Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
579/10.9TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ALIMENTOS
COMPETÊNCIA
CONSERVATÓRIA DO REGISTO CIVIL
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.1880 CC, 1412 CPC, DL Nº 272/2001 DE 13/10
Sumário: 1. - O procedimento tendente à atribuição de alimentos a filho maior ou emancipado, previsto no artigo 1880 do Código Civil, é da competência, em princípio, do conservador do registo civil.

2. - O conservador, no entanto, só tem competência decisória no caso de não haver oposição, ou, havendo-a, desde que as partes se conciliem.

3. - Mas se existir entre os interessados uma situação de conflito de ordem tal que seja de prever a inviabilidade do acordo, a competência para o processo cabe somente aos tribunais.

4. - Não basta a mera alegação do requerente de não ser previsível a conciliação para que a competência seja deferida ao tribunal, sendo necessário, antes, que ocorram elementos objectivos de onde a conclusão se possa extrair.

5. - Não se verifica tal situação de conflito, se o filho se limita a alegar que o pai se comprometeu a custear-lhe os estudos e não cumpriu.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            T (…), residente em (…) Tomar, ..., intentou acção especial de alimentos, nos termos do artigo 1412.º do Código de Processo Civil, contra seu pai, A (…), residente na (…) , em Tomar..., alegando, em resumo, que:

            No âmbito da acção de alteração da regulação do poder paternal n.º 1-A/1992, que correu seus termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, foi fixado em € 150,00 o valor mensal da pensão de alimentos a seu favor a pagar pelo requerido.

Quando fez 18 anos de idade, ingressou no mundo do trabalho, no Hospital de Tomar, altura em que foi julgada cessada a dita pensão.

Entretanto, surgiu a oportunidade de prosseguir os seus estudos, de forma a concluir um curso superior, na área da saúde, razão por que pediu o apoio económico de seu pai, que prometeu ajudar no que fosse necessário.

Deixou o emprego e ingressou no curso de medicina tradicional chinesa, em Lisboa, onde se encontra hospedada, embora se desloque ao fim de semana para Tomar, onde continua a residir com a mãe.

Despende mensalmente não menos de € 672,66 em hospedagem, propinas, transportes dentro de Lisboa, livros, fotocópias, material didáctico, Internet, luz, gás, água, telemóvel e viagens de Lisboa para Tomar e vice-versa, sendo que a carga horária das aulas não lhe permite exercer uma actividade profissional a tempo parcial.

O requerido, apesar de ter disponibilidade económica para tanto, já que é sargento da Marinha Portuguesa, e contra aquilo a que se havia comprometido, não tem vindo a contribuir para a sua formação académica.

Sem essa contribuição, não pode prosseguir os estudos, até porque sua mãe, que é cabeleireira, retira pouco mais de € 500,00 por mês e paga, no mesmo período, € 155,95 relativamente a um empréstimo bancário que contraiu para aquisição de casa própria.

Pediu, a final, que o requerido fosse condenado a pagar-lhe a quantia mensal de € 350,00 até completar a respectiva formação académica.

Conclusos os autos, foi proferido despacho que declarou a incompetência material do tribunal e absolveu o requerido da instância, sob a argumentação de que o Decreto-lei 272/2001, de 13 de Setembro[1], comete às Conservatórias do Registo Civil a competência para tramitar o processo especial de alimentos a filho maior, enquanto se não estiver demonstrado, pelo menos, que a vontade das partes é irreconciliável.

Inconformada, a requerente interpôs recurso e apresentou a sua alegação, que concluiu assim (síntese das 19 conclusões formuladas):

1) O processo especial de alimentos a filho maior, visando o disposto no artigo 1880.º do Código Civil, só deve ser apresentado na Conservatória do Registo Civil quando a vontade das partes seja conciliável;

            2) Comprovada a impossibilidade de acordo, a competência é dos Tribunais Judiciais;

            3) No caso, configura-se um verdadeiro litígio, pelo que não há qualquer utilidade em recorrer ao mecanismo de formação da vontade das partes;

            4) Foram violados os artigos 1412.º, n.º1, e 288.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, 1880.º do Código Civil e 6.º, 7.º e 8.º do Código do Registo Civil e, ainda, o decreto-lei n.º 272/2001, de 13 de Setembro[2].

