Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1358/09.1FIG-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CREDORES
ERRO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 58, 129, 130 CIRE, 490 CPC
Sumário: 1. O artº 490 nº 1 e nº 2 do C.P.C. não se aplica aos casos em que a reclamação de créditos efectuada no âmbito do processo de insolvência não foi impugnada pelo Administrador da Insolvência, não podendo considerar-se admitidos por acordo os factos invocados pelo credor.

2. O Juiz não está vinculado à relação de créditos apresentada pelo Administrador, cabendo-lhe fiscalizar a sua actividade, conforme dispõe o artº 58 do CIRE, no que se integra a verificação da conformidade substancial e formal dos créditos constantes da lista apresentada, quanto ao seu valor e qualidade, com os documentos e demais elementos que disponha.

3. Constatando o Juiz a existência de um erro manifesto na relação de créditos apresentada pelo Administrador, nos termos do artº 130 nº 3 do CIRE deverá abster-se de a homologar e determinar a elaboração de nova lista, rectificada com base em tais elementos, para de seguida ser dada à parte a possibilidade de proceder, querendo, às impugnações que tenha por convenientes para defesa dos seus direitos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

Por sentença de 12/01/2009 foi declarada a insolvência de J (…).

Foi fixado o prazo para a reclamação de créditos, tendo a 12/04/2010, a Sr.ª Administrador da Insolvência apresentado a lista dos créditos reconhecidos nos termos do art. 129.º do CIRE.

Não foi apresentada qualquer impugnação dos créditos.

Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que considerou verificados e reconhecidos os créditos constantes da lista de credores apresentada pela Administradora da Insolvente, homologando a mesma, nos termos do artº 130 nº 3 do CIRE e procedendo à sua graduação.

Não se conformando com a sentença proferida, na parte em que graduou os créditos, vem dela interpor recurso de apelação o credor JF (…) apresentando as seguintes conclusões:

1.Entendeu o Tribunal a quo, que “Quanto ao privilégio imobiliário especial, tendo em consideração que o imóvel apreendido não é o estabelecimento comercial onde os reclamantes exerciam a sua profissão dado que no auto de apreensão, se descreve a mesma na verba n.º 1 como sendo fracção autónoma correspondente a uma habitação no 6.º andar esquerdo.”

            2. Ao fazê-lo partiu o Mmo. Juiz de um erróneo pressuposto de facto que consistiu em considerar que a fracção autónoma em causa se não destinava à actividade do insolvente e que aí, pelo menos, o Reclamante ora Recorrente, não exercia a sua profissão.

            3. Conforme o Requerente / Reclamante invocou na sua reclamação de créditos, tais créditos emergem todos eles de contrato individual de trabalho e correspondente cessação, logo, gozam de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial, sendo certo que, todos os imóveis pertencentes ao insolvente estavam afectos à sua actividade e neles prestava trabalho o Requerente / Reclamante.

            4. E tal matéria não foi impugnada quer pelo Administrador da Insolvência, quer pelo insolvente, quer por qualquer dos restantes credores/reclamantes.

            5. E a isso não obsta a circunstância de na descrição predial e no auto de apreensão, que se limita a transcrever aquela, constar que a fracção autónoma em causa se destina à habitação, uma vez que, como é do senso comum, a destinação formal, nem sempre coincide com a função concreta que lhe é atribuída.

            6. Desde pelo menos, o ano 2000 que o imóvel do insolvente, correspondente à fracção autónoma designada pela letra U, no 6º andar esq., nºos 70/72 da Rua Calouste Gulbenkian, na Figueira da Foz, descrito na 1ªa CRP da Figueira da Foz, sob o n.º 640/19900710-U, não era habitado pelo insolvente ou por qualquer outra pessoa. Aliás, o insolvente afectou-o à sua actividade, designadamente, transformando-o em armazém e estúdio de fotografia e vídeo.

            7. Sendo certo que, no momento em que o insolvente foi declarado como tal, tal imóvel ainda estava afecto à sua actividade, nos mesmos moldes.

            8. Foi por tudo isto que na sua reclamação de créditos o Requerente / Reclamante e ora Recorrente invocou, como supra se referiu, que todos os bens imóveis do insolvente estavam afectos à sua actividade.

