura abstracta da pena, mas segundo o relevo da lesão social verificada. Em suma, a medida de segurança não se destina a casos insignificantes e exige-se sempre o respeito pela proporcionalidade. Cf. Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão (Acta n.º 11, intervenção de Figueiredo Dias), Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pág.121.

Dando concretização às apontadas exigências constitucionais de proporcionalidade, corolário do princípio da menor intervenção possível (cf. artigos 18.°, 27.° e 30.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), o artigo 98.º do Código Penal estabelece no seu n.º 1 que o tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida. Neste caso a decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º do Código Penal, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados (artigo 98.º, n.º 3), para além de ser colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º do Código Penal, que prevêem, respectivamente, a suspensão com regime de prova e o plano de reinserção social (artigo 98.º, n.º 3).

A aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, no sentido de que uma medida não deve ser aplicada quando outras menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente. Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimp., Coimbra Editora, 2009, pág.446.

Assim sendo, quando a suspensão prevista no citado artigo 98.º é susceptível de oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito, constitui poder-dever do julgador determinar a sua aplicação, se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a sua finalidade que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via de adequada intervenção terapêutica em meio aberto (cf. artigo 30.º, n.º 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa).

Ou seja, nos casos em que os pressupostos formais enunciados no artigo 98.º do Código Penal se mostrem preenchidos, deve o julgador privilegiar este regime que assegura a protecção comunitária face à perigosidade do agente, sempre que mostre verificada observada a exigência básica de ordem material correspondente à expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento. Cf. Acórdão do STJ de 03-11-2003 proferido no processo n.º 03P2016 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. Cf. ainda o Acórdão da Relação do Porto de 09-03-2011, proferido no processo n.º 44/07.1GABTC.P1 e disponível no mesmo sítio da Internet».

                        Todas as perícias realizadas apontam para uma deficiência intelectual ligeira (note-se que o tribunal considerou o arguido conscientemente confesso, não duvidando que ele bem compreendeu todas as perguntas que lhe foram feitas em sede de factualidade, aceitando o seu dolo e a consciência da ilicitude das suas práticas violentas para com os pais).

Este Tribunal de recurso foi ouvir o seu depoimento em audiência e em 1º interrogatório e as suas respostas pareceram-nos consequentes e situadas no tempo e no espaço, com absoluta lógica.

Por isso, se deram como provados os factos 70 a 78.

Relativamente ao seu estado psíquico, temos apenas isto:

Isto não é a declaração de nenhuma inimputabilidade que exclua categoricamente a culpa do agente (artigo 20º, n.º 1 do CP).

            Também não é uma mera e inequívoca imputabilidade penal (artigo 14º do CP).

            É, afinal, um caso a que poderá ter aplicação o n.º 2 do artigo 20º do CP.

            Adianta tal normativo que:
· «2. Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída».

Será aquilo a que se convencionou chamar de «imputabilidade diminuída».

Esta é a imputabilidade diminuída proveniente de anomalia psíquica grave, cujos efeitos o sujeito não domina sem que por isso possa ser censurado, ou seja, aqueles em que o sujeito será particularmente perigoso.

Ora, entende-se assim que a anomalia psíquica pode ser tal que tenha como efeito não o desencadeamento da incapacidade do sujeito para avaliar a ilicitude do facto e para se determinar de acordo com essa avaliação, mas uma capacidade ainda subsistente, embora em grau sensivelmente diminuído.

De acordo com Germano Marques da Silva, é possível distinguir duas situações da diminuição da imputabilidade: a redução da capacidade de compreensão do injusto e a redução da capacidade de autodeterminação.

O autor continua relatando que se a primeira acarreta necessariamente a segunda, o inverso não corresponde à verdade.

Isto acontece, na medida em que, algumas vezes, indivíduos portadores de certas
psiconeuroses, têm plena consciência do que fazem e conseguem compreender a
ilicitude dos seus atos, contudo não podem ou têm dificuldades em evitá-los.

Também Roxin partilha da mesma opinião, referindo que a imputabilidade
sensivelmente diminuída não é nenhuma forma de semi-imputabilidade, mas sim nada
mais que um caso de imputabilidade, uma vez que o sujeito possui a capacidade de
compreender o facto ilícito e de actuar conforme essa compreensão.

Prossegue que a capacidade de controlo é um conceito gradual e que o sujeito pode estar mais ou menos susceptível de se motivar pela norma e respeitá-la. Como consequência disso,
quando existir uma capacidade de controlo substancialmente reduzida, por regra a
culpabilidade também irá diminuir.

Américo Taipa de Carvalho apresenta-nos algumas soluções de como deverá ser resolvido, em termos de consequências jurídicas, o crime praticado pelo semi-imputável de acordo com o n.º 2 e 3 do art. 20.º do Código Penal.

Em primeiro lugar, poderá decidir-se pela declaração do sujeito como inimputável e, neste caso, a consequência aplicada só pode ser, no máximo, uma medida de segurança.

É para aí que caminha o n.º 2 do artigo 20º do CP – considera-se o arguido inimputável.

