Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
870/12.0TBLMG-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESTITUIÇÃO DE BENS
REIVINDICAÇÃO
PEDIDO
SENTENÇA
CASO JULGADO
COMPRA E VENDA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.102, 105, 141 CIRE, 542, 619, 621 CPC, 1311 CC, 5, 8 CRP
Sumário: 1 - Na ação de reivindicação, e salvo se da p.i. resultar que o autor não pretende a restituição da coisa, reconhecido que seja o seu direito de propriedade sobre ela, tal restituição, mesmo que não adrede impetrada, deve ter-se por implícita e, assim, deve ser decretada; e inexistindo, se tal for decidido, nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

2 - Apresentada pelos autores, para prova do seu direito de propriedade sobre um imóvel, uma sentença, a relevância processual de tal documento prende-se com a sua i(ni)doneidade probatória, e não com os efeitos do caso julgado (no sentido de ela não ser oponível aos réus por eles no processo respetivo não terem intervindo).

3 - Porque o registo predial apenas publicita mas não cria direitos, o disposto no artº 5º nº1 do CRP apenas emerge quando o direito sobre o facto sujeito a registo está definido.

4 - No contrato de compra e venda, e no caso de falta de entrega da coisa por parte do vendedor que foi declarado insolvente, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento – art- 105º nº1 al. a) do CIRE.

5 - Provando-se que o bem apreendido para a massa se apresenta, mesmo que formalmente, propriedade de terceiro, a este assiste jus à sua restituição – artº 141º nº1 al. c) do CIRE.

6 - O autor, parte vencedora, pode ser condenado como litigante de má fé se se concluir que assim agiu, o que dimana da sua alegação que, numa casa, ele sempre pernoitou, confecionou as suas refeições, lá recebeu amigos e pagou as respetivas contribuições; mas, ao invés, se provando que quem assim atuou não foi ele mas antes o réu.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

F (…) e mulher F (…),  intentaram contra a Massa Insolvente de A (…) e S (…) “ação de reivindicação”, a qual, posteriormente, foi transmutada em “ação de restituição de bens, nos termos do disposto nos artigos 141.º, n.º 1, alínea c) e 146.º, n.º 1, do CIRE”, demandando como réus a Massa Insolvente de A (…)e mulher S (...), Instituto da Segurança Social, I.P., Direção Geral dos Impostos, B (…)S.A., A (…), D (…), T (…) e P (…).

Pediram:

O seu reconhecimento como legítimos proprietários do prédio urbano composto por casa de habitação e logradouro, inscrito na matriz predial de T (...) sob o artigo 1431.º, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3927.

Alegaram:

São proprietários daquele imóvel, o que já lhes foi reconhecido por sentenças proferidas nos processos n.ºs 701/03.1TBLMG e 465-A/2002, respetivamente dos Tribunais Judiciais das Comarcas de Lamego e Tomar.

Não procederam ao registo porque não dispunham de dinheiro.

Vão passar muitos dias, sobretudo fins de semana, e “por lá pernoitam e confecionam as suas refeições, lá recebem amigos, pagando as respetivas contribuições”.

Contestou a Massa Insolvente.

Referindo que os autores alegam que estão na posse do prédio, que a ré não pode restituir aquilo de que não tem a posse, que se impunha o recurso a uma simples ação de apreciação positiva, que pelo facto de os autores virem exclusivamente pedir ao tribunal que declare a sua propriedade sobre o imóvel despoletará a exceção dilatória do caso julgado.

Concluiu pela improcedência da ação e absolvição da ré.

Contestou a ré D (…)

Disse.

Pugnou pela apreensão do imóvel pelo facto de ser conhecedora que a versão dos autores e dos insolventes quanto ao direito de propriedade sobre o prédio em causa é falsa e resulta de um estratagema combinado entre os dois irmãos (autor e insolvente) para sonegarem bens dos insolventes aos credores.

O imóvel em causa sempre foi pertença dos insolventes, os autores nunca residiram no imóvel e  quem aí reside são os insolventes.

Os autores litigam de má fé.

Concluiu pela improcedência da ação, reconhecendo-se que a propriedade do imóvel em causa é e sempre foi pertença e propriedade dos insolventes e que se condenem os autores como litigantes de má fé em multa a favor do Tribunal e numa indemnização a favor da requerente em quantitativo não inferior a mil euros.

2.

Prosseguiu a ação os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Nestes termos, julgo a presente ação procedente, por provada, e, em consequência, por força da aquisição a que se refere o artigo terceiro dos factos provados do prédio urbano, composto por casa de habitação de um pavimento, sito no Bairro de S (...) , freguesia e concelho de T (...) , a confrontar do norte com J (...) , do sul com caminho de servidão, do nascente com A (...) , do poente com F (...) , inscrito na matriz urbana sob o artigo 1431 (mil quatrocentos e trinta e um), descrito na Conservatória do Registo Predial de T (...) sob o n.º 3927 (três mil duzentos e noventa e sete), determino a sua restituição aos autores.