            9. Tem, por isso, de se considerar assente, por força do disposto no art. 490º n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 17º do CIRE, que a dita fracção autónoma se destinava à actividade do insolvente e ali prestava trabalho o reclamante.

            10. Deve, pois, este Venerando Tribunal proceder à alteração da factualidade, a este propósito, fixada na sentença, por força do disposto no art. 712º n.º 1 / b) do CPC, determinando que se considere que na supra descrita fracção se exercia a actividade do insolvente e ali prestava trabalho o reclamante e ora recorrente.

            11. Sem prescindir: Mas mesmo que assim se não entenda e se considere que a certidão da Conservatória e o auto de apreensão contrariam o alegado pelo reclamante e, nessa medida, constituem impugnação da factualidade por ele alegada na sua reclamação de créditos – o que se não admite e só por necessidade de raciocínio se refere – então, deveria ser elaborada a respectiva base instrutória, com vista à competente produção de prova.

            12.O que nunca podia era o Mmo Juiz a quo ter ignorado a alegação do reclamante e pura e simplesmente considerar assente que a fracção autónoma em causa se destinava à habitação e que nela não exercia a sua actividade o reclamante.

            13. Daí que, se este Venerando Tribunal entender que tal facto é controvertido e que não possui nos autos todos os elementos que permitam uma decisão sobre tal questão, deve anular a decisão de facto da primeira instância de modo a que tal questão possa ser ali reapreciada.

            14. Atendendo à matéria de facto que deve ser fixada, em conformidade com o que acima se alegou, forçoso é concluir que o crédito do ora Recorrente goza de privilégio imobiliário especial, nos termos da al.ª b) do n.º 1 do art. 377º do Código do Trabalho de 2003, estando claramente abrangido pelo disposto no art. 751º do Código Civil.

            15. Logo, deve o crédito do Requerente / Reclamante e ora Recorrente, no montante de €11.383,01, ser graduado em 1º lugar, antes do crédito da Caixa Geral de Depósitos, que quanto ao montante de €56.083,59 é garantido por uma hipoteca.

            16. E isto, porquanto, como temos vindo a dizer, tal crédito goza de privilégio creditório imobiliário especial sobre o bem imóvel do insolvente que foi apreendido, porque dúvidas não restam de que tal bem estava afecto à actividade do insolvente e nele prestou trabalho o ora Recorrente.

            17. Assim, esteve mal o Tribunal a quo ao não entender que em 1º lugar deveria proceder-se ao pagamento dos créditos indicados sob os n.ºs 3 e 5 da lista de créditos reconhecidos, créditos estes pertencentes aos trabalhadores, os quais, salvo o devido respeito, beneficiam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial, este quanto ao imóvel apreendido, devendo, pois, tal sentença ser revogada, por violar o disposto no art. 377º do Código do Trabalho de 2003.

A credora Caixa Geral de Depósitos, S.A. veio apresentar contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão, referindo em síntese, que a mesma considerou os documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, não tendo o reclamante feito prova que prestaria serviços no imóvel apreendido e não coincidindo o mesmo com o estabelecimento comercial do insolvente. Competia ao Recorrente impugnar a lista, o que não fez, e consequentemente, por força do artigo 130º do CIRE, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que homologou a lista de créditos e os graduou tendo em atenção o que dela consta.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrentes nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 a 3 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine.

- da impossibilidade do tribunal concluir que o crédito do Recorrente não goza de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, contrariando o alegado pelo mesmo, que não foi posto em causa na relação de créditos apresentada pela Administradora da Insolvência, sem produção de prova;

III. Fundamentação de Facto.

Tendo em conta o disposto no artº 713 nº 2 e 659 nº 3 do C.P.C. são os seguintes os factos apurados com interesse para a decisão da causa, tendo em conta o acordo das partes e documentos juntos autos autos:

1. J (…) foi declarado insolvente.

2. O Recorrente JF (…), reclamou o seu crédito no valor de € 11.383,01 sendo € 10.000,00 de capital e € 1.383,01 de juros vencidos, nos termos que melhor constam do requerimento por si apresentado e cuja cópia é junta a fls. 95 ss., que se dá como reproduzido.

3. Aí refere que: “…todos os imóveis pertencentes ao insolvente estavam afectos à sua actividade e neles prestava trabalho o reclamante, o que se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do nº 1 do referido preceito.

