Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
540/13.1GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: IMPUTAÇÃO GENÉRICA DE UMA CONDUTA
FALTA DE TIPICIDADE
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE POMBAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. N.º 5 DO ART. 32.º DA CRP; ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), E 359.º, DO CPP
Sumário: I - A imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança.

II - Consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente;

III - Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. Na Comarca de Leiria - Secção Criminal da Instância Local de Pombal - J1 -, após julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, por sentença datada de 11-06-2015, depositada no mesmo dia, o arguido A..., casado, reformado, pedreiro, filho de (...) e de (...) , nascido em 09.09.1937, na freguesia de (...) , em Pombal, portador do bilhete de identidade n. (...) , residente na Rua (...) , Pombal, foi condenado nos seguintes termos (parte relevante):

 - Como autor material, sob a forma consumada, em concurso real, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.º, n.ºs l, alínea b), e 3, do Código Penal (doravante apenas designado de CP), na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos);

- Como autor material, sob a forma consumada, e em concurso real, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs l e 2 do CP, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos);

- Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás indicadas, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos); e

- Na pena acessória de proibição de condução pelo período de 6 (seis) meses.


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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - O presente recurso tem como objecto toda a matéria do acórdão condenatório proferido nestes autos.

2.ª - O arguido foi acusado da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código Penal, e por um crime de omissão de auxílio previsto e punível pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

3.ª - Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado pela prática dos referidos crimes, na pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 6,50€, ou seja, na quantia global de 1950,00€.

4.ª - Consideram-se incorrectamente julgados os factos dados como provados sob os pontos 4, 6, 10, 11 e 12, ou seja:

“4 - Ao chegar ao cruzamento que dá acesso à referida rua, o arguido sem efectuar qualquer paragem, entrou inopinadamente na estrada não se certificando que circulavam veículos na via, aos quais devia prioridade de passagem, indo embater com a parte frontal do seu tractor no motociclo que ali circulava conduzido por B... .”;

“6 - Apesar de estar ciente de que tinha causado o descrito embate, com consequente queda de B..., com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões físicas e a perda de consciência da ofendida e que esta necessitava de ajuda imediata, o arguido ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros, transportando-o ao hospital mais próximo ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências da sua conduta, ausentando-se do local.”;

“10 - Com as condutas descritas, o arguido colocou em perigo a integridade física e a vida de B... , o que ocorreu como consequência directa e adequada da sua condução imprevidente, descuidada e desrespeitadora das regras de circulação.”;

“11 - O arguido agiu de forma livre, não observando as precauções exigidas pelas regras de circulação rodoviária, designadamente da prioridade e pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, colocando em perigo a vida e integridade física de B... , bem como causando danos no motociclo daquela.”;

“12 - Ao abandonar o local do acidente por si originado, bem sabendo que a ofendida precisava de ajuda para afastar o perigo para a sua vida e integridade física, o arguido omitiu conscientemente e de forma livre o auxílio e socorros devidos àquela, bem sabendo que estava obrigado a prestá-los, o que representou”.

5.ª - Consideram-se incorrectamente julgados os factos dados como não provados, sob as alíneas b), c) e d), ou seja:

“b) Nas circunstâncias descritas em 1) a 17) dos Factos Provados o arguido não tinha qualquer meio de solicitar socorro.”;

“c) O arguido aguardou alguns minutos a fim de verificar se alguém transitava nas referidas vias e como não comparecia ninguém e para tentar solicitar socorro, dirigiu-se a casa de familiar que ficava situada nas proximidades e onde existia telefone fixo.”;

“d) Ao chegar a tal habitação, ninguém estava, pelo que decidiu regressar ao local do acidente, sendo que ao chegar às proximidades do local, verificou que já estavam pessoas junto da assistente, e transtornado e enervado decidiu dirigir-se a casa.”

6.ª - O depoimento da testemunha C..., militar da GNR, impõe uma decisão diversa e oposta da recorrida.

7.ª - As declarações prestadas pelo arguido A... impõem uma decisão diversa e oposta da recorrida.

8.ª - O documento junto aos autos a fls. 356, emitido pelo Presidente da Junta de Freguesia de Vila Cã, em resposta ao ofício do Tribunal, impõe uma decisão diversa e oposta da recorrida.

9.ª - Por isso, a prova testemunhal e documental não foi apreciada segundo as regras da experiência.

10.ª - Verificando-se, assim, erro notório na apreciação da prova produzida em sede de julgamento.

11.ª - Na sua fundamentação da matéria de facto, o Tribunal omitiu a razão por que não deu credibilidade ao depoimento da testemunha C... , testemunha imparcial e sem interesse próprio na causa, tendo, contudo, dado credibilidade ao depoimento da assistente e ao depoimento da testemunha E... .

12.ª - Na sua fundamentação da matéria de facto, o Tribunal omitiu a razão por que não deu credibilidade ao documento de fls. 356, declaração emitida pela Junta de Freguesia que atesta da inexistência de deliberação quanto à colocação de sinais de trânsito no entroncamento da Rua das Covas com a Rua da Cumieira, tendo, contudo, dado credibilidade ao documento que foi impugnado.

13.ª - Na sua fundamentação da matéria de facto, o Tribunal omitiu a razão por que dá credibilidade às declarações do arguido quanto a certos factos e não lhe atribui igual validade quanto a outros.

14.ª - Impunha-se que o Tribunal a quo tivesse exposto, ainda que de forma concisa, todo o raciocínio lógico-dedutivo, incluindo a necessária articulação dos meios de prova que valorou e porquê, que conduziu a sua convicção no sentido de ter o arguido praticado os crimes de que vinha acusado.