Absolvo os autores do pedido de condenação como litigantes de má fé.»

3.

Inconformados recorreram a credora D (…) e a massa insolvente.

 3.1.

Conclusões da credora.

(…)

3.2.

Conclusões da massa.

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Nulidade da sentença nos termos do artº 615º nº1 als. d) e e) do CPC.

2ª – Improcedência da ação.

3ª – Má fé dos autores.

5.

Os factos dados como provados que urge considerar são os seguintes:

1. Em 11 de setembro de 2003 os autores intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, contra os ora insolventes ação declarativa constitutiva, sob a forma ordinária, autuada sob o n.º 701/03.1TBLMG, pedindo que o tribunal se substitua aos réus e profira declaração pela qual declare vender o imóvel objeto de contrato promessa, subsidiariamente que se condenem os réus a restituírem-lhe em dobro o sinal entregue; peticionaram ainda a condenação dos réus a entregarem-lhes os móveis objeto do contrato de compra e venda celebrado com os autores.

2. Os insolventes não contestaram aquela ação.

3. Depois de terem sido declarados confessados os factos articulados na petição inicial, em 26 de janeiro de 2004 foi proferida sentença, transitada em julgado em 17 de fevereiro de 2004, a julgar a ação procedente e, em consequência, a declarar substituída pela sentença a declaração dos réus, A (…) e S (…), como vendedores no contrato promessa de compra e venda celebrado por documento particular datado de 03- 10-2001, pelo preço de Esc.32.500.000$00 (€162.109,32), tendo por objeto o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e quintal, com a área coberta de 144m2 e descoberta de 658m2, a confrontar do norte com J (...) , do nascente com A (...) , do sul com caminho de servidão e do poente com F (...) , inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 1431, então não descrito na competente conservatória do registo predial e, por isso, transmitida a propriedade respetiva dos réus para os autores.

4. Em 21 de agosto de 2008, o autor apresentou na Câmara Municipal de T (...) o requerimento cuja cópia se encontra a fls. 141 e se dá por reproduzido, onde menciona que “sendo proprietário de um lote de terreno n.º 7 em S (...) Castanheiro do Ouro, tendo lá construído uma casa, venho pelo presente meio solicitar a V. Exa. a fiscalização de um muro na estrema do lote feito pelo Senhor A (...) proprietário do Lote ao lado, por entender que o mesmo ultrapassa a altura prevista na lei, assim como a construção dos anexos por os mesmos estarem com o telhado pendurado dentro do meu terreno, bem como duas janelas de correr na estrema dos terrenos dos quais me impedem de fazer alguma coisa dentro do meu terreno”.

5. Em 25 de agosto de 2008, o insolvente apresentou na Câmara Municipal de T (...) o requerimento cuja cópia se encontra junta a fls. 143 que se dá por reproduzido, onde menciona o seguinte: “A (…), proprietário do Lote n.º 6 do Bairro de S (...) , Castanheiro do Ouro, freguesia de T (...) , tendo tomado conhecimento na Câmara Municipal da denúncia feita pelo Sr. F (...) , proprietário do Lote n.º 7 do mesmo bairro, da construção do muro ilegal de divisão dos lotes. Informo assim, os serviços competentes que o muro se encontra licenciado com o n.º de Processo 35/08 de 15 de maio de 2008, com a exceção do muro de ligação do telheiro à casa de habitação (…). Desconhecendo que o referido muro necessitava de aprovação e licenciamento dos serviços técnicos da câmara, peço assim que me seja emitida a respetiva licença, no que respeita a 4.70m do muro em causa.

Informo também, que os anexos referidos na denúncia foram construídos em 1978, quando não existia nenhuma habitação no Lote n.º 7, propriedade do Sr. F (...) .”

6. Nos embargos de terceiro não contestados e que correram termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, processo n.º 465-A/2002, instaurados pelos autores contra o ora insolvente, a sociedade A (…) e J (…), na qualidade de executados, e exequente, F (…)., em 14 de setembro de 2009, foi proferida sentença a declarar procedentes os embargos e a determinar o levantamento da penhora ordenada e realizada sobre o prédio urbano mencionado no artigo terceiro, “dado que a propriedade e posse sobre tal imóvel pertence unicamente aos embargantes e não ao executado A (…)”.

7. No dia 30 de novembro de 2011 A (…) e S (…) apresentaram-se à insolvência, que foi declarada por sentença proferida em 17 de dezembro de 2012, transitada em julgado.