4. Também aí indica como prova: 2 documentos que junta e identifica três testemunhas, para o caso dos créditos serem impugnados.

5. A Administradora da Insolvência apresentou a relação de créditos definitiva, reconhecendo o crédito reclamado pelo Recorrente no valor de € 11.383,01 atribuindo-lhe a natureza de crédito laboral e classificando-o como privilegiado, nos termos do artº 47 nº 4 a) do CIRE, conforme descreve no quadro 3 da relação de créditos apresentada.

6. Em tal quadro, onde a Administradora da Insolvência elenca os créditos que gozam de garantias e/ou privilégios é referido quanto ao crédito do Recorrente:

- o crédito reclamado, de natureza laboral, é classificado enquanto privilegiado nos termos do artº 47 nº 4 alínea a) do CIRE, por força do disposto no artº 333 do Código do Trabalho (…).

- o privilégio é mobiliário geral e gradua-se antes dos créditos privilegiados contidos no artº 747 nº 1 do C.Civil, “in casu” créditos por impostos- cfr. artº 333 nº 1 a) e nº 2 a) do C. Trabalho e imobiliário especial apenas sobre os bens imóveis onde decorrria a laboração do insolvente, graduando-se este privilégio antes dos créditos privilegiados contidos no artº 748 do C.Civil (…).

- o crédito correspondente a ¼ do montante reclamado, por emergente do requerimento que conduziu à declaração de insolvência, ou seja, € 2.845,75 goza ainda de privilegio mobiliário geral sobre os bens móveis do insolvente e será graduado em último lugar, nos termos do artº 98 nº 1 do CIRE.

            5. Não foi apresentada qualquer impugnação dos créditos.

            6. O único imóvel apreendido no âmbito do processo de insolvência é descrito como: “Fracção autónoma designada pela letra “U”, correspondente a uma habitação, no 6º andar esquerdo, sita na Rua (..) concelho da Figueira da Foz, conforme melhor consta do documento junto a fls. 120, que se dá como reproduzido.

            7. Tal fracção autónoma encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o nº 640/19900710-U, cfr. fls.16 ss.

            8. Em tal fracção encontravam-se os bens móveis melhor descriminados no auto de apreensão de bens móveis junto a fls. 116.

            9. Por requerimento junto a fls. 114 ss., a Administradora da Insolvência refere que pôde constatar, à data das apreensões que a actividade principal do insolvente era exercida nos estabelecimentos sitos:

            - na Rua de (..) Figueira da Foz, que se encontrava aberto ao público;

            - na Rua (..) nº 195, Figueira da Foz, onde se encontrava a informação de que os clientes se deveriam dirigir à Rua de Santa Catarina, nº 4 r/c;

            - na Rua de (..) r/c, Figueira da Foz, onde se encontrava todo o equipamento mais recente e de laboratório, necessário à actividade do insolvente.

            Mais informa que não pode afirmar, por não saber, se o Recorrente/trabalhador exerceu funções na fracção autónoma designada pela letra “U” sita na Rua (..) 6º esq., Figueira da Foz.

IV. Razões de Direito

- da impossibilidade do tribunal concluir que o crédito do Recorrente não goza de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, contrariando o alegado pelo mesmo, que não foi posto em causa na relação de créditos apresentada pela Administradora da Insolvência, sem produção de prova;

O Recorrente reclamou o seu crédito no processo de insolvência, invocando que o mesmo goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre todos os imóveis do insolvente, que em todos eles exercia a sua actividade.

O crédito do Recorrente foi considerado verificado e reconhecido, no valor por ele reclamado, tendo sido também reconhecido que o mesmo goza de privilégio mobiliário geral, nos termos do artº 377 nº 1 a) e b) do Código do Trabalho, estando apenas aqui em causa a questão de saber se para além disso o mesmo goza de privilégio imobiliário especial, relativamente ao imóvel apreendido para a massa.

O artº 377 do Código do Trabalho de 2003, que corresponde ao actual artº 333, confere no seu nº 1 b) privilégio imobiliário especial aos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, sobre o bem imóvel do empregador onde o trabalhador presta a sua actividade.

Alegou o Recorrente, na reclamação de créditos por si apresentada, que o crédito reclamado emerge de contrato individual de trabalho e sua cessação e que goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, e que todos os imóveis pertencentes ao insolvente estavam afectos à sua actividade e neles prestava trabalho o Reclamante.