15.ª - Ao limitar-se a fazer uma súmula dos depoimentos prestados em audiência, referindo-se apenas a alguns documentos juntos aos autos, sem que tenha feito referência à credibilidade que cada um mereceu e às razões do respectivo merecimento, havendo total ausência de exame crítico das provas, o Tribunal violou o dever de fundamentação imposto pelos arts. 97/5 e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, bem como o art. 205.º da Constituição da República, o que conduz à nulidade da sentença.

16.ª - O P. da livre apreciação das provas, nos termos do art. 127.º do CPP, comporta excepções.

17.ª - Não há lugar à livre apreciação da prova quando em causa estejam documentos autênticos ou autenticados.

18.ª - O documento de fls. 338, que consta de declaração emitida pela Sr.ª Secretária da Junta de Freguesia de Vila Cã, na medida em que foi impugnado sem que a sua veracidade tenha sido provada, pelo contrário, foi contrariada pela declaração de fls. 356, emitida pela mesma Junta de Freguesia, não podia ter sido valorado pelo Tribunal, conforme disposto nos arts. 169.º e 170.º do Cód. Processo Penal e nos arts. 446.º e ss. do Cód. Proc. Civil, aplicáveis subsidiariamente, nos termos do art. 4.º do Cód. Proc. Penal.

19.ª - O documento junto a fls. 356, composto por declaração emitida pela Junta de Freguesia de Vila Cã, subscrito pela respectiva Sr.ª Presidente, informando que não existe qualquer deliberação para colocação do referido sinal de STOP, é documento autêntico.

20.ª - Este documento não foi impugnado, pelo que foi provada a inexistência de qualquer deliberação para colocação de sinais de trânsito no entroncamento da Rua das Covas com a Rua da Cumieira.

21.ª - Face a tal prova, ainda que naquele entroncamento existisse qualquer sinal de trânsito, o mesmo sempre seria inválido e ineficaz, por falta de deliberação, pelo que não produziria qualquer efeito legal.

22.ª - A validade da colocação do sinal de trânsito depende da prévia observância de formalismo legal, a que obriga o disposto no art. 6.º do Cód. da Estrada e no 3.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro (Regulamento de Sinalização de Trânsito).

23.ª - As regras estradais que regem o entroncamento da Rua das Covas com a Rua da Cumieira são as regras gerais de circulação face a cruzamentos, entroncamentos e rotundas.

24.ª - Conforme dispõe o art. 30.º, n.º 1, do Código da Estrada, “Nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita”, ou seja, tem prioridade o veículo que se apresenta pela direita.

25.ª - Era precisamente o veículo conduzido pelo arguido que se apresentava à direita pelo que, sempre seria a assistente quem devia cedência de passagem, pelo que, quem na verdade deu causa ao acidente de viação foi a assistente.

26.ª - A correcta aplicação das regras de direito impõe decisão oposta à que foi tomada pelo Tribunal a quo.

27.ª - O Tribunal, ao decidir da forma como decidiu, fez errada interpretação e aplicação do direito e violou o p. da legalidade, proferindo decisão manifestamente injusta e contrária ao direito, uma vez que o arguido não praticou qualquer um dos crimes que lhe são imputados.

Normas violadas:

O Tribunal a quo fez incorrecta aplicação e interpretação, entre outros, dos artigos 291.º, 1.º b) e 3, do 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, dos artigos 97.º, n.º 5, 127.º, 169.º, 170.º, 374.º, n.º 2, 379.º, alínea e), e 410.º, do CPP, do artigo 369.º e ss. do CC, do artigo 446.º e ss. do CPC, dos artigos 6.º e 30.º, n.º 1, do Código da Estrada, do art. 3.º/1, do Decreto Regulamentar 22-A/98, de 1/10, e ainda dos artigos 13.º, 20.º, n.º 4, 32.º e 205.º, da CRP.

Pedido:

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser declarada nula a sentença recorrida e substituída por outra que absolva o arguido dos crimes de que vinha acusado, tudo com as legais consequências.


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3. Apenas a Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, pugnando, conclusivamente, pela improcedência do recurso, por se dever entender ter o tribunal da 1.ª instância apreciado correctamente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

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5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em parecer de fls. 463, expressou concordância com a posição do Ministério Público na 1.ª instância.

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6. Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a assistente e o arguido não exerceram o seu direito de resposta.

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7. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

No caso dos autos, o objecto do recurso está circunscrito às seguintes questões:
A) Nulidade da sentença, conforme previsão do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP;
B) Alterabilidade da matéria de facto;
B) Se alterada a matéria de facto, em consonância com os desígnios do recorrente, este deve ser absolvido dos crimes que lhe estão imputados, pelos quais foi condenado na sentença do tribunal a quo.


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2. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos:

1 - No dia 1 de Novembro de 2013, pelas 09h30m, o arguido conduzia o tractor agrícola, de matrícula (...) BX na Rua das Covas, um caminho de terra batida que permite o acesso à Rua da Cumieira, Cumieira, em Pombal, estrada que o arguido pretendia transitar no sentido de Cumieira.

2 - Na referida estrada, no sentido Cumieira - Cardiais seguia o motociclo, com a matrícula (... ) LU, conduzido por B... .

3 - A via naquele local tem uma largura de 4,50m, configura uma recta, o piso é betuminoso e encontrava-se seco.

4 - Ao chegar ao cruzamento que dá acesso à referida rua, o arguido sem efectuar qualquer paragem, entrou inopinadamente na estrada não se certificando que circulavam veículos na via, aos quais devia prioridade de passagem, indo embater com a parte frontal do seu tractor no motociclo que ali circulava conduzido por B... .