8. Na assembleia de apreciação do relatório foi votada por unanimidade dos credores presentes o requerimento apresentado pela ré D (…)  para apreensão do imóvel mencionado no artigo 3.º.

9. No dia 4 de janeiro de 2013, o administrador da insolvência procedeu ao arrolamento e apreensão para a massa insolvente do prédio urbano, composto por casa de habitação de um pavimento, com a área coberta de 144m2 e a área descoberta de 656 m2, sito no Bairro de S (...) , freguesia e concelho de T (...) , a confrontar do norte com J (...) , do sul com caminho de servidão, do nascente com A (...) , do poente com F (...) , inscrito na matriz urbana sob o artigo 1431, descrito na Conservatória do Registo Predial de T (...) sob o n.º 3927 sem inscrição de aquisição.

10. Os autores nunca residiram no prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º.

11. Os insolventes residem no prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º desde 1978, procedem a restauros e ao pagamento das despesas inerentes à habitação, nomeadamente água, eletricidade e IMI;

12. O que fazem à vista de toda a população daquela localidade;

13. Comportando-se como seus donos e legítimos possuidores.

14. Os autores são proprietários de um lote de terreno que confronta com o prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

Clamam os recorrentes que  a sentença é nula por condenar em objeto diverso e para além do pedido, nos termos do artº 615º nº1 als. d) e e) do CPC.

Perscrutemos.

Do excesso de pronúncia.

O segmento normativo ínsito na al. d) do artº 615º do CPC  conexiona-se com o estatuído nos arts. 154º e 608º do mesmo diploma, ou seja, com o dever do juiz administrar a justiça proferindo despachos ou sentenças sobre as matérias pendentes – artº 152º - e com a necessidade de o juiz dever conhecer das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

E, bem assim,  de resolver todas as questões – e só estas questões, que não outras, salvo se de conhecimento oficioso - que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras –artº608º.

Porém, como é consabido e constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, não se devem confundir «questões» a decidir, com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes.

A estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas às pretensões formuladas e aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir –cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, 2005, p.228; Antunes Varela in RLJ, 122º,112 e, entre outros, Acs. do STJ de 24.02.99, BMJ, 484º,371 e de 19.02.04, dgsi.pt.

Da decisão ultra petitum.

Dispõe o artº 609º nº1 que «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

E dispõe o artº 615º nº 1 al. e) que «é nula a sentença quanto o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

Há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu e conhece, fora dos casos em que tal lhe é permitido “ex officio”, questão não submetida à sua apreciação.

Condenando em quantidade superior ou em objeto diverso o juiz excede o limite imposto por lei ao seu poder de condenar e infringe o princípio do dispositivo que assegura à parte a faculdade de circunscrever o thema decidendum.

Para que não se verifique tal vício terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão, isto é, a sentença não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos formulados pelo demandante.

Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, p.06A2464  in dgsi.pt

6.1.2.

No caso vertente.

Defendem os recorrentes que a sentença enferma dos aludidos vícios pois que a mesma veio determinar a restituição do prédio em causa aos autores quando os mesmos não peticionaram tal restituição, afirmando, na sua petição já serem possuidores de tal prédio.

E que, mesmo que tenha sido dado como provado que os autores nunca residiram em tal prédio e que os aí residentes eram e são os insolventes, também seria inteiramente descabido, e ilógico, vir determinar a restituição da posse aos autores de um prédio que os mesmos nunca possuíram ou sequer detiveram – pois num tal caso nunca poderia configurar-se uma restituição (já que a mesma pressupõe, de uma banda, um retomar, e de outra, um devolver.

O primeiro argumento remete-nos para a problemática do pedido implícito.

Ora, tal como uma declaração negocial, também uma decisão ou um articulado da parte devem ser devidamente analisados e interpretados de sorte a que deles se retire o seu  real e verdadeiro fundamento, sentido e fito.

Nesta conformidade, o intérprete deve partir do texto e do seu sentido perfunctório, liminar e heurístico para, através de adequada hermenêutica jurídica alcançar o real e essencial pensamento,  a ratio e teleologia do quid interpretando, pois que só assim se consecute a finalidade suprema a alcançar pela aplicação concreta do direito: a realização efetiva da justiça material – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 05.11.1998, p. 98B712 in dgsi.pt.

Este vislumbre último pode não advir, desde logo e como é preferível, da letra da declaração adrede consignada, sendo pois, por vezes, necessário efetivar um esforço hermenéutico/exegético para o alcançar, máxime se aquele verdadeiro fundamento e finalidade se indiciarem tácitos ou implícitos.