Remetidos os autos a esta Relação sem ter sido dada a oportunidade ao requerido de se pronunciar, foi ordenada a sua descida à comarca, a fim de se cumprido o disposto no n.º 3 do artigo 234.º-A do Código de Processo Civil, na consideração de que o despacho recorrido era um despacho liminar de indeferimento, por ter sido proferido antes da citação e não ter recebido a petição inicial.

O requerido foi, então, citado, mas nada disse ou requereu.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É uma só a questão a resolver: saber se o tribunal judicial é, ou não, competente para conhecer da presente acção.

II. É a seguinte a matéria de facto com interesse para a decisão:

            1. A autora intentou acção especial de alimentos a filhos maiores, nos termos dos artigos 1880.º do Código Civil e 1412.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, contra o requerido, seu pai, pedindo a condenação deste no pagamento da importância mensal de € 350,00, até completar a formação académica, alegando que:

a) Ao atingir a maioridade e ingressar no mercado de trabalho, cessou a pensão de alimentos, no valor de € 150,00, a cargo do requerido, atribuída no âmbito da acção de alteração da regulação do poder paternal n.º 1-A/1992, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar.

            b) Tendo surgido a oportunidade de prosseguir os seus estudos e de concluir um curso superior, pediu o apoio económico de seu pai, que prometeu ajudar no que fosse necessário.

c) Deixou o emprego que tinha em Tomar e ingressou no curso de medicina tradicional chinesa, em Lisboa, onde se encontra hospedada, embora se desloque ao fim de semana para Tomar, onde continua a residir com a mãe, que se acha divorciada do requerido.

d) Por virtude do referido em c), despende mensalmente quantia não inferior a € 672,66, que não tem possibilidades de suportar sozinha e nem mesmo com a ajuda de sua mãe, dado que esta aufere pouco mais de € 500,00 por mês.

e) O requerido tem capacidade económica para custear os seus estudos, já que é sargento da Marinha Portuguesa, mas não o faz, apesar de se ter comprometido a isso.

2. O despacho recorrido declarou o tribunal absolutamente incompetente e absolveu o requerido da instância, argumentando que o decreto-lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, atribuiu às Conservatórias do Registo Civil a competência para o processo tendente à formação de acordo das partes, relativo ao pedido de alimentos a filhos maiores ou emancipados.

3. A pensão de alimentos referida em 1. a) resultou de acordo dos pais da ora requerente, homologado por sentença.

III. O direito:

O artigo 1880.º do Código Civil impõe que os pais continuem a suportar as despesas relativas ao sustento, segurança, saúde e educação dos filhos mesmo depois da maioridade ou da emancipação, se estes não houverem completado, ainda, a sua formação profissional e for razoável fazer-lhes essa exigência.

Até à entrada em vigor do decreto-lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, a competência para tramitar e decidir o processo relativo ao exercício do direito conferido por aquele preceito[3], cabia exclusivamente aos tribunais.

Este diploma procedeu a alterações relevantes no quadro jurídico existente, com vista, declaradamente, ao alcance do objectivo de obter a decisão em tempo útil, que passaria pela desoneração dos tribunais de processos que não configurassem um real litígio, logrando-se, dessa forma, concentrar esforços naqueles em que é efectivamente necessária a intervenção judicial (preâmbulo do mesmo).

Julgou-se útil, nessa medida, como se continua no dito preâmbulo, proceder à transferência de competências para as conservatórias de registo civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares, mas só “na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável”; de contrário, ressurge a competência do tribunal, para onde o processo terá de ser remetido para efeitos de decisão.

