Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2027/17.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
REEMBOLSO DA SEGURADORA LABORAL
DIREITO DE REGRESSO
SUBROGAÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º E 562º C. CIVIL; 63º DA LEI Nº 98/2009, DE 4/9.
Sumário: I - Não se justifica à luz dos princípios basilares da responsabilidade civil e do estatuído nos arts 483º e 562º CC, que um terceiro causador culposo de acidente de viação, por si, ou através da sua seguradora, não responda na íntegra pelos danos daí resultantes.

II - O reembolso da seguradora laboral relativamente à totalidade do que pagou por virtude do acidente de viação que seja em simultâneo acidente de trabalho, é obtido da seguradora do acidente de viação em parte por via da sub-rogação (na parcela em que o crédito do credor lesado se lhe transmite), e em parte por direito de regresso (na parcela em que está obrigada, por razões sociais, a contribuir para o Fundo de Acidentes de Trabalho).

Decisão Texto Integral:









1- A. Companhia de Seguros A..., SA propôs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra F... - Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da mesma a pagar -lhe a quantia de €47.172,73, acrescida dos juros de mora vincendos, calculados à taxa supletiva, sobre €42.151,50,  até efectivo pagamento.

Alegou a ocorrência de um acidente de viação, ocorrido em Junho de 2012, no qual faleceu a sinistrada, que não teve nele qualquer responsabilidade, achando-se a responsabilidade civil por acidentes de viação transferida para a B... - Companhia de Seguros, S.A. que foi incorporada por fusão na  R.

Alegou ainda que tal acidente se constituiu também como acidente de trabalho, sendo ela a seguradora laboral, e que, com fundamento no mesmo, esteve pendente processo de acidente de trabalho, em que depois de comprovada a inexistência de beneficiários legais da sinistrada com direito a pensão, veio a ser homologado acordo entre ela e o Fundo de Acidentes de Trabalho (que se passará a designar como FAT), no sentido de, em cumprimento do disposto no art 63º da Lei 98/2009, de 4/9, lhe pagar o montante  de €42.151,50, importância igual ao triplo da remuneração anual da sinistrada, o que ela A, em cumprimento dessa decisão, veio a fazer.

Entende que a R. está obrigada a reembolsá-la dessa quantia, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data do seu pagamento até efectivo reembolso, por força da sub-rogação estatuída no art. 17º da Lei 98/2009, de 4/9, e dos arts 483º e 592º do C. Civil e 491º do C. Com., pese embora reconheça que a mesma não foi paga directamente à sinistrada.

Refere ainda que as circunstâncias em que ocorreu o acidente de viação e a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na R. foram já estabelecidas na sentença condenatória proferida em  Juízo Criminal de ..., e que tendo nessa acção pedido da aí, e aqui, R.,. o reembolso da  quantia de €1.725,00, que já pagara a título de subsídio por despesas de funeral da sinistrada, esta já lhe pagou tal quantia, como se comprometeu a fazer em transacção nessa acção.

A R. contestou, referindo ter aceite, sem controvérsia, a responsabilidade civil pela ocorrência do sinistro automóvel a que a A. se refere, tendo por isso pago aos lesados, únicos herdeiros da falecida C..., a quantia de €99.000,00, valor com o qual os mesmos se consideraram ressarcidos, e reembolsou a A., como a mesma reconhece, da quantia de €1.725,00, valor que a mesma pagara a título de subsídio por despesas de funeral da sinistrada, referindo ter feito tais pagamentos no estrito cumprimento da sua obrigação indemnizatória para com o lesado, prevista nos arts 483º, 495º e 496º do CC. Já o valor do montante que a A. alegadamente pagou ao FAT, enquanto Seguradora de Acidentes de Trabalho, entende que não é devido por ela,  visto que no art 495º CC, que estabelece a obrigação de indemnização a terceiros em caso de lesão de que sobreveio a morte, não se encontra o pagamento das Seguradoras de Acidentes de Trabalho, resultantes do seu comércio, e por assim ser, tal pagamento nada tem a ver com a indemnização ao lesado, tratando-se antes de um encargo próprio das Seguradoras de Acidentes de Trabalho, criado no âmbito do risco e da álea próprias do seu negócio. Frisa que, em todo o caso, a ter responsabilidade, a sua mora dever-se-á contar da data da citação para a presente acção.

Na audiência prévia, gorada a tentativa de conciliação, a R. aceitou a matéria de facto que impugnara na contestação, designadamente o pagamento da A. ao FAT, pelo que se tornou possível o conhecimento imediato do pedido, tendo sido proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia de €42.151,50, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde 03/05/ 2017 (data da citação), até efectivo e integral pagamento, absolvendo a mesma do demais peticionado.