Ora: «A declaração negocial tácita deve deduzir-se de factos que ‘com toda a probabilidade a revelem» -artigo 217.º, n.º 1 do CC.

Assim: «a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade …A univocidade dos “facta concludentia” deve ser aferida por um critério prático que não de acordo com um critério estritamente lógico. Há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial.

 Já a autorização ou aceitação implícita não tem de se inferir de factos por inequivocamente se conter na declaração integrando-se na vontade que esta exprime» - Ac. do STJ de  01.07.2008, p. 08A1920 in dgsi.pt, citando Mota Pinto in Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed., 425.

Nesta conformidade, tem sido entendido que, por ex., na ação de reivindicação, quando o autor pede e vê reconhecido o seu direito de propriedade, tem direito à restituição da coisa, mesmo que não tenha expressamente formulado tal pedido – cfr. Ac. do STJ de 05.11.1998, p. 98B712.

E demonstrada a propriedade – cujo pedido de reconhecimento pode ser implícito – a restituição só pode ser recusada excecionalmente e apenas nos casos previstos na lei, assumindo-se pois a entrega/restituição como consequência da constatação daquele direito, por o direito de reivindicar ser uma manifestação da sequela – artº 1311º nº2 do CC e Acs. do STJ de  13.07.2010 e de 08.02.2011, dgsi.pt, p. 122/05.1TBPNC.C1.S1 e 12/09 9T2STC.E1.S1.

Já no âmbito do direito de preferência já se propugnou que: «Pedindo o preferente que, na sequência do que nascera, lhe fosse reconhecido o direito de preferência nos prédios em questão, com as legais consequências, nestas se podem integrar a substituição do adquirente pelo preferente, a entrega do preço e da sisa, o direito do adquirente revelar o que gastou - escritura e registo e o anulamento do registo efectuado pelo adquirente, embora o pedido dos preferentes devesse ter sido mais concreto e alargado, apesar de nas acções constitutivas não haver pedido de condenação.»  - Ac. do STJ de  04.10.1994, p. 085781.

De igual sorte, e no campo do registo predial, era defendido que: «Requerida e concedida a nulidade da escritura de justificação notarial para aquisição por usucapião, não está quedo ao tribunal ordenar o cancelamento, no registo predial, da inscrição da propriedade a favor dos Réus, lavrada com base em tal escritura, mesmo que este cancelamento não tenha sido peticionado, expressis verbis, pelo autor» - Ac. da RL de  05.06.2007, p. 2109/2007, de que o presente também foi relator.

Esta tese jurisprudencial veio a ganhar consagração legal.

Pois que enquanto o artº 8º nº2 do CRP, na redação anterior  ao DL n.º 116/2008, de 04/07 estatuía que:

 1 - Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo.

2 - Não terão seguimento, após os articulados, as acções em que não seja formulado o pedido de cancelamento previsto no número anterior.

Já a sua atual redação introduzida por tal DL estipula:

1 - A impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo.

No caso sub judice os autores limitaram-se a impetrar o reconhecimento e a declaração do seu direito de propriedade.

Tal decorreu do facto de eles alegarem, no artº 6º  da pi, factos que, também estes, têm implícita a ideia de que já tinham a posse do imóvel.

Por conseguinte, tem de concluir-se que, tal como os autores  inicialmente delinearam a causa, eles não pretendiam  que fosse ordenada a restituição.

Porém, provou-se que, afinal, quem possui e possuía o prédio são, e têm sido, os insolventes e não os autores.

Ora, dada esta prova, e, ademais, na lógica do decidido na sentença, ou seja, ao nela ter-se reconhecido e  concedido aos autores o direito  de propriedade sobre o prédio em causa,  naturalmente que, em função do que supra se referiu – maxime o disposto no artº 1311º nº2 do CC -, tal reconhecimento acarreta que o imóvel lhes deva ser restituído.

Nem a tal obstando o jogo de palavras usado pelos recorrentes no seu segundo argumento.

É que, na economia das pretensões e dos direitos das partes e da lógica que lhes subjaz, e com vista à consecução da finalidade do direito de propriedade, qual seja a plena fruição do bem, o termo “restituição” tem, sensata e sagazmente, de ser interpretado  com significado amplo, ou seja,  no sentido da investidura dos autores na posse material deste, independentemente deles, seus donos, o terem, ou não terem, anteriormente possuído.

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Defendem as recorrentes que os efeitos do caso julgado da sentença prolatada no âmbito do pretérito processo 701/03.1 que declarou o direito de propriedade dos autores sobre o prédio em causa não  lhes são oponíveis, pois que eles não intervieram naquele processo.

Estatui  o artº 619º: transitada em julgado a sentença, a  decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artºs 580º e 581º.