No entanto, a aplicação de uma medida de segurança privativa da liberdade acarreta alguns problemas e, aqui, o principal seria o da determinação da duração máxima da medida de segurança, que não pode ultrapassar o tempo da pena concreta que seria aplicada ao infrator se ele fosse considerado imputável.

Caso o limite máximo da medida de segurança ultrapasse a medida da pena concreta
verificar-se-ia uma violação do princípio constitucional da proporcionalidade.

A segunda hipótese de resolução seria a da aplicação de uma pena e de uma
medida de segurança.

A pena tinha de ser atenuada em função da diminuição da imputabilidade e da culpa e a medida de segurança deveria ser selecionada de acordo com a perigosidade decorrente da anomalia psíquica.

No entanto, para que isto possa suceder é necessário que não se verifiquem os pressupostos do art. 83.º, n.º 1 ou do art. 84.º, n.º 1 do CP, existindo, assim, um delinquente por tendência, pois neste caso, o tribunal teria de aplicar uma pena relativamente indeterminada ao agente.

A terceira hipótese seria a da aplicação exclusiva de uma pena e, neste sentido,
em função do princípio da culpa como limite máximo da pena, esta teria de ser
sensivelmente atenuada.

Também Carlota Pizarro de Almeida refere que a figura do imputável diminuído é complexa, na medida em que ele ou é imputável ou inimputável.

Se for considerada a imputabilidade como capacidade de culpa, então o que pode ser
diminuída é a culpa e não a capacidade desta.

É, de facto, esta uma questão complexa, podendo a anomalia psíquica não anular completamente a capacidade de compreensão ou de autodeterminação do sujeito, antes a diminuindo.

Por isso, o legislador ofereceu ao juiz uma norma flexível, que lhe permite optar pela imputabilidade [caso em que a imputabilidade diminuída vai influenciar na determinação da pena (art. 71.º)] ou inimputabilidade do sujeito (sendo-lhe aplicada uma medida de segurança, de acordo
com o art. 91.º).

Assim, uma de três:

1º- Ou temos uma perfeita e inequívoca imputabilidade – artigo 14º do CP;

2º- Ou temos uma inequívoca inimputabilidade por anomalia psíquica (artigo 20º, n.º 1 do CP) - para que um agente seja considerado inimputável, de acordo com o artigo
20.º n.º1 do CP, é necessário que ele sofra uma anomalia psíquica, de tal forma grave
que, no momento da prática do facto, o impeça de compreender/avaliar a ilicitude do facto ou
de se determinar em conformidade com essa avaliação;

3º- Ou temos uma anomalia psíquica grave que pode acarretar dois juízos sentenciais:
· 3.1. a declaração de uma inimputabilidade, ao abrigo do n.º 2 do artigo 20º do CP; [não uma inimputabilidade “natural” mas uma inimputabilidade jurídica ou, como nos indica Elisabete Monteiro, uma “inimputabilidade fictícia” ou ainda, na expressão de Carlota Pizarro de Almeida, uma “inimputabilidade artificial”, referindo-se a ela Figueiredo Dias como situações de “imputabilidade duvidosa”[8]]; OU
· 3.2. a declaração de uma imputabilidade diminuída.

O actual artigo 20.º n.º 2 do CP é uma norma que vai possibilitar ao julgador duas
alternativas.

Após a avaliação da situação concreta, o juiz pode, comprovada a existência de
uma anomalia psíquica do agente e afectando esta a capacidade para o mesmo poder avaliar a
ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com a mesma, tornando-a sensivelmente
diminuída,
considerar o agente como imputável (diminuído) ou antes declará-lo como
inimputável.

No mesmo sentido se pronuncia Figueiredo Dias que indica que o artigo
20º/2 se trata de uma norma flexível, permitindo ao juiz “em casos graves e não acidentais
– em casos, portanto, em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida
do existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante
a compreensão das conexões objectivas e subjectivas por parte do agente.

A imputabilidade diminuída, aludida em 3.2., não é objecto de qualquer preceito legal no Código Penal vigente, quer a nível de definição quer a nível de efeitos que podem surgir com a sua
aplicação.

Os autores definem-na como o “resultado de uma anomalia psíquica, cujos efeitos, no momento da prática do facto, se traduzem numa diminuição da capacidade de avaliação da ilicitude do facto ou de determinação de acordo com essa avaliação” (cfr. Monteiro, Elisabete Amarelo – Crime de Homicídio Qualificado e Imputabilidade Diminuída, p.104).

A anomalia psíquica pode ser uma tal que tenha como efeito normativo, não a
incapacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com
essa avaliação, mas uma capacidade, ainda que existente, em grau sensivelmente diminuído.

O acórdão desta Relação de 18/9/2019 (Pº 118/18.3JALRA.C1) é claro quanto aos limites de aplicação do n.º 2 do artigo 20º do CP, e nós com ele:

«Do ponto de vista de puro legalismo, a opção entre imputabilidade e inimputabilidade será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não ser censurado por não dominar (falta de controlo) os efeitos da anomalia psíquica.