II - Do assim decidido apelou a R., que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

...

A A. apresentou contra alegações pugnando pela manutenção do decidido.

III – Os factos a ter em consideração para a apreciação do presente recurso, emergem com toda a simplicidade do acima relatado, evidenciando-se, no entanto, que:

- C..., falecida no acidente de viação, que o foi simultaneamente de trabalho, e que foi exclusivamente causado pelo condutor de veículo cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros se achava transferida para a R., deixou apenas dois filhos já maiores.

- A A. pagou ao FAT o montante global de €42.151,50, importância igual ao triplo da remuneração anual da sinistrada, e o valor de €1.725,00, àqueles dois herdeiros, quantia essa correspondente à do subsídio de funeral.

- A R. reembolsou a A. relativamente a esta despesa.

IV – Operando o confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, emerge como única questão a decidir neste recurso determinar se relativamente a um acidente que se constitua simultaneamente como acidente de viação e acidente laboral, não existe obrigação de reembolso por parte da seguradora responsável pelos danos advindos de acidente de viação relativamente à quantia que tenha sido paga ao “Fundo de Acidentes de Trabalho” pela seguradora de acidentes de trabalho.

A questão em apreço tem que ser analisada, desde logo, em função do disposto no art 63º da Lei nº 98/2009, de 4/9, que refere que «Se não houver beneficiários com direito a pensão, reverte para o Fundo de Acidentes de Trabalho uma importância igual ao triplo da retribuição anual».

Disposição esta que se segue às dos arts 59º, 60º e 61º, respectivamente referentes a “Pensão ao cônjuge, ex-cônjuge e pessoa que vivia em união de facto com o sinistrado”, “Pensão aos filhos” e “Pensão aos ascendentes e outros parentes sucessíveis”, estando adquirido para os autos que a sinistrada faleceu não deixando beneficiários com direito a pensão, motivo por que a A/apelada pagou ao FAT a importância de €42.151,50  correspondente ao triplo da retribuição anual auferida por aquela.  

E também em função do disposto no art 17º da referida Lei, que estatuindo para as situações em que o acidente de trabalho tenha sido causado por outro trabalhador ou por terceiro, (respectiva epígrafe), dispõe no seu nº 1 que «Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais», referindo e o seu nº 4 que «O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente».

A questão já não é nova, tanto mais que a Lei nº 100/97, de 13/9 – antecessora da referida L 98/2009, de 4/9, e por ela revogada (cfr. art 186º) – dispunha exactamente nos mesmos termos daqueles arts 63º e 17º, respectivamente nos seus arts 20º/6  e 31º/4. E também a lei anterior à Lei 100/97, a Lei nº 2127, de 3/8/1965, dispunha essencialmente nos mesmos termos, respectivamente, na Base XIX/5 («Se a vitima não deixar familiares com direito a pensão será devida ao Fundo de Garantia e Actualização de Pensões uma importância igual ao triplo da retribuição anula») e Base XXXVII,  nos respectivos nº 1, («Quando o acidente for causado por companheiros da vitima ou  terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais») e nº 4, («A entidade patronal  ou a  seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1, se à vitima  não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente (…)»). .

Já relativamente ao subsidio por funeral registe-se o art 66º da L 98/2009 que  é muito claro no sentido do mesmo se destinar a compensar as despesas efectuadas com o funeral do sinistrado – respectivo nº 1- podendo por isso ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares e equiparados do sinistrado, tendo direito ao subsídio por despesas de funeral quem «comprovadamente» tiver efectuado o pagamento destas (respectivo nº 3 e 4).

 Foi a L 2127, de 3/8/1965, que criou – respectiva Base XLV- um fundo com o objectivo de assegurar o pagamento das prestações da responsabilidade de entidades insolventes e de permitir a actualização de pensões reconhecidamente desactualizadas, referindo-se no nº 1 daquela Base, que, «Para assegurar o pagamento das prestações por incapacidade permanente ou morte, da responsabilidade de entidades insolventes, é constituída na Caixa Nacional de Seguros e Doenças Profissionais um fundo, gerido em conta especial e denominado Fundo de Garantia de Actualização de Pensões».

