Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
972/16.3T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: IMPUGNAÇÃO
DELIBERAÇÃO
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 412º, Nº 1 DO C. SOC. COMERCIAIS.
Sumário: É admissível a impugnação judicial direta das deliberações do Conselho de Administração de sociedade comercial.
Decisão Texto Integral:





I. Relatório

A..., residente na Rua ..., instaurou procedimento cautelar nominado de suspensão de deliberação social, sendo requerida a L..., SA, com sede em ..., requerendo a final a suspensão das deliberações 3, 4, 5, 6 e 8 tomadas pelo Conselho de Administração da sociedade em 22.06.2016 e, bem assim, a suspensão de todos os efeitos de todos os actos praticados em execução de tais deliberações, incluindo eventuais registos que tenham sido ou venham a ser efectuados.

Em fundamento alegou, em síntese útil, que a sociedade requerida tem por objecto a indústria e comércio por grosso e a retalho de lacticínios e o seu capital social, integralmente realizado, é de €2.000.000,00.

Tal sociedade tem, desde há décadas, cariz familiar, conforme reflectido na composição do capital social que perdurou durante anos e se manteve mesmo depois da sua transformação em sociedade anónima, o que ocorreu mediante escritura pública outorgada em 30 de Setembro de 2002, ficando o capital social, então aumentado para €2.000.000,00, assim distribuído:

...

Em 24 de Novembro de 2006, a AG deliberou, a pedido dos accionistas, proceder à conversão de nominativas para acções ao portador das tituladas pelos accionistas ..., permanecendo no entanto a maioria do capital social, correspondente a 228%, representada por acções nominativas.

O accionista A... veio a falecer em Junho de 2010, sucedendo-lhe sua mulher filhos, ....

Estalou entretanto um conflito que opôs grupos de accionistas e entre estes e o CA, cuja génese radica em dois negócios:

...

Tendo tomado conhecimento de tais negócios, o CA da sociedade requerida eleito em AG de 31 de Outubro de 2015, composto pela Presidente I... e pelos Vogais ... deliberou, em 23 de Fevereiro de 2016, quanto ficou plasmado na acta n.º 12, designadamente, no que respeita ao contrato de venda a retro, por configurar “prestação de garantia à restituição de créditos e, como tal, enquadrável na previsão número 8 do art.º 7.º dos Estatutos da sociedade”, e sob proposta da Sr.ª Presidente, que o CA, “atento o circunstancialismo, inicie diligências para, ao abrigo do e nos termos do número 8 do artigo 7.º dos Estatutos, proceder à aquisição das 74.056 acções acima identificadas (…)”, deliberação não votada pela vogal C..., por se encontrar em situação de conflito de interesses, dado que os transmitentes das acções são os seus pais.

Em 10 de Março de 2016 o mesmo CA deliberou quanto ficou consignado na acta n.º 14, relevando, para além do mais, quanto consta do seu ponto 14. no sentido de ter sido aprovado, com os votos favoráveis da Presidente do Conselho de Administração I... e da Vogal M..., o seguinte:

(…) b) ao abrigo do disposto nos números 8 e 9 do artigo 7º dos Estatutos, anular, com efeitos imediatos, as acções, com o valor nominal de cinco euros e representativas do capital social da sociedade, que têm os números 19 (dezanove) a 24 (vinte e quatro), 61 (sessenta e um) a 70 (setenta), 201 (duzentos e um) a 240 (duzentos e quarenta) e 224001 (duzentos e vinte e quatro mil e um) a 298000 (duzentos e noventa e oito mil) e, em sua substituição, emitir novas acções, com iguais valor nominal, numeração e titulação, devendo os inerentes títulos ser imediatamente assinados pelas administradoras nos termos do número 3 da citada disposição estatutária, acções essas que ficarão a partir da data de hoje a ser da titularidade da sociedade, como acções próprias e sujeitas ao regime para estas estabelecido no artigo 324º do Código das Sociedades Comerciais;

c) proceder ao pagamento da contrapartida, pela aquisição das acções efectuada nos termos da deliberação que antecede, no montante global de € 757.107,22 (setecentos e cinquenta e sete mil cento e sete euros e vinte e dois cêntimos) à pessoa ou entidade que comprovar ser o legítimo titular das acções hoje anuladas;

d) tendo em atenção a impossibilidade objectiva de se apurar, com segurança, a quem deverá ser paga a contrapartida devida pela anulação das acções, proceder à consignação em depósito da quantia referida na alínea anterior a favor de quem comprovar ser dele legítimo beneficiário;

e) para cumprimento do disposto no número 9 do artigo 7.º dos Estatutos da sociedade e nos termos ali prescritos, dar publicidade a este acto de anulação de acções mediante a sua publicação e registo;

(…).