(…)

À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode determinar uma culpa agravada, como uma culpa atenuada, tudo dependendo dos traços de personalidade do agente reflectidos no facto».
· Na realidade, segundo o disposto no nº 2 do art. 20º do CP, se o tribunal considerar que o agente, por força de uma anomalia psíquica grave, não domina os efeitos da mesma, sem por isso poder ser censurado, tendo porém a capacidade de avaliação e de determinação sensivelmente diminuída, o foro poderá declarar o agente inimputável.
Não diz, porém, o preceito qual a decisão a tomar se o agente for julgado imputável.
É incontestável que à imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave.
Conforme se refere no acórdão do STJ de 3.7.2014 (proc. 354/12.6GASXL.L1.S1, em www.dgsi.pt), «os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20º do CP. No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação especial da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave».
No caso da imputabilidade diminuída (há quem lhe chame atenuada), o agente pode, assim, ser declarado imputável e condenado em pena se esta sanção puder ainda satisfazer as exigências de prevenção especial que se façam sentir no caso concreto.
Mas já é declarado inimputável, sendo-lhe aplicável uma medida de segurança, se as exigências de prevenção especial puderem ser satisfeitas de forma mais eficaz e adequada através da aplicação desta sanção, desde logo porque mais vocacionada para o necessário tratamento psiquiátrico.
Na douta e avisada enumeração de Paulo Pinto de Albuquerque, na sua anotação ao artigo 20º:
O agente imputável diminuído:
· 1º- pode ser sancionado com uma medida de segurança quando seja declarado como inimputável e perigoso;
· 2º- pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento prisional comum, não verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· 3º- pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento destinado a inimputáveis, verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· 4º- pode ser condenado em pena relativamente indeterminada, quando seja declarado imputável e a sua anomalia psíquica coincida com uma tendência para o crime (artigo 83º do CP);
· 5º- pode ser condenado em pena atenuada quando seja declarado imputável e não perigoso.

O nosso caso é, flagrantemente, um caso de imputabilidade diminuída, sendo mais do que correcta e lógica a conclusão pela imputabilidade do CC e não pela sua inimputabilidade, ao abrigo desse n.º 2 do artigo 20º do CP.

Na verdade, da leitura que fazemos dos relatórios periciais, uma perturbação de personalidade não surge na sequência do défice cognitivo de que padece o arguido.

Ele tem capacidade de avaliar a ilicitude, mas devido ao défice de controlo de impulsos, dificuldade em se determinar.

O facto da inteligência do arguido ter sido considerada significativamente inferior aos valores considerados normais para a população em geral não o faz, por isso, inimputável.

Ao contrário do que sustenta a defesa, a anomalia psíquica de que o arguido CC padece não é passível de integrar os pressupostos do artigo 20.º n.º 1 do CP.

Quanto muito, do n.º 2 – mas aí o tribunal optou, e nós com ele, pela sua imputabilidade, embora diminuída, fazendo uma leitura coerente e integrada entre o que leu nos relatórios periciais (e em lado algum o tribunal contrariou os juízos da prova pericial ínsitos no artigo 163º[9] do CPP, não divergindo a convicção do julgador do juízo contido nos pareceres dos peritos – considerou-se o CC como “imputável diminuído”, fazendo uma aplicação jurídica do conceito) e aquilo que viu, visto, claramente visto, na audiência de julgamento em que o arguido depôs e disse de sua justiça.

Olhando para o caso vertente, não obstante o arguido padecer de uma deficiência mental ligeira, a dinâmica dos factos, conjugada com a patologia referida, não permite considerar que a dita doença tenha afectado de algum modo a capacidade de decisão (autodeterminação) do arguido, no momento da prática daquele ilícito penal, susceptível de fundamentar juízo de inferência no sentido de o mesmo não ter conseguido dominar o desenrolar da acção e a ocorrência do resultado verificado.

Justifica-se, assim, a declaração judiciária da sua imputabilidade penal, não carecendo de qualquer sentido as explanações feitas a este propósito pela defesa em sede de recurso.

Ver-se-á, contudo, no capítulo seguinte se se justifica alguma alteração do sentenciado, em termos de pena.

 

3.1.8. Aqui chegados, e não se descortinando da decisão recorrida a existência de qualquer vício probatório, desde logo porque ela é minuciosa no exercício da análise factual e permitiu ao tribunal julgador concluir pela existência de prova quanto aos factos provados e não provados, a impugnação da matéria factual feita no recurso só pode improceder, mantendo-se o acervo probatório tal qual foi ficado pelo tribunal.

Se assim é, os factos permanecem intactos, tal como foram gizados pelo tribunal ....


3.2. SOBRE O DIREITO


3.2.1. Não está em causa a subsunção do comportamento do arguido à prática de dois crimes de violência doméstica, tendo como vítimas os seus progenitores.

Sabemos que:

O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima)

No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias)

Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada)

Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[10], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações);

Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»)

Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[11]

Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante)

Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões).

No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava os dois crimes de violência doméstica.

No caso vertente, concordamos com o tribunal recorrido ao subsumir estes factos aos crimes de violência doméstica (artigo 152º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do CP), tal a persistência e a reiteração de comportamentos ilícitos e assustadores imputados ao arguido e que colocaram os seus pais em estado de constante aflição.