Pretende o Recorrente que a alegação por si efectuada não foi impugnada pelo Administrador da Insolvência, nem por nenhum credor, devendo por isso considerar-se como assente, nos termos do artº 490 nº 1 e nº 2 do C.P.C., aplicável ao caso por força do disposto no artº 17 do CIRE.

É certo que na relação de créditos elaborada pela Administradora da Insolvência não é posto em causa nem o valor, nem a qualidade do crédito do Reclamante; pelo contrário, o mesmo é reconhecido pelo valor reclamado, sendo além do mais aí referido que se trata de um crédito privilegiado, gozando de privilégio mobiliário geral e ainda de privilégio imobiliário especial apenas sobre os bens imóveis onde decorria a laboração do insolvente (e que aí não são identificados). A Administradora da Insolvência não exclui que o crédito em causa é detentor de privilégio imobiliário especial. Assim, não havia motivo para o Reclamante impugnar a lista apresentada nos termos do artº 130 do CIRE.

Tal não significa, no entanto, que o tribunal esteja vinculado a tal apreciação e que funcione o artº 490 nº 1 e nº 2 do C.P.C.

O artº 17 do CIRE vem estabelecer a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, dispondo que o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.

O artº 490 do C.P.C. invocado pelo Recorrente, refere-se ao ónus de impugnação especificada, dispondo no seu nº 1 que ao contestar, deve o réu tomar posição definida sobre os factos articulados na petição; acrescenta o nº 2, que se consideram admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só poderem ser provados por documento escrito.

Ora, já se vê que não podemos aplicar esta norma à reclamação de créditos apresentada no processo de insolvência, impondo esse ónus ao Administrador, por não estarem em causa, nem os mesmos pressupostos, nem a mesma razão de ser, que impõe a sua aplicação no âmbito da tramitação da forma de processo declarativo comum ordinário. É que, o processo de insolvência é um processo especial que não pode considerar-se um processo de partes, não sendo o administrador de insolvência o réu, nem a sua intervenção nos autos se faz através de contestação.

Além do mais, o juiz não está vinculado à relação de créditos apresentada pelo Administrador, cabendo-lhe fiscalizar a sua actividade, conforme dispõe o artº 58 do CIRE, no que se integra a verificação da conformidade substancial e formal dos créditos constantes da lista apresentada com os documentos e demais elementos que disponha, devendo, em caso de erro manisfesto, não homologar a lista de credores elaborada, nos termos do artº 130 do diploma referido.

Assim, o facto de não ter havido oposição do Administrador à reclamação efectuada pelo Recorrente, não constitui fundamento para que o tribunal tenha de dar como assente não só a existência do crédito reclamado, como a sua qualidade de privilegiado no pressuposto de que a insolvente exercia a sua actividade no bem imóvel apreendido e que o Reclamante aí prestava trabalho, factos essenciais ao reconhecimento do privilégio imobiliário especial invocado.

Contudo, o contrário também não podia ter sido considerado, sem mais, pelo tribunal “a quo”, concluindo, em divergência com o que consta da relação de créditos apresentada, que o imóvel em causa não corresponde a estabelecimento comercial do insolvente onde o reclamante exercia a sua profissão, com fundamento no facto de que se trata de um imóvel que se encontra registado para habitação. A avaliação feita pelo tribunal de 1ª instância, embora não o refira expressamente, vai no sentido da existência de “erro manifesto”, quanto a este aspecto, entendendo haver desconformidade na qualificação de tal crédito como gozando de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, em face dos documentos constantes dos autos.

Na decisão recorrida é referido que na graduação atender-se-á ao que consta da lista de fls. 4 a 14 (relação de créditos elaborada pela Administradora da Insolvência), à fotocópia do registo predial de fls. 16 a 18 e ao auto de apreensão de bens, apenso A. Após considerar que os créditos laborais gozam de privilégio mobiliário geral, aí se refere: “Quanto ao privilégio imobiliário especial, tendo em consideração que o imóvel apreendido não é o estabelecimento comercial onde os reclamantes exerciam a sua profissão dado que no auto de apreensão, se descreve a mesma na verba nº 1 como sendo fracção autónoma correspondente a uma habitação no 6º andar esquerdo.” Conclui que o crédito do Recorrente beneficia de privilégio mobiliário geral, não atribuindo ao mesmo o privilégio imobiliário especial sobre tal imóvel.