No mesmo dia 16 de Março de 2016 o CA deliberou o que ficou a constar da acta n.º 15., interessando fundamentalmente o plasmado nos seus pontos 1., 2 e 4, com o seguinte teor:

“1 - que seja imediatamente constituída, pela sociedade, uma reserva, no montante de €757.107,22 (setecentos e cinquenta e sete mil cento e sete euros e vinte e dois cêntimos), para cumprimento do disposto na alínea b) do número 1 do artigo 324º do Código das Sociedades Comerciais e em resultado da aquisição de acções próprias concretizada em 10 de Março corrente, reserva essa que fica indisponível nos termos da aludida disposição legal;

2 - ao abrigo do disposto no número 2 do artigo 320.º do Código das Sociedades Comerciais, que a sociedade proceda à alienação de trinta e quatro mil e cinquenta e seis acções, com o valor nominal de cinco euros cada e representativas do seu capital social, nos seguintes termos:

a) as acções próprias a alienar são as que têm os números 19 (dezanove) a 24 (vinte e quatro), 61 (sessenta e um) a 70 (setenta), 201 (duzentos e um) a 240 (duzentos e quarenta) e 224001 (duzentos e vinte e quatro mil e um) a 258000 (duzentos e cinquenta e oito mil);

b) a alienação terá que ser concretizada no prazo máximo de 60 (sessenta dias) a contar da presente deliberação;

c) a modalidade da operação será a alienação, onerosa e reservada a accionistas, sob a forma de compra venda, total ou parcial, das identificadas acções contra o pagamento integral do respectivo preço no acto da entrega dos títulos que couberem a cada accionista adquirente;

d) cada acção será vendida pelo preço de € 11,00 (onze euros);

e) os accionistas têm direito a adquirir acções objecto desta alienação, pelo indicado preço, na quantidade proporcional à percentagem de capital social que detiverem em 15 de Maio próximo e também as sobrantes, caso não sejam apresentadas propostas que permitam a distribuição proporcional e integral das acções por todos os accionistas; neste último caso, se houver mais do que um accionista que tenha apresentado proposta para adquirir acções em quantidade superior à que lhe cabe no dito rateio integral, serão as acções sobrantes distribuídas entre tais accionistas proporcionalmente, efectuando-se o necessário rateio tendo por referência apenas a percentagem de capital que cada um deles possui (…).

4 - que a sociedade não exerça o direito de preferência na transmissão das sessenta e quatro mil e oitocentas acções – com o valor nominal de € 5,00 (cinco euros) cada e tituladas em três títulos de cem acções, com a numeração de 401 a 700, um título de quinhentas acções, com a numeração de 1501 a 2000, e sessenta e quatro títulos de mil acções, com a numeração de 298001 a 362000 – efectuada pelos Senhores ... à sociedade “J..., S.A.” e que tal direito se defere assim e a partir da presente data aos accionistas que o pretendam exercer”.

Tais deliberações foram objecto de publicação e a deliberação de anulação de acções tomada em 10 de Março de 2016 foi registada na competente conservatória do registo comercial.

O ora requerente comunicou à requerida pretender adquirir as 34.050 acções representativas do seu capital social nos precisos termos estabelecidos pela deliberação tomada pelo conselho de administração da sociedade no dia 16 do referido mês e deu cumprimento às formalidades ali fixadas, procedendo de imediato ao pagamento do preço devido, sendo ainda sua pretensão exercer o direito de preferência que foi deferido aos accionistas da sociedade na transmissão das ditas 64.800 acções efectuada por ... à sociedade “J..., S.A.”

Teve entretanto lugar em 17 de Março de 2016, na sede da União de Freguesias de ..., AG Extraordinária da requerida, na qual foi deliberado, para além do mais que ficou a constar da respectiva acta:

“1. Destituir, com efeitos imediatos, os membros do Conselho de Administração I..., ...;

2. Revogar, com efeitos retroativos, a deliberação tomada em Assembleia Geral de acionistas, de 31/10/2015, de aprovação do relatório de gestão e restantes documentos de prestação de contas relativas ao exercício de 2014 e apreciação do parecer do fiscal único;

3. Revogar, com efeitos retroativos, a deliberação tomada em assembleia geral de acionistas, de 31/10/2015, de aprovação da proposta de aplicação de resultados;

4. Revogar, com efeitos retroativos e imediatos, a deliberação tomada em assembleia geral de acionistas, de 31/10/2015, de aprovação da proposta de destituição do Presidente do Conselho de Administração, A... e dos Vogais M... e J..., apresentada pelo acionista A...;

5. Revogar, com efeitos retroativos e imediatos, a deliberação tomada em assembleia geral de acionistas de 31/10/2015, de aprovação da proposta de nomeação de I..., para o cargo de Presidente do Conselho de Administração, M... para o cargo de 1ª vogal, e C... para o cargo de 2ª vogal, apresentada pelo acionista A...;

6. Revogar, com efeitos retroativos e imediatos, a deliberação tomada em Assembleia Geral de acionistas, de 31/10/2015, de aprovação da proposta do projeto de reconstrução e renovação das instalações industriais e administrativas da sociedade destruídas pelo incêndio do dia 16/05/2015, da autoria do Arq. F..., titular da cédula profissional nº..., apresentada por I..., bem como de mandatar o Conselho de Administração da sociedade para executar as deliberações tomadas no âmbito daquela aprovação da proposta do projeto de reconstrução e renovação das instalações;

7. Destituir o Vogal do Conselho de Administração M---;

8. Eleger administrador M... para, preenchendo a vaga do cargo ocupado pelo administrador M..., completar o mandato.

(…)”

A suspensão de tais deliberações foi requerida em sede de procedimentos cautelares para tanto instaurados e que correm seus termos sob os n.ºs ..., tendo sido recusado o registo comercial das deliberações de recondução e tendo sido realizado como provisório por natureza o registo comercial da destituição do Conselho de Administração até então em exercício.

No dia 18 de Março, pelas 07h30m, em local desconhecido, reuniram os reconduzidos A... e J... e o vogal eleito M..., tendo então deliberado “anular, com efeitos retroactivos e imediatos” a deliberação do anterior CA tomada em 10 de Março de 2016, tudo conforme ficou a constar de documento avulso.