E prescreve  o artº 621º: a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.

Temos assim que no atinente ao primeiro preceito, e porque o mesmo remete para o disposto no artº 580º e segs, importa apreciar se sentença que foi dada à presente execução é a repetição da causa do anterior  processo crime.

Para que se repita uma causa importa que haja identidade nas duas quanto aos seus elementos essenciais definidores ou estruturantes, quais sejam, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir.

Para que haja identidade de sujeitos basta que ele se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, ie., e determinantemente, atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam.

Daqui decorre que são idênticos, o primitivo titular do direito que interveio na ação e as pessoas que, por sucessão, mortis causa ou entre vivos, -vg. compra, doação, permuta, etc -, assumiram a posição jurídica daquele, quer a substituição se tenha operado no decurso da ação – artsº 262º e 263º do CPC -, quer se tenha verificado só após ter sido proferida a sentença.

E que não obsta à verificação de tal identidade a circunstância de nos dois processos as partes terem litigado na posição de réu e depois na de autor, ou vice versa cfr. M. de Andrade: Noções Elementares, 1979, p. 310;  A. Varela: Manual de Processo Civil, p.722;  A. Neto: Breves Notas ao CPC, 2005, p.145 e Remédio Marques: Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p.452.

Já quanto ao pedido existe identidade do mesmo quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

Assim o pedido tem a ver/conexiona-se/reporta-se ao objeto da ação como  definido pelo autor, reside na pretensão por si formulada a qual se identifica através da providencia solicitada ao tribunal e através do direito a ser tutelado por esse meio.

E há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

A causa petendi é pois o facto  com relevância jurídica, ie. à qual a lei atribui potenciais efeitos jurídicos, mas que, ele mesmo, deve assumir  essência e contornos materiais concretos, do qual dimanarão aqueles efeitos jurídicos se a pretensão deduzida for atendida.

Por outro lado, importa ter presente que o caso julgado tem por objetivos defender o prestígio dos tribunais  e a  certeza e segurança jurídica, já que os mesmos seriam afetados por se decidir antagónica ou contraditoriamente a mesma situação concreta.

Porém, esta figura, em termos concretos da vida real, «apenas se destina a evitar uma contradição pratica de decisões e não já a sua colisão teórica ou lógica…só pretende  obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas)…a que em novo processo o juiz possa estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão…» - M. Andrade, ob. cit, p. 317/8.

Mas se assim é, a problemática do caso julgado e da extensão dos seus efeitos aprecia-se, dilucida-se e conclui-se, exatamente e apenas, nestes precisos termos e com estas finalidades.

Ora não é nada disto que está aqui em causa.

A sentença pretérita foi invocada, tão somente, como um meio de prova para convencer da titularidade do direito de propriedade dos autores sobre o prédio.

Tal é perfeitamente admissível e legal, até porque um dos modos de aquisição  do direito de propriedade  é o contrato – artº 1316º do CC – e a sentença  pretérita operou a substituição da declaração dos réus A (…) e S (…), como vendedores, no contrato promessa de compra e venda do prédio ora em causa.

Nesta conformidade, e com base nesta sentença, enquanto documento probatório, repete-se, foi dado como provado o facto 3 do qual resulta o direito de propriedade, via contratual, dos autores sobre o imóvel.

Nesta senda, para obter ganho de causa neste particular conspeto, as recorrentes tinham de impugnar a prova de tal facto pelo modo adequado.

Este modo passaria não pela invocação da não extensão a si dos efeitos do caso julgado, o que, como supra se aludiu, irreleva in casu, mas antes pela alegação da  insuficiência e/ou inidoneidade probatória dos meios de prova produzidos, rectius a sentença pretérita, para se dar como provado tal facto.

Mas não foi este o caminho que elas trilharam, pelo que tal facto, e até porque não se enxerga erro crasso na apreciação da prova que, oficiosamente, obste a tal, tem de manter-se.

6.2.2.

Mais defendem as recorrentes que tendo a apreensão do bem para a massa falida sido registada e não tendo os autores registado a propriedade, dimanante  da sentença, a seu favor, esta não lhes é oponível, como terceiros que são.

Estabelece o artº  5º  nº1 do CRP, sob a epígrafe “Oponibilidade a terceiros”:

« Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. »

Deste preceito não decorre que os autores não possam provar a sua propriedade sobre o prédio em causa.

E é isto que está em dilucidação nestes autos.

Efetivamente, aquele segmento normativo rege apenas para quando inexista litígio sobre o direito relativo ao facto sujeito a registo, pressupondo pois a fixação e definição daquele.

Na verdade, a função do registo não é criar direitos, mas antes dar-lhes publicidade, de sorte a que seja conseguida a certeza e segurança do tráfego jurídico-comercial.

