Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3053/12.5TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE PRESCRITO
MÚTUO
NULIDADE FORMAL
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 220, 221, 289, 364, 1143 CC, 46 C) CPC/61
Sumário: 1. No recurso a um título de crédito como mero quirógrafo, a obrigação exequenda deixa de ser abstrata e passa a ser causal, razão pela qual exige sempre a indicação do respetivo facto constitutivo.

2. Se a obrigação reconhecida no título executivo tem por fonte um negócio nulo por falta de forma, o juiz só pode reconhecê-lo, não lhe incumbindo qualquer atividade com vista à averiguação sobre se uma vez declarado nulo tal negócio sempre se imporia a restituição da quantia peticionada (ou de parte dela) pelo exequente.

3. A invalidade formal do negócio jurídico afeta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do documento enquanto título executivo.

4. O cheque prescrito não constitui título executivo quando para o negócio subjacente à sua subscrição a lei exija a celebração de escritura pública, sendo este nulo por falta de forma.

Decisão Texto Integral:                             

                                                                   

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

G (…) veio, por apenso à execução que contra si é movida por D (…) deduzir oposição à execução, peticionando o respetivo arquivamento, com os seguintes fundamentos:

o cheque apresentado à execução está prescrito e não reúne as condições necessárias para se preencher o artigo 46, al. c), do Código de Processo Civil;

por outro lado, o alegado empréstimo que o exequente diz ter feito à executada no valor de € 22.000,00 euros, a título de mútuo, obrigava à redução a escritura pública, sob pena de nulidade por vício de forma, pelo que o documento em causa não reúne os requisitos inerentes a um título executivo.

Notificado o exequente, o mesmo deduziu contestação, alegando que, pelo facto de se encontrar prescrito, o cheque foi apresentado como documento particular nos termos da al. c), do artº. 46, do Código de Processo Civil, pelo que, apesar da nulidade do contrato de mútuo, o título continua a ser exequível.

 Pede, a final, que os embargos de executada sejam julgados totalmente improcedentes, por não provados, e a condenação da executada como litigante de má-fé.

O juiz a quo, considerando reunirem os autos todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito, proferiu saneador/sentença, julgando procedente a presente oposição à execução, na sequência da inexequibilidade do título, determinando a extinção dos autos executivos principais.


*

Inconformado com tal decisão, o exequente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso de apelação interposto pelo exequente da sentença proferida nos autos à margem referenciados, que julgou a oposição à execução totalmente procedente e, em consequência, determinou a extinção dos autos executivos principais, por entender que o documento particular – cheque prescrito − apresentado nos autos executivos principais, é inexequível, por força da nulidade do contrato de mútuo que lhe é subjacente.

2.ª A questão a decidir é, assim, a de saber se o cheque prescrito apresentado enquanto documento particular, pode ser considerado título executivo, por o negócio jurídico que lhe subjaz ser nulo por vício de forma.

3.ª No caso sub judice, o recorrente instaurou uma execução comum para pagamento de quantia certa apresentando como título executivo um documento particular − cheque prescrito − ao abrigo da alínea c) do artigo 46.º do Código de Processo Civil (na redação em vigor à data da instauração da execução).

4.ª Por não constar do documento particular a causa da obrigação, o exequente alegou que o cheque prescrito titulava o negócio jurídico celebrado entre o ora recorrente e a executada, nomeadamente um contrato de mútuo através do qual o recorrente emprestou à executada o montante de € 22.000,00 com vista ao pagamento de dívidas a fornecedores.

5.ª Entende o recorrente que o documento particular apresentado nos autos executivos principais continua a ser exequível, havendo lugar à restituição da quantia mutuada por força da nulidade do mútuo celebrado, nos termos do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, porquanto, o documento particular apresentado é exequível para exigir a obrigação de restituição em consequência da nulidade do negócio causal, uma vez que a existência da dívida exequenda se acha presumida, nos termos do n.º 1 do artigo 458.º do Código Civil.

6.ª Tal entendimento é sufragado pela jurisprudência maioritária e mais recente:

− Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.04.2012 (consulta disponível em www.dgsi.pt), (…)

− Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.06.2014 (consulta disponível em www.dgsi.pt), (…)

− Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2009 (consulta disponível emwww.dgsi.pt), (…)

7.ª Esta solução jurisprudencial é também suportada pelo supra referido Assento n.º 4/95 de 28.03.1995, segundo o qual em nada se agrava a posição do demandado, já que, válido ou nulo o negócio, sempre ele seria obrigado ao que lhe é pedido, além de se evitar ao peticionante o ónus de propor nova ação (com acento na nulidade) e cujos efeitos e fins seriam os mesmos, evitar esse que o princípio da economia processual aconselharia.

8.ª Ao decidir pela procedência total da oposição à execução e consequente extinção da ação executiva, a sentença recorrida revela-se manifestamente avessa à celeridade e economia de meios, ao impor ao ora recorrente a propositura de uma ação declarativa destinada a obter  reconhecimento de um direito que já se encontra presumido em documento assinado pela executada, revelando-se, igualmente, excessiva e injustificadamente protetora das garantias de defesa da executada, a qual poderá, em qualquer das situações, provar que não foi celebrado qualquer contrato de mútuo ou entrega da quantia mutuada.

9.ª O Tribunal recorrido violou expressamente as normas dos artigos 6.º, n.º 1 e 703.º, n.º 1, alínea c) do Novo Código de Processo Civil e deveria ter aplicado os artigos 289.º, n.º 1 e 458.º do Código Civil.