No mesmo dia 18 de Março, pelas 21h00m, em local desconhecido, reuniram novamente os referidos elementos do CA, tendo elaborado um documento avulso no qual fizeram constar ter deliberado:

“Um – Anular, com efeitos retroactivos e imediatos, a constituição pela sociedade de uma reserva no montante de 757.107,22 euros em virtude da anulação com efeitos retroactivos e imediatos, efectuada através de deliberação tomada na reunião do Conselho de Administração ocorrida no dia de hoje;

Dois – Anular, com efeitos retroactivos e imediatos, a deliberação de que a sociedade proceda à alienação de 34.056 acções, com o valor nominal de 5,00 euros cada e representativas do capital social da sociedade, nos termos deliberados em 16 de Março de 2016;

Três – Anular, com efeitos retroactivos e imediatos, também por não se justificar, a diminuição na competente reserva constituída para o efeito.

Foi ainda deliberado pelo vogal M..., dado que o Presidente do Conselho de Administração e o Vogal J... podem estar em conflito de interesses por terem participado na venda, anular, com efeitos retroactivos e imediatos, todo e qualquer reconhecimento ou exercício do direito de preferência sobre o contrato de compra e venda de acções que os senhores ... efectuaram com a sociedade J..., S.A., por se tratar de acções ao portador, não cabendo tal transmissão nos números 4, 5 e 6 do artigo 7º dos Estatutos da sociedade”.

O conteúdo das ditas deliberações veio a ser objecto de publicação no sítio de internet https://publicacoes.mj.pt/ nos dias ... de 2016.

Considerando o requerente que o CA em causa é inexistente, nulo e ilegal - não tendo, para além do mais, praticado até à data qualquer outro acto relativo à administração dos negócios da sociedade - e a sua conduta se tem pautado pelo claro favorecimento dos accionistas ..., bem como da sociedade J..., SA, cujos capital e administração são por aqueles controladas, foi instaurada acção declarativa de anulação das ditas deliberações, que corre termos sob o n.º ... pela Secção Cível e Criminal, J3 da instância central da comarca da Guarda.

Entretanto, a accionista “J..., S.A” instaurou acção especial de destituição de órgão social com enxerto cautelar contra a sociedade e I..., que corre termos sob o nº ... pela Secção de Competência Genérica-J1, da Instância Local de Trancoso, no âmbito da qual foi proferida decisão provisória, sem o contraditório das requeridas, determinando:

“a) a suspensão das requeridas ..., todas com domicílio profissional na sede da 1ª requerida, sita no lugar de ... do exercício das funções de administradoras da sociedade L..., S.A., pessoa colectiva...; b) Em consequência, notificar-se as mesmas para: 

I – se absterem da prática de quaisquer actos susceptíveis de impedir ou perturbar o normal exercício das funções de administração por parte dos membros do Conselho de Administração que venha a ser nomeado, provisoriamente, em face da ora decretada suspensão;

II – se absterem da prática de quaisquer actos de gestão da sociedade requerida, ou quaisquer actos inerentes à qualidade de administrador da sociedade, abstendo-se de emanar qualquer ordem ou instrução de movimentação de quaisquer activos financeiros da sociedade requerida existentes em quaisquer contas bancárias e/ou em caixa;

III – procederem à entrega de todas as chaves ou comandos de abertura das instalações e veículos da sociedade e bem assim à entrega de todos os arquivos contabilísticos e documentais, programas informáticos, passwords e senhas de acesso pertencentes à sociedade requerida e que eventualmente possuam, aos administradores nomeados provisoriamente e que infra se identificam;

c) A nomeação provisória para exercer funções de administradores da 1.ª requerida L..., S.A.: A..., para exercer provisoriamente as funções de Presidente do Conselho de Administração da L..., S.A. (indicado pela Requerente); e Dr. R..., Administrador Judicial constante das Listas Oficiais de Administradores Judiciais, com domicílio na Rua ..., para exercer provisoriamente as funções de Vogal do Conselho de Administração da L..., S.A (indicado pela Requerente), e Dr.ª A..., indicada pelo Tribunal, para exercer provisoriamente as funções de Vogal do Conselho de Administração da L..., S.A

(…)

Em 22 de Junho de 2016, o Conselho de Administração nomeado provisoriamente nos termos da decisão judicial referida deliberou, para o que aqui releva:

“(…)

3. Proceder à substituição dos mandatários judiciais da sociedade, nas acções judiciais em curso, que sejam do seu conhecimento e em que estejam em causa interesses que possam ser conflituantes com a sociedade e seus accionistas, podendo optar por quem entenderem no que concerne à constituição de novos mandatários – deliberação unânime;

4. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos as deliberações tomadas pelas administradoras suspensas nas atas do conselho de administração números 12 e 14, bem como quaisquer atos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação unânime;

5. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos a deliberação tomada pelas administradoras suspensas na ata do conselho de administração número 15, bem como quaisquer actos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação por maioria;

6. Proceder à publicação e registo e comunicação às entidades legais das deliberações anteriores – deliberação unânime;

(…)

8. Que os membros do Conselho de Administração nomeados judicialmente aufiram, no mínimo, remunerações mensais, de valor bruto, não inferiores aos auferidos pelas administradoras suspensas de funções, sem prejuízo de valor superior a ser fixado pelo Tribunal”.

Tais deliberações foram publicadas por extracto, em ..., no respectivo sítio oficial do Ministério da Justiça, in “https://publicacoes.mj.pt/”, data em que o requerente delas tomou conhecimento.