Ora, o tribunal “a quo” não podia ter homologado a lista de credores reconhecidos e graduado os créditos, concluindo, com base nos documentos constantes dos autos, auto de apreensão do imóvel em causa e documento do registo predial do mesmo e ignorando os meios de prova apresentados pelo Recorrente (nomeadamente testemunhal), que este, enquanto trabalhador do insolvente, não exercia a actividade no imóvel em causa. É que, tal questão teria que ser considerada como controvertida, não só porque o mesmo, na sua reclamação de créditos afirma que exercia actividade em todos os imóveis do insolvente, como também pelo facto do administrador da insolvência na relação de créditos apresentada reconhecer ao crédito por ele reclamado privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis onde decorria a laboração do insolvente (embora sem concretizar quais esses imóveis).

E não se diga, conforme refere a recorrida Caixa Geral de Depósitos, que o mesmo não impugnou a relação de créditos apresentada pela Administradora da Insolvência. É que, nem sequer havia fundamento para isso, uma vez que em tal relação a Administradora da Insolvência identifica o crédito do Recorrente como beneficiando de privilégio imobiliário especial sobre os estabelecimentos onde a insolvente laborava, e não pôs em causa, antes reconheceu o privilégio invocado, ainda que de forma genérica sobre os bens imóveis onde decorria a laboração do insolvente e não orientada para qualquer bem imóvel específico.

O Reclamante não tinha assim qualquer motivo para impugnar a relaçãode créditos apresentada pela Administradora da Insolvência, nos termos do disposto no artº 130 do CIRE, a partir do momento em que na mesma o seu crédito é considerado como beneficiando de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis onde decorria a laboração do insolvente, sem ser feita qualquer ressalva, tendo alegado que prestava o seu trabalho em todos os imóveis do mesmo. Aliás a Administradora da Insolvência não terá procedido à notificação a que alude o artº 129 nº 4 do CIRE, por não ter reconhecido o crédito em termos diversos do reclamado.

Em face da relação e créditos apresentada pela Administradora da Insolvência que reconhece o crédito do reclamante nos exactos termos por ele reclamados, quer no seu montante, quer na sua natureza de crédito privilegiado, não tinha o reclamante qualquer fundamento para reclamar da mesma, não se verificando aliás os pressupostos que permitem tal reclamação e expressos no artº 130 nº 1 do CIRE.

Se não houver impugnação da relação apresentada, o juiz procede nos termos do disposto no artº 130 nº 3 do CIRE, cabendo-lhe proferir sentença de verificação e graduação de créditos em que, salvo caso de erro manifesto homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e gradua os créditos em atenção ao que consta dessa lista.

Se há algum lapso na lista apresentada ou questão a esclarecer, impõe-se que o juiz o faça, podendo diligenciar previamente por obter os elementos pertinentes a essa aferição. Terá sempre de haver por parte do juiz uma tarefa de fiscalização, no sentido de apurar se a relação de bens foi bem elaborada. Tal como nos diz o Ac. do S.T.J de 25/11/2008, in.www.dgsi.pt: ”Perante a lista de credores apresentada pelo Administrador da Insolvência e mesmo que dela não haja impugnação, o Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos de crédito constantes dessa lista, nem dos documentos e demais elementos de que disponha, com a inclusão, montante ou qualificação desses créditos, a fim de evitar a violação da lei substantiva.”

Tal como nos dizem Carvalho Fernandes e João Labareda, in. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pag. 460: “o erro tanto pode respeitar à natureza e montante do crédito como às suas qualidades, em qualquer caso cabendo ao Juiz o dever de evitar violação da lei substantiva; mas isto igualmente sem que possa deixar de permitir aos interessados o respectivo exercício do contraditório.”

Temos assim que, de acordo com o disposto no artº 130 nº 3 do CIRE, em caso de erro manifesto, o juiz não deve homologar de imediato a lista de credores e proceder à sua graduação, não estabelecendo, no entanto, a lei quais as consequências que resultam da verificação de tal erro.

