Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
190/20.6TXCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 02/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL; ART. 13.º DA CRP
Sumário: I – O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.

II – Esta interpretação normativa não viola o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido, em 8-5-2020, que declarou perdoada, ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, a pena aplicada ao arguido P., no âmbito do processo n.º 337/18.2PTCBR.

 

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso, onde refere que:

1ª- O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2ª- O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3ª- Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4ª- Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5ª- Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

6ª- Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido P. no âmbito do Processos n.º 337/18.2PTCBR, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n. º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º 1, desse mesmo diploma legal.

Nestes termos, e pelos mais que V. Ex.as, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á JUSTIÇA.


*

O arguido P. respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público e pela manutenção da decisão recorrida, por considerar que o regime previsto no artigo 2º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, no que tange ao perdão da pena de prisão, em que foi convertida a pena de multa em que havia sido condenado, é-lhe directamente aplicável, sob pena de ser violado o princípio da igualdade e da unidade da ordem jurídica.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, sufragando integralmente a motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

P. foi condenado, por decisão proferida no âmbito do processo nº 337/18.2PTCBR, transitada em julgado em 10/12/2018, na pena de 119 dias de multa, por crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Por decisão transitada em julgado em 27/11/2019, foi a dita pena convertida em 79 dias de prisão subsidiária, tendo sido emitidos mandados de detenção.

O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena.

Do exame do respectivo CRC resulta que o condenado não tem qualquer outra pena de prisão para cumprir.

Em 11 de Abril de 2020 entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que 1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos. /2 – São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena. /3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única. /4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos. /5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão. /6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.

Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº 337/18.2PTCBR, não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.

No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra ainda recluído em estabelecimento prisional.

Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição actualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – pugnar que no caso dos autos não é aplicável o perdão, não se afigura constituir orientação conforme de um ponto de vista constitucional.

Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

Note-se que, neste momento e apesar da cessação do estado de emergência, ainda não foi publicado o diploma legal a que alude o art. 10º da L 9/2029, de 10 de Abril e que haverá de determinar a cessação da vigência da lei citada.

Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efectivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais – ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.

Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa – sobre o ponto de vista constitucional, mas também pragmático – é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.

Dir-se-á, todavia, que as objecções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada sejam suspensos, ficando a aguardar a cessação da vigência da L 9/2020. Dessa forma, de facto, a actual situação – legalmente impeditiva da entrada de condenados em penas iguais ou inferiores a dois anos nos estabelecimentos prisionais – deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos nessas referidas condições.

Considera-se, no entanto, que tal hipotética actuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.

Começando pela última das afirmações efectuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas se legitimou pela condição sanitária provocada pela pandemia Covid 19 e foi adoptado no contexto da declaração do estado de emergência. É certo que, entretanto, terminou o estado de emergência, mas infelizmente tal não representou o afastamento integral da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.

Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adopção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país – e particularmente o de espaços públicos como as prisões – manterá a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

Por outro lado, a sustação e adiamento da emissão dos mandados de detenção são práticas passíveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do principio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respectiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso. Ora tal prática não pode, em caso algum, ser admitida.

Sempre se dirá ainda que também não faz qualquer sentido deter e conduzir a estabelecimento prisional condenados na situação daquele em causa nos autos, pois nesse momento já se encontrariam na situação de “reclusos” a quem então poderia ser aplicado o perdão previsto na L 9/2020 de 10 de Abril, ainda vigente.

Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.

Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 337/18.2PTCBR, perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infracção, acrescerá à agora perdoada.

Notifique.

Comunique ao registo criminal.


***

APRECIANDO

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, no presente recurso, a questão  suscitada consiste em saber se o perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, deve ser aplicado tão só a condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor que sejam reclusos (ou seja, que se encontrem em cumprimento de pena efectiva no EP), excluindo os condenados que ainda não tenham essa qualidade, ou seja, ainda não tenham ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.


*

Considera o despacho recorrido que o perdão sob condição resolutiva (de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada), concedido pela Lei n.º 9/2020 (art. 2º), de 10 de Abril, é aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor da referida Lei.

Contrariamente, o recorrente/Ministério Público entende que tal perdão só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

Vejamos,

A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, criou um Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

E, uma das medidas estabelecidas pela Lei foi um perdão parcial de penas de prisão [art. 1º, n.º 1, al. a)].