Entende o requerente que as assinaladas deliberações são ilegais, uma vez que a natureza das funções atribuídas aos administradores é duplamente provisória, visando assegurar apenas e só o funcionamento regular do negócio social, incompatível com o carácter extraordinário das deliberações impugnadas.

Acresce que a validade das deliberações revertidas se encontra a ser discutida em diversas acções judiciais pendentes, nas quais é controvertida a sua legalidade, pelo que não se vê como poderia o Conselho de Administração da sociedade nomeado provisoriamente, muito menos quando está vinculado à prática de actos de mera gestão corrente, substituir-se aos accionistas da sociedade e aos Tribunais, procedendo à revogação de tais deliberações.

É também ilegal e abusiva a deliberação no sentido de fixar remuneração aos administradores nomeados provisoriamente, decisão que cabe exclusivamente ao Tribunal que proferiu a decisão de nomeação.

A tudo acresce o facto da revogação das deliberações de 10 e 16 de Março violarem o estabelecido no artigo 7.º, n.ºs 8 e 9 do estatuto da sociedade requerida.

 Assim, e antes de mais, aquela venda a retro é indiscutivelmente uma forma de prestação de caução, pelo que, nos termos das referidas disposições estatutárias, é causa e fundamento da anulação daquele lote de acções, como deliberado pelo anterior CA. O interesse social na aquisição de tais acções, enquanto acções próprias, para lá do aspecto relativo à preservação do cariz familiar da sociedade, é igualmente decorrente do ganho material e financeiro que decorre dessa operação, que é de €442.874,13 ou, pelo menos, de €270.479,91, pelo que a manutenção das decisões impugnadas acarreta um prejuízo simétrico.

Ademais, as deliberações de revogação foram tomadas em prejuízo da sociedade e com o propósito de beneficiar um determinado grupo de accionistas, não constando do extracto conhecido da acta das referidas deliberações de 22 de Junho a menção a qualquer concreto interesse da sociedade ou do conjunto dos accionistas que justifique a revogação da deliberação de anulação das acções ou do não exercício do direito de preferência que cabia à sociedade.

Com tais fundamentos conclui que as deliberações impugnandas padecem do vício de nulidade, por ofensa dos bons costumes, violação do dever de lealdade estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais ou, quando assim não for entendido, mostram-se inquinadas com o vício de anulabilidade, por via da aplicação analógica da alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do mesmo Código.

Por outro lado, a subsistência das mesmas deliberações é susceptível de comprometer o direito do requerente à aquisição da participação social colocada em venda e relativamente à qual procedeu a oferta vinculativa, impedindo-o de exercer os direitos a ela relativos, designadamente o de participar nas deliberações dos sócios e o de fruir dos dividendos correspondentes a tal participação social, constituindo-se a sociedade em responsabilidade perante si, com a consequente obrigação de o indemnizar pelos prejuízos sofridos, com perda de valor para a sociedade e para os titulares das suas acções, correspondente aqueles valores.

A evidência dos alegados dados, causados, quer ao requerente, quer à sociedade, impõe a procedência da suspensão de tais deliberações, suspensão que, por outro lado, não acarreta para a sociedade qualquer prejuízo.

O assim requerido mereceu despacho de indeferimento liminar, tendo a Mm.ª juíza entendido que, mesmo a ter em conta toda a factualidade alegada pelo requerente, para lá da complexidade das questões demandarem um aprofundamento não compatível com a natureza do procedimento, era a mesma insuficiente para satisfazer os requisitos do art.º 380.º do CPC, dela não resultando, ainda que em termos de probabilidade, que as deliberações em causa sejam violadoras da lei ou dos estatutos, nem tão pouco que da sua manutenção resulte dano relevante para a sociedade ou para o próprio requerente. Ademais, em seu entender, ao requerente estava vedado lançar mão do presente procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, dado que em causa estão deliberações do Conselho de Administração.

Inconformado, apelou o requerente e, tendo desenvolvido nas alegações produzidas as razões da sua discordância com o decidido, rematou-as a final com as seguintes necessárias conclusões:

...

Com os aludidos fundamentos requereu a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determinasse o prosseguimento dos autos.

Citada a requerida, para os termos do recurso e da causa, contra alegou naturalmente no sentido da manutenção da decisão recorrida.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões suscitadas demandam que se tome posição sobre a possibilidade de serem judicial e directamente sindicadas as deliberações do Conselho de Administração e, caso se responda positivamente a esta primeira questão, determinar se, conforme entendeu a Mm.ª juíza, os factos alegados, mesmos a provarem-se integralmente, não preenchem os pressupostos exigidos pelo art.º 380.º do CPC.

II. Fundamentação

Da admissibilidade da impugnação judicial directa das deliberações do CA

Interessando à decisão a proferir os factos relatados em I, começando pela primeira questão suscitada, até porque a resposta positiva prejudicaria o conhecimento das demais, dir-se-á que não seguimos o entendimento perfilhado pela Mm.ª juíza “a quo”.

É certo que o art.º 412.º do CSC[1] atribui ao próprio conselho de administração ou à assembleia geral o poder de declarar a nulidade ou anular as deliberações do conselho viciadas (cf. o seu n.º1), mas daqui não decorre, em nosso entender, a impossibilidade de a impugnação ser feita directamente no tribunal.