3.2.2. SOBRE A MEDIDA DAS PENAS APLICADAS

3.2.2.1. Do elenco dos factos provados só pode concluir-se como se concluiu e bem, pela douta sentença recorrida, que os mesmos integram a prática de dois crimes de violência doméstica.

Perante a perfectibilização do tipo legal em causa, nos seus elementos objectivos e subjectivos (cfr., a este propósito, o artigo 14º, do CP e a dimensão necessariamente dolosa do comportamento do agente, assente que, in casu, a negligência não é punível), há que passar à operação da determinação da MEDIDA da pena a aplicar ao agente do crime (e já que a moldura penal abstracta não permite a escolha com outra qualquer modalidade de pena).

No nosso caso, a moldura abstracta do crime em causa é de pena de prisão de 2 a 5 anos.

O artigo 71º, nº 1, do Código Penal estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.

Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.

Quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, em que alguém é subjugado a uma vida de humilhações, forçado a aceitar as opiniões e as ofensas de outrem que se mostra fisicamente mais forte, num ciclo cada vez mais frequente, em termos estatísticos, e numa prática que deverá ser decisivamente afastada dos hábitos da nossa comunidade, num reforço da consciência jurídica comunitária, na qual o valor da igualdade entre cônjuges já se impõe há décadas, em termos de direito escrito.

Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma.

A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada.

O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações».

Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exata) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.

De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações:

· a)- determinação da medida abstrata da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa);

· b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do Código Penal (não aplicável in casu);

· c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respetiva, com base nos critérios do artigo 71º, do Código Penal;

· d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição;

· e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta).

Já vimos que a fase da escolha da pena é aqui inexistente pois o tipo só prevê prisão a título principal.

Determinada a concreta medida da pena principal e, tendo esta de ser sempre uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.
Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91.
O tribunal recorrido fixou a pena a aplicar ao ora arguido nos cumulados 3 anos e 9 meses de prisão, logo não passível de ser substituída por qualquer outra pena, nomeadamente, a suspensão da execução da pena (artigo 50º CP).
Justificou-se assim:
«a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas

consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente:

- No caso concreto, quanto ao crime de violência doméstica, importa referir que a actuação do arguido perdurou num período temporal de quase um ano, tendo os ofendidos sido sujeitos a diversos tipos de maus tratos psíquicos e físicos, que se podem considerar de média intensidade, englobando condutas que, se isoladamente consideradas, poderiam preencher a tipicidade dos crimes de ofensa à integridade física simples e grave, e ameaça e injúria.

b) A intensidade do dolo - que é directo, pelo que é maior a respectiva intensidade;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos que o determinaram - o arguido actuou, sabendo que as suas condutas eram proibidas, e que os atingidos eram seus pais, vivendo todos em comum. Não obstante, agiu, querendo afectá-los, como afectou, no seu bem-estar físico e psíquico, na sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais, agiu sempre de forma consciente, livre e deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas.

d) A condição pessoal do arguido e a sua situação económica, vertidas nos factos provados, dos quais se pode concluir que:

- O arguido desde cedo consumiu estupefacientes, abusando ainda de bebidas alcoólicas. Padece de um atraso mental, sendo-lhe difícil controlar os seus impulsos, mas é considerado imputável, ainda que se possa considerar uma diminuição da imputabilidade. Porém, como doutamente salienta o Supremo Tribunal de Justiça: “A conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem correspondência na lei penal vigente. O art. 20.º, n.ºs 2 e 3, do CP prevêem casos em que apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do n.º 1). Trata-se de situações de imputabilidade duvidosa. Os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20.º do CP. Se o tribunal considerar o agente imputável, estamos perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. Na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponde uma pena necessariamente mais grave.” Assim, no caso dos autos, face à gravidade global dos factos, tal eventual diminuição de imputabilidade acaba por ser irrelevante.

e) A conduta anterior aos factos e a posterior a estes, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências dos crimes:

- Quanto à sua conduta anterior, há que realçar que o arguido não tem quaisquer condenações averbadas no seu CRC.

- Em audiência de julgamento, o arguido optou por prestar declarações e confessar quase integralmente os factos. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir. No caso vertente, a confissão do arguido foi importante para prova dos factos de que vinha acusado, muito embora existam nos autos outros meios de prova que corroboram e sustentam essa factualidade.

- No entanto, nada traduz nos autos que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências dos crimes que praticou, pelo que o mesmo não demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas; é certo que o arguido declarou-se arrependido, mas a simples afirmação de arrependimento não basta.

Em suma, as considerações de prevenção geral são elevadas, uma vez que relativamente ao crime de violência doméstica em particular, há uma crescente sensibilidade social no sentido de condenar este tipo de práticas de maus tratos, denotadoras do desrespeito e da consideração que os seus agentes têm para com as vítimas.

Quanto à prevenção especial, as penas a aplicar têm de fazer sentir convenientemente ao arguido a reprovabilidade das suas condutas, condição essencial para o arguido não tornar a delinquir.

A culpa situa-se em níveis médios/altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou.