Assim, dispõe o artigo 2º sob a epígrafe “Perdão”:  (é nosso o sublinhado)

1- São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2- São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

3- O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

7- O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Por sua vez, o n.º 6 do artigo 2º da Lei n.º 9/2020 elenca os crimes relativamente aos quais o condenado não pode ser beneficiário do perdão referido nos n.ºs 1 e 2.

Ora, sobre as razões excepcionais que determinaram a aprovação da presente Lei, estão as mesmas explicadas na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV ([1]), que esteve na origem da Lei n.º 9/2020, onde se pode ler:

«A Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, e como calamidade pública.

Face a essa qualificação e ordenado pelo fundamento final de conter a expansão da doença, o Presidente da República decretou, no dia 18 de março o estado de emergência.

Portugal tem atualmente uma população prisional de 12 729 reclusos, 800 dos quais com mais de 60 anos de idade, alojados em 49 estabelecimentos prisionais dispersos por todo o território nacional.

As Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de março, exortaram os Estados-Membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.

As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.

(…)

Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito. (…). »   são nossos os sublinhados

Portanto, resultando da leitura do segmento da Exposição de Motivos que transcrevemos, que foi propósito do legislador “minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais”, afigura-se-nos evidente que foi propósito do legislador que os beneficiários do perdão fossem os condenados que se encontrassem privados da liberdade no momento da entrada em vigor da Lei (11-4-2020).

Ou seja, o perdão concedido pelo artigo 2º da Lei n.º 9/2020 para além de exigir o trânsito em julgado da sentença condenatória, pressupõe ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso; está, assim, em causa a aplicação de perdão de pena de prisão a reclusos, ou seja, a condenados em cumprimento de pena de prisão à data da sua entrada em vigor. ([2])

No caso vertente, como refere o despacho recorrido, o condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena. Pelo que, não tendo o condenado ingressado fisicamente no estabelecimento prisional, não pode beneficiar do perdão da pena de prisão concedido por este diploma.

Acresce que, este entendimento (de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor) não viola o princípio constitucional da igualdade.

Como sublinha Maia Gonçalves ([3]) «as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas».

No mesmo sentido, o Ac. do STJ (fixação de jurisprudência) de 25-10-2001 (proc. n.º 00P3209) - sendo excepcionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º do CC), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa, em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”.

Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.

Como decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n.º 39/88, de 9 de Fev. - DR n.º 52/1988, Série I, de 03-03-1988):

«O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º

Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»

Por sua vez, pode ler-se no Acórdão n.º 149/93, de 28 de Janeiro, do mesmo Tribunal, in www.tribunalconstitucional.pt:

« Pode-se considerar que é já vasta e consolidada a jurisprudência constitucional sobre o sentido e o alcance do princípio da igualdade (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 39/88 - publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Março de 1988 -, 157/88 - publicado no mesmo local e série, de 26 de Julho de 1988 -, 76/85, 142/85, 309/85 e 186/90, - todos publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 8 de Junho de 1985, de 7 de Setembro de 1985, de 11 de Abril de 1986 e de 12 de Setembro de 1990 -, 400/91 - publicado no Diário da República, I Série, de 15 de Novembro de 1992 e finalmente o Acórdão nº 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992, neste último caso versando especificamente a temática do presente processo, cujo desenvolvimento, aliás, seguiremos no essencial.

Da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante.

Neste contexto, citando o que se escreveu no Acórdão nº 400/91, "o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo."»

Por conseguinte, atendendo aos objectivos da citada Lei n.º 9/2020 (prevenir o risco de alastramento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), não se vislumbra que a circunstância de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor constitua uma desigualdade de tratamento arbitrária por materialmente infundada, desprovida de fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, razão por que, a nosso ver, não se mostra violado o princípio constitucional da igualdade.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que declarou perdoada a pena aplicada ao arguido P., no âmbito do processo n.º 337/18.2PTCBR.

Sem tributação.


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Coimbra, 3 de Fevereiro de 2021

 Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Veja-se Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 72, de 3-4-2020 pág. 80-84.
[2] - Neste sentido, Parecer n.º 10/2020 do Conselho Consultivo da PGR; Nuno Brandão, «A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4», Julgar online, Abril 2020, pp. 6 e 7; e, Vítor Pereira Pinto em estudo publicado no SIMP, em 13-4-2020, denominado «o perdão previsto no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020».
[3] - As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, RPCC, 1994, Fasc. 1, p. 10.