Por conseguinte, e na economia do objeto do processo tal como os autores o definiram, é irrelevante que os autores não tenham registado a invocada aquisição – pois que esta está a discutir-se nestes autos -  e que  a massa insolvente tenha registado a sua apreensão para a mesma.

6.2.3.

Finalmente a violação do artº 102º do CIRE, invocada pela recorrente massa insolvente.

Clama esta recorrente que o contrato de compra e venda ainda não está totalmente cumprido, pois que os  vendedores não entregaram o imóvel aos autores, pelo que, nos termos do artº 102º do CIRE o cumprimento completo tem de ficar suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.

Mas o preceito que aqui se aplica não é o artº 102º, mas antes o artº 105º.

Na verdade, e como bem refere a recorrente, com a sentença que se substituiu à declaração de venda no contrato promessa, transmitiu-se a propriedade do imóvel dos vendedores para os compradores ora autores.

Ora, nos termos deste último preceito:

« …se a obrigação de entrega por parte do vendedor ainda não tiver sido cumprida, mas a propriedade já tiver sido transmitida:

a) O administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, no caso de insolvência do vendedor;

b) A recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, no caso de insolvência do comprador, tem os efeitos previstos no n.º 5 do artigo anterior, aplicável com as necessárias adaptações.».

No caso vertente aplica-se a al. a), pois que a parte incumprida – entrega da coisa, é imputável aos vendedores ora declarados insolventes.

Decorrentemente, nem o cumprimento fica suspenso até que o administrador opte pela execução ou pela recusa, nem, inclusive, ele pode recusar o cumprimento.

6.2.4.

Posto isto, certo é que a recorrente credora impetrou não apenas a improcedência da ação como, outrossim, que «se reconheça que a propriedade do imóvel em causa é e sempre foi pertença e propriedade dos insolventes».

Cumpre, pois, apreciar tal pedido à luz dos factos dados como provados.

O  Sr. Juiz decidiu alcandorado no seguinte, essencial, discurso argumentativo:

« Não tendo havido lugar à resolução em benefício da massa insolvente, não podendo ser apreciada nestes autos a alegada nulidade relativa à simulação processual - relativa à utilização do processo mencionado nos artigos 1.º a 3.º para praticarem um ato simulado-, a única justificação que poderá subsistir para a manutenção da apreensão é a da invocada aquisição por usucapião (cfr. art.º 23.º da contestação da ré D (…)).

De acordo com o disposto no artigo 1287.º do Código Civil a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.

A usucapião é considerada como um modo de aquisição originária de direitos reais, designadamente do direito de propriedade (artigo 1316.º, do Código Civil).

São fundamentalmente três os pressupostos da aquisição por usucapião: (1) a posse; (2) decurso de um certo lapso de tempo e (3) à imagem do direito cujo exercício corresponde a atuação.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - artigo 1251.º, do Código Civil.

Nesta definição “são sensíveis a nota do corpus («quando alguém atua…») e a nota do animus («por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real») (…). Há uma relação biunívoca entre o corpus e o animus. Corpus é o exercício de poderes de facto que entende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico - real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime em certa atuação de facto” (Orlando de Carvalho, RLJ, Ano 122, pág. 68-69).

Nos termos do artigo 1287.º a posse só não conduzirá à usucapião se existir disposição legal que a tal obste.

Para se poder adquirir o direito a cujo exercício corresponde a sua atuação é necessário que a posse se mantenha por certo lapso de tempo (artigo 1287.º, do Código Civil).

O lapso de tempo necessário para a manutenção da posse para aquisição por usucapião, não havendo registo do título nem da mera posse, é de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se a posse for de má fé – artigo 1296.º do Código Civil.

Apurou-se que os insolventes residem no prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º desde 1978, procederam a restauros e ao pagamento das despesas inerentes à habitação, nomeadamente água, eletricidade e IMI, o que fazem à vista de toda a população daquela localidade, comportando-se como seus donos e legítimos possuidores.

O facto dos insolventes se comportarem como donos e legítimos possuidores não significa, sem mais, que esteja demonstrado o animus, o qual não tem de explicitar-se e muito menos por palavras, sendo, isso sim, inferido do modo de atuação ou de utilização, estabelecendo o artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, em caso de dúvida, uma presunção destinada a facilitar a prova: presume-se o animus em quem exerce o corpus…

São aplicáveis à usucapião as regras relativas à suspensão e à interrupção da prescrição (art. 1292.º do Código Civil).