            Em concretização desse objectivo, criou-se o procedimento tendente à formação de acordo das partes, a correr perante o conservador do registo civil, aplicável, além do mais, aos pedidos de alimentos a filhos maiores ou emancipados, excepto se a pretensão for cumulada com outros pedidos no âmbito da mesma acção, ou constituir incidente ou dependência de acção pendente, caso em que continuará a seguir-se a tramitação prevista no Código de Processo Civil [artigo 5.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2].

            O pedido é apresentado mediante requerimento entregue na conservatória, fundamentado de facto e de direito e acompanhado das provas que o requerente tenha por necessárias. O requerido é citado para, em 15 dias, deduzir oposição e arrolar prova (n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º).

            Se não for deduzida oposição, consideram-se confessados os factos alegados pelo requerente, proferindo o conservador, caso estejam preenchidos os pressupostos legais, decisão de procedência do pedido. Havendo oposição, o conservador marca tentativa de conciliação par os 15 dias seguintes, podendo, ainda ordenar a prática de actos ou a produção de prova tendentes à verificação dos pressupostos legais (n.ºs 3, 4 e 5 do mesmo artigo).

            A oposição, seguida da impossibilidade de obtenção de acordo, determina a notificação das partes para, em 8 dias, alegarem e requererem a produção de novos meios de prova, sendo, então, o processo remetido ao tribunal competente (artigo 8.º).

            Visto o regime instituído pelo decreto-lei em referência, é possível extrair, de imediato, duas ilações: primeira, a de que o conservador só tem competência decisória no caso de não haver oposição, ou, havendo-a, desde que as partes se conciliem. A segunda, a de que a competência do tribunal só nasce com a verificação de um verdadeiro litígio.

            O fulcro da questão está em saber se o litígio tem de ser constatado pelo conservador, mormente através da frustração da tentativa de conciliação a que alude o n.º 4 do artigo 7.º do mencionado diploma – o que obrigaria sempre à instauração do procedimento tendente à formação de acordo na conservatória –, ou se pode definir-se por outro modo, de forma a ser possível recorrer à via judicial sem passar pela conservatória.

            Dito de outro modo: poderá intentar-se a acção de alimentos directamente no tribunal ou há que formular, previamente, a pretensão na conservatória do registo civil?

            Visto não ter sido atribuído ao conservador o poder de resolver conflitos, crê-se preferível o primeiro destes caminhos. Ponto é que se desenhe, sem margem para dúvida razoável, uma situação de conflitualidade aberta, previsivelmente muito difícil de ultrapassar[4].

            Não faria sentido nem teria a menor utilidade ocupar a conservatória com um processo que se sabe, à partida, estar votado ao insucesso. Seria um puro desperdício de tempo e de meios e um atentado ao princípio da celeridade processual.

            Evidentemente que não podem ser as partes, na sua subjectividade, a definir os contornos da situação de dificuldade inultrapassável de que se falou, tendo a mesma de resultar, antes, dos elementos que elas tragam ao processo.

            Não basta dizer que não há possibilidades de conciliação, sendo necessários dados concretos que o demonstrem ou o tornem, ao menos, muito provável.

            É que há que não esquecer que na base da competência material estão razões de interesse e ordem pública, que não permitem se coloque na dependência da vontade dos interessados a escolha do foro que há-de dirimir a questão.

            Regressando ao caso concreto, importa apurar se os elementos disponíveis permitem inferir a comprovada impossibilidade de acordo de que fala a recorrente.

            A resposta não pode deixar de ser negativa.

            Se bem se percebe a sua argumentação, a impossibilidade do acordo resultaria do facto de o recorrido não ter vindo a contribuir para as suas despesas com os estudos, apesar de promessas em sentido contrário.

            Mas não parece que o argumento seja relevante.

Em primeiro lugar, porque se ignoram as razões pelas quais o recorrido incumpriu a promessa (aceitando, em termos teóricos, obviamente, a alegação factual da recorrente); tanto pode ter-se tratado de uma vontade deliberada de não ajudar a filha, como de uma eventual deficiência de comunicação entre ambos. Terá voltado, de forma expressa e em definitivo, com a palavra atrás, ou, pura e simplesmente, não respondeu à filha, quando esta lhe fez chegar (suposto que o fez) o valor das despesas que a formação exigia?

