Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
363/11.2TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: SUCUMBÊNCIA
PARTE VENCIDA
VALOR
PROCESSO
ÁGUAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º DO NCPC; 1385º, 1543º E 1544º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – Se não for possível determinar o valor da sucumbência da parte, esse valor é irrelevante para aferir a admissibilidade do recurso e esta fica apenas dependente do valor processual da causa.

II - A consequência da insatisfação, pelo recorrente, do ónus da impugnação da matéria de facto, consiste apenas na rejeição do recurso na parte em que a impugnação se funda na reapreciação da prova objecto do registo áudio – e nunca a rejeição in totum do recurso, por caducidade do direito é impugnação.

III - Sobre a água existente ou nascida noutro prédio podem constituir-se dois tipos de situações: o direito de propriedade, sempre que, desintegrando a água da propriedade superficiária, o seu titular possa usá-la, frui-la e dispor dela livremente; o direito de servidão quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo, ou de outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente.

IV - A conclusão de que se está perante um ou outro daqueles direitos reais está na dependência estrita do respectivo título aquisitivo: se o direito for estabelecido em benefício de determinado prédio, se o titular dele tiver apenas a faculdade de afectar o aproveitamento da água, na estrita medida das necessidades de outro prédio, o caso será de servidão.

V - Se o direito adquirido incide apenas sobre a corrente constituída pelas águas sobrantes ou sobejas – àquelas de que o proprietário não careça - provindas de uma fonte, cuja água continua a pertencer ao dono desta, e ao adquirente apenas é concedido o direito de as aproveitar em função das necessidades de prédio diferente, estamos perante um direito real limitado e não face a uma transferência de domínio.

VI - O direito de propriedade adquirido sobre águas originariamente públicas deve entende-se sempre submetido ao princípio da inseparabilidade do prédio a que se destinam, com a correspondente impossibilidade do seu aproveitamento em prédio diverso.

VII - O critério fundamental da fixação da sanção pecuniária compulsória é constituído pela solvabilidade ou a capacidade económica do devedor, não devendo, porém, deixar se atender às vantagens e ao lucro obtido pelo devedor com o não cumprimento e a conduta anterior desse mesmo devedor – nomeadamente a resistência abusiva ao cumprimento – de modo a que seja possível formular um juízo de prognose sobre a sua conduta futura e a intensidade da sua resiliência ao cumprimento, em ordem a que a sanção seja adequada a vencer essa resistência e levar o devedor a optar, resignado ou não, pelo cumprimento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Os réus, M… e cônjuge, C…, B… e cônjuge, J…, e I… e cônjuge, F…, impugnam, por recurso ordinário de apelação – cujo requerimento de interposição foi apresentado por via electrónica no dia 17 de Fevereiro de 2014 – a sentença da Sra. Juíza de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de S. Pedro do Sul, proferida no dia 2 de Janeiro de 2014 – cuja notificação às partes foi elaborada no dia 3 Janeiro de 2014 – que julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, a que foi fixado o valor de € 8.000,00, que contra eles proposta por J… e cônjuge, I…, na qual se admitiu intervenção principal provocada passiva de E… e cônjuge, L…:

a) Reconheceu os AA. como exclusivos titulares do direito de propriedade sobre a parcela descrita em I) da matéria assente, e que a mesma se autonomizou, por usucapião, do prédio descrito em A) daquela mesma matéria.

b) Reconheceu os AA. como exclusivos titulares do direito de propriedade sobre a parcela descrita em L) da matéria assente, e que a mesma se autonomizou, por usucapião, do prédio descrito em B) daquela mesma matéria.

c) Reconheceu os AA. como exclusivos titulares do direito de propriedade sobre a parcela descrita em N) da matéria assente, e que a mesma se autonomizou, por usucapião, do prédio descrito em C) daquela mesma matéria.

d) Reconheceu os AA., os 3ºs Réus e os intervenientes como titulares, em comum, de um direito de servidão às águas que sobejam do Chafariz da Azenha (alínea R) da matéria assente), para benefício dos seguintes prédios e para as seguintes utilidades:

1º - Para rega do quintal, e dessedentação dos respectivos animais, do prédio descrito supra em a), e para as mesmas utilidades na demais área do prédio de que aquele foi desanexado (alínea A) da matéria assente);

2º - Para rega e merugem do prédio descrito supra em c), e para as mesmas utilidades na demais área do prédio de que aquele foi desanexado (alínea C) da matéria assente);

e) Declarou que os 1ºs Réus não têm direito a levarem as águas sobejas do Chafariz da Azenha, designadamente as que afluem ao tanque apontado em Z) da matéria assente, para o tanque existente no prédio Nogueirão referido em HH) da matéria assente, ou para qualquer prédio que não os descritos na antecedente alínea d).

f) Condenou os 1ºs Réus a absterem-se de conduzirem as águas sobejas do Chafariz da Azenha, designadamente as que afluem ao tanque apontado em Z) da matéria assente, para qualquer prédio, que não os descritos na alínea d) supra.

g) Condenou os 1ºs Réus no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de 500 euros por cada acto violador da obrigação imposta na antecedente alínea f).

Os apelantes – que pedem no recurso a revogação desta sentença – remataram a sua alegação com estas conclusões:

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O âmbito do recurso é, antes de mais, delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e, dentro do objecto do processo, com observância dos casos julgados formados na acção, pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (artº 635 nº 3 do CPC). Finalmente, o âmbito do recurso poder limitado pelo próprio recorrente (artº 635 nº 2 do CPC). Esta restrição pode ser realizada no requerimento de interposição do recurso ou nas conclusões e, neste último caso, tanto pode ser expressa como meramente tácita (artº 635 nº 4 do CPC).

A sentença impugnada estatuiu sobre dois objectos diferenciados: a titularidade pelos autores do direito real de propriedade sobre três parcelas de terreno, destacadas de outros tantos prédios; a contitularidade, pelos autores, pelos réus I… e cônjuge, e pelos intervenientes, do direito real menor de servidão relativo às águas sobrantes de um chafariz público, a inexistência do direito dos apelantes a conduzirem àquelas águas para outros prédios, a abstenção dessa condução e a vinculação dos últimos ao pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada acto de violação daquela obrigação de non facere, da quantia de € 500,00.

Em face das conclusões com os recorrentes encerraram a sua alegação, o seu descontentamento no tocante à sentença impugnada têm apenas por objecto o segmento em que o declarou aquela contitularidade do direito real menor de servidão relativo àquelas águas e vinculou os recorrentes à obrigação negativa de não procederem à sua condução para outros prédios e ao pagamento, por cada violação desta obrigação de pati, de uma quantia pecuniária.

Significa isto que os recorrentes limitaram, tacitamente, o objecto do recurso a estas últimas questões, tendo renunciado, também tacitamente, ao direito à impugnação, no tocante à sentença recorrida, na parte em que declarou a titularidade pelos autores do direito real de propriedade sobre as indicadas parcelas de terreno – pelo que, neste troço, aquela sentença passou em julgado (artº 635 nº 4 do CPC e 217 do Código Civil).

Sempre que a acção comporta várias causas de pedir concorrentes e apenas uma das causae petendi foi considerada procedente, à parte recorrida – i.e., à vencedora – é licito pedir ao tribunal ad quem, mesmo a título subsidiário, a apreciação da causa de pedir que não foi julgada procedente (artº 636 nº 1 do CPC). Regime semelhante vale quanto à decisão sobre questões de facto: o vencedor, pode, também, impugnar, mesmo a título subsidiário, a decisão daquela matéria, não impugnada pelo recorrente, impugnação que pode ter por objecto um erro, não na apreciação da prova, mas sobre o objecto dessa prova, i.e., um erro sobre a selecção da base instrutória (artº 636 nº 2 do CPC).

Se a ampliação, pelo vencedor, do objecto do recurso, for deduzida a título subsidiário, a apreciação do objecto ampliação é condicionado à procedência do recurso interposto pela parte contrária, pelo que apenas há que conhecer do fundamento da impugnação objecto da ampliação, se o recurso do vencido obtiver decisão de procedência.