De acordo com a jurisprudência expressa no Ac. do S.T.J. de 25/11/2008, in. www.dgsi.pt  e com a qual nos identificamos: “ (…) haverá que distinguir entre as modalidades de erro: se se tratar de um erro de natureza meramente formal, cuja rectificação seja insusceptível de influir nos direitos das partes, nada se vê que obste a que a tal rectificação se proceda e que logo de seguida seja elaborada a sentença de homologação e graduação, nesse sentido apontando o objectivo de celeridade processual claramente manifestado no preâmbulo do CIRE; mas, se se tratar de um erro de natureza substancial, que implique ficarem afectados direitos das partes, aqueles princípios processuais implicam a impossibilidade de imediata elaboração de tal sentença, uma vez que a alteração que, com o fim de rectificação de tal erro, seja efectuada ou determinada, origina que a lista de credores passe a ser distinta.”

Ora, foi isto que se passou no caso em presença, o juiz ao detectar um erro manifesto na relação de créditos apresentada pelo Administrador, divergindo da posição por ele tomada quanto à qualificação do crédito do reclamante como beneficiando de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa, ao avaliar os documentos juntos aos autos, não podia ter proferido de imediato sentença, por isso contender com os direitos do reclamante.

É que, não pode ser retirado ao mesmo a possibilidade de impugnar a lista alterada, quando com a mesma não concorda, e ser chamado, se for caso disso, a fazer prova dos factos que alega.

Assim, terá de haver a elaboração de uma nova lista pela Administradora da Insolvência, rectificada de acordo com o determinado pelo Juiz, em função dos elementos constantes dos autos. A necessidade e determinação de rectificação não pode deixar de se considerar incluída nos poderes de fiscalização conferidos ao Juiz pelo artº 58º do CIRE, cabendo-lhe fiscalizar se o Administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, quer de ordem formal, quer de ordem substancial, sendo a este que cabe a elaboração da lista de credores, como lhe impõe o art.º 129º do CIRE- neste sentido, vd. o citado Ac. do S.T.J.

Nestes termos, em face do erro detectado pelo Juiz “a quo”, no sentido do crédito reclamado não beneficiar de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa, por se tratar de imóvel onde a insolvente não exercia a sua actividade, conforme revelam os documentos juntos aos autos, o Juiz deveria ter determinado a elaboração de nova lista, rectificada com base em tais elementos, para de seguida ser dada à parte a possibilidade de proceder, querendo, às impugnações que tenha por convenientes para defesa dos seus direitos, dando origem a eventual produção de prova sobre tal questão.

Tal determina a anulação da sentença de homologação e de graduação de créditos.

E em razão da existência de erro manifesto da relação de créditos apresentada, na parte em que que não exclui o crédito do Recorrente como beneficiando de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, profere-se decisão que determina a elaboração de nova lista pelo Administrador da Insolvência, que considere a inexistência de tal privilégio sobre o imóvel em questão, em face dos elementos contantes dos autos que o revelam, prosseguindo de seguida o processo os seus termos.

V. Sumário

1. O artº 490 nº 1 e nº 2 do C.P.C. não se aplica aos casos em que a reclamação de créditos efectuada no âmbito do processo de insolvência não foi impugnada pelo Administrador da Insolvência, não podendo considerar-se admitidos por acordo os factos invocados pelo credor.

2. O Juiz não está vinculado à relação de créditos apresentada pelo Administrador, cabendo-lhe fiscalizar a sua actividade, conforme dispõe o artº 58 do CIRE, no que se integra a verificação da conformidade substancial e formal dos créditos constantes da lista apresentada, quanto ao seu valor e qualidade, com os documentos e demais elementos que disponha.

3. Constatando o Juiz a existência de um erro manifesto na relação de créditos apresentada pelo Administrador, nos termos do artº 130 nº 3 do CIRE deverá abster-se de a homologar e determinar a elaboração de nova lista, rectificada com base em tais elementos, para de seguida ser dada à parte a possibilidade de proceder, querendo, às impugnações que tenha por convenientes para defesa dos seus direitos.

VI. Decisão:

Em face do exposto, revoga-se a sentença proferida que se substitui por decisão que determina a elaboração de nova lista, rectificada, nos termos expostos.

Custas

Notifique.

                                                           *

                                              

                                              

Maria Inês Moura (relatora)

Luís Cravo (1º adjunto)

Maria José Guerra (2º adjunto)