Já o Fundo de Acidentes de Trabalho foi criado pelo DL 142/99, de 30/4, na sequência da L 100/97, de 13/9, que estabelece a criação de um fundo, dotado de autonomia financeira e administrativa, no âmbito dos acidentes de trabalho. Refere-se no preâmbulo daquele DL que «O presente diploma visa a criação do referido fundo, designado por Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT), que, na sua essência, substitui o Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho (FUNDAP), assumindo ainda novas competências que lhe são cometidas pela Lei n.º 100/97.Face ao anterior fundo, o FAT apresenta um leque de garantias mais alargado, contemplando, para além das actualizações de pensões de acidentes de trabalho e dos subsídios de Natal, o pagamento dos prémios de seguro de acidentes de trabalho de empresas que, estando em processo de recuperação, se encontrem impossibilitadas de o fazer, competindo-lhe, ainda, ressegurar e retroceder os riscos recusados de acidentes de trabalho. Para prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, prevê-se que o FAT garantirá o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável».

Verifica-se assim que são razões de justiça social que justificam este fundo, aliás à semelhança das que residem à existência do FGA, que se destina a suprir a falta de seguro válido e eficaz no âmbito dos acidentes de viação.

A L 98/2009, de 14/9, faz referência ao FAT no art 82º, referindo no seu nº 1, que, «A garantia do pagamento das pensões estabelecidas na presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável, nomeadamente por incapacidade económica serão assumidas e suportadas pelo Fundo de Acidentes da Trabalho»

Já atrás se referiu o teor do nº 4 da Base XXXVII que, sendo em tudo semelhante ao nº 4 do artº 17º da L 98/2009, onde esta refere “sub-rogação no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1”, referia “direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1”.

Curiosamente, o diploma anterior à L 2127, de 3/8/1965 –  a L 1942 – no respectivo art 7º- correspondente àqueles dois – referia-se a “sub-rogação”`.

Foi sendo estabelecido pela doutrina e pela jurisprudência que, não obstante se referir na norma do nº 4 da Base XXXVII  “direito de regresso”, o direito em referência tem a natureza de sub-rogação legal da entidade patronal ou da seguradora de trabalho nos direitos do sinistrado, contra o causador do acidente ou da sua seguradora, na medida em que tiver pago a indemnização[1].

E, efectivamente, sub-rogação e direito de regresso são realidades que não se sobrepõem.

A sub-rogação está prevista nos arts 589º e ss CC, e consiste na situação que se verifica quando cumprida uma obrigação por terceiro o crédito respectivo não se extingue, antes se transmite por efeito desse cumprimento para o terceiro que realiza a prestação ou forneceu os meios necessários para o cumprimento[2].

 Na situação em apreço não está em causa a sub-rogação pelo credor –  art 589º- nem a sub-rogação pelo devedor – art 590º-  tao pouco a sub-rogação em consequência de empréstimo efectuado ao devedor, mas a sub-rogação legal, que é a que resulta da lei, independentemente de qualquer declaração do credor ou do devedor. Não tendo o terceiro garantido o cumprimento, o requisito geral da sub-rogação legal, nos termos do nº 1 do art 592º, é o de que o terceiro tenha “interesse directo no cumprimento”, o que nas palavras de Menezes Leitão[3], «sucederá sempre que a não realização da prestação  lhe possa acarretar prejuízos patrimoniais próprios, independentes das consequências do incumprimento para o devedor ou o cumprimento se torne necessário para acautelar o seu próprio direito», pondo-se em evidência que o referido «interesse próprio» «tem que corresponder «um interesse económico prático, não bastando um interesse meramente jurídico». Os efeitos da sub-rogação encontram-se previstos no art 593º, onde se determina que a sub-rogação constitui uma modalidade de transmissão do crédito - pelo que o terceiro adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam. 

Assinala Antunes Varela [4] que «embora haja uma certa afinidade substancial nas suas raízes, a sub-rogação e o direito de regresso constituem, no sistema legal português,  realidades jurídicas distintas, em determinado aspecto, mesmo opostas».

A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub- rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto que limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo. O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta.

 Feitas estas considerações, tem que se admitir que o pagamento efectuado ao FAT pela seguradora de acidentes de trabalho, aqui A./apelada, não foi prestado no cumprimento de obrigação alheia que permita o seu reembolso à luz do direito sub-rogatório, na medida em que os familiares da falecida não tinham direito a reclamar qualquer pensão.

               Antes, a seguradora laboral se limitou a cumprir uma obrigação própria, que lhe é imposta pela lei, tendo a apelante razão quando refere que “ O pagamento efectuado ao FAT nada tem a ver com a indemnização ao lesado, tratando-se antes de um encargo próprio das Seguradoras de Acidentes de Trabalho, criado no âmbito do risco e da álea próprias do seu negócio”.