Porém, os apelados não se limitaram a ampliar, subsidiariamente, embora, o objecto do recurso, antes invocaram mesmo a inadmissibilidade dele e por um duplo fundamento: a irrecorribilidade pela sucumbência dos apelantes; a caducidade do direito à impugnação.

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da sentença impugnada e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que esta Relação é chamada a resolver são as de saber se:

a) O recurso é inadmissível e, caso o não seja;

b) O decisor de facto incorreu, no julgamento dos enunciados de facto insertos na base da prova sob os nºs 14 e 16 num error in iudicando, por erro na avaliação das provas;

c) A sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva os apelantes, in totum, do pedido, e, na negativa;

d) Deve reconhecer-se aos autores, aos réus I… e cônjuge e aos intervenientes, o direito real de compropriedade sobre as apontadas águas, ou, na hipótese negativa;

e) Deve ampliar-se a matéria de facto ou, no caso de resposta contrária, se deve anular-se essa decisão e ordenar-se a sua ampliação e o reenvio do processo para a instância recorrida para que proceda ao julgamento dos enunciados de facto que não o foram.

3.2. Inadmissibilidade do recurso.

Segundo os apelados o recurso seria inadmissível desde logo por os recorrentes se insurgirem contra a sanção pecuniária compulsória, em termos tais que se pode retirar da sua alegação que entendem que a sentença que os condenou é de valor inferior a € 50,00, que o valor patrimonial do direito que entendem ter às águas sobejas do Chafariz – público – da Azenha, que caem e são estancadas no tanque é inferior a € 50,00. Ergo – concluem os apelados – o recurso deve ser rejeitado por a sentença não ter valor bastante para que seja admitido.

Temos por evidente a improcedência da objecção.

A instância de recurso supõe, além dos pressupostos processuais gerais, um pressuposto processual específico objectivo - a recorribilidade da decisão - i.e., uma condição para que o tribunal ad quem decida da procedência ou improcedência do recurso.

Nestas condições, o recurso pode existir mesmo quando faltem os pressupostos necessários à apreciação do seu objecto; neste caso, porém, o recurso é inadmissível. Neste sentido, vale plenamente, no domínio da instância de recurso, devidamente reconformada, a conhecida asserção segundo a qual, os pressupostos processuais do recurso são pressupostos, não da existência do recurso – mas da admissibilidade do recurso existente.

Um obstáculo considerável à recorribilidade da decisão prende-se com a alçada do tribunal, i.e., com o limite do valor até ao qual o tribunal julga sem que seja admissível recurso: a primeira condição para que a decisão seja recorrível pelo valor da causa é a de que o seu valor exceda a alçada do tribunal de que se recorre: o tribunal a quo (artº 629 nº 1, 1ª parte, do CPC).

A alçada do tribunal de 1ª instância e da Relação em matéria cível é, desde 1 de Janeiro de 2008 – e ao tempo da proposição da acção, 27 de Outubro de 2011 - de € 5.000.00 e de € 30.000,00, respectivamente (artº 24 nº 1 da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção do artº 5 do Decreto Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).

A superioridade do valor da causa relativamente ao valor da alçada do tribunal de que se recorre é condição indispensável mas não suficiente para que o recurso – independente - seja admissível: é ainda necessário que o valor da sucumbência do recorrente seja superior a metade da alçada do tribunal recorrido (artº 628 nº 1, 2ª parte, do CPC). Tratando-se de tribunal da 1ª instância, o valor da sucumbência do recorrente deve, portanto, exceder € 2.500.00; se tratar da Relação, o valor dessa sucumbência deve ultrapassar € 15.000.00.

Nem sempre, porém, é possível determinar o valor da sucumbência da parte. Nesta hipótese, o valor da sucumbência é irrelevante para aferir a admissibilidade do recurso e esta fica apenas dependente do valor da causa.

No caso – como se sublinhou – o objecto do recurso é constituído pelo direito às águas sobrantes de um chafariz – direito que a sentença reconheceu aos autores e alguns dos demandados - e pela obrigação de abstenção a que sentença vinculou os recorrentes de condução daquelas águas para outros prédios e de pagamento, por cada violação de tal obrigação negativa, da sanção pecuniária no valor de € 500,00.

Ora, o valor deste direito e daquela obrigação – como aliás, de todos os demais direitos alegados na acção - é, em absoluto, de todo, indeterminado, indeterminação de que decorre, por sua vez, o valor da sucumbência dos apelantes – indeterminação que, aliás, se deve ter por propositada, e de que decorre, de um aspecto, a ausência de qualquer relação entre o valor real dos bens litigados e o da causa, e, de outro, da atribuição, pelos autores, à causa de um valor – que os réus não impugnaram – ordenado, precisamente, pela finalidade conspícua de garantir o direito ao recurso em um grau, com um custo económico, em termos de taxa de justiça e custas, reduzido.

Face à apontada indeterminação da sucumbência dos apelantes, o valor desta sucumbência, enquanto parâmetro aferidor do recurso, deve ter-se por indiferente, devendo tal admissibilidade ser aferida pelo valor processual da causa. E, por este último valor – que se considera definitivamente fixado - o recurso é claramente admissível.

                Para o problema da admissibilidade do recurso pelo valor da causa é, de todo, irrelevante que os recorrentes não tenham indicado, no requerimento de interposição, o valor do recurso. Desde logo, porque esta indicação se refere, não ao valor processual do recurso – mas ao seu valor tributário, i.e., ao valor para efeitos de determinação do quantum de taxa de justiça e de custas (artº 11 nº 7 do Regulamento das Custas Processuais). Depois esse valor é o da sucumbência do recorrente – mas só quando esta seja determinável; não o sendo, o valor do recurso para efeitos tributários é o do valor processual da causa.

De resto, a alegação dos recorrentes, não comporta a interpretação de que, no seu ver, o valor do direito à água equivale ao valor da sanção pecuniária pedida pelos apelantes - € 50,00 por cada violação da obrigação de abstenção – ou fixada pela sentença impugnada - € 500,00. Aliás, o valor da sanção pecuniária compulsória – tanto o pedido, como o fixado - não exerce qualquer influência no valor processual da causa e, correspondentemente, na relação desta com a alçada do tribunal (artº 297 nº 2, in fine, do CPC)[1]: aquela sanção só é fixada na sentença como acessório da condenação principal que visa reforçar, e fica subordinada a um evento futuro e incerto: a resistência do devedor. A sanção pecuniária compulsória é objecto de uma condenação acessória e condicional, ordenada para o cumprimento da obrigação principal e apenas para o caso de o devedor a violar; pode, portanto, não vir a ser devida sequer.

Por este lado, não há, pois, razão para ter o recurso por inadmissível.

Segundo, porém, os apelados, concorreria, no caso, um outro obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso: a caducidade do direito à impugnação.

A impugnação das decisões, designadamente pelo recurso, está sujeita a prazos peremptórios cujo decurso importa a extinção, por caducidade, do direito a impugnação (artº 139 nºs 1 e 3 do CPC).

A razão da sujeição da impugnação a prazos peremptórios explica-se por si: evitar o estado permanente de incerteza sobre a eficácia da decisão proferida. A impugnação caduca quando se extingue ope legis, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado, em consequência de certo evento a que a lei atribui efeito extintivo – o decurso do prazo peremptório a que esta sujeita. Verificado esse evento, e a partir do momento em que se verifique, o direito à impugnação cai por si. A omissão da impugnação não tem, por definição, um carácter negocial.

Mal vale a perder uma palavra para explicar que além de peremptório o prazo de impugnação é contínuo, está sujeito a tolerância, mediante o pagamento de multa ou por verificação do justo impedimento, e é prorrogável, ainda que uma só vez e por igual período, por acordo das partes (artºs 139, 140 e 141 CPC). Note-se, porém, que, na ausência de impugnação, o trânsito em julgado da decisão se verifica no terminus ad quem do prazo normal da sua dedução.

Os recursos ordinários devem, em regra, interpostos no prazo de 30 dias, contado a partir da notificação da decisão impugnada (artº 638 nº 1 do CPC).