É inegável que o CA surge hoje como o centro de tomada de decisões da sociedade, protagonismo assumido muito à custa da Assembleia-Geral, órgão menos ágil no seu funcionamento. Reflexo dessa inversão de papéis, o legislador atribuiu ao CA relevantes competências próprias e exclusivas, como ocorre, respectivamente, com as matérias atinentes à gestão, relativamente às quais os accionistas só podem deliberar se tal for pedido pelo órgão de administração (art.º 373.º, n.º 2) e com a representação da sociedade (cf. art.º 405.º, n.º 2). Competindo assim ao CA gerir a sociedade, e cabendo-lhe, nessa justa medida, praticar todos os actos conducentes à realização do objectivo social, é inegável a importância de que se revestem as suas deliberações, o que de algum modo justifica a consagração do mecanismo de sindicância interna previsto no citado art.º 412.º.

Dir-se-á que, para lá do apoio do elemento literal, o entendimento de que a possibilidade de impugnação das deliberações do CA se esgota no aludido mecanismo é aquele que melhor serve a vida da sociedade, obstando ao conflito judicial, necessariamente perturbador do regular funcionamento das instituições sociais.

Pois bem, se se reconhece mérito ao argumento vindo de aduzir, não parece, todavia, suficiente para negar a possibilidade do recurso directo à via judicial ao administrador ou accionista com direito a voto prejudicados com uma qualquer deliberação do órgão de gestão, afigurando-se serem várias as razões que militam a favor de tal interpretação.

Antes de mais, não parece de todo defensável que em caso algum pudesse ser judicialmente impugnada a deliberação inválida do CA, o que implicaria atribuir com exclusividade a órgãos sociais a tutela de direitos dos accionistas, com a consequência de, não sendo por aqueles conhecida a invalidade, a deliberação viciada e seus efeitos se perpetuarem na ordem jurídica sem que aos prejudicados fosse permitido o recurso à via judicial, interpretação que, no limite, nos parece ser de constitucionalidade duvidosa[2].

Afigura-se assim que o art.º 412.º deve ser interpretado no sentido do legislador ter querido criar um mecanismo de sindicância no seio dos órgãos sociais, mas sem excluir ou negar ao prejudicado a possibilidade, que corresponde a um direito basilar, de recorrer ao tribunal, o que, de resto, o preceito em análise em nada contraria.

Por outro lado, parece que nada impõe que o lesado impugne a deliberação junto da AG e só no caso da deliberação deste órgão lhe ser desfavorável possa então recorrer ao tribunal, estando contudo em causa, não a deliberação inválida do CA, mas antes a deliberação da AG que assim não declarou. E isto porque, desde logo, nem sempre a impugnação judicial da deliberação negativa da AG atingirá a deliberação inválida do CA, uma vez que o tribunal só será chamado a apreciar eventual vício de que a primeira padeça, e bem poderá suceder que não se encontre viciada.

Assinala-se ainda que, podendo a deliberação viciada ser impugnada junto do próprio CA, teria que se admitir, ao fim e ao cabo, a impugnação judicial directa da deliberação que este viesse a tomar, sob pena de se exigir a intervenção da AG para apreciar esta segunda deliberação a fim do accionista se habilitar a recorrer ao tribunal, o que, nas situações de urgência, equivaleria, na prática, a restringir de forma intolerável o direito do lesado[3].

Acresce que impor o recurso em primeira linha ao conselho de administração ou à assembleia geral, podendo redundar numa dupla perturbação da vida societária, será, em muitos casos, de uma perfeita inutilidade, como ocorrerá se os accionistas de controlo estão na administração[4].

Inexiste ainda razão para impor ao accionista com direito a voto que recorra obrigatoriamente aos mecanismos previstos no art.º 412.º, quando qualquer terceiro interessado pode recorrer à via judicial, nos termos gerais do art.º 286.º. Ora, tendo o accionista maior contacto com a sociedade e relevante interesse em não perturbar desnecessariamente o funcionamento saudável e regular dos seus órgãos, a interpretação mais conforme do art.º 412.º será a de lhe permitir optar pelo meio que tenha por mais adequado e eficaz para atalhar a vigência e a produção de efeitos da deliberação inválida do CA.

Finalmente, um argumento que, por ser de ordem prática, não é menos ponderoso. Sendo de admitir que as deliberações inválidas do CA sejam susceptíveis de causar pesados danos à sociedade e/ ou administradores, parece razoável admitir que tais deliberações possam ser rapidamente suspensas, possibilidade que quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm aceitando, funcionando aqui o procedimento cautelar como dependência da acção de anulação da deliberação do CA. A não admitir-se esta acção, o procedimento cautelar ficaria prejudicado, com as consequências mais indesejáveis[5].

E quanto vem de se dizer tem pleníssima aplicação no caso dos autos, pois a não se admitir o recurso ao tribunal, o direito do recorrente - sem que tal equivalha, aqui e agora, ao seu reconhecimento - resultaria inviabilizado. Com efeito, impugnar judicialmente a deliberação perante o CA que a produziu afigura-se um exercício inútil, tal como inútil seria apelar à AG, que deliberou no sentido precisamente de propiciar ao CA que produzisse as mesmas deliberação, conforme a factualidade alegada bem espelha.

Tudo em suma para concluir que, ao invés do entendimento perfilhado na decisão recorrida, se admite a impugnação judicial directa das deliberações do CA.

Afastado o primeiro argumento, indaguemos, pois, se a factualidade invocada pelo requerente não é suficiente para preencher os pressupostos do art.º 380.º do CPC.