Importa ainda referir que, à data da prática dos factos, o arguido tinha menos de 21 anos de idade (19), pelo há que ponderar a aplicação da atenuação especial, prevista no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

«“Aos objectivos perseguidos com este regime legal, subjazem relevantes interesses públicos de justiça e de política criminal, relacionados com as conhecidas características das fases de desenvolvimento dos jovens nesse patamar etário, que integram períodos de intensa reorganização dialética, implicando frequente vulnerabilidade biológica, psíquica e social.

Vulnerabilidade que sublinha a importância, no interesse individual e comunitário, de se tentar proporcionar ao jovem, tanto quanto possível uma moratória de ajustamento social, facilitando e promovendo condições de ressocialização responsabilizante, mas com o menor risco possível de estigmatização.

O que passa pela cautela de não se encarar a reacção à passagem ao acto em função da consideração excessiva do plano do desvalor objectivo desse acto, esquecendo as referidas características de quem não se encontra ainda numa fase de suficiente maturidade, tendo por isso acrescidas virtualidades de ressocialização, as quais constituem vantagem que é premente tentar aproveitar não só em beneficio do jovem mas também visando o sempre muito relevante aspecto dos interesses fundamentais da comunidade”, cfr. Ac. STJ de 1.3.2000, in CJ, S, I, 219, relator Armando Leandro.

A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos não constitui, pois, uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve, tem de, usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o de determinar se pode ser formulado um juízo de prognose benigno quanto às expectativas de reinserção de um jovem e no caso concreto de ser aplicável pena de prisão, por força do citado artigo 4.º determina que a pena deve ser especialmente atenuada sempre que o juiz tiver “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”.

“A aplicação do regime que consiste na atenuação especial da pena quando seja aplicável pena de prisão depende, pois, do juízo que possa/deva, ser formulado relativamente às condições do jovem arguido, e deve ser positivo quando as diversas variáveis a considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação) permitam uma prognose favorável - ou, com maior rigor, não impeçam uma prognose favorável- sobre o futuro desempenho da personalidade”, cfr. Ac STJ de 7.11.2007, consultável no site da dgsi.

Salvaguardadas que sejam, naturalmente, as exigências de prevenção geral ligadas à protecção de bens jurídicos, deve-se ponderar, no entanto a importância fundamental que para essa protecção assume a reinserção do agente.

O que deve ser avaliado em cada caso, na ponderação adequada das aludidas finalidades da pena, por forma a que quando for de concluir resultar aquele excesso da determinação da pena concreta no quadro da moldura penal abstracta, se opte em obediência ao espírito da disposição do artigo 4º, pela atenuação especial, nos termos do artigo 73º.

(…)

E, assim, a sua aplicação, resultará não só, obrigatória, não constituindo uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado, que tem de usar sempre que admita, como uma razoabilidade evidente, que dele possam resultar vantagens para a ressocialização do jovem agente.

E oficiosa, pois que para decidir sobre a sua aplicação, o tribunal, independentemente do pedido ou, mesmo, da colaboração do interessado, tem de proceder, autonomamente, às diligências e à recolha de elementos que considere necessários para avaliar da verificação dos respectivos pressupostos.

Obviamente que esta consideração abstracta terá que assentar em factos concretos que permitam a conclusão de que o jovem agente, uma vez fora da prisão, se integrará num meio envolvente propício e que se afaste de ambientes, lugares e pessoas que o poderão levar, novamente a praticar factos da mesma natureza dos praticados.

(…)

A avaliação das vantagens da atenuação especial para a reinserção do jovem tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido, e não por considerações abstractas desligadas da realidade.»

Nestes termos, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais, por um lado, mas e de forma decisiva, a notória ausência de auto sensibilização do arguido para se portar de acordo com o direito, ou pelo menos para respeitas seus pais, pois esteve institucionalizado durante um largo período da sua jovem vida por comportamentos idênticos, entendemos não ser de aplicar a referida atenuação especial, afigurando-se assim adequadas as penas de:

- 3 (três) anos de prisão para cada um dos dois crimes de violência doméstica, sob a forma consumada;

Uma vez que o arguido praticou dois crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, terá que ser condenado numa única pena- art. 77.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Estamos, pois perante um concurso de crimes, que dá origem a um concurso de penas. Neste caso “as regras da punição operam, a final, por referência a todos os crimes que deram origem a diversas penas parcelares, no sentido de se apurar uma pena conjunta.”

Para apuramento desta pena, ter-se-ão em conta os factos e a personalidade do agente e a medida da pena situa-se entre a soma das penas concretas, aplicadas aos vários crimes e a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes- cf. art. 77.º, n.º 1 e n.º 2 do referido Código.

No caso dos autos, temos então uma moldura penal de 3 (três) anos de prisão, correspondente a um dos crimes de violência doméstica em causa, a 6 (seis) anos.

Considerando a personalidade do arguido, bem como a moldura penal referida e as demais circunstâncias supra descritas, entendemos como adequada a pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão».

Depois, o tribunal entendeu não suspender a execução desta pena de prisão.