Naquela hipótese, o litígio era real e dificilmente ultrapassável, justificando, em princípio, o recurso directo a tribunal; nesta, nada garante que se não tratasse de uma dificuldade financeira de momento (a que nenhuma pessoa economicamente remediada está imune) ou de uma indefinição temporária que não pudesse ser resolvida através do contacto directo entre pai e filha ou com a ajuda de mediadores.

E nada disto esclareceu a recorrente.

            Em segundo, porque o pouco que existe no processo dá conta de que o recorrido não terá levantado especiais objecções a contribuir para o sustento da filha enquanto esta foi menor, como decorre da circunstância de ter sido fixada por acordo a prestação alimentar vigente à data em que ela atingiu a maioridade.

            Se, durante a menoridade da filha, o recorrido se predispôs à conciliação para prover (em parte, pelo menos) às suas necessidades básicas, não é de excluir que o volte a fazer depois da maioridade. Por maioria de razão, até, em virtude de não estarem presentes, agora, os motivos que levam, tantas vezes, os pais ao desentendimento quando se trata de regular o poder paternal dos filhos: as mágoas de um casamento mal sucedido e, eventualmente, de um divórcio doloroso e conturbado.

            Sobretudo, se houver alguém com capacidade, experiência e conhecimento bastantes para liderar o processo e que saiba aproveitar a afectividade conatural ao relacionamento pai/filha para aproximar posições talvez não muito distanciadas.

            Como quer que seja, nada há nos autos que possa ser visto como um obstáculo intransponível ao entendimento entre a recorrente e o recorrido, seja ao nível da matéria de facto alegada, onde aquela não vai além da invocação das promessas não cumpridas, seja no plano da prova documental.

            Do que deflui que se não configura, no caso, uma situação de verdadeiro litígio, pelo que não é legalmente admissível o afastamento da fase de formação de acordo das partes, a ter lugar perante o conservador do registo civil.

            O recurso terá, assim, de improceder.

            IV. Sumário:

           

            1) O procedimento tendente à atribuição de alimentos a filho maior ou emancipado, previsto no artigo 1880.º do Código Civil, é da competência, em princípio, do conservador do registo civil.

            2) O conservador, no entanto, só tem competência decisória no caso de não haver oposição, ou, havendo-a, desde que as partes se conciliem.

            3) Mas se existir entre os interessados uma situação de conflito de ordem tal que seja de prever a inviabilidade do acordo, a competência para o processo cabe somente aos tribunais. 

            4) Não basta a mera alegação do requerente de não ser previsível a conciliação para que a competência seja deferida ao tribunal, sendo necessário, antes, que ocorram elementos objectivos de onde a conclusão se possa extrair.

            5) Não se verifica tal situação de conflito, se o filho se limita a alegar que o pai se comprometeu a custear-lhe os estudos e não cumpriu.

            V. Decisão:

            Perante o que se deixou exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por via de consequência, em confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.


[1] A indicação do mês deve-se a lapso evidente, uma vez que o diploma em causa foi publicado a 13 de Outubro.
[2] Por erro de simpatia, provavelmente, a recorrente reporta o diploma a 13 de Setembro, quando, como já se referiu, o mesmo é de 13 de Outubro.
[3] Previsto no artigo 1412.º do Código de Processo Civil.
[4] Foi a posição adoptada, por exemplo, no acórdão da Relação de Guimarães, de 01.02.2007, processo n.º 64/07-02, nos acórdãos da Relação de Lisboa, de 10.07.2008 e de 25.11.2008, processos n.ºs 5243/2008-6 e 5510/2008-1, respectivamente, e no acórdão da Relação de Coimbra, de 01.04.2009, processo n.º 49-C/1995.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.