Tendo a ação referida no artigo 1.º sido julgada por sentença em 26 de janeiro de 2004, transitada em julgado em 17 de fevereiro de 2004, embora não tenha sido alegada a data da citação, por força daquela decisão e do disposto nos artigos 323.º, n.º 1, 326.º, 327.º, n.º 1, o prazo de usucapião pelos réus insolventes tem-se por interrompido e só pode considerar-se o novo prazo, para efeitos de usucapião, a partir do trânsito em julgado daquela decisão (17 de fevereiro de 2004), começando então a correr novo prazo que não se mostra verificado (sem sequer considerarmos a decisão mencionada no artigo 9.º), já que o prazo mínimo a ter em consideração é de 15 anos (art.º 1296.º do Código Civil). Finalmente, à mesma solução se chega com a inversão do título nos termos previstos no artigo 1290.º do Código Civil.

Deste modo, por força da decisão mencionada no artigo 3.º dos factos provados, falta de impugnação, de forma processualmente válida, desta decisão, por não resultar demonstrada outra forma de aquisição por parte dos réus insolventes que não têm, assim, a plena e exclusiva propriedade do bem mencionado nos artigos 3.º e 9.º, que é estranho à insolvência e insuscetível de apreensão para a massa insolvente, procede a ação com o fundamento previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 141.º.»

(sublinhado nosso).

Esta argumentação apresenta-se curial, tendo ela efetivado uma adequada subsunção dos factos provados aos normativos legais pertinentes.

Na verdade, e perante a propriedade provada, a favor dos autores, decorrente da sentença, cumpria às recorrentes inquinar tal modo de aquisição ou provar melhor meio de aquisição.

Efetivamente, estamos perante modo de aquisição derivado, o qual, assim, poderia ser contrariado por outro modo de aquisição de idêntico jaez, desde que primeiramente registado, ou por modo de aquisição originário – maxime a usucapião – independentemente do seu registo.

Ora as rés não lograram cumprir tal ónus probatório.

Certo é que, não obstante os insolventes possuírem o prédio desde 1978, com a venda efetivada pela sentença de 2004 deixaram de ser proprietários do imóvel.

Não obstante, desde esta data continuaram a manter a sua posse do imóvel imbuída de corpus e animus, pelo que tal posse poderia implicar a aquisição da propriedade via usucapião.

Porém, como é dito na sentença, sendo aqui o prazo necessário para usucapir o de 15 anos, este prazo, até  à presente data,  não está completado, pois que, como bem se aduz na decisão, ele foi interrompido com a sentença prolatada  em 2004.

Emerge, pois, com a  eficácia, força e dignidade bastantes, a transmissão para a esfera jurídico-patrimonial dos autores, da propriedade do bem, via contratual, posto que com intervenção judicial.

6.3.

Terceira questão.

6.3.1.

A redação dada ao anterior artº456º do CPC – hoje 542º -  pelo DL 329-A/95 de 12.12. alargou o âmbito da aplicação do instituto da litigância de má fé, pois que nele abarcou não apenas os casos de atuação dolosa como também os de atuação gravemente negligente.

Sendo que, inclusive, e como se plasma no preâmbulo de tal diploma: «Como reflexo do princípio da cooperação e dos deveres que lhe são inerentes, permite-se, sem quaisquer limitações, a condenação como litigante de má fé da própria parte vencedora, desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no nº2 do artº 456º…»

Tal alargamento teve, naturalmente, em vista, restringir os casos de litigância  maliciosa ou  altamente temerária, pretendendo incutir nas partes a necessidade de uma sã atitude processual, pautada e norteada por uma atuação o mais clara e linear possível, sem subterfúgios, truques e mentiras.

E sendo certo que a jurisprudência era amplamente magnânima na condenação a tal título, criou-se uma convicção de impunidade que levava a colocar ou a contestar em juízo casos de total insustentabilidade, ou, pior, distorcidos ou falseados na sua génese factual.

Com os inerentes prejuízos para o sistema da justiça e, outrossim, para os próprios sujeitos processuais vítimas de tal atuação.

Importa, pois, na sequência do atual desígnio legislativo, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

Não obstante há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

E devendo os tribunais serem prudentes na condenação a este título, porque tal implica não apenas uma censura e afetação económico-financeira a nível processual, como um desmerecimento a nível pessoal marcante e inquinador da honestidade e probidade presumivelmente insertas na esfera jurídica pessoal do normal cidadão - cfr. Ac. do STJ de 15.10.2002, dgsi.pt,p.02A2185.

O fundamento ético do instituto exige que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata) - Ac. da Relação do Porto de 20.10.2009, p. 30010-A/1995.P1

Destarte, e dada a relatividade da verdade judicial decorrente, designadamente, das várias interpretações e correlativas soluções jurídicas que podem incidir sobre um determinado complexo factual «a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual…» - Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

Nesta conformidade: «Para a condenação como litigante de , exige-se que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente…ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão).» -  Ac.  do STJ de 28.05.2009, p.09B0681.