Dos pressupostos da suspensão de deliberações sociais

Nos termos do art.º 380.º do CPC “1. Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.

Tal como a Mm.ª juíza, em nosso entender correctamente, considerou, a providência nominada aqui prevista, sendo preliminar ou incidente da acção anulatória, demanda a formulação de um juízo meramente provisório. Daí que, conforme também assinalou, visando-se com a providência em causa prevenir danos, haverá de ter-se por restrita às deliberações não executadas.

Pressupostos específicos deste procedimento são a invalidade das deliberações cuja execução se visa suspender -por contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato- e o dano apreciável que resulte dessa execução, exigência que -e aqui se concorda ainda com a Mm.ª juíza “a quo”- se compatibiliza inteiramente com a exigência genérica de que tal providência seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja, o prejuízo da demora inevitável do processo correspondente.

Isto dito, importa precisar que em causa nestes autos estão apenas e só as deliberações tomadas pelo CA provisório, judicialmente nomeado no âmbito do enxerto cautelar da acção de destituição dos membros do CA, no dia 22 de Junho, e que aqui se relembram:

 “(…)  3. Proceder à substituição dos mandatários judiciais da sociedade, nas acções judiciais em curso, que sejam do seu conhecimento e em que estejam em causa interesses que possam ser conflituantes com a sociedade e seus accionistas, podendo optar por quem entenderem no que concerne à constituição de novos mandatários – deliberação unânime;

4. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos as deliberações tomadas pelas administradoras suspensas nas atas do conselho de administração números 12 e 14, bem como quaisquer atos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação unânime;

5. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos a deliberação tomada pelas administradoras suspensas na ata do conselho de administração número 15, bem como quaisquer actos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação por maioria;

6. Proceder à publicação e registo e comunicação às entidades legais das deliberações anteriores – deliberação unânime;

(…)

8. Que os membros do Conselho de Administração nomeados judicialmente aufiram, no mínimo, remunerações mensais, de valor bruto, não inferiores aos auferidos pelas administradoras suspensas de funções, sem prejuízo de valor superior a ser fixado pelo Tribunal”.

O recorrente, conforme agora enuncia, imputou quatro causas de invalidade às referidas deliberações, a saber: i) a falta de poderes do conselho de administração nomeado provisoriamente pelo Tribunal; ii) a violação ao estabelecido no artigo 7.º, n.ºs 8 e 9 do estatuto da sociedade, isto quanto à deliberação de revogação da anulação das acções; iii) a impossibilidade material de o conselho de administração nomeado provisoriamente poder aferir da oportunidade e conveniência da deliberação anterior sem que se encontrem aprovadas as contas sociais relativas ao exercício findo em 31 de Dezembro de 2015; iv) o prejuízo para a sociedade e o propósito de beneficiar um determinado grupo de accionistas.

No que respeita à demonstração do direito aparente do autor, e conforme o recorrente invocou, citando o Prof. A. dos Reis[6], a demonstração de que a deliberação contradiz a lei ou os estatutos não precisa de ser feita com toda a plenitude no processo de suspensão, havendo de apurar-se exaustivamente na acção principal. Com efeito, deverá entender-se que a providência não pressupõe a demonstração exaustiva da violação que convoca, bastando “o fumus boni iuris”[7].

Revertendo ao caso dos autos, dir-se-á, “prima facie”, que tendo o CA em exercício sido nomeado provisoriamente pelo Tribunal, nomeação efectuada no âmbito de enxerto cautelar sem que as requeridas tivessem sido ouvidas, terá razão o recorrente quanto ao facto dos poderes deste órgão se encontrarem limitados à gestão corrente ou actos de mera administração. É que a razão de ser desta nomeação, conforme justamente assinala, é assegurar o regular funcionamento do negócio social enquanto não for definitivamente decidida a acção principal, daí que a Mm.ª juíza tenha tido a precaução de limitar os seus poderes de movimentação das contas bancárias da sociedade requerida, restringindo a autorização às contas à ordem e vincando que deveriam ser usadas apenas para efeito de assegurar a gestão corrente da sociedade. Tendo sido, nestes termos, limitados os poderes do órgão nomeado, e afigurando-se que as deliberações em causa não permitem a sua caracterização como actos de gestão corrente, serão, em princípio, anuláveis, por ser este o regime que corresponde em regra às deliberações do CA viciadas (cf. n.º 3 do art.º 411.º do CSC).

Mais alegou o recorrente que a deliberação em causa, revertendo as deliberações do CA antes em exercício, violavam os estatutos, o que as tornava anuláveis. Por outro lado, visando o favorecimento de um determinado grupo de sócios, tais deliberações seriam ainda nulas, por ofensivas dos bons costumes (art.º 56.º n.º 1, al. c),1.ª parte) ou, no limite, anuláveis, por aplicação analógica da al. b) do n.º 1 do art.º 58.º.

No que respeita ao primeiro fundamento, o recorrente pretende que a invalidade das deliberações radica no facto de terem revogado as anteriores, tomadas pelo CA suspenso, que reputa de conformes aos estatutos, com o que as deliberação ora impugnadas violariam os preceitos estatutários que as primeiras teriam observado.