A este prazo acresce o de 10 dias quando o recurso tiver por objecto também a impugnação da decisão da matéria de facto e envolva a reponderação da prova gravada (artº 638 nº 7 do CPC). Esta ampliação do prazo de interposição justifica-se, decerto, pela necessidade de dar ao recorrente a oportunidade para cumprir o particular ónus de impugnação da decisão da matéria de facto a que a lei o adstringe. A verdade é que, não raro, a impugnação da matéria da matéria facto constitui simples pretexto para obter o alargamento do prazo geral de interposição do recurso e que justificando-se a ampliação daquele prazo pela maior complexidade do recurso, fica por explicar que a esse aumento do prazo da interposição não corresponda um simétrico alargamento do prazo de elaboração do acórdão correspondente.

Na espécie sujeita, o recurso tem por objecto a impugnação da decisão da questão de facto. O prazo peremptório da sua interposição é, por isso, de 40 dias, tendo atingido o seu terminus ad quem no dia 17 de Fevereiro de 2014 - e foi nesse dia exactamente que os recorrentes apresentaram, por via electrónica, o requerimento de interposição do recurso (artºs 132 nº 1, 248, 638 nºs 1 e 7 do CPC).

Dizem, todavia, os apelados: esse maior prazo só é aplicável se o recurso, no segmento que tem por objecto a reapreciação da prova gravada, for admissível, e, no caso, não o é, dado que os apelantes não cumpriram o ónus da impugnação da matéria de facto representado pela indicação exacta das passagens da gravação em que se fundam para assacar à decisão a matéria de facto o error in iudicando desta matéria.

Quando a impugnação tenha por objecto a decisão da questão de facto, o recorrente está adstrito ao ónus de especificar, sob pena de imediata rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera erroneamente julgados, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação (artº 640 nº 1, a) a c) do CPC). Neste último caso, quando os meios de prova tenham sido objecto de registo sonoro, incumbe ainda ao recorrente, sob a cominação da imediata rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova, sem prejuízo, de, por sua iniciativa, proceder à transcrição (artº 640 nº 2 do CPC).

Ónus que, aliás, não se considera satisfeito, por exemplo, através da simples indicação do início e do fim da gravação do depoimento das diversas testemunhas, ou de outros intervenientes processuais, ouvidos na audiência final.

A exactidão desta conclusão torna-se patente pelo exame da evolução legislativa quanto do conteúdo do apontado ónus de impugnação da decisão da questão de facto.

Efectivamente, no sistema de recursos imediatamente anterior à sua reconformação pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aquele ónus de impugnação considerava-se satisfeito, quanto ao ponto considerado, através da simples indicação dos depoimentos em que o recorrente baseava a sua discordância, por referência ao assinalado na acta, que deveria documentar o início e o termo da gravação de cada depoimento (artº 690-A nº 2, in fine, do CPC). Era, portanto suficiente, para que o recorrente se livrasse daquele ónus, a especificação dos depoimentos que, no seu ver, impunham, para os pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida, e a sua localização no registo sonoro, através da simples indicação, nesse registo, do seu início e do seu terminus.

Com a Reforma dos recursos, aquele ónus – que transitou, qua tale, para o Código de Processo Civil vigente - tornou-se mais exigente: não basta a localização dos depoimentos no registo, pela simples indicação do seu início e do seu fim: reclama-se a indicação, precisa, exacta, das passagens da gravação – o mesmo é dizer dos depoimentos – que, no ver do recorrente, inculcam, para os pontos de facto que reputada mal julgados, uma decisão diferente da que foi achada pelo decisor de facto da 1ª instância.

Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, os troços ou os segmentos da prova pessoal susceptíveis de inculcar o error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar os depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (artº 640 nº 2, b) do CPC).

E a exigência de que a indicação seja exacta, precisa, específica, visa, nitidamente – sobretudo nos casos, como é o do recurso, de depoimento extensos – permitir, tanto à parte contrária, como ao Tribunal ad quem – uma audição, fácil e célere, das passagens da gravação em que se funda a impugnação, de modo a avaliar, de forma ágil, se os troços do registo apontados pelo recorrente são ou não adequados a inculcar o error in iudicando invocado pelo impugnante, sem prejuízo, todavia, da actuação, pelo tribunal superior dos seus poderes de investigação oficiosa, portanto da faculdade de proceder à audição de quaisquer outros segmentos do registo, do mesmo ou de outros depoimentos.

No nosso caso, é patente – como salientam os apelados – que os recorrentes não cumpriram um ónus da impugnação da decisão da matéria de facto a que a lei é terminante em vinculá-los - o da indicação, com exactidão das passagens da gravação em que funda o recurso, no segmento relativo à impugnação da decisão da questão de facto, dado que se limitaram a indicar o início e o fim dos depoimentos.

Mas a consequência da insatisfação do apontado ónus é apenas uma: a rejeição do recurso na parte em que a impugnação se funda se funda na reapreciação da prova objecto do registo áudio – e nunca a rejeição in totum do recurso, por caducidade do direito é impugnação. Para que o acto processual de interposição do recurso beneficie do maior prazo e, portanto, não seja atingido pela caducidade, basta que o recorrente impugne, com fundamento no conteúdo da prova pessoal registada, bem ou mal, a decisão da matéria de facto; se, porém, não cumprir um qualquer dos ónus dessa impugnação dessa matéria, a cominação aplicável é só esta: a rejeição, nessa parte, e só nessa parte do recurso.

É, justamente, o nosso caso. Os recorrentes não deixaram, extinguir, por caducidade, o direito à impugnação; como, porém, não cumpriram o apontado ónus dessa impugnação, o recurso, no segmento em que tem por objecto a decisão da questão de facto, na parte em que se funda na prova objecto de registo sonoro, deve ser rejeitado.

Pode, porém, perguntar-se se, face ao não cumprimento daquele especial ónus de impugnação, a rejeição do recurso é irremissível ou se não deve, neste domínio, actuar-se o princípio da cooperação intersubjectiva, na vertente do dever prevenção, que vincula o tribunal, e, consequentemente, preceder a decisão de rejeição do recurso, na parte afectada, por um despacho de convite, dirigido ao apelante, de aperfeiçoamento da sua alegação, evitando, assim, que o êxito do recurso possa ser irremediavelmente comprometido por uso inadequado do processo.

A letra da lei inculca nitidamente uma resposta negativa. De outro aspecto, o convite ao aperfeiçoamento da alegação, além de resolver num novo alargamento do prazo do seu oferecimento alegação, contraria abertamente a razão que levou a lei a adstringir às partes àquele ónus: a de desmotivar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto.

Deve, por isso, concluir-se que não há, neste plano, espaço, para um tal despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações[2].

Nestas condições, é meramente consequencial a rejeição, nessa parte, do recurso[3].

A observação da realidade judiciária – notou-se já - mostra que muitas vezes a impugnação da matéria de facto é simples pretexto para se obter o acréscimo do prazo de oferecimento da alegação. Todavia, esta estratégia processual não deve ser combatida através da caducidade do direito à impugnação, por inaplicabilidade do maior prazo - mas através da exigência de que a impugnação da matéria de facto seja efectiva, séria, honesta e fundada. O mal não está na impugnação da matéria de facto, que, de resto, corresponde à natureza de recurso global que se deve reconhecer à apelação: o verdadeiro mal está na falta de seriedade ou de fundamento dessa impugnação, que redunda muitas vezes numa inane manifestação de inconformismo por parte do recorrente.

Em absoluto remate: o recurso não se declarar extinto por caducidade do direito à impugnação – mas deve ser rejeitado na parte que se fundamenta na prova pessoal, objecto de registo sonoro, produzida oralmente na audiência final.

Rejeição, que, no caso, tem esta consequência: a de que os factos materiais da causa são os apurados na instância recorrida. Só assim não será caso se deva tomar conhecimento da ampliação do objecto do recurso, deduzida a título subsidiário – i.e., para o caso de procedência desse mesmo recurso – pelos apelados.