5 - Em consequência do embate, B... ficou prostrada no chão, ficando com perda de consciência.

6 - Apesar de estar ciente de que tinha causado o descrito embate, com consequente queda de B... , com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões físicas e a perda de consciência da ofendida e que esta necessitava de ajuda imediata, o arguido ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros, transportando-o ao hospital mais próximo ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências da sua conduta, ausentando-se do local.

7 - Posteriormente e na sequência de apoio prestado por D... que passou naquele local, a ofendida foi transportada para o Hospital de Leiria.

8 - Em consequência do acidente, B... sofreu dores, hematoma na parte frontal-parietal direita, traumatismo do punho direito, escoriações na perna esquerda e uma fractura incompleta do ramo isquipúbico direito que a compeliu a caminha apoiada em canadianas durante cerca de um mês.

9 - O motociclo conduzido pela ofendida ficou com danos nas partes laterais e com a parte frontal destruída.

10 - Com as condutas descritas, o arguido colocou em perigo a integridade física e a vida de B... , o que ocorreu como consequência directa e adequada da sua condução imprevidente, descuidada e desrespeitadora das regras de circulação.

11 - O arguido agiu de forma livre, não observando as precauções exigidas pelas regras de circulação rodoviária, designadamente da prioridade e pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, colocando em perigo a vida e integridade física de B... , bem como causando danos no motociclo daquela.

12 - Ao abandonar o local do acidente por si originado, bem sabendo que a ofendida precisava de ajuda para afastar o perigo para a sua vida e integridade física, o arguido omitiu conscientemente e de forma livre o auxílio e socorros devidos àquela, bem sabendo que estava obrigado a prestá-los, o que representou.

13 - Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

14 - O Arguido, nas circunstâncias descritas em 1),2) e 3) apresentava-se a circular à direita, atento o sentido de marcha da assistente.

15 - O embate ocorreu entre a parte da frente do motociclo e a parte mais frontal do tractor, mais propriamente nos pesos do mesmo.

16 - Após o embate o arguido dirigiu-se à assistente, verificando que a mesma não falava.

17 - O arguido não tinha telemóvel.

18 - No ano de 2009, foi diagnosticado ao arguido um quadro de Perturbação Bipolar Tipo III, associado a níveis de ansiedade, mantendo-se em consultas regulares da especialidade.

19 - Do entroncamento da Rua das Covas, no sentido Granja da Cumieira, a primeira casa fica localizada à distância de 700 metros; no sentido oposto dista 300 metros; seguindo até à Rua das Covas e virando à esquerda no entroncamento aí existente, seguindo até à Rua da Cotovia - Vaginha, a primeira casa fica situada a 400 metros; seguindo em frente no referido entroncamento em direcção à Vaginha, a primeira casa fica a 600 metros.

20 - O arguido, reformado (pedreiro), vive com esposa, igualmente reformada, sendo que esta aufere uma pensão mensal no valor aproximado de 300,00 €, enquanto aquele aufere mensalmente uma pensão no valor de 700,00 €.

21 - O arguido reside com a sua esposa em casa própria.

22 - O arguido tem três filhos maiores, independentes.

23 - O arguido suporta as despesas normais do dia-a-dia com água, luz, alimentação, vestuário, bem como a despesas medicamentosas, as quais orçam mensalmente a quantia de 160,00 €.

24 - O arguido já procedeu à venda do tractor descrito em 1), não possuindo veículos ligeiros, em virtude de entretanto ter sofrido acidente de viação com este.

25 - Do certificado de registo criminal do arguido consta averbada uma condenação:

a) por sentença proferida em 28.05.2014, transitada em julgado em 10.07.2014, no âmbito do Processo Comum Singular n.0216112.7PAPBL, a correr termos pela Instância Local de Pombal, Secção Criminal, Juiz 2, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º l e 155.º, n.º l , alínea a) do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, num total de 600,00 €, por factos datados de 03.10.2012;


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3. Factos tidos por não provados:

a) o arguido parou no entroncamento das vias descritas em 1) a 3) dos Factos Provados, tendo iniciado a sua marcha, entrando na Rua da Cumieira, em direcção à Cumieira, e quando já transitava sensivelmente a meio da faixa de rodagem na Rua da Cumieira, deu-se o embate entre o motociclo conduzido pela assistente e o tractor do arguido.

b) Nas circunstâncias descritas em 1) a 17) dos Factos Provados o arguido não tinha qualquer meio de solicitar socorro.

c) O arguido aguardou alguns minutos a fim de verificar se alguém transitava nas referidas vias e como não comparecia ninguém e para tentar solicitar socorro, dirigiu-se a casa de familiar que ficava situada nas proximidades e onde existia telefone fixo.

d) Ao chegar a tal habitação, ninguém estava, pelo que decidiu regressar ao local do acidente, sendo que ao chegar às proximidades do local, verificou que já estavam pessoas junto da assistente, e transtornado e enervado decidiu dirigir-se a casa.

e) o arguido nunca foi interveniente em acidente de viação.


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4. Quanto à “motivação da decisão de facto”, ficou consignado:

Na formação da sua convicção o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, foi apreciada segundo o princípio da livre convicção e as regras da experiência comum.

O arguido A... , reformado, com cerca de 77 anos de idade à data descrita no Ponto 1) dos Factos provados, reconheceu que, nessas circunstâncias de tempo e lugar aí referidas efectivamente conduzia o tractor agrícola, de matrícula (...) BX, e sua pertença (e que já vendeu) na Rua das Covas, o qual é caracterizado por se tratar de um caminho de terra batida que permite o acesso à Rua da Cumieira, Cumieira, Pombal, para onde o arguido pretendia seguir. Ora, sucede que o arguido, refutando que existisse qualquer sinal, seja vertical, seja horizontal, de sinalização rodoviária, na Rua das Covas, e anuindo que actualmente ali existe um sinal vertical de cedência de passagem (o que foi confirmado em inspecção judicial realizada conforme se infere da acta de fls.327), quanto à dinâmica do embate entre o tractor por si tripulado e o motociclo conduzido pela assistente B... , de matrícula (... ) LU, apresentou um discurso titubeante, contraditório e, portanto, não valorado pelo Tribunal, porquanto igualmente nitidamente comprometido.

Com efeito, o arguido declarou que quando chegou ao entroncamento da Rua das Covas com a Rua da Cumieira, parou, chegando ainda assim o tractor à frente, por causa da vegetação que lhe tapava a visibilidade, ficando com os pesos do tractor (localizados à frente) no alcatrão, e, então, primeiramente declarou que viu a assistente a vir e que esta lhe embateu na parte da frente do tractor porque embutida de grande velocidade; posteriormente declarou que quando parou só ouviu “tau” e, portanto, só a viu quando lhe bateu.

Sucede que tais declarações são diametralmente contrariadas pelas declarações por si prestadas, naquele dia, aos militares da GNR, quando estes, na sequência de diligências de investigação lograram chegar a sua casa conforme resulta de fls. 71 - declarações anexas à participação de acidente de fls.8 e 9.

Na verdade, C... , militar da GNR a prestar serviço no Posto de Pombal à data dos factos, que elaborou a participação de acidente de viação de fls. 8 e 9, de forma espontânea, declarou que chegou à identificação do outro condutor envolvido no acidente de viação que tinha determinado que a assistente tivesse recebido assistência médica, apenas após conversa com a testemunha E... , reformado, antigo carteiro, residente na Vaginha, Vila Cã, Pombal, que, por sua vez, de forma espontânea, declarou ter avistado o arguido a passar de tractor, no sentido da Cumieira, cerca das 09h30m, e a efectuar o sentido inverso uns 10 minutos depois, tendo a GNR passado após aquele uns 20/25 minutos. Com efeito, os militares da GNR, entre eles o atrás identificado, questionaram a referida testemunha, quando esta se encontrava junto da sua casa, se por acaso tinha avistado um tractor a passar por ali, porquanto junto ao cruzamento da Rua das Covas com a Rua da Cumieira avistavam-se rodados pertencentes a um tractor (marcas em “V”, tractor de médio porte), tendo aquele afirmado o supra descrito.

O referido militar declarou que quando chegaram a casa do arguido, foram atendidos pela esposa, a qual estava surpresa com a sua presença, evidenciando desconhecimento do sucedido, e que quando interpelaram o arguido este não anuiu, desde logo, na ocorrência, mostrando-se nervoso, e apenas quando confrontado com o facto de os pneus ainda estarem quentes e dos pesos do tractor estarem empenados conforme se vislumbra na fotografia de fls. 7, anuiu na sua intervenção no embate em apreço com um motociclo, tendo anuído na dinâmica do embate conforme descrito na declaração de fls. 71. Ou seja, que quando chegado ao cruzamento olhou para a direita e não avistando ninguém, entrou na Rua da Cumieira, ou seja, para a esquerda (sem para este local olhar), onde circulava o motociclo tripulado pela assistente, tendo-se dado o embate.

Aliás, a assistente B... , funcionária dos CTT, vulgo “carteira”, declarou, de forma espontânea, descomprometida que estava no exercício das suas funções quando, seguindo a tripular o motociclo na Rua da Cumieira, o arguido lhe apareceu de repente provindo da Rua das Covas, do lado esquerdo desta, entrando na Rua da Cumieira. De forma absolutamente descomprometida e coerente, a assistente asseverou que o arguido ia em andamento e que se este, quando provindo da Rua das Covas se se tivesse localizado no lado direito desta, de forma a mudar a sua direcção para esquerda, pensa que ainda o tinha conseguido percepcionar. Face à condução do arguido, perfeitamente compatível, de acordo com as regras da experiência comum, com o vertido pelo arguido na declaração de fls.71, ou seja que entrou na via olhando apenas para o seu lado direito, o embate deu-se de imediato, não tendo travado, não o conseguindo avistar por causa da vegetação (o que se coaduna com a percepção extraída do local do embate das fotografias de fls. 320 a 324).

Mais declarou que o arguido lhe ligou nesse dia para casa e que apenas dizia “desculpe lá, não a vi”, o que igualmente se mostra conforme com a actuação descrita na declaração de fls.71.

Mais anuiu que o embate ocorreu entre a parte frontal do motociclo por si tripulado e a parte frontal do tractor conduzido pelo arguido, a saber, nos pesos deste, o que é consentâneo com os danos visíveis nos veículos conforme se extrai de fls.6, 7, 36, 49 a 54; e que o mesmo ocorreu dentro da faixa de rodagem destinada ao seu sentido de trânsito - Cumieira - Cardiais, denotando-se das fotografias anexas com a participação de acidente de viação, que com o embate foi projectada para a faixa contrária, o que é compatível com a dinâmica do acidente de viação dada como provada.

A assistente prestou ainda declarações sobre os ferimentos por si sofridos e assistência hospitalar que recebeu, bem como o período durante o qual esteve de baixa médica, usando muletas para se deslocar, o que se mostrou compatível com os elementos clínicos de fls. 19 a 24, fotografias de fls.42 a 48.

Das declarações da testemunha D... , operário fabril, residente na Ranha de São João Vermoil, Pombal, resultou que foi este quem se deparou com a assistente prostrada no chão, sozinha, referindo que a mesma apresentava discurso sem nexo e que esteve inconsciente, tendo aquele chamado o INEM ao local (cfr. fls.17).

Segundo a assistente, ainda, na altura, na Rua das Covas, retirado alguns metros antes do entroncamento, existia um sinal “Stop”, onde agora está um sinal de cedência de passagem por aproximação de estrada com prioridade, o que foi confirmado pela testemunha E... , residente em local próximo conforme supra descrito.

Assim, não obstante o arguido negar tal facto, e o militar da GNR, C... ter declarado que não avistou a existência de sinalização vertical, a verdade é que do documento de fls. 338 resultou inequívoco a existência do mesmo à data dos factos, bem como o seu desaparecimento em data posterior que motivou a sua substituição pelo sinal de cedência de prioridade de passagem, pelo que efectivamente, ao arguido cumpria parar, o que na nossa perspectiva, conforme supra descrita, não fez, o que se mostrou determinando para a ocorrência do embate.

Aliás, reitera-se aqui a valoração que o Tribunal fez do declarado pelo arguido, antes da sua constituição nessa qualidade, na data dos factos ao militar da GNR C... , bem com sobretudo, à própria assistente quando lhe ligou para casa, conjugado com o depoimento espontâneo desta, seguro, de que o arguido estava em andamento quando o avistou, fazem crer que os factos aconteceram conforme vertidos nos factos dados como provados.

Além de que, desde logo, seguimos aqui a posição jurisprudencialmente assumida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2013, disponível em www.dgsi.pt. Relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Santos Cabral. Com efeito, segundo este aresto, Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito .... O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP. (. . .) o relato de agentes dos órgãos de policia criminal sobre afirmações e contribuições informatórias do arguido - tal como de factos, gestos, silêncios, reacções, etc - de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligencias de prova produzidas sob a égide da oralidade (interrogatórios, acareações etc.) e que não o devessem ser sobre tal formalismo, bem como no âmbito das demais diligencias, actos de investigação e meios de obtenção de prova (actos de investigação proactiva, buscas e revistas, exames ao lugar do crime, reconstituição do crime, reconhecimentos presenciais, entregas controladas, etc) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento valido e eficaz por se mostrarem alheias ao âmbito de tutela dos artigos 129 e 357 do Código.

Na verdade, só a partir do momento em que a suspeita passa a ser razoavelmente fundada se impõe a suspensão imediata do acto e a constituição formal como arguido nos termos do artigo 59 n.º 1 do Código Penal. Até esse momento o processo de obtenção de diversas declarações, incluindo as do então suspeito, e posterior arguido, logra cobertura legal nos termos dos artigos 55 n.º 2 e 249 n.ºs 1 e 2, als. a) e b) do mesmo diploma.

A constituição de arguido constitui, assim, um momento, uma linha de fronteira na admissibilidade das denominadas “conversas informais” , pois que é a partir daí que as suas declarações só podem ser recolhidas, e valoradas, nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas, ou quaisquer outras provas, recolhidas informalmente.

O arguido declarou, ainda, que naquelas circunstâncias de tempo e lugar se abeirou junto da assistente, a qual conhecia por ser a carteira da sua terra, e chamou, B... , B... e, a verdade é que, face à ausência de qualquer prova testemunhal que confirmasse a sua versão dos factos quando declarou que foi em ajuda de auxílio, porque desprovido de telemóvel, o Tribunal, até pela sua actuação junto do militar C... quando o abordou em casa, e pelas declarações da testemunha E... , pelo qual o arguido passou posteriormente aos factos e a quem nada disse, formou convicção segura de que o arguido, nervoso com o sucedido, posteriormente a se ter abeirado da assistente, se ausentou de imediato para sua casa, sem nada fazer para prover ao auxílio da assistente, prostrada no chão (conforme reconheceu), se calhar até na esperança de não ser localizado. E, na verdade, bastava ter falado com a testemunha E... quando por este passou, de forma a pedir auxílio, uma vez que não usa telemóvel (o que é compatível com a sua idade e a aversão por vezes registada das pessoas mais idosas às novas tecnologias, até pela sua falta de escolaridade), não tendo sido valorado o seu depoimento quando declarou ainda que pretendia chamar a ambulância através do telefone fixo de casa, uma vez que a sua esposa nada sabia, e tendo demorado algum tempo as autoridades a ali chegar, este ainda nada havia feito.

O arguido prestou ainda declarações sobre as suas condições económicas, sociais e pessoais, as quais foram valoradas, atenta a forma espontânea como depôs sobre as mesas. A este respeito depuseram ainda as testemunhas de defesa por si arroladas, a saber, F... , amigo e G... , seu sobrinho.

O arguido reconheceu ainda que é acompanhado há algum a doença do foro psíquico (bipolar) e que toma medicamentos, padecendo de problemas de saúde, que determinaram várias intervenções cirúrgicas. Mais anuiu que posteriormente este acidente foi interveniente em acidente de viação com seu veículo ligeiro.

Contudo, note-se que tais problemas de saúde, na nossa perspectiva, não justificavam a atitude por si tomada na situação em apreço, tanto mais que passou por várias casas, por pessoas e nada disse, nem peticionou ajuda.

O certificado de registo criminal de fls.265 e 266 dos autos permitiu dar como provados os antecedentes criminais do arguido.

A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que a permitisse sustentar conforme já supra expandido.


*

5. Mérito do recurso:

A) Preliminarmente - a seu tempo se explanarão as razões determinantes -, dir-se-á que as questões postas a conhecimento nas conclusões do recurso apenas serão apreciadas se e na dimensão qualitativa em que relevantes forem.

Efectivamente, a análise abrangente da matéria de facto evidencia carência de descrição factológica, a comprometer, de forma inexorável, a verificação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no artigo 291.º, n.ºs l, alínea b), e 3, do CP, imputado ao arguido.

É o que passamos a demonstrar.

Concatenando a sentença recorrida com a acusação pública, aquela peça processual reproduz, até ao ponto 13. do acervo factológico dado como provado, ipsis verbis, a narração textual da segunda (no mais, no que importa considerar, foi acrescentado o ponto identificado sob o n.º 14, com esta redacção: «O Arguido, nas circunstâncias descritas em 1), 2) e 3) apresentava-se a circular à direita, atento o sentido de marcha da assistente»).

Concretizando, quanto à dinâmica e causas determinantes do acidente de viação em causa, numa dimensão objectiva, apenas está escrito no libelo acusatório:

«No dia 1 de Novembro de 2013, pelas 09h30, o arguido conduzia o tractor agrícola, de matrícula (...) BX, na Rua das Covas, um caminho de terra batida que permite o acesso à Rua da Cumieira, Cumieira, em Pombal, estada que o arguido pretendia transitar no sentido de Cumieira.

Na referida estrada, no sentido Cumieira - Cardiais seguia o motociclo, com a matrícula (... ) LU, conduzido por B... .

A via naquele local tem uma largura de 4,50m, configura uma recta, o piso é betuminoso e encontra-se seco.

Ao chegar ao cruzamento que dá acesso à referida rua, o arguido sem efectuar qualquer paragem, entrou inopinadamente na estrada não se certificando que circulavam veículos na via, aos quais devia prioridade de passagem, indo embater com a parte frontal do seu tractor no motociclo que ali circulava conduzido por B... » (o “negrito” pertence-nos).

Relembramos, com base na citada “factualidade”, foi imputada ao arguido a autoria material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, tipificado no artigo 291.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, do CP.

Dispõe a al. b) do n.º 1 do artigo referido:

«1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

Pretende a referida norma tipificadora assegurar a prevenção ou, pelo menos, a contenção, dentro de certos limites, da sinistralidade rodoviária, punindo todas as condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado.

Estamos perante um crime de perigo (concreto), como dos seus próprios termos facilmente se conclui.

A propósito dos crimes de perigo, pode ler-se no ponto 31. do preâmbulo do Dec. Lei 400/82 de 23/9, que aprovou o C. Penal:

«O ponto crucial destes crimes - (...) - reside no facto de que condutas cujo desvalor da acção é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».

Nos crimes de perigo há que distinguir entre crime de perigo abstracto e crime de perigo concreto.

Nos primeiros, o perigo, a perigosidade da acção, é presumido “juris et de jure”.

Nos segundos, o perigo, concebido como situação perigosa, surge como “evento” típico, destacado da acção. Aqui, e no que concerne ao preenchimento típico, é necessária a demonstração de um nexo causal entre a acção e a situação perigosa que pode, provavelmente, levar à lesão do bem jurídico.

No que importa ter em conta, para que o crime em análise ocorra, é imprescindível a ocorrência de uma condução de veículo com violação grosseira das regras da circulação rodoviária, apto a criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

A violação grosseira de que fala a norma - pressupondo ao nível do ilícito, um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada, e, ao nível da culpa, que aquele comportamento revele uma atitude particularmente censurável perante o comando jurídico-penal, plasmando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez -, é relativa à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita.

Retomando os caminhos do concreto, segundo a acusação, o comportamento  gerador de perigo - revelador de uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal - estaria na violação das regras de circulação rodoviária visando a prioridade.

Porém, se a acusação tem de conter, inter alia, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. al. b) do n.º 3 do art. 283.º do CPP), obviamente não bastarão, para o dito efeito afirmações genéricas, marcadamente conclusivas ou de cariz puramente normativo.

De acordo com aquela norma processual adjectiva, é elemento fundamental da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. São estes que constituem, daí em diante, o objecto do processo.

A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição, tem como implicação directa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.

Como realça Jorge Figueiredo Dias - Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 45 -, a concepção típica de um “processo acusatório” implica a “estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa”, em sede de determinação do objecto do processo como em sede de ponderação de cognição e dos limites da decisão.

E mais adiante (pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, é dito pelo mesmo autor:

«Deve pois afirmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (...) e a extensão do caso julgado».

«As garantias de defesa a que se refere o art. 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, inculcam, assim, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.

 E isto implica, nomeadamente, que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação lhe não tivesse posto “diante dos olhos”».

Em suma, a acusação deve conter os factos relevantes para a imputação do crime e a determinação da espécie e da medida da sanção.

Volvendo de novo ao caso em apreciação, é dado ver que, no domínio assinalado, a acusação reduz a acção do arguido a expressão similar à usada no referenciado tipo de crime (“aos quais devia prioridade de passagem”). Por aí se fica.

Em consonância com as considerações já tecidas, definidoras do princípio do acusatório, sem a individualização clara dos actos integrantes da conduta do arguido no plano já destacado - máxime, os que circunscrevem, no quadrante fáctico, a precisa acção como atentatória das regras estradais da prioridade (não cedência de passagem a veículo que, em relação ao do arguido, se apresentasse pela direita; inobservância de sinalização?) -, aquela seca referência, expressão legal, é destituída de toda e qualquer relevância jurídico-penal, nomeadamente no domínio do crime imputado.

A acusação, por que formulada nos termos supra enunciados, deveria ter sido rejeitada, em fase processualmente adequada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP.

Não tendo sido, realizado o julgamento, terá remédio a assinalada patologia congénita da acusação, nomeadamente por recurso aos institutos dos artigos 358.º e 359.º do CPP?

A resposta só pode ser negativa.

Eis as razões.
Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Em contraposição à “alteração substancial dos factos”, ou seja, cfr. alínea f) do artigo 1.º do CPP; «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», existe alteração simples ou não substancial sempre que se não verifique uma alteração do objecto do processo. Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objecto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.”. Estes factos novos fazem parte do chamado “objecto do processo em sentido amplo”. Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objecto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º, n.º 1, do CPP - Cfr. Marques Ferreira, Da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal, RPCC, ano I, tomo 2, pág. 226, citado no Ac. da Relação de Guimarães de 11-11-2009, proc. n.º 226/07.6GAVVD.G1, disponível em www.dgsi.pt..
Aqui, a lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Diversamente, e com a ressalva prevista no n.º 3 do art. 359.º do CPP, a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1 do mesmo artigo), sendo que, tratando-se de factos autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a comunicação da alteração substancial ao Ministério Público vale como denúncia para que este proceda pelos novos factos (n.º 2).
Todavia, sempre nos precisos limites assim traçados, aquelas duas figuras jurídicas pressupõem uma acusação substancialmente apta, ou seja, cujo objecto, se comprovado em julgamento, permita a condenação do agente pela prática de determinado crime.
A partir dela, se, em julgamento, surgirem com novos factos decorrentes da globalidade da prova produzida, deverá o tribunal recorrer, conforme a natureza da nova factualidade, aos mecanismos de intervenção contemplados nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Como esclarecedoramente se escreveu recentemente no Ac. da Relação de Coimbra de 02-12-2015, proc. n.º 24/14.0T9FND.C1: «o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria descrita na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução contenha factos suficientes à afirmação do crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso; ou seja, simplisticamente, da imputação, sustentada pelos factos descritos, de um determinado crime, passa-se à imputação de um crime diverso, realidade insuscetível de ser confundida com aquela outra em que se converte «um não crime» em «crime».
Em síntese conclusiva:
- A imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança;
- Consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente;
- Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.
Por todo o exposto, impõe-se, sem mais, declaração de absolvição do arguido, relativamente ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, ficando, deste modo, prejudicadas todas as questões suscitadas no recurso, conexionadas com esse ilícito.

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B) Remanescem, para decisão, as questões de recurso estritamente dirigidas ao crime de omissão de auxílio: nulidade da sentença, erro de julgamento em matéria de facto e (in)existência do ilícito.

I. Sobre a primeira:
Na al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do mesmo Código.
Esta disposição está intimamente ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” - Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211.
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional - Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador - Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302).

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.

É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido» - Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. 

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

No entanto, a motivação conforme às exigências do processo equitativo garantido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não obriga a uma resposta minuciosa a todos os argumentos das partes, contentando-se com uma descrição clara dos motivos fundantes da decisão, sendo a extensão da motivação determinada em função das circunstâncias específicas, nomeadamente da natureza e da complexidade do caso concreto.

O princípio do processo equitativo é compatível com motivação sumária, sendo, porém, indispensável uma fundamentação adequada e proporcional à complexidade da hipótese inerente a cada caso concreto.

O exame crítico das provas deve indicar, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, os elementos de prova e as razões de ciência a partir deles que tenham, na perspectiva do tribunal, sido relevantes, dando a conhecer, deste modo, o processo de formação da convicção do tribunal.

Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, sem dúvida, afigura-se-nos, o tribunal a quo expôs satisfatoriamente os motivos de facto que fundamentaram o decidido.

Conforme expressa fundamentação, supra reproduzida, o tribunal a quo motivou suficientemente, no específico domínio em apreciação, as razões que determinaram a formação da sua convicção, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual decorre perfeitamente reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.

Em contrário das referências analíticas do recorrente, o julgador de 1.ª instância aferiu criticamente a relevância das declarações do próprio arguido, e bem assim do depoimento das testemunhas C... , D... e E... na formação do juízo de convicção para dar  como provados os factos conducentes à omissão de auxílio.

É o que se retira deste extracto da decisão recorrida:

«Das declarações da testemunha D... , operário fabril, residente na Ranha de São João Vermoil, Pombal, resultou que foi este quem se deparou com a assistente prostrada no chão, sozinha, referindo que a mesma apresentava discurso sem nexo e que esteve inconsciente, tendo aquele chamado o INEM ao local (cfr. fls.17).

(…).

O arguido declarou, ainda, que naquelas circunstâncias de tempo e lugar se abeirou junto da assistente, a qual conhecia por ser a carteira da sua terra, e chamou, B... , B... e, a verdade é que, face à ausência de qualquer prova testemunhal que confirmasse a sua versão dos factos quando declarou que foi em ajuda de auxílio, porque desprovido de telemóvel, o Tribunal, até pela sua actuação junto do militar C... quando o abordou em casa, e pelas declarações da testemunha E... , pelo qual o arguido passou posteriormente aos factos e a quem nada disse, formou convicção segura de que o arguido, nervoso com o sucedido, posteriormente a se ter abeirado da assistente, se ausentou de imediato para sua casa, sem nada fazer para prover ao auxílio da assistente, prostrada no chão (conforme reconheceu), se calhar até na esperança de não ser localizado. E, na verdade, bastava ter falado com a testemunha E... quando por este passou, de forma a pedir auxílio, uma vez que não usa telemóvel (o que é compatível com a sua idade e a aversão por vezes registada das pessoas mais idosas às novas tecnologias, até pela sua falta de escolaridade), não tendo sido valorado o seu depoimento quando declarou ainda que pretendia chamar a ambulância através do telefone fixo de casa, uma vez que a sua esposa nada sabia, e tendo demorado algum tempo as autoridades a ali chegar, este ainda nada havia feito».

 Na lógica interna da decisão, existe fundamentação crítica, concisa mas suficiente, que permite a apreensão por quem quer das razões subjacentes à valoração do tribunal a quo, de dar como provados e não provados os factos em causa.

Temos, pois, como evidente que a fundamentação contida no acórdão é bastante para atingir os desígnios da lei, supra referidos, carecendo de suporte legal a nulidade da sentença suscitada pelo recorrente.


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II. Sobre os invocados erros de julgamento:

Neste conspecto, o recorrente insurge-se contra os factos provados 6 e 12 da factualidade dada como provada, pretendendo se lhes confira a natureza de “não provados”, e ainda em relação à factualidade tida como não provada contida nas alíneas b) a d), que deseja seja erigida à condição de “provada”.

Para tanto, o recorrente sustenta-se apenas nas suas próprias declarações.

Procedemos à audição integral da prova oralmente prestada nas várias sessões integrantes da audiência de discussão e julgamento.

Numa análise ponderada do universo probatório, o amplexo declarativo do arguido é, à luz das regras de experiência comum de vida - as que são orientadas no domínio do ensinamento empírico que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante a generalização no sentido de que diversos casos concretos semelhantes tendem a repetir-se -, manifestamente inverosímil.

Quis afastar qualquer responsabilidade pessoal, refugiando-se na impossibilidade de prestar ajuda à vítima no local do acidente, por não dispor de meios para o efeito (segundo disse, nem sequer dispunha de telefone móvel), tendo procurado, infrutiferamente, junto de uma madrinha, cuja residência distava 3/4 Km dali, o devido socorro. Deixou o tractor junto dessa moradia e regressou, a pé, às proximidades do sítio do evento. Não se aproximou mais por ter verificado a existência de diversas pessoas junto da vítima, acrescentou.

Nas suas correlações intrínsecas, as declarações em vista evidenciam claras e inexplicáveis incongruências, reflectidas nas seguintes perguntas, para as quais não vislumbramos qualquer resposta minimamente coerente: Por que se dirigiu o arguido a casa de sua madrinha, se, comprovadamente, existiam moradias habitadas muito mais perto?; Tendo utilizado o tractor neste trajecto, por que não se serviu, para retornar ao local do acidente, do mesmo meio de transporte, evidentemente mais rápido em relação à narrada viagem pedonal?

Mas o remate decisivo na total falta de credibilidade a conceder à versão do arguido decorre dos depoimentos isentos - não transparece nenhum motivo para assim não serem consideradas -, das testemunhas E... e C... .

A primeira relatou a sua proximidade em relação ao local do acidente, sem que o arguido, tendo-o avistado, haja diligenciado, junto de si, por qualquer tipo de ajuda. Ao invés, inopinadamente, decidiu afastar-se.

A segunda deu a saber o que, logo no dia do acidente, quando das diligências por si efectuadas, na qualidade de Agente da GNR, no sentido de determinar o proprietário do tractor naquele envolvido, lhe foi dito pelo arguido; em resumo, após o sinistro, aquele abandonou o local, tendo-se deslocado a Pombal, com a finalidade de adquirir combustível.
Posto isto, sem necessidade de maiores considerações, nenhuma censura nos merece o juízo valorativo subjacente à convicção do julgador do tribunal de 1.ª instância.
Daí que nenhuma alteração se justifique fazer à factualidade posta em causa pelo recorrente.

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III. A pretensão do recorrente, de ser absolvido do imputado crime de omissão de auxílio, assenta apenas na sugerida, mas não aceite, alteração da matéria de facto provada.

Sendo evidente a correcção da sentença recorrida, ao dar por verificado o tipo objecto e subjectivo previsto no n.º 1 do artigo 200.º do CP, apenas remanesce, relevantemente, esta pequena nota: a absolvição a decretar em relação ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário não cerceia, de nenhum modo, a aplicação da circunstância agravativa prevista no n.º 2 do mesmo artigo, porquanto o lexema usado naquele normativo «criação» da situação determinante do auxílio só pode ter o significado de o agente, por si só ou conjuntamente com o lesado, ter tido intervenção no respectivo processo causal, em virtude de acidente, desastre, calamidade, etc.. Por isso, no caso de acidente de viação, é possível a verificação de crime do aludido tipo agravado, mesmo quando se imponha a absolvição do arguido pelos crimes de homicídio/ofensas à integridade física por negligência ou de condução perigosa de veículo rodoviário (neste sentido, Ac. do STJ de 14-12-1995, CJ, tomo III, pág. 263 a 265, e Ac. da Relação do Porto de 25-02-2004, proc. n.º 0344756, publicado em www.dgsi.pt.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra em:

a) Embora com diversos fundamentos, conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, absolver o arguido A... da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário;

b) No mais, manter a sentença do tribunal da 1.ª instância, ficando o arguido condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. no artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos).

Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP).


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Coimbra, 13 de Janeiro de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

(Alberto Mira - relator)

(Elisa Sales - adjunta)