A respeito, sem curar agora de saber se nas primitivas deliberações foi convenientemente interpretado o contrato de venda a retro discutido nos autos, partindo da sua caracterização como contrato de garantia para concluir que as acções foram dadas como caução do empréstimo concedido pelos transmissários aos transmitentes, a verdade é que, vistos os termos da estipulação estatutária que o apelante diz violada, cremos não lhe assistir razão. Com efeito, o que se diz no citado n.º 8 do art.º 7.º é que “Se as acções forem dadas obrigatoriamente em penhor ou em caução que não seja à própria sociedade, ou arrestadas, a sociedade poderá adquiri-las por deliberação do CA, pelo seu valor nominal acrescido da parte que a essas acções couber pelos fundos de reserva, segundo o último balancete” (o destaque é nosso). Ou seja, o que a lei prevê é a mera possibilidade do CA deliberar a aquisição das acções, não traduzindo a abstenção violação dos estatutos. Poderá admitir-se, é certo, que a omissão do CA seja prejudicial à sociedade e, por maioria de razão, também o seja a deliberação que revogue aquela que havia sido tomada no sentido de adquirir as acções em causa, mas não porque viole directamente a referida norma estatutária, que deixa ao critério do CA decidir ou não pela aquisição.

No que se refere ao propósito das deliberações impugnandas de favorecer um grupo de sócios em detrimento de outro, a verdade é que tal factualidade, a despeito da extensão do articulado, não se encontra suficientemente concretizada, desde logo porque não se diz quem é a accionista A... e que relação mantém com o grupo de accionistas que o recorrente pretende beneficiado. Poderia, é certo, ser formulado um convite ao aperfeiçoamento para esclarecer tal matéria, mas tal resultaria num acto inútil, conforme se procurará demonstrar.

Assente que a matéria alegada aponta, ainda que em termos de primeira aparência ou verosimilhança, para a invalidade das deliberações em causa, a lei exige, cumulativamente, a demonstração de que a execução da deliberação é susceptível de causar, à sociedade ou ao sócio, um dano relevante. Tal ónus, é pacífico, recai sobre o requerente, reclamando “a alegação de factos concretos que permitam aferir da existência dos prejuízos e da correspondente gravidade”[8].

O dano de que aqui se trata, já se disse, é aquele que pode resultar da demora do processo principal, e, sendo um dano “visível, de aparente dignidade, estimável”, não tem de ser irreparável[9]. Vem-se entendendo também que em relação a tal dano é de exigir a sua demonstração com elevado grau de probabilidade, acima da aparência do direito que satisfaz o legislador quanto ao primeiro requisito apreciado.

E quanto à verificação do dano relevante, com o assinalado grau de concretização e quase certeza, não podemos deixar de concordar com a Mm.ª juíza quando conclui pela ausência de factualidade idónea ao preenchimento deste requisito.

O recorrente insiste ter alegado com suficiência, quer o prejuízo que para si resultará da execução das deliberações, quer para a própria sociedade. Mas insiste sem razão, uma vez que os prejuízos que invoca, podendo eventualmente ocorrer caso as deliberações impugnadas se consolidem e tornem definitivas, nenhuma conexão têm com eventual retardamento da decisão a proferir na acção a propor. Senão vejamos:

Em relação ao exercício do direito do requerente à aquisição da participação em venda das 34 056 acções, não se vê, nem o recorrente explica, em que medida e por que motivo fica comprometido pela execução das deliberações impugnadas, e se é certo que se encontra até à decisão impedido de exercer os direitos atinentes a tal lote de acções, incluindo o de usufruir dos dividendos, esse impedimento, só por si, e sem outros factos, é insuficiente para que se conclua pela existência do tal prejuízo relevante, até porque não foi minimamente quantificado.

No que respeita à intenção de exercer o direito de preferência relativo às aí identificadas 64.800 acções da sociedade, impedindo-o, também e na mesma extensão, de exercer os direitos a ela relativos, nomeadamente de voto e de perceber os dividendos correspondentes, com um valor de €1.050.000,00, não se sabe quantas acções deste lote poderiam vir a ser adquiridas pelo requerente, uma vez que não é o único accionista e outros podem aspirar à aquisição das acções. Acresce que não se sabe -por não ter sido alegado- se vão ou não atribuir-se dividendos, nada tendo o requerente alegado a este respeito.

O apelante alega ainda que a sociedade requerida virá a ser responsabilizada pelos danos por si sofridos em consequência destas deliberações, o que se traduzirá num prejuízo relevante para esta, prejuízo que, todavia, e mais uma vez, não concretiza minimamente. A tal acresce, diz, a perda da mais-valia correspondente à diferença entre o valor pago pela contrapartida da anulação e o valor da venda das acções ao accionista que vinculativamente declarou pretender adquiri-las, que estimou concretamente em €442.874,13, ou, pelo menos, em €270.479,91. A este respeito dir-se-á, repetindo, que o recorrente labora sempre no pressuposto de que as deliberações impugnadas são definitivas, o que não corresponde à verdade. Com efeito, nada nos diz que a aquisição não venha a ter lugar e o negócio não se venha a realizar como inicialmente delineado, não sendo pois possível dar como demonstrados, ainda que em termos de séria probabilidade, a verificação dos prejuízos alegados.

Alega finalmente o recorrente que a revogação das anteriores deliberações, traduzindo a legitimação da violação por um accionista de uma regra estatutária estabelecida no sentido de salvaguardar o cariz familiar da sociedade, constitui um acto apropriado a causar prejuízo à sociedade em benefício de tal accionista, já que a indicada compradora -referindo-se, presume-se, à accionista A...-, actua por conta e no interesse de um dos grupos de accionistas em confronto. Em paralelo, a revogação da deliberação relativa ao não exercício pela sociedade do direito de preferência relativamente ao lote de acções transmitido à J..., S.A. ofende igualmente o interesse da sociedade na manutenção do cariz familiar da sociedade.

A este respeito, admite-se que a mencionada cláusula 7.ª dos estatutos teria por escopo, querido pelas partes contratantes, manter “o negócio na família”. Todavia, da eventual violação de tais disposições - e já vimos que nos termos do n.º 8 da mesma disposição estatutária, a opção pela aquisição das acções oneradas era da competência do CA, que podia, ou não, decidir nesse sentido - não decorre necessariamente prejuízo para a sociedade ou para os demais accionistas.

O recorrente queixa-se que por via dos actos impugnandos foi entregue o controlo da sociedade ao grupo a que se opõe com outros accionistas. Ora, mesmo a admitir que assim seja, vistas as coisas, afinal o que o recorrente também pretende é que o controlo da sociedade passe para as suas mãos e dos accionistas que o acompanham. Os interesses dos grupos são, concerteza e nesta medida, conflituantes, o que a sucessão de deliberações e contra-deliberações bem ilustra. No entanto, o que não foi alegado com a mínima consistência é que da execução das deliberações que se analisam, de natureza revogatória - e só estas estão em causa - e sem embargo de eventuais vícios de que padeçam, resulte para o recorrente ou para a requerida sociedade um dano apreciável.

Tanto basta, pois, para confirmar o juízo de improcedência formulado na decisão recorrida.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

                        Maria Domingas Simões

                        Jorge Arcanjo

                        Jaime Carlos Ferreira (subscrevo o presente ac. embora entenda que, tal como sucede com parte da jurisprudência a este respeito, o artº 412º, nº 1 do C.S.C. pressupõe, por princípio, o prévio recurso aos meios intra-societários -assembleia geral- antes de de poder avançar, em caso de arguição de invalidade de decisões/deliberações dos órgãos societários, para os meios judiciais – ver ac. Rel. Coimbra de 20/04/2016, Proc.º nº 9619/15.4T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).


***



[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Não se desconhece e vem aliás mencionado na decisão recorrida, o acórdão do TC de 24/9/2003, proferido no processo 245/2003, que se debruçou sobre esta questão. No entanto, a verdade é que o TC, no identificado acórdão, ressalvou expressamente competir-lhe “(…) assim, e apenas, decidir sobre se o procedimento de impugnação das decisões do conselho de administração, tal como o acórdão recorrido o desenha, ofende o direito de acesso aos tribunais”, concluindo ser “manifesto que da norma em causa, tal como foi interpretada no acórdão recorrido, não resulta a impossibilidade de o accionista sujeitar à sindicância jurisdicional a questão da validade da decisão do conselho de administração, isto através da deliberação da assembleia geral que a não declare nula ou a não anule.
Nesta medida, não pode, desde logo, afirmar-se que a lei impede o acesso aos tribunais”.
Cf. a anotação concordante no CSC em comentário, volume vi, comentário ao art.º 412, págs. 511-512, mas desde que se entenda que ao tribunal compete julgar (directamente) sobre a validade da deliberação do conselho de administração que a AG não declarou nula nem anulou, donde ser aquela e não a deliberação da AG a sujeita à sindicância judicial..    

[3] Aponta-se ainda, em reforço da tese da admissibilidade da impugnação directa, os casos em que a deliberação inválida do CA versa sobre matérias da sua exclusiva competência. Ora, se no preceito se prevê a possibilidade da AG substituir a deliberação nula por uma deliberação sua, e estando vedado à AG deliberar sobre tais matérias, parece que terá que se admitir a impugnabilidade directa, pelo menos em relação às deliberações desta natureza. Apontando “a brecha”, o acórdão do TRP de 28/9/2010, processo 6328/07.1 TBVFR.P1, acessível em ww.dgsi.pt.

[4] Assim se adverte pertinentemente no CSC citado, pág. 511.
[5] Neste sentido, para concluir “pela admissibilidade do recurso directo a tribunal para pedir a declaração de nulidade ou a anulação de deliberação do conselho de administração – independentemente dos recursos previstos no art.º 412.º, iu em simultâneo com estes”, Coutinho de Abreu, “Comentário”, pág. 512. Na jurisprudência, v. acórdãos do TRP já citado, de 20/4/2004, processo 0220836, de 27/6/2011, processo n.º 987/10.5 TYVNG.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt, e aresto do STJ de 21/2/2006, CJ ano xiv, tomo I, págs. 71 e ss.
Em sentido não coincidente, Soveral Martins, “Suspensão de deliberações sociais das sociedades comerciais: Alguns problemas”, in ROA, ano 63, acessível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=57754&ida=57692, expressando o entendimento de que o procedimento cautelar nominado de suspensão de deliberações sociais não será o adequado para obstar à execução de deliberações dos órgãos de administração, uma vrz que as normas do CPC parecem pensadas para deliberações dos sócios, para concluir que “Tratando-se de deliberações de outros órgãos que não a colectividade dos sócios, só será possível o recurso ao procedimento cautelar comum, não ao de suspensão de deliberações sociais”.


[6] Segundo Moitinho de Almeida, “Suspensão de deliberações sociais”, 3.ª edição, pág. 165.
[7] Soveral Martins cit.
[8] Acs. desta mesma Relação de Coimbra de 11/08/2011 e TRL 28/2/2008, processo 920/2008-6, acessíveis em ww.dgsi.pt
[9] Soveral Martins, cit.