6.3.2.

No caso vertente o julgador entendeu inexistir má fé dos autores, pois que, disse:

«…a matéria constante da alínea d) dos factos não provados foi alegada pelos autores e resultou não provada, desde logo porque foi negada pelos autores, pelo que poderá estar em causa a alteração dos factos nos termos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.

Para se configurar a litigância de má-fé é necessária a atuação com dolo ou negligência grave.

Tendo os autores confessado que não habitam a casa em causa nos autos, fica a dúvida sobre a intencionalidade subjacente àquela alegação e, em caso de dúvida, não deve ter lugar a condenação como litigante de má fé…»

Mas, sdr., assim tal não interpretamos.

Os autores alegaram na pi – artº 6º - que:

 «vão passar muitos dias…a T (...) e por lá pernoitam e confecionam as suas refeições, lá recebem amigos, pagando as respetivas contribuições»

Ora provou-se que nada disto era verdadeiro, antes que era falso.

Pois que se provou que na casa em questão:

10 . Os autores nunca residiram no prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º.

11. Os insolventes residem no prédio mencionado nos artigos 3.º e 9.º desde 1978, procedem a restauros e ao pagamento das despesas inerentes à habitação, nomeadamente água, eletricidade e IMI;

12. O que fazem à vista de toda a população daquela localidade;

13. Comportando-se como seus donos e legítimos possuidores.

A circunstância de a não prova de tal facto e a prova destes factos ter advindo, em parte, da própria confissão dos autores não releva.

Certamente que a isso foram obrigados dada a evidência da situação factual da não residência deles e da residência dos insolventes no imóvel em causa, e a força da restante prova nesse sentido.

Pelo que a conclusão a retirar é que a falsa alegação inicial nos termos plasmados no artº 6º da pi se deveu à pretensão dos autores em querer obter mais facilmente ganho de causa , vg., querendo impedir que os  insolventes provassem a propriedade do imóvel via usucapião.

O que acarreta a inelutável ou, ao menos, suficientemente certa, convicção que os autores, com dolo, ou, no mínimo, com negligência grave, alteraram a verdade dos factos, assim atuando com má fé substancial.

E, a tal título, devendo ser condenados em multa e indemnização a favor da credora recorrente – artºs 542º nº1 e nº2 al. b) e 543º do CPC e  artº 27º nº3 do RCP.

Nesta conformidade, julga-se adequado fixar a multa em dez UCs e a indemnização a favor da credora recorrente D (…) nos por si  impetrados mil euros, por se considerar, num juízo équo, ser quantia razoável.

 Procede, mas apenas neste específico conspeto, o recurso.

7.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - Na ação de reivindicação, e salvo se da pi resultar que o autor não pretende a restituição da coisa, reconhecido que seja o seu direito de propriedade sobre ela, tal restituição, mesmo que não adrede impetrada, deve ter-se por implícita e, assim,  deve ser decretada; e inexistindo, se tal for decidido, nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

II - Apresentada pelos autores, para prova do seu direito de propriedade sobre um imóvel, uma sentença, a relevância processual de tal documento prende-se com a sua i(ni)doneidade probatória, e não com os efeitos do caso julgado (no sentido de ela não ser oponível aos réus por eles no processo respetivo não terem intervindo).

III - Porque o registo predial apenas publicita mas não cria direitos, o disposto no artº 5º nº1 do CRP apenas emerge quando o direito sobre o facto sujeito a registo está definido.

IV - No contrato de compra e venda, e no caso de falta de entrega da coisa por parte do vendedor que foi declarado insolvente, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento – art- 105º nº1 al. a) do CIRE.

V - Provando-se que o bem apreendido para a massa se apresenta, mesmo que formalmente, propriedade de terceiro, a este assiste jus à sua restituição – artº 141º nº1 al. c) do CIRE.

VI - O autor, parte vencedora, pode ser condenado como litigante de má fé se se concluir que assim agiu, o que dimana da sua alegação que, numa casa, ele sempre pernoitou, confecionou as suas refeições, lá recebeu amigos e pagou as respetivas contribuições; mas, ao invés, se provando que quem assim atuou não foi ele mas antes o réu.

8.

Deliberação.

Termos em que se julga o recurso da recorrente D (…) parcialmente procedente, condenando-se os autores, como litigantes de má fé, na multa de dez Ucs e em mil euros de indemnização a favor de tal credora.

No mais se julgando os recursos improcedentes, mantendo-se a sentença.

Custas pelas recorrentes em 80%, ficando os restantes 20% a cargo dos autores.

Coimbra, 2017.04.04.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos