Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2525/16.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PESSOA SINGULAR
ÂMBITO
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-A E SEGS. DO CIRE.
Sumário: O acesso ao PER encontra-se vedado aos devedores singulares que não sejam titulares de uma empresa.
Decisão Texto Integral:


I. Relatório

P... e M..., residentes na Rua ... vieram, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 17-C.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, instaurar processo especial de revitalização, tendo em vista a sua recuperação.

Para tanto alegaram, em síntese, que se encontram em situação económica difícil, enfrentando dificuldades no cumprimento pontual das suas obrigações aos seus credores, sendo improvável que possam obter a concessão de crédito novo ou mesmo a consolidação ou renegociação das dívidas existentes. Não obstante, afirmando reunirem as condições necessárias para a sua recuperação e tendo obtido o acordo do seu credor É..., nos termos da declaração que juntam, comunicaram pretender dar início às negociações a que se reporta o art.º 17.º-B do CIRE, indicando para o exercício das funções de AJP o Sr. Dr. ..., Economista e Administrador de Insolvência.

Após ter sido dada aos requerentes a possibilidade de exercerem o contraditório, veio a ser proferida decisão que, na consideração de que aqueles não detinham a qualidade “de comerciantes ou empresários, não exercendo por si mesmos qualquer actividade económica e por conta própria da qual resultassem as dívidas em causa, mas apenas a prestação de avales, sendo que o activo mensal líquido disponível dos mesmos requerentes corresponde aos rendimentos provenientes do trabalho dependente”, julgou não justificado o recurso ao processo de revitalização, indeferindo liminarmente o requerimento apresentado.

Inconformados, apelaram os requerentes e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:

...

Com os aludidos fundamentos pretende a revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que admita o PER.

Como se alcança do teor das conclusões - e há muito assente que pelo seu teor se fixa e delimita o objecto do recurso - as únicas questões submetidas à apreciação deste Tribunal consistem em decidir se às pessoas singulares trabalhadores dependentes é permitido o recurso ao PER e, na negativa, se tal entendimento contende com o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP.

II Fundamentação

De facto

Sem oposição, foi considerada na decisão apelada a seguinte factualidade, proveniente da alegação dos próprios requerentes e documentos juntos:

            ...

De Direito

Da aplicação do PER às pessoas singulares

A questão assim enunciada espoletou acesa controvérsia, e se doutrinariamente se pode considerar maioritária a posição favorável à pretensão dos aqui apelantes, vai em sentido contrário a corrente jurisprudencial, com assinalável unanimidade ao nível do STJ.

Preceitua o art.º 17-A do CIRE[1] que “1. O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

2. O processo referido no número anterior pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação.

3. (…)”.

Face à literalidade do preceito e com arrimo no princípio de que onde a lei não distingue não deve o intérprete distinguir, vem sendo entendido por largos sectores da doutrina e alguma jurisprudência das Relações, que a possibilidade do recurso ao PER não é exclusiva das pessoas colectivas e devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não devolvam uma actividade económica por conta própria.

Todavia, e conforme se faz notar no Ac. do STJ de 18/10/2016, processo n.º 65/16.3T8STR-E1.S1, acessível em www.dsgi.pt, o enunciado princípio “não é impedimento para uma interpretação teleológica da lei, impondo apenas um ónus de fundamentação quando o intérprete pretende introduzir uma diferenciação que não resulta directamente da letra da lei”. E interpretando a lei tendo em mente o escopo visado pelo legislador, afigura-se- ser de perfilhar o entendimento de que o processo de revitalização se destina apenas a devedores empresários, impondo-se uma interpretação restritiva do preceito.

Em abono do mesmo valem as seguintes razões[2]: “Com efeito, a ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário.

Foi assim, sem dúvida, na vigência do CPEREF, como o foi enquanto prevaleceu o regime do Decreto-Lei n.º 177/86, de 2 de julho. Foi ainda assim com o procedimento especial de conciliação, previsto e regulado no Decreto-Lei n.º 316/98, de 20 de outubro, e é-o agora com o denominado SIREVE - Sistema de Recuperação de Empresas por via extra-judicial -, cuja disciplina consta do Dec.-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto. E é-o também com o CIRE, como facilmente se induz da própria denominação do Código e também se comprova pelo seu art.º 1.º, quer na respectiva versão originária, quer na resultante da alteração operada pela Lei n.º 16/2012.

Por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização inserida na revisão do Código, foi, como confessado na exposição de motivos que fundamentou a apresentação pelo Governo à Assembleia da República da proposta de Lei n.º 39/XII, a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial (…) acrescentando-se mais adiante que “a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que em, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para os efeitos do Código (…), e agora também do SIREVE (…) se acolhe no art.º 5.º.

(…) Temos, pois, por adequada a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto”.

Parece assim indubitável que com as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, o legislador visou reorientar o CIRE, criando um mecanismo de recuperação da actividade do devedor, mas o devedor que se encontrava no giro comercial, o devedor criador de emprego, conforme resulta claro das passagens supra transcritas da exposição de motivos, elemento de inquestionável valia na interpretação da lei (cf. art.º 9.º do CC). Neste contexto, mesmo admitindo que o devedor pessoa singular é, também ele, agente económico, desde logo porque consumidor, não foi a pensar nele que o legislador gizou o PER.

Acresce que, não coincidindo inteiramente nos seus pressupostos, a lei já previa um instrumento vocacionado para o devedor pessoa singular não empresário - o plano de pagamentos previsto e regulado nos art.ºs 251.º e seguintes - que, inscrevendo-se embora num contexto insolvencial, consagra soluções tendentes a preservar a imagem do devedor (cf. art.º 259.º, nos seus n.ºs 1, 2 e 5), não justificando eventual extensão do PER argumentos baseados no alegado “estigma” decorrente da declaração de insolvência.

Os recorrentes argumentam a este respeito que tal possibilidade “em nada distingue as pessoas singulares das pessoas colectivas, que beneficiam da mesma possibilidade de apresentar um plano de insolvência e dessa forma encerrar o processo de insolvência”. Não cremos, porém, que o mesmo deva ser julgado procedente. Com efeito, para lá das significativas diferenças - o legislador declarou expressamente, no art.º 250.º, que aos processos de insolvência relativa a não empresários e titulares de pequenas empresas não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X (dedicados, respectivamente, ao Plano de insolvência e administração pelo devedor) - a verdade é que nada obstava a que o legislador, no contexto que é conhecido e que a exposição de motivos claramente reflecte, tivesse criado um instrumento, agora direccionado para a recuperação, mas reservando-o ao devedor empresário, fazendo uma opção no exercício dos seus poderes de ponderação e regulação.

Deste modo, e como se ponderou no aresto acima citado, atento o escopo que o legislador inequivocamente atribuiu ao processo de revitalização, “não é coerente com a [sua] aplicação (…) a trabalhadores por conta de outrem. Uma vez que a declaração de insolvência dos trabalhadores subordinados não faz cessar os seus contratos de trabalho, “não se entende em que poderia consistir a sua revitalização económica, a não ser num perdão parcial das respectivas dívidas” (Ac. do STJ de 12-04-2016), numa recuperação, em suma, não da sua actividade, mas da sua capacidade de endividamento”[3].

Tendo assim presente que na interpretação da lei o intérprete não deverá cingir-se à sua letra, mas antes reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, atendendo aos elementos sistemático, histórico e teleológico, que temos como decisivo, afigura-se impor-se uma interpretação restritiva da lei, excluindo do acesso ao PER os devedores que trabalham por conta de outrem. Tal interpretação não sai beliscada pela circunstância do Governo Português ter a propósito uma diversa posição, como se infere do portal do IAPMEI ou de Sua Ex.ª a Ministra da Justiça ter expendido opinião contrária em entrevista dada, conforme os recorrentes dão conta, uma vez que, ressalvado o respeito que sempre nos merece entendimento adverso ao defendido, caberá ao tribunal a tarefa de interpretar a lei e aplicá-la ao caso concreto.

Alegam finalmente os recorrentes que o entendimento adoptado na sentença apelada -e ora confirmado- por se traduzir em intolerável discriminação entre um cidadão que trabalhe por conta própria e outro que, trabalhando embora por conta de outrem, tenha o mesmo montante de dívidas e número de credores, sempre violaria o princípio da igualdade, com assento constitucional no art.º 13.º da CRP.

Não cremos, porém, que lhes assista razão também quanto a este fundamento.

Conforme se refere no aresto desta mesma Relação e secção de 13/7/2016[4], o referido entendimento “(…) não fere qualquer norma ou princípio constitucional (v.g., o Princípio da igualdade – art.º 13º da CRP) (…).

Sobre a matéria escreveu-se, já, aliás, no citado Acórdão do STJ, de 05 de Abril de 2016, dizendo: «[…]Como tem sido apontado na doutrina (v. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., tomo IV, pp. 238 e seguintes; Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 120 e seguintes) e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o tratamento legal igual é exigido para situações iguais, enquanto para situações substancial e objetivamente desiguais (impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas) é admitido tratamento diferenciado. E a prevalência da igualdade tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica.

Ora, a diferenciação de que se queixam os Recorrentes está plenamente fundada em circunstâncias objetivas também diferenciadas. No caso de pessoas singulares titulares de empresas está em causa a tentativa de recuperação para a economia geral do país de meios produtivos geradores de riqueza e emprego, enquanto no caso de pessoas titulares trabalhadoras por conta de outrem essa vantagem não se coloca. Isto não significa, bem entendido, que a força do trabalho, a empregabilidade e o circuito geral de consumo não relevem para a economia. Apenas acontece que para o legislador (conforme aliás as vinculações assumidas no acima referido “Programa de Assistência Financeira”), na sua liberdade de ponderação, de conformação e de regulação, a implementação da revitalização do devedor tal como feita constar do CIRE justifica-se apenas quando esteja em equação a salvaguarda do tecido económico empresarial, e não já quando esteja em causa um qualquer devedor pessoa singular, ademais quando é certo que a legislação (art.º 249º e seguintes do CIRE) já prevê medidas de salvaguarda direcionadas para devedores pessoas singulares não titulares de empresa.

Improcedem pois as conclusões do recurso dos Devedores na parte em que invocam a inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade das normas legais que os abduzem da admissão ao PER. […]».

Resulta do que se deixou exposto que sendo os aqui recorrentes trabalhadores por conta de outrem, deve considerar-se excluída a possibilidade de recorrerem ao PER, reservado a devedores titulares de uma empresa. Donde impor-se a conclusão que a decisão recorrida nenhum agravo fez aos recorrentes, merecendo confirmação.

 III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.

As custas ficam a cargo dos recorrentes.

                       Maria Domingas Simões

                       Jorge Arcanjo, com voto de vencido.

                       Jaime Carlos Ferreira


***



[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que, sem menção da sua proveniência, vierem a ser citadas.
[2] J. Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, pág. 143.
[3] No mesmo sentido, para além do acórdão em referência, decidiu o STJ nos arestos de 27/10/2016, processo n.º 381/16.4 T8STR-E1.S1; de 21/6/2016, processo n.º 3377/15.0T8STR-E1.S1, e de 5/4/2016, processo n.º 979/15.8T8STR.E-S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt
[4] Proferido no processo n.º 655/16.4 T8LRA.C1, que a ora relatora subscreveu como 2.ª adjunta, também ele acessível em www.dgsi.pt.