Assim se explicou:

«No caso vertente, entendemos que as condições de vida do arguido, a sua postura anterior, contemporânea e posterior dos factos, não revelam ser possível fazer “...um juízo de prognose social favorável ao agente, pela fundada expectativa de que ele, considerado merecedor de confiança, há-de sentir a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir, através de vida futura ordenada e conforme à lei.” Aliás, nada nos diz que o arguido não viesse a reiterar as suas condutas, caso estivesse em liberdade.

Face a todo este circunstancialismo (designadamente a forma como o arguido praticou os crimes e a especial vulnerabilidade das suas vítimas), entende este tribunal colectivo que não pode fazer um juízo de prognose favorável, correndo um risco prudente, de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastariam para afastar o arguido da criminalidade e para satisfazer de forma adequada e suficiente as necessidades de reprovação e prevenção dos crimes por aquele praticados».

A defesa entende, que, a não ser de aplicar uma medida de segurança pela sua inimputabilidade, a pena de prisão deveria ter sido mais leve - propugna pela «aplicação de uma pena de prisão próxima do limite mínimo da moldura penal a cumprir em instituição adequada às necessidades do arguido, que acautelará de forma suficiente e adequada as finalidades da punição».

3.2.2.2. O arguido praticou estes factos quando tinha 18 e 19 anos de idade, tendo agora 21 anos, estando internado preventivamente.

Concordamos com todas as explanações feitas pelo Colectivo de ... para achar os 3 anos de prisão por cada crime, sendo ajustada a pena de cúmulo também.

Concorda-se também com a não atenuação especial da pena (cogitável face à idade do arguido e ao teor do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro) e com a não suspensão da execução desta pena de prisão (assente que o artigo 50º do CP desaconselha em absoluto tal benesse no caso vertente).

De facto, a imagem global dos factos é muito grave, revelando o arguido qualidades altamente desvaliosas face ao Direito, que não é consentâneo com um juízo de especial atenuação da pena.

É inegável não existir no caso uma acentuada diminuição de culpa que justifique uma atenuação especial da pena.

Recorde-se que a imputabilidade diminuída de que o arguido era portador só deverá ser ponderada para mitigar o (elevado) grau de culpa em sede de achamento da pena concreta a aplicar ao arguido, ponderação que foi devidamente efectuada no acórdão em análise.

E o receio de continuar a senda agressiva para com os pais é flagrante.

Este homem precisa, contudo, de ser tratado, sob o ponto de vista psiquiátrico e psicológico, relativamente à perturbação mental – ligeira - de que padece.

E achamos, sinceramente, que não será uma prisão de imputáveis o local certo para a sua reclusão.

Daí aplicarmos o artigo 104º do CP que prescreve que:

«1 - Quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.

2 - O internamento previsto no número anterior não impede a concessão de liberdade condicional nos termos do artigo 61.º, nem a colocação do delinquente em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, logo que cessar a causa determinante do internamento».

Assim sendo, manteremos tais penas de prisão – quer as penas parcelares, quer a pena de cúmulo - nos seus exactos termos, aplicando, contudo, o artigo 104º do CP, na sequência aliás do doutamente prescrito por esta Relação aquando da prolação do acórdão referente à medida de coacção entretanto aplicada ao arguido (por aresto datado de 9/6/2021, foi decidido aplicar ao arguido, no âmbito destes autos, a medida de coacção de internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro análogo adequado, tendo o arguido sido conduzido em 29/6/2021 ao Hospital ..., onde se encontra actualmente).

De facto, vamos entender que tudo converge no sentido de considerar que este rapaz, hoje homem, necessita de um contexto de reclusão diferenciado relativamente ao sistema prisional tradicional, já que a sua debilidade mental, preexistente ao tempo do crime, revela que o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial.

Assim se evitarão os «perigos de prejuízos de carácter penitenciário», na feliz expressão de Beleza dos Santos (vide RLJ 73º/338) – trata-se de uma anomalia psíquica contemporânea do crime mas que não tem o efeito de causar a inimputabilidade do agente, sendo de aplicar preferencialmente às situações de imputabilidade diminuída, como é o caso dos autos (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 1ª edição, p. 307).

Este internamento não depende do consentimento do arguido, não sendo este internamento uma medida de segurança mas uma pena (o internamento não tem qualquer consequência na duração da pena).

Como atesta o acórdão do STJ de 16.6.2021 (Pº 35/20.7PJOER.L1.S1):

«Nos termos da lei, o arguido imputável condenado em pena de prisão pode, verificadas as condições estabelecidas nos arts. 104º e 105º do Cód. Penal, cumprir a pena aplicada, internado em estabelecimento destinado a inimputáveis. Quando o tribunal assim decrete, o arguido ingressa no estabelecimento oficial para cumprimento de medidas de segurança e nele se mantém enquanto não cessar a causa que determinou o internamento, com o limite decorrente da medida da pena concretamente aplicada. Se durante o internamento cessar a causa que o fundamentou, o condenado é transferido para estabelecimento prisional comum para cumprir o remanescente da pena de prisão imposta na decisão condenatória.

A lei distingue a anomalia psíquica anterior, que o arguido “sofria já ao tempo do crime” e a posterior, aquela que “sobrevier ao agente depois da prática do crime”. A diferença é que neste caso, se a anomalia psíquica não tornar o arguido criminalmente perigoso, o tribunal pode determinar a suspensão da execução da pena de prisão até cessar o estado que a fundamentou. Sendo o tempo de suspensão descontado na pena aplicada.

Ademais da imputabilidade diminuída do arguido, adveniente de anomalia psíquica que padece nos termos referidos, é pressuposto insuperável demonstrar-se que o cumprimento da pena em estabelecimento prisional comum lhe seria prejudicial ou seria por ele gravemente perturbado.

Trata-se, em suma, de situações em que o condenado revela incapacidade de compreender o sentido da pena aplicada.

(…) o regime agora em análise não redunda na aplicação de medida de segurança de internamento. Trata-se, isso sim, de um regime de cumprimento da pena de prisão decretada em decisão judicial condenatória. O que justifica o internamento em estabelecimento para inimputáveis é tão-somente o prejuízo para o regime penitenciário comum adveniente de receber condenado incapaz de compreender o sentido da sua reclusão ou capaz de perturbar seriamente a vivência do meio prisional e a finalidade que deve orientar o cumprimento de pena em meio carcerário».

Na realidade, a finalidade da instituição deste regime é a de permitir a escolha de uma pena mais individualizada através de uma forma específica de execução da pena, em condições que permitam a disponibilidade de tratamentos adequados ao estado de saúde mental do condenado.

Para que o tribunal decrete a medida de internamento prevista no artigo 104º do CP é necessária a existência de uma anomalia psíquica ao tempo de crime, que, não determinando a inimputabilidade, torne o regime dos estabelecimentos comuns prejudicial ao condenado: que seja causa de inadaptação com a consequente perturbação do funcionamento do estabelecimento.
O primeiro pressuposto é de verificação efectiva: a anomalia psíquica deve existir ao tempo de crime e deve ser verificada e comprovada; não impedindo a efectivação da responsabilidade criminal e a aplicação de uma pena de prisão, deve ser de tal natureza que determine as dificuldades de execução da pena a que o internamento previsto pretende responder.
As situações que cabem na previsão da norma são referidas aos casos usualmente designados de imputabilidade diminuída.
Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal, III, 2ª ed. rev. e act., pg. 56 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.1.97, na CJ (STJ) Ano V, t. 1, pg. 172 - opina mesmo que “a dificuldade de adaptação ou de compreensão do regime dos estabelecimentos comuns não constitui, no plano dos pressupostos, uma consideração de partida; apenas intervém se tiver sido verificado, através dos meios processualmente adequados e com o necessário auxílio pericial, que o arguido sofre de afecção psíquica que lhe diminui a imputabilidade, e que, em consequência da afecção é a medida de internamento que se mostra adequada, permitindo a individualização da execução, com a possibilidade, efectiva e de melhor prognóstico, de beneficiar de tratamento e intervenção terapêutica”.
No nosso caso, olhando até para o teor dos relatórios periciais insertos nos autos e ao que ficou provado no facto n.º 69, parece-nos que estão perfectibilizadas as condições para a aplicação directa do artigo 104º do CP, aproveitando-se muito do trabalho terapêutico que, com toda a certeza, já terá sido iniciado no seu internamento preventivo desde Junho de 2021 no Hospital ... (cfr. factos n.ºs 90 e 91 e ainda os artigos 126º a 132º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade).

3.3. Face ao exposto, só resta considerar que não foram violados no acórdão recorrido os artigos 29.º n.º 1 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, e, ainda, os artigos 20.º, 40.º nº s 1 e 2, 41.º, 50.º, 70.º, 71.º, 91.º n.º 1 e 152.º n.º 1 alínea d), n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, todos do CP, e o artigo 163º do CPP, ao contrário do que se defende no recurso.

Desta forma, este recurso só procederá parcialmente devido ao facto de aplicarmos o artigo 104º do CP quanto à natureza do estabelecimento onde deve o arguido cumprir a sua justa reclusão, mantendo-se no demais tudo o que foi decidido pelo acórdão recorrido[12].

3.4. Em sumário, diremos:

1º- No artigo 20º, n.º 2 do CP, o legislador ofereceu ao juiz uma norma flexível, que lhe permite optar pela imputabilidade [caso em que a imputabilidade diminuída vai influenciar na determinação da pena (art. 71.º)] ou pela inimputabilidade do sujeito (sendo-lhe aplicada uma medida de segurança, de acordo com o art. 91.º).

2º- Assim, uma de três:
· Ou temos uma perfeita e inequívoca imputabilidade – artigo 14º do CP;
· Ou temos uma inequívoca inimputabilidade por anomalia psíquica (artigo 20º, n.º 1 do CP) - para que um agente seja considerado inimputável, de acordo com o artigo 20.º n.º1 do CP, é necessário que ele sofra uma anomalia psíquica, de tal forma grave que, no momento da prática do facto, o impeça de compreender/avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar em conformidade com essa avaliação;
· Ou temos uma anomalia psíquica grave que pode acarretar dois juízos sentenciais:
o a declaração de uma inimputabilidade, ao abrigo do n.º 2 do artigo 20º do CP; [não uma inimputabilidade “natural” mas uma inimputabilidade jurídica ou, como nos indica Elisabete Monteiro, uma “inimputabilidade fictícia” ou ainda, na expressão de Carlota Pizarro de Almeida, uma “inimputabilidade artificial”, referindo-se a ela Figueiredo Dias como situações de “imputabilidade duvidosa”]; OU
o a declaração de uma imputabilidade diminuída.

3º- A imputabilidade diminuída não é objecto de qualquer preceito legal no Código Penal vigente, quer a nível de definição, quer a nível de efeitos que podem surgir com a sua aplicação.

4º- À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída - ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente reflectidas no facto.
5º- Em suma, o agente imputável diminuído:
· pode ser sancionado com uma medida de segurança quando seja declarado como inimputável e perigoso;
· pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento prisional comum, não verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento destinado a inimputáveis, verificados os pressupostos do artigo 104º do CP;
· pode ser condenado em pena relativamente indeterminada, quando seja declarado imputável e a sua anomalia psíquica coincida com uma tendência para o crime (artigo 83º do CP);
· pode ser condenado em pena atenuada quando seja declarado imputável e não perigoso.

III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente provido o recurso intentado e, em consequência, mantêm a condenação do arguido CC, pela prática, em autoria material, concurso real e sob a forma consumada, de dois crimes de violência doméstica previsto e punido no art.º 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) e n.ºs 4, 5 do Código Penal (tendo por vítimas seus pais AA e BB), na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles, mantendo-se também a condenação, por cúmulo jurídico, em 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se não suspende.

            Esta pena deverá ser, contudo, cumprida em internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração dessa pena de 3 anos e 9 meses (artigo 104º, n.º 1 do CP).

           

Sem custas, face à procedência parcial do recurso (cfr. artigo 513º/1 do CPP, a contrario sensu).



Coimbra, 31 de Agosto de 2022

Em turno
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94.º, n.º 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

Paulo Guerra (Relator)

Maria José Guerra (Adjunta)

Maria José Matos (Adjunta)

[1] Este facto surge incompleto, compreendendo-se, todavia, o seu sentido, em compatibilização com o teor do facto n.º 90.
[2] Não desconhecemos o teor do recente aresto do Tribunal Constitucional n.º 685/2020, de 26/11/2020 que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da impugnação daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência.
Contudo, essa situação em nada se parece com a presente em que nem sequer no corpo da motivação foi dado mínimo cumprimento ao estatuído nesse artigo 412º. E se assim é caímos no terreno de outros acórdãos do Tribunal Constitucional que decidiram pela não inconstitucionalidade, como se deixa escrito no 685/2020: «Acresce que, no caso sub iudicio, não se verifica o específico circunstancia­lismo que motivou os juízos de não inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos n.ºs 259/2002 e 140/2004 e, mais recentemente, do Acórdão n.º 660/2014, em que se decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do [CPP], interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências».
[3] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[4] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre EE, FF, EE desferiu uma bofetada no rosto de FF, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que EE tivesse dado uma bofetada no rosto de FF. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha GG, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a EE e FF, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de EE e GG, viu presencialmente FF a desferir a bofetada no rosto de FF. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (HH, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).

[5] HH é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.

Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.

Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.

Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma II de 2,05g/l.

Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97....

No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 04....

Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98...».
[6] Como bem escreve JJ no artigo «A imparcialidade do juiz do julgamento», publicado na recentíssima Revista do CEJ 2021-I, «a legitimidade da sentença penal assentará, pois, no facto de emanar do órgão jurisdicional competente, num processo equitativo e em que foram asseguradas todas as garantias de defesa. A fundamentação da sentença desempenhará, por conseguinte, a dupla função de conferir transparência à decisão, afastando o arbítrio do julgador, e de possibilitar o controlo da sua bondade, tanto pelas instâncias superiores de recurso como pela sociedade — função de convencer».
[7] Na motivação de recurso, surge por lapso o artigo 21º do CP.
[8] Pode aceitar-se como legitimo considerar a verdadeira inimputabilidade nos casos mais graves e duvidosos de imputabilidade (diminuída).
[9]O valor da prova pericial é acrescido em relação aos outros meios na medida em que «[o] juízo técnico, científico ou artístico inerente á prova pericial presume-se subtraído á livre apreciação do julgador», o qual, se dele divergir, deve fundamentar a sua discordância (artigo 163.º, n.ºs 1 e 2). 
A regra do art. 163.º do CPP é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa, apenas lhe estando vedada uma livre apreciação com apelo a «regras de experiência comum», á sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes á área artística, técnica ou científica da perícia.
[10] Cfr. E-book CEJ/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). 
[11] ... de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152.º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de KK – “... Na Jurisprudência Portuguesa”, LL, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal.
Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica.
Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma.
A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação.
Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (MM), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (NN), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (OO, PP, QQ), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, ....
Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152.º, n.º 1.
Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública».
[12] A defesa, no seu petitório, requer, em termos subsidiários, “a aplicação de uma pena de prisão próxima do limite mínimo da moldura penal a cumprir em instituição adequada às necessidades do arguido, acautelará de forma suficiente e adequada as finalidades da punição”.