A sentença impugnada, julgando procedente pedido subsidiário dos autores – o pedido principal tinha por objecto a declaração de que aqueles, os demandados I… e cônjuge, e os intervenientes, E… e cônjuge, eram donos, em comum, das águas sobejas do Chafariz da Azenha – foi terminante na declaração de que aqueles eram antes titulares de um direito de servidão às águas – conclusão relativamente à qual não vem alegado um error in procedendo. Os recorrentes acham, porém, que o caso não é de servidão – mas de propriedade daquelas águas, dado que, entre outras razões, só as águas ou nascentes em terrenos ou prédios próprios ou alheios é que podem vir a constituir servidões, por todos os modos de constituição destas, incluindo a destinação do pai de família e, no caso, divisão ou partilha do ou dos prédios por elas beneficiadas.

Esta alegação exige a determinação do exacto direito real através do qual é actuado o aproveitamento da água, o que vincula ao exame do título constitutivo daquele direito.

3.3. Determinação do direito ao aproveitamento da água.

Um distinguo particularmente relevante em matéria de águas é o que as separa em públicas ou particulares (artº 1385 do Código Civil).

Na espécie do recurso, não dúvidas não restam que as águas litigadas, apesar de sobejas, eram originariamente públicas dado que tinham origem em fonte pública – o Chafariz da Azenha, pertença da Freguesia de Sul (artº 6 nº 1 e 32 nº 1 do Decreto nº 5 787, III, de 10 de Maio de 1919, correntemente designado por Lei das Aguas).

Simplesmente, aquela autarquia deliberou, em data anterior a 24 de Julho de 1966, alienar, por licitação pública, as águas sobejas daquela fonte.

A sentença apelada viu naquela deliberação um acto de desafectação da dominialidade, embora tácita. Aquele acto administrativo configura, realmente, um acto de desafectação daquelas águas do domínio público. Trata-se, porém, de um acto de desafectação expresso.

A cessação da dominialidade de uma coisa, que pode ser genérica ou singular, pode ser expressa ou tácita. A desafectação expressa pode resultar de lei ou de acto administrativo que declare não dominial, ou sem utilidade pública, certa e determinada coisa, como, v.g., que declare a alienável essa mesma coisa. A desafectação tácita ocorre sempre que uma coisa deixe de servir o seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições dos demais bens do domínio privado da administração: neste caso, a desafectação não resulta de acto legislativo ou administrativo – mas da prática consequente à perda da utilidade pública dos bens. A desafectação tácita significa que o bem perdeu o carácter público e ficou pertencendo ao domínio privado da pessoa colectiva pública, titular do direito real de propriedade sobre ela: a partir do momento em que verifique a desafectação tácita, o bem entra no comércio jurídico, tornando-se, por isso, alienável e prescritível. Note-se, todavia, que o simples desinteresse ou abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a utilidade pública não vale como desafectação tácita: a desafectação deve ser consequência da cessação da função que estava na base do carácter dominial[4].

Ora, no caso, a desafectação resultou de acto administrativo que declarou o bem público – as águas sobejas – alienáveis. O acto de desafectação – singular – foi, pois, expresso. Comprovada a desafectação, expressa ou tácita, o bem não deixa de continuar a pertencer à pessoa colectiva pública a que pertencia – passando simplesmente a integrar o seu domínio privado – dado que a desafectação apenas importa a cessação da utilidade pública e, portanto, o fundamento da dominialidade[5].

Operada a desafectação, a autarquia alienou, em hasta pública, por um preço, o direito às águas remanescentes ou sobrantes a um antecessor dos autores e dos demandados: M...

O que se pergunta é que direito é que, com aquele acto oneroso, foi alienado pela autarquia e adquirido pelo indicado antecessor das partes. O direito real de propriedade ou antes – como se lê na sentença – o direito real menor de servidão?

De harmonia com a máxima, servitus fundus utililis, esse debet, as servidões prediais traduzem, vincadamente, uma relação entre prédios: a servidão deve traduzir uma utilidade real de um prédio em favor de outro, ampliando as qualidades naturais de um prédio – o serviente – para outro - o dominante (artºs 1543 e 1544 do Código Civil)[6].

Sendo a servidão um direito real, ainda que menor, é, evidentemente, inerente à coisa, acompanhando-o em todas as suas vicissitudes. Daí que não possa ser separada dos prédios a que pertence (artº 1545 nºs 1 e 2 do Código Civil). Além de inseparáveis, as servidões prediais estão ainda sujeitas ao princípio da indivisibilidade: a servidão onera todo o prédio dominado a favor de todo o prédio dominante (artº 1546 do Código Civil).

Descritivamente, a classificação mais relevante das servidões prediais é a que as cinde em legais e voluntárias; as primeiras derivam da lei; as segundas são constituídas no exercício da autonomia privada (artº 1547 nº 2 do Código Civil). As servidões legais, porque podem ser constituídas, na falta de constituição voluntária, por sentença judicial ou decisão administrativa, dizem-se coactivas ou judiciais.

Note-se que as servidões legais não resultam imediatamente da lei. A expressão servidão legal, não designa casos em que a servidão é um efeito da lei, sem o concurso de um acto jurídico – mas sim os casos em que a lei concede ao titular do prédio dominante o direito – potestativo – de exigir a constituição da servidão. Neste caso, uma de duas: ou o titular do prédio serviente colabora na constituição da servidão ou se recusa – mas em ambos os casos, se fala de servidão legal. A recusa de colaboração do prédio dominado pode ser ultrapassada por recurso ao tribunal, ou, nalguns casos, às entidades administrativas (artº 1547 nº 2 do Código Civil).

De harmonia com a publicidade de que sejam acompanhadas, as servidões prediais são aparentes e não aparentes: as primeiras, ao contrário das segundas, revelam-se por sinais exteriores permanentes (artº 1548 do Código Civil). Esta distinção é importante em vista da regra de que só as servidões aparentes podem ser constituídas por usucapião (artºs 1548 nº 1 e 1293 b), a contrario, do Código Civil)[7].

Classificação diversa é a que opera o distinguo entre servidões contínuas e descontínuas: as primeiras são as que se exercem permanentemente, independentemente de qualquer acção do homem; as segundas são as de exercício intermitente, dependente de acção humana. Exemplos desta última espécie de servidão são, decerto, as servidões de aqueduto, de estilicídio - e de vistas, uma vez que nelas o prédio dominante recebe a utilidade ou o benefício do prédio dominado sem necessidade de acção humana, no caso da servidão de vistas, em virtude da localização da janela, da porta, da varanda, do terraço do eirado ou obra similar.

O regime concreto de cada servidão deve resultar do respectivo título constitutivo, entendido, naturalmente, não como documento, mas como o facto ou conjunto de factos, de que a servidão tira a sua existência e seu modo de ser[8]. É o que decorre directamente da lei, ao dispor que as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão[9], pelo respectivo título (artº 1564 do Código Civil); na sua falta ou insuficiência, aplicam-se as regras supletivamente dispostas na lei, das quais se extrai o princípio do melhor aproveitamento económico possível seja do prédio serviente seja do dominante: a servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor sacrifício possível do prédio dominado (artºs 1565 nº 2, 1566 nº 2 e 1568 nºs 1 e 2 do Código Civil).

O princípio regulativo da extensão ou do modo de exercício da servidão representado pelo melhor aproveitamento económico possível, tanto do prédio dominante como do dominado é puramente subsidiário, no sentido de que só intervém para solucionar dúvidas que o título não resolva (artº 1565 nº 2, proémio, do Código Civil). Dito doutro modo: a delimitação positiva do conteúdo positivo da servidão é dada, em primeiro lugar, pelo título e, só subsidiariamente, por actuação daquele princípio regulativo.

Quer isto dizer que se o título da servidão regular de forma suficiente e clara a extensão ou modo do seu exercício, não há que actuar aquela regra subsidiária: a extensão e o modo de exercício da servidão são, irrefragavelmente, as que forem dadas pelo respectivo título constitutivo.

Como a lei considera as águas coisas imóveis, compreende-se que os respectivos títulos aquisitivos sejam os mesmos da aquisição da propriedade sobre imóveis ou da constituição de servidões (artº 204 nº 1 b) e 1390 nº 1 do Código Civil).

O direito à água que nasce em prédio alheio tanto pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, como apenas um direito de a aproveitar noutro prédio, com a consequente restrição às necessidades desse prédio: no primeiro caso, o direito constituído sobre a água, é o direito real de propriedade; no segundo, é limitadamente um direito real menor de servidão[10].

Assim, se se adquiriu o poder de dispor livremente da água que nasce em prédio alheio – ou o direito de a captar subterraneamente – constitui-se um direito de propriedade ou de compropriedade; se qualquer destes direitos está limitado às necessidades de um outro prédio, a figura será da servidão[11].

Sobre a água existente ou nascida noutro prédio podem, assim, constituir-se dois tipos de situações: o direito de propriedade, sempre que, desintegrando a água da propriedade superficiária, o seu titular possa usá-la, frui-la e dispor dela livremente; o direito de servidão quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo, ou de outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente[12].

Todavia, a conclusão de que se está perante um ou outro daqueles direitos reais está na dependência estrita do respectivo título aquisitivo: se o direito for estabelecido em benefício de determinado prédio, se o titular dele tiver apenas a faculdade de afectar o aproveitamento da água, na estrita medida das necessidades de outro prédio, o caso será de servidão. Entre ambos os direitos reais existe, evidentemente, uma profunda diferença tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão; no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere o seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.

No caso, de harmonia com o título constitutivo – o contrato concluído entre a Freguesia de Sul e o antecessor das partes – a água alienada é apenas a sobrante ou sobeja. M… não adquiriu, portanto, qualquer direito real sobre as águas da fonte: a Freguesia de Sul – proprietária da fonte – manteve a plena disponibilidade da água do Chafariz. Realmente, o direito adquirido por M… incide apenas sobre a corrente constituída pelas águas sobejas, provindas daquela fonte e águas sobejas são, apenas, por definição, aqueles de que o proprietário não careça.

Como o que se alienou foi apenas as águas sobrantes, se a partir de certo momento, o titular do direito à agua – a Freguesia – tiver interesse em utilizá-la na totalidade, desaparece a corrente sobrante e, consequentemente, os direitos sobre ela adquiridos, que se extinguem ou caducam por falta do respectivo objecto. O adquirente tem apenas direito às águas sobejas – enquanto existirem e na medida em que existam. A entidade a quem incumbe a administração do Chafariz pode, portanto, afectar a água a qualquer dos usos permitidos por lei, sem necessidade de respeitar os direitos adquiridos sobre as águas sobrantes. Só assim não seria se o direito adquirido incidisse directamente sobre a água existente na fonte – o que não é, comprovadamente, o caso.

Estamos, portanto, nitidamente, perante um direito real limitado e não face a uma transferência de domínio – desde logo porque ao objecto falta uma individualização que é essencial ao nascimento de um direito de propriedade – dado que a água continuou a pertencer ao dono da fonte, tendo-se apenas concedido ao particular a possibilidade de a aproveitar, em função das necessidades de um prédio diferente.

E esta conclusão é confirmada pela posse, boa para usucapião, que – de harmonia com a matéria de facto apurada na instância recorrida - é exercida sobre as águas pelos autores, pelos réus B… e cônjuge, e pelos intervenientes.

Diz-se na matéria de facto que o exercício, por aqueles, de poderes de facto sobre as águas é actuado como de coisa ou direito próprio se tratasse.

A posse faculta ao possuidor a aquisição do direito nos termos do qual aquela posse foi exercida. O direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base. Estando em causa a usucapião do direito real de propriedade, é claro que não é suficiente que alguém se apresente como exercente dos actos de posse para que beneficie da aquisição daquele direito. É ainda necessário que essa posse seja actuada a título de dono: o possuidor que pretenda usucapir a propriedade deve actuar nas vestes de proprietário[13].

Ora, no caso, é patente que a apontada posse não foi exercida – nem isso foi alegado – a título de proprietário. Foi, decerto, exercida na convicção de que se tinha o direito de usar a água – mas não de que o direito de cuja titularidade estavam convictos fosse o direito real máximo: o direito de propriedade.

Os factos materiais fixados na instância recorrida mostram, por outro lado, que o direito à água sobeja foi estabelecido em benefício dos prédios de que o adquirente – M… – era titular e que, entretanto, por virtude da sua morte, foram adquiridos, por sucessão, pelos respectivos herdeiros: os prédios descritos nas alíneas A) a C) dos fundamentos de facto da sentença apelada: o direito adquirido é, portanto, o direito de servidão.

Conclusão que, aliás, bem se pode confortar na declaração produzida pelos interessados no contexto do processo de inventário em que se procedeu à partilha do relictum de M... Na respectiva conferência aqueles declararam que o prédio denominado Vale de Cima – correspondente ao descrito na alínea B) dos fundamentos de facto da sentença impugnada – tinha quatro dias de água, semanalmente, durante todo o ano, do tanque da Casa de Habitação. Abstraindo da exactidão desta afirmação – uma vez que não é possível o transporte por gravidade da água do tanque para aquele prédio – o que avulta nesta declaração é ainda – como é característico da servidão - a relação entre prédios, a relação imobiliária: não se diz que este ou aquele concreto interessado tem direito à água – mas antes que quem tem aquele direito é o prédio. O mesmo é dizer: o proveito da água não é prestado a este ou aquele interessado – mas ao prédio.

A isto opõem os apelantes que para que, no caso, seja possível falar de servidão, falta um requisito fundamental: o prédio dominado ou serviente. Mas a objecção não procede.

A servidão pressupõe necessariamente dois imóveis, entre os quais se estabelece uma relação que beneficia um deles, fundamento ou base real da situação que a lei pretendeu reforçar ao consagrar o princípio da inseparabilidade. O objecto do direito é a coisa serviente – mas a coisa cujo gozo se possibilita ou amplia é a dominante. Por isso se exige que haja um proveito objectivo da coisa, nunca bastando um proveito de um sujeito individualmente determinado, ou formas de gozo meramente subjectivas, pois que essas não representam proveito do prédio.

Ora, no caso, o prédio dominado ou serviente é, naturalmente, aquele de provêm as águas sobejas.

Como decorre da controvérsia desenvolvida pelas partes nos respectivo articulados, o conflito eclodiu com o acto de condução, pelos apelantes M… e cônjuge, das águas sobejas para prédios que não integravam a herança de M...

Constituída uma servidão pode, evidentemente, ampliar-se a novos prédios o proveito que inicialmente era só auferido por um prédio. É, assim, por exemplo, que uma servidão de aqueduto por onde sejam conduzidas águas sobejas poderá ser aproveitada pelos proprietários de novos prédios, pagando eles uma quota proporcional à despesa com a condução das águas até ao ponto donde se pretendem derivar. Quando os proprietários a favor dos quais não estivesse constituída a servidão usem deste direito, o que se pergunta é se não será sobre a própria servidão que se constituirá uma nova servidão (artº 1561 nº 4 do Código Civil).

Resposta afirmativa significaria a negação do princípio de que as servidões são inseparáveis dos prédios a que, activa ou passivamente pertencem, dado que a servidão constituiria, em tal caso, de per se, o objecto de uma nova relação jurídica, doutrina, que, porém – de harmonia com o princípio servitus servitus non esse potest – se não tem por admissível.

Sendo certo que nas vantagens resultantes de uma servidão podem participar prédios que a ela não tinham direito, o objecto das novas relações jurídicas que assim se constituem é sempre o prédio serviente sobre que recaía a servidão originária e, sendo assim, não pode deixar de concluir-se que o objecto da nova servidão não é a antiga servidão. Só haverá uma nova servidão no caso de o prédio dominante se tornar, por sua vez, serviente. Em todos os outros casos, e quer seja o proprietário do prédio serviente que se utilize da servidão, que seja um terceiro, não haverá uma nova servidão – mas uma modificação da servidão originária.

Se for um terceiro que se aproveite da servidão e esse aproveitamento se der sobre a servidão tal como se acha constituída de forma a que sejam os mesmos os prédios servientes, a servidão subsistirá, sendo o mesmo o encargo e havendo apenas um maior número de prédios que dele se aproveitam. No caso, não haverá também uma nova servidão – mas uma modificação da servidão primitiva. Na hipótese de, porém, o proprietário que se aproveita da servidão só o poder fazer por intermédio do prédio dominante ou, quando haja mais do que um prédio dominante, por intermédio do último, este prédio, que só era dominante, tornar-se-á, por seu turno, serviente e, em tal caso, constituir-se-á uma nova servidão. Esta servidão produzirá ou não os seus efeitos em relação ao prédio serviente em que se achava constituída a servidão originária, conforme os respectivos donos hajam ou não intervindo na constituição da nova servidão.

A esta luz, a dúvida que logo acode ao espírito é a de saber se os factos materiais apurados mostram quer a modificação da servidão originária, quer a constituição, a favor dos prédios dos réus M… e cônjuge, de uma nova servidão, à sombra da qual lhes é lícito fazer derivar as indicadas águas sobejas. E a verdade é que não mostram.

A dado passo da sua alegação, os apelantes referem-se a uma forma específica de constituição das servidões: a destinação do pai de família.

A servidão constitui-se por destinação do pai de família quando, havendo em dois prédios, pertencentes ao mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, sinais aparentes e permanentes de serventia de um em relação a outro, venham a ser separados[14]. A servidão constitui-se, então, nos precisos termos em que, por decisão do anterior proprietário comum, havia transferência de utilidades de uma parte para a outra ou de um prédio para outro, excepto se, na separação, se decidir outra coisa (artº 1549 do Código Civil).

Os seus requisitos são, pois:

- Dois prédios do mesmo dono ou duas fracções do mesmo prédio;

- Sinais visíveis e permanentes que revelem serventia de um para com outro;

- A separação dos dois prédios ou fracções;

- A inexistência de declaração contrária à servidão, no documento relativo à separação[15].

A existência de sinais visíveis e permanentes constitui, claramente, característica quer da servidão aparente, única que é susceptível de aquisição por usucapião, quer da constituição da servidão por destinação do pai de família[16].

Por sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão. Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc.[17]. A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.

Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. Não é indispensável que os sinais existem em ambos os prédios ou em ambas as fracções dele, dado que a lei refere terminantemente os sinais postos em um ou em ambos: quer os sinais existam no prédio dominante, no dominado ou ambos, basta que as obras ou sinais tornem a servidão patente[18].

Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência[19].

Não se exige, porém, que os sinais reveladores da serventia tenham sido postos pelo antigo titular do direito real de propriedade ou por algum dos seus antecessores: esses sinais podem, por isso, ter sido postos pelo proprietário mas igualmente, por exemplo, pelo usufrutuário ou pelo arrendatário; para que a servidão se constitua basta que o último proprietário do prédio tenha conhecimento da sua existência e tenha consentido na sua manutenção. Essencial é sempre que os sinais que tornam patente a serventia prestada por um prédio a outro existam à data da separação ou da divisão do prédio.

Desde que a serventia só se transforma em servidão – de harmonia com o princípio clássico que exclui a servidão sobre coisa própria (nemini res sua servit) – quando os prédios ou as fracções do mesmo prédio se separarem, é axiomático que os sinais que a revelam devam existir ao tempo da sua fragmentação.

No caso, porém, a servidão apontada deve ter-se por constituída por contrato – concluído ente Freguesia de Sul e M… – a que se sobrepôs, posteriormente, um modo não negocial de constituição daquele mesmo direito: a usucapião. De resto, falta no caso, o elemento característico definidor da constituição de servidão por destinação do pai de família: a separação de domínios de dois prédios ou de fracções do mesmo prédio ligados entre si por uma relação de serventia.

Os autores insistem, todavia, que o direito às águas sobejas objecto de litígio é um direito de propriedade. E dão para este direito esta causa aquisitiva: a declaração produzida pelos interessados, na conferência que teve lugar no processo de inventário que se procedeu para partilha do património hereditário de M…

Em primeiro lugar, cumpre notar, que o direito às águas sobejas – como linearmente decorre da relação e da descrição de bens produzida naquele inventário – não foi objecto de relacionação nem de descrição e, portanto, não figurou no inventário nem, consequentemente, foi objecto de adjudicação na sentença que julgou a partilha.

Depois, a partilha, de harmonia com a doutrina que se tem por preferível, é um acto puramente modificativo, visto que se limita a converter a posição de mero contitular de um único direito sobre toda a coisa ou universalidade na situação de titular único dum direito da mesma espécie sobre uma fracção determinada da coisa ou sobre algum ou alguns objectos concretos da universalidade[20]. A partilha – tal como a sucessão mortis causa - não tem, portanto, a virtualidade de atribuir direitos que não se compreendem no património dela objecto: para que os herdeiros de M… pudessem adquirir o direito de propriedade sobre as águas sobejas era indispensável a demonstração de que aquele era titular desse mesmo direito real, o que, pelas já apontadas, não é exacto.

De resto, os interessados limitaram-se a declarar o direito do prédio denominado Vale de Baixo tinha direito a 4 dias de água, do tanque da Casa de Habitação – mas não especificaram a natureza desse direito.

Não há, decerto, qualquer obstáculo que os direitos adquiridos sobre águas dominiais se traduzam em verdadeiros direitos de propriedade. A lei refere-se expressamente a esses direitos, dado que considera particulares águas originariamente públicas, como sucede, por exemplo, com as águas públicas concedidas perpetuamente para regas ou melhoramentos agrícolas (artº 1386 nº 1, e) do Código Civil). Todavia, as águas públicas apropriadas estão sujeitas a um regime jurídico bem diverso do regime normal da propriedade sobre imóveis.

O titular de um direito adquirido sobre águas dominiais – que o Código qualifica, nalguns casos, como verdadeiro proprietário – não tem sobre o objecto do direito o poder de livre fruição, nem o de disposição. Além disso, muito embora incida sobre coisa imóvel, ao direito de domínio não assiste aqui a característica da perpetuidade, no sentido de perdurar mesmo em caso de renúncia ou de abandono. A água apropriada está vinculada ao prédio em benefício do qual tenha sido adquirido o direito e dentro deste a um fim específico, não podendo ser abandonada, nem alienada separadamente, muito menos, afectada a outro fim dentro do próprio prédio. Logo que ocorra qualquer destes factos, o direito adquirido extingue-se automaticamente, revertendo as águas para o domínio público. É o chamado regime da caducidade (artºs 1386 nº 1 d) a f), e 1397 do Código Civil).

Como se notou, as águas sobejas em torno das quais gravita o litígio, eram originariamente públicas. Ainda que o direito a elas adquirido por M… fosse de verdadeira propriedade, tudo vincularia à sua sujeição – ainda que por aplicação analógica – ao regime jurídico das águas originariamente públicas e, portanto, a sua submissão ao princípio da inseparabilidade do prédio a que se destina com a correspondente impossibilidade do seu aproveitamento em prédio diverso (artº 10 do Código Civil).

Independentemente da correcção destas últimas considerações, exacto é, em todo o caso, que o direito às águas sobejas do Chafariz da Azenha é um simples direito real menor de servidão e, de outro, que os factos materiais apurados na instância de que provém o recurso não mostram a aquisição pelos apelantes de qualquer direito que lhes faculte a condução daquelas águas para os prédios de que são titulares do respectivo real de propriedade: os referidos em HH) e II) dos fundamentos de facto da sentença impugnada.

A esta luz a declaração da sentença apelada de que os apelantes não têm o direito de conduzir aquelas águas para o prédio referido em HH) da matéria assente ou para qualquer outro e vinculação dos recorrentes à abstenção dessa condução é, pois, inteiramente exacta. Como também é juridicamente correcta a adstrição dos impugnantes a sanção pecuniária compulsória por violação daquela obrigação negativa.

Os recorrentes acham, porém, que aquela sanção, fixada em quantidade superior ao já exorbitante pedido, deve julgar-se não eivada de equidade.

3.4. Valor da sanção pecuniária compulsória.

                Consabidamente, a execução de uma prestação pode ser específica ou não específica: é específica quando se visa a realização da própria prestação não cumprida; é não específica quando a sua finalidade é a obtenção de um valor patrimonial sucedâneo da prestação não realizada. Assim, são susceptíveis de execução específica as prestações de facto fungível, caso em que a prestação é realizada por outrem à custa do devedor, e as prestações de facto negativo, hipótese em que o obra realizada é demolida a expensas do devedor (artºs 828 e 829 nº 1 do Código Civil). Isto mostra que, como ninguém pode ser coagido a praticar um facto – nemo potest praecise cogi ad factum[21] – a execução específica das prestações de facto realiza-se através do custeamento da realização do facto por um terceiro: trata-se, assim, de uma execução específica indirecta.

Todavia, não admitem execução específica, mesmo só indirecta, a prestação de facto infungível, porque este facto não pode ser praticado por um terceiro.

A execução para prestação de facto é orientada pelo princípio de que o devedor não pode ser compelido a cumprir, pelo que exceptuada a eventual sujeição do devedor a uma sanção pecuniária compulsória, está excluída a possibilidade da imposição, mesmo na execução pendente, de quaisquer outras medidas sobre o devedor recalcitrante.

Apesar de a doutrina não se mostrar unida quanto à exacta função da sanção pecuniária compulsória[22], ela é decerto acorde num ponto: no seu carácter subsidiário. A sanção pecuniária – judicial ou autêntica - só é aplicável a prestações de facto infungíveis – positivas ou negativas duradouras, dada a inadmissibilidade da sua execução específica, uma vez que o facto não pode ser praticado por um terceiro (artº 829-A nº 1 do Código Civil)[23].

A prestação que com a sanção pecuniária compulsória se visa compelir ou constranger o dever a cumprir é necessariamente uma prestação, que tanto pode ser um facto positivo ou negativo – ou seja uma obrigação de facere ou non facere.

O facto positivo pode ser fungível ou infungível (artºs 828 do Código Civil e 993 nº 1 do CPC). O facto é fungível quando, para o credor é jurídica e economicamente irrelevante se ele é realizado pelo devedor ou por um terceiro; o facto é infungível quando, por razões jurídicas ou económicas, o interesse do credor impõe a sua realização pelo devedor (artº 767 nºs 1 e 2 do Código Civil). O facto negativo pode corresponder a uma obrigação de non facere, em sentido estrito – como sucede quando o devedor está vinculado a uma mera omissão de actuação, por exemplo, a não construir uma obra - ou a uma obrigação de pati – em que o devedor está obrigado a tolerar uma actividade do credor, como, por exemplo, o gozo de um imóvel arrendado ou o exercício de uma servidão de passagem.

Se as obrigações negativas duradouras são domínio, por excelência, da sanção pecuniária compulsória, dada a sua infungibilidade natural e a necessidade de evitar violação repetidas ou sucessivas, há porém, que ver, relativamente a obrigações derivadas de um dever de abstenção, se têm natureza fungível ou infungível, só estas últimas podendo ser seguidas de sanção pecuniária compulsória, dada a natureza subsidiária deste mecanismo de compulsão ao cumprimento. Realmente, no tocante às prestações de facto negativo fungível, se a actuação consistir, v.g., na realização de uma obra, como credor pode requerer que ela seja demolida à custa do que está obrigado a não a fazer, a sanção pecuniária compulsória não é admissível (artº 829 nº 1 do Código Civil).

No caso a sentença impugnada condenou os apelantes no pagamento a título de sanção pecuniária compulsória no pagamento de € 500,00 por cada violador da obrigação, a que também os vinculou, de conduzirem aa águas sobejas para qualquer prédio que não aqueles referidos no ponto d) do decisão. Esta prestação de facto negativo, além de duradoura deve ter-se por naturalmente infungível.

A obrigação de facto negativa a que a sentença apelada vinculou os apelantes, pela natureza do seu objecto – abstenção de um determinado comportamento – não pode, pela natureza das coisas, ser realizada por terceiro. É, por isso, infungível. Trata-se, de resto, por ser também uma obrigação duradoura, do domínio, por excelência, da sanção pecuniária compulsória.

O mecanismo legal consente conclusões extremamente precisas quanto à razão de ser da sanção, o seu sentido e o seu alcance.

A sanção surge, desde logo, como um meio de constrangimento destinado a pressionar o obrigado recalcitrante, de modo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob pena de lhe serem infringidos determinados prejuízos. De acordo com o preambulo do diploma legal que a inseriu no Código – o Decreto-Lei nº 263/83, de 16 de Junho – ela tem uma dupla finalidade de moralidade e eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto, por outro se favorece a execução específica das obrigações de facto ou de abstenção infungíveis. Razão pela qual a nossa literatura jurídica veja nela um instrumento coercitivo, não hesitando, alguns autores e jurisprudência estrangeira, em considerar estar-se aqui perante um meio de constrangimento não patrimonial – mas sim pessoal.

Como o seu fim não é reparar danos causados pela falta de cumprimento pontual, mas o de dobrar ou vergar a vontade do devedor rebelde, o seu montante será fixado sem relação com o dano sofrido pelo credor. A sanção pecuniária compulsória é absolutamente independente da indemnização eventualmente fixada em resultado do incumprimento da obrigação; não possui carácter ou natureza reparatória, sendo independente da existência ou da extensão do dano sofrido – ou a sofrer – em consequência do não cumprimento pontual da obrigação, não apresentando com ele qualquer relação. Igualmente, por isso, a sanção deve ser decretada mesmo que o devedor faça prova da ausência de dano, actual ou futuro, não sendo o seu montante fixado em função do prejuízo eventualmente emergente do não cumprimento da obrigação - autonomia e independência sem qual seria o próprio carácter cominatório a ficar em causa. A sanção não gera qualquer obrigação alternativa ou com faculdade alternativa – antes faz nascer uma nova obrigação para o devedor.

Uma vez decretada e fixada, a sanção pecuniária compulsória torna-se definitiva, sendo insusceptível de revisão, oficiosamente ou a requerimento das partes: perante ela, ao devedor só resta uma alternativa: submeter-se ou sofrer as consequências da sanção, vedada que está a eventual moderação ou supressão do montante fixado pelo juiz.

A cominação da sanção pecuniária compulsória depende inteiramente de requerimento do credor, embora deva ser decretada pelo juiz de harmonia com critérios de razoabilidade (artº 829-A nº 1 do Código Civil). Contudo, uma vez requerido o cumprimento sob cominação da sanção pecuniária compulsória, o tribunal tem o dever – e não, simplesmente, o poder de a decretar. Significa isto que o tribunal não julga soberanamente a oportunidade de impor ou não a sanção pecuniária compulsória pedida pelo credor. Mas o juiz já é soberano na escolha tanto da modalidade como do valor que for mais conveniente às circunstâncias do caso, podendo – sem violar o princípio do pedido - condenar por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, quer dizer, por unidade de tempo de atraso no cumprimento ou por cada futura infracção à obrigação e pelo valor que achar adequado[24].

Sem pretensão à formulação de uma regra de valor universal, a fixação da sanção pecuniária compulsória por unidade de tempo de atraso será a modalidade mais adequada nas prestações de facto positivo, ao passo que fixação por cada infracção ou contravenção ulterior à obrigação, será a mais adequada nas prestações de facto negativo.

Os apelados pediram que a sanção fosse fixada em € 50,00 – mas a sentença impugnada fixou-a em € 500,00, individualizando, como parâmetros de determinação deste valor, a facilidade da violação obrigação e o número de vezes que até agora essa mesma obrigação foi infringida: um dia por semana.

Os recorrentes sustentam a iniquidade do valor da sanção fixado pela sentença apelada, dado que tanto não valerão todas as águas durante um ano.

Tem-se, por certo, que a sanção pecuniária – sob pena de ficar votada ao insucesso - não deve ser puramente simbólica, antes se lhe deve fixar um valor que, definitiva e decididamente desmotive a violação, pelo devedor, da obrigação a que judicialmente foi vinculado. Caso contrário, este instrumento de coerção torna-se, ele mesmo, em mais outro motivo de descrédito do tribunal, em vez de constituir um instrumento de celeridade, prestígio e credibilidade do sistema de administração da justiça.

Neste contexto, o critério fundamental da fixação da sanção deve ser, em última análise, a solvabilidade ou a capacidade económica do devedor, já que estando o seu sucesso dependente da vontade do adstringido, a ameaça que explicitamente contém será inane e vã se não estiver em condições de impressionar e de fazer inibir o devedor, do mesmo passo da tentação de violar a obrigação e de desrespeitar a decisão judicial. Mas não deve igualmente deixar se atender às vantagens e ao lucro obtido pelo devedor com o não cumprimento e a conduta anterior desse mesmo devedor – nomeadamente a resistência abusiva ao cumprimento – de modo a que seja possível formular um juízo de prognose sobre a sua conduta futura e a intensidade da sua resiliência ao cumprimento, em ordem a que a sanção seja adequada a vencer essa resistência e levar o devedor a optar, resignado ou não, pelo cumprimento[25].

De resto, o remédio mais eficaz para os possíveis excessos do prudente arbítrio do juiz na fixação do valor da sanção está, inteiramente, nas mãos do devedor – o cumprimento da obrigação a que está adstrito[26].

 À luz destas considerações não há razão para que o valor da sanção fixado se deva ter por iniquo ou sequer desadequado à natureza da obrigação negativa imposta aos apelantes, à probabilidade da sua violação ou ao vencimento da tentação dos recorrentes no seu cumprimento.

Todas as contas feitas a conclusão a tirar é só esta: a de que recurso não tem bom fundamento. E, em face da improcedência do recurso dos autores, está prejudicada a apreciação das questões suscitadas, a título subsidiário, pelos apelados, na resposta (artº 608 nº 2 do CPC).

Síntese recapitulativa:

a) Se não for possível determinar o valor da sucumbência da parte, esse valor é irrelevante para aferir a admissibilidade do recurso e esta fica apenas dependente do valor processual da causa;

b) A consequência da insatisfação, pelo recorrente, do ónus da impugnação da matéria de facto, consiste apenas rejeição do recurso na parte em que a impugnação se funda na reapreciação da prova objecto do registo áudio – e nunca a rejeição in totum do recurso, por caducidade do direito é impugnação;

c) Sobre a água existente ou nascida noutro prédio podem constituir-se dois tipos de situações: o direito de propriedade, sempre que, desintegrando a água da propriedade superficiária, o seu titular possa usá-la, frui-la e dispor dela livremente; o direito de servidão quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo, ou de outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente;

d) A conclusão de que se está perante um ou outro daqueles direitos reais está na dependência estrita do respectivo título aquisitivo: se o direito for estabelecido em benefício de determinado prédio, se o titular dele tiver apenas a faculdade de afectar o aproveitamento da água, na estrita medida das necessidades de outro prédio, o caso será de servidão;

e) Se o direito adquirido incide apenas sobre a corrente constituída pelas águas sobrantes ou sobejas – àquelas de que o proprietário não careça - provindas de uma fonte, cuja água continua a pertencer ao dono desta, e ao adquirente apenas é concedido o direito de as aproveitar em função das necessidades de prédio diferente, estamos perante um direito real limitado e não face a uma transferência de domínio;

f) O direito de propriedade adquirido sobre águas originariamente públicas deve entende-se sempre submetido ao princípio da inseparabilidade do prédio a que se destinam, com a correspondente impossibilidade do seu aproveitamento em prédio diverso;

g) O critério fundamental da fixação da sanção pecuniária compulsória é constituído pela solvabilidade ou a capacidade económica do devedor, não devendo, porém, deixar se atender às vantagens e ao lucro obtido pelo devedor com o não cumprimento e a conduta anterior desse mesmo devedor – nomeadamente a resistência abusiva ao cumprimento – de modo a que seja possível formular um juízo de prognose sobre a sua conduta futura e a intensidade da sua resiliência ao cumprimento, em ordem a que a sanção seja adequada a vencer essa resistência e levar o devedor a optar, resignado ou não, pelo cumprimento.

As custas do recurso serão satisfeitas, em razão da sua sucumbência, pelos apelantes (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos apelantes.

                                                                                                                             14.06.17

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              Regina Rosa

                                                                                                              Jaime Ferreira                      


[1] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 432, nota 786.
[2] Neste sentido, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 170, nota 331, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80, e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 141 e 142, e os Acs. do STJ de 23.11.11, CJ, STJ, XIX, III, pág. 126, da RP de 24.02.14 e de 24.03.14, e da RC de 18.02.14, www.dgsi.pt.
[3] Ac. da RL de 02.11.00, www.dgsi.pt, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 55, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, cit., pág. 105, Cfr. No sentido da legitimidade constitucional do nº 2 do artº 690-A na redacção do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro – que impunha ao recorrente, também sob pena de rejeição do recurso, o ónus de proceder à transcrição, em escrito dactilografado, das passagens da gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova - o Ac. do TC nº 122/02, DR, II Série, de 29 de Maio de 2003.
[4] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 958 e 959.
[5] Ac. do STJ de 18.02.03, www.dgsi.pt.
[6] Mota Pinto, RDES, Ano 21, pág. 128.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, 1997, pág. 428.
[8] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1983, pág. 101 e 303.
[9] Embora o que está verdadeiramente em causa é o conteúdo do direito real de servidão e não a extensão desta; como cada direito de servidão tem um conteúdo, falar da extensão deste, carece, verdadeiramente, de sentido.
[10] Antunes Varela, RLJ, Ano 115, págs. 219 e 220, e Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, 1999, pág. 36; Acs. do STJ de 19.09.04, 20.10.10 e 12.07.11, da RP de 12.03.09, da RG de 16.04.09, 22.03.11 e de 06.02.14, www.dgsi.pt.
[11] Pires de Lima, Servidões Prediais, Separata do BMJ, 64, Lisboa, 1957, pág. 10.
[12] Antunes Varela, RLJ, Ano 115, pág.119.
[13] José de Oliveira Ascensão, “Usucapião e propriedade resolúvel”, in Ab Uno Ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 511.
[14] Alguma doutrina distingue, neste título de constituição da servidão, a destinação do pai de família e destinação do antigo proprietário; no primeiro caso têm-se em vista a separação do prédio em que existem os sinais; no segundo, a alienação do prédio que gozava já juridicamente de autonomia. A distinção é meramente descritiva, visto que a um e outro caso não corresponde uma diversidade de regime.
[15] Ac. da RL de 05.07.00, CJ, XXV, IV, pág. 87.
[16] Ac. da RC de 02.11.88, CJ, XIII, V, pág. 65.
[17] Pires de Lima, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), publicadas por David Augusto Lourenço, 4ª edição, pág. 374 e Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, IV, pág. 129.
[18] Os sinais visíveis podem ser equívocos e, portanto, insuficientes para demonstrar a relação de serventia entre ambos os prédios. Essa equivocidade congénita dos actos relevadores do seu exercício pode, porém, ser destruída por recurso a elementos estranhos aos próprios sinais, através de qualquer meio de prova. Cfr. Pires de Lima Servidões Prediais, exposição de motivos, BMJ nº 164, pág. 13 e RLJ Ano 72, pág. 415 e Ano 80, pág. 187, e Ac. da RC de 02.11.88, cit.
[19] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 582.
[20] Antunes Varela, RLJ ano 120, pág. 158 e Vaz Serra, RLJ ano 105, pág. 204.
[21] Pedro de Albuquerque, “O direito ao cumprimento de prestação de facto, o dever de a cumprir, o princípio nemo ad factum cogit potest, providência cautelar, sanção pecuniária compulsória e caução”, ROA, Ano 65, Vol. II, Set, 2005.
[22] António Menezes Cordeiro – “Embargos de terceiro, reintegração do trabalhador e sanção pecuniária compulsória”, ROA, Ano 58, III, 1998, págs. 1229-1230 - assinala-lhe uma função preventiva e coerciva, ao passo que Calvão da Silva – Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 397 – lhe assinala uma natureza coercitiva e sancionatória, e Paula Meira Lourenço – A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra, 2006, pág. 308 – uma função compulsório-punitiva.
[23] Assim, v.g., José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, pág. 161.
[24] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, cit., pág. 432
[25] Ac. da RL de 06.12.12, www.dgsi.pt.
[26] Ac. do STJ de 10.10.1     2, www.dgsi.pt.