Se o reembolso da quantia paga, que a sub-rogação permite, se situa «na justa medida em que o sinistrado (ou os seus familiares nos termos do art 495º CC) a pudessem exigir do terceiro»[5], e se os familiares da falecida não podiam exigir da seguradora do acidente de viação, aqui R., indemnização correspondente a pensão, porque não têm legalmente direito à mesma, então, não se verificou sub-rogação a favor da seguradora de acidente de trabalho relativamente à quantia que despendeu junto do FAT.

Trata-se de uma obrigação própria que o conceito de indemnização (ao lesado) não alcança.

            Como a apelante refere, a seguradora de acidentes de trabalho só pode sub-rogar-se, através do cumprimento, nos direitos do lesado e, por isso, os pagamentos que permitem a sub-rogação serão apenas os que tenham sido por ela efectuados no cumprimento de uma obrigação do lesante, ou seja, cumprindo uma obrigação alheia. Mas o lesante está apenas obrigado, nos termos do art 562º e ss do CC “a  reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Ora desde o momento em que os familiares da vitima não podiam reclamar da seguradora do acidente de viação qualquer pensão, não pode a seguradora laboral ver-se reintegrada desse valor a título de sub-rogação.

O pagamento efectuado ao FAT nas  circunstâncias  factuais dos autos  deverá entender-se como um encargo específico e próprio das seguradoras de acidente de trabalho.

Se até aqui se deu essencialmente razão à R./apelante – excluindo-se que a quantia exigida na acção seja devida por efeito da sub-rogação[6] -  é tempo de tornar claro que se entende  que, não obstante, deve a R. reembolsar à A. a importância que esta pagou ao FAT e que a  mesma solicita nos autos.

Não a título de sub-rogação, mas de direito de regresso (ou, em todo o caso, como «direito por dano próprio»), categorias estas admitidas como qualificações possíveis do meio jurídico através do qual se efectiva o reembolso, nas palavras do Ac Uniformizador de Jurisprudência nº 5/97, publicado no DR I Serie A de 27/3/1997 [7].

Ainda nas palavras desse acórdão, «o direito de regresso e a sub-rogação (arts 524º, 589º e ss do CC), diferenciando-se na sua estrutura e disciplina, têm idêntica função recuperatória, restabelecendo o equilíbrio de interesses nas relações internas, relacionando-se em concurso alternativo e, quando a solidariedade passiva (imperfeita) é estabelecida com escopo de garantia, o direito de regresso existe entre o co-obrigado garante e o devedor principal, mas não inversamente».

É sabido que as relações entre a seguradora laboral e a seguradora de acidente  de viação, quando este se configure também como acidente de trabalho, se estruturam como de solidariedade imprópria ou imperfeita.

«Os traços diferenciadores da solidariedade perfeita não são unânimes: enquanto Enneccerus-Lehman sustentam que a característica essencial à solidariedade perfeita consiste na comunidade de fim entre as várias obrigações, Von Tuhr considera que as obrigações solidárias têm de se basear numa mesma causa ou fundamento jurídico; já Larenz entende que para haver solidariedade propriamente dita, além da comunidade de fins, isto é, de identidade do credor a satisfazer pelas prestações dos vários condevedores, seria necessário que todos estes se encontrassem obrigados no mesmo grau, no mesmo plano, sem que haja, nas relações com o credor, um obrigado em via principal e outros responsáveis meramente transitórios com a faculdade de exigirem daquele a totalidade do que hajam sido compelidos a pagar».

Seria, pois, – continuando a citar Lopes do Rego -«fenómeno característico da “solidariedade perfeita” que, para além de todas as prestações visarem a satisfação do mesmo interesse do credor (daí que a realização da prestação por um dos condevedores a todos libere perante o credor) no plano das relações internas entre os vários condevedores todos eles assumissem a responsabilidade por uma quota parte na prestação comum – ficando consequentemente, investidos em direito de regresso contra os restantes devedores solidários pelo que satisfizessem além dessa sua quota (…)

Já na solidariedade imperfeita as relações internas entre os diversos condevedores são estruturadas em termos perfeitamente diversos baseando-se numa disjunção ou escalonamento sucessivo das diversas obrigações: a satisfação do interesse do credor pelo devedor principal não lhe origina qualquer direito de regresso contra os outros condevedores, pretendendo o ordenamento jurídico que seja ele a assumir a sacrifício patrimonial definitivo, inerente ao cumprimento; se pelo contrário o credor obtiver prestação de condevedor que a lei considera de segundo grau, ficará este investido em direito de regresso contra o devedor principal pela totalidade do que foi compelido a pagar».

Ora a solidariedade imperfeita entre as duas seguradoras, em situações como a dos autos, em que a disjunção das obrigações de uma e da outra importa para a seguradora laboral que, em vez de pagar pensão aos familiares do falecido sinistrado quando estes não têm direito a ela, pague ao FAT uma quantia predeterminada, parece mostrar-se compatível com a circunstância de o reembolso da seguradora laboral relativamente à totalidade do que pagou por virtude do sinistro poder ser obtido da seguradora do acidente de viação, em parte por via da sub-rogação (na parcela em que o crédito do credor lesado se lhe transmite), e em parte por direito de regresso (na parcela em que está obrigada, por razões sociais, a contribuir para o FAT).

Concorre para esta conclusão a circunstância, já acima apontada, da verificada flutuação terminológica nos diversos diplomas legais que se foram sucedendo a respeito da matéria em apreço, pois onde primitivamente (na Lei 1942) se falava de “sub-rogação”, passou a falar-se, na L 2127, em “direito de regresso”, para depois se referir de novo “sub-rogação”.

A verdade é que não se justifica à luz dos princípios basilares da responsabilidade civil e do estatuído nos arts 483º e 562º CC que um terceiro causador culposo de acidente de viação, por si ou através da sua seguradora, não responda na íntegra pelos danos daí resultantes, motivo por que no Ac STJ de 9/3/2010 [8] se assinala que «o conceito de indemnização  previsto no art 31º/4 da referida Lei de Acidentes de Trabalho deve ser entendido em termos amplos, por forma a abranger o valor estipulado no seu art 20º nº 6, que reverte a favor do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT), no caso do sinistrado não deixar sucessores com direito a receber pensão por morte», enfatizando-se que «a circunstância da vitima ter deixado ou não sucessores com direito à pensão não pode influenciar o direito ao reembolso do que foi pago, em consequência da morte, por causa do acidente de trabalho»; e no Ac STJ 12/9/2006 [9] se conclua que «da conjugação do preceituado no nº 1 do art 18º do DL 522/85 de 31/12, com os nºs 1 e 4 do art 31º e o art 20º 6 da L 100 /97 de 13/9 (Lei dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais) resulta que se confere à Seguradoras do trabalho o direito a ser reembolsada (independentemente da natureza desse direito: de regresso, de sub-rogação ou direito próprio) do que legitimamente pagou por causa de acidente de trabalho».

 O direito de acção do empregador ou da sua seguradora contra o terceiro causador do acidente a que se reporta o nº 1 do art 17º da L 98/2009, de 4/9, envolve tudo o que aquela haja pago pelo acidente.

Conclui-se assim pelo infundado da apelação, havendo que confirmar o decidido na 1ª instância, embora com fundamentação diversa.

V - Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 5 de Novembro de 2019

                                                                       (Maria Teresa Albuquerque)

                                                                       (Manuel Capelo)

                                                                        (Falcão de Magalhães)

            Sumário:

I - Não se justifica à luz dos princípios basilares da responsabilidade civil e do estatuído nos arts 483º e 562º CC, que um terceiro causador culposo de acidente de viação, por si, ou através da sua seguradora, não responda na íntegra pelos danos daí resultantes.

II - O reembolso da seguradora laboral relativamente à totalidade do que pagou por virtude do acidente de viação que seja em simultâneo acidente de trabalho, é obtido da seguradora do acidente de viação em parte por via da sub-rogação (na parcela em que o crédito do credor lesado se lhe transmite), e em parte por direito de regresso (na parcela em que está obrigada, por razões sociais, a contribuir para o Fundo de Acidentes de Trabalho).


***

[1]- Meramente a título de exemplo, Antunes Varela, RLJ Ano 103, pág. 30,  e Vaz Serra RLJ Ano 111, pág. 67 e  Ac. STJ de 4/10/04, Col Ac. STJ XII, 3º, 39 (Araújo de Barros).
[2] _ Cfr «Direito das Obrigações», II vol, p 35
[3] - Obra referida, p 41
[4] - «Direito das Obrigações», 7ª ed Vol II, p 346

[5]- Ac. STJ de 4/10/04, Col Ac. STJ XII, 3º, 39 (Araújo de Barros).
[6]-  No sentido da sub-rogação, cfr AC R E 1274/2018 (Victor Sequinho Santos)
[7] Em que se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos «O Estado tem o direito de ser reembolsado , por via de sub-rogação legal , do total despendido em vencimentos a um seu funcionário ausente de serviço e impossibilitado de prestação de contrapartida laboral por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado por culpa de terceiro»
[8] - Relatado por Azevedo Ramos
[9] - Relatado por Afonso Correia