10.ª Razão pela qual, fazendo-se uma correta interpretação das normas legais invocadas, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em sua consequência, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da ação executiva.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil[1], a questão a decidir é uma só:
1. Se um cheque prescrito pode constituir título executivo, quando o negócio subjacente à sua subscrição é constituído por um mútuo nulo por falta de forma.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O Juiz a quo teve em consideração os seguintes factos com interesse para a decisão da questão em apreço:

1. A 14 de Setembro de 2012, D (…) intentou execução comum para pagamento de quantia certa de 25.601,97 euros, com fundamento em documento particular: cheque, contra G (…) – facto assente que resulta do requerimento executivo apresentado na ação executiva principal.

2. Ainda no requerimento executivo, na secção sob o título “FACTOS”, ficou a constar que:

O ora exequente celebrou com a executada um contrato de mútuo, pelo qual lhe emprestou a quantia de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros), que a executada recebeu e fez sua.”

Tal quantia tinha como finalidade o pagamento a fornecedores da executada.

A executada obrigou-se a restituir a quantia mutuada no prazo de 15 dias, tendo emitido para o efeito um cheque no valor de € 22.000,00, em 22.07.2008.

Apresentado a pagamento, em 25.07.2008, o cheque foi recusado por extravio, conforme declaração aposta no verso do mesmo.

Tal cheque constitui título executivo nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC.

Apesar de devidamente interpelada para o efeito, a executada nunca cumpriu voluntariamente, mantendo-se a quantia mutuada em dívida até aos dias de hoje, pelo que foi o exequente obrigado à instauração da presente execução e por via dela peticionar o pagamento coercivo pela executada.

Nesse seguimento, para além do capital em dívida, o exequente é ainda credor dos juros vencidos à taxa legal anual de 4% desde a data em que o cheque foi recusado até à presente data, no montante de € 3.601,97 (três mil, seiscentos e um euros e noventa e sete cêntimos), tudo no montante total de € 25.601,97 (vinte e cinco mil, seiscentos e um euros e noventa e sete cêntimos), bem como juros vincendos até efetivo e integral pagamento


*

O Juiz a quo, considerando que o cheque (prescrito) foi utilizado como um documento particular titulando um empréstimo nulo por falta de forma, concluiu que a invalidade formal do negócio atinge a exequibilidade da pretensão incorporada no título e a do próprio título executivo, declarando extinta a execução.

Insurge-se o apelante/exequente contra tal entendimento, com a alegação de que o juiz a quo terá decidido contra a doutrina e a jurisprudência maioritárias: a nulidade do contrato de mútuo não retira exequibilidade ao cheque, pois a obrigação de restituição continua a existir por força do artigo 289º do CC.

Não podemos, contudo, dar razão ao apelante, em consonância com a posição já assumida pela aqui relatora no acórdão do TRP de 28 de maio de 2013[2], também por si relatado, posição que seguiremos de perto.

Da análise global ao tratamento que tem vindo a ser dado a tal questão, poderemos afirmar que a posição defendida pelo Apelante encontra algum apoio em parte da nossa jurisprudência, quer ao nível dos Tribunais da Relação quer ao nível do Supremo[3].

Tal corrente apoia-se na posição assumida por Artur Anselmo de Castro, no sentido de que “não há coincidência entre a força probatória legal e a força executiva ou exequibilidade. A lei concede força executiva a títulos que não possuem força probatória legal (…), mesmo quando representativos de mútuo, formalmente nulo, será o título de considerar-se sempre exequível para a restituição da respetiva importância, só o não sendo para o cumprimento do contrato (v.g., para exigir os juros)[4]”.

Tal posição socorre-se ainda da jurisprudência uniformizada constante no Assento 4/95, segundo qual, “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado como pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixadas os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento nº nº1 do art. 289º do Código Civil”.

Apesar de reconhecerem que a conclusão contida no referido assento tem o seu campo de aplicação mais talhado para a ação declarativa, consideram não se divisar nenhuma razão séria para que igual doutrina não seja seguida em sede executiva: “Ainda que o fundamento jurídico da pretensão exequenda não seja aquele que efetivamente opera por força da declaração de nulidade, os efeitos práticos atingidos são num e noutro caso idênticos, só assim não sucedendo, se porventura o exequente tivesse exigido o pagamento de juros remuneratórios, o que não foi o caso dos autos, tanto mais que o mútuo foi gratuito[5]”.

A partir daí, concluem que “a exequibilidade do título em que se confessa o recebimento de certo capital por força de um contrato nulo por vício de forma é a solução que melhor se conforma com o princípio da economia processual, sem contudo molestar as garantias do executado”.

Embora sejamos sensíveis às razões de economia processual que têm vindo a ser invocadas no sentido de atribuir exequibilidade a documentos particulares que reconheçam a existência de uma dívida (com ou sem indicação de causa) quando a causa debendi respeite a um negócio nulo por falta de forma, entendemos que a elas se terão de contrapor razões de segurança e de evitar o risco de execuções injustas[6].

Apesar de não aplicável ao caso em apreço (artigo 5º da Lei nº 43/2013, de 26 de Junho, que restringe a aplicabilidade do novo regime, no que se refere aos títulos executivos, às execuções instauradas após a sua entrada em vigor), o artigo 703º do Novo CPC veio consagrar a solução que há muito vinha sendo defendida pela doutrina relativamente aos títulos de créditos prescritos – os títulos de crédito constituirão títulos executivos, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no título executivo.

Os títulos de crédito podem constituir título executivo enquanto documentam a obrigação cambiária, literal e abstrata, ou como meros quirógrafos – simples documentos assinados pelo devedor que contenham ou impliquem o reconhecimento da obrigação causal subjacente.

Contudo, quando usados como meros quirógrafos, a obrigação exequenda deixa de ser abstrata e passa a ser causal. Um título executivo relativo a uma obrigação causal exige sempre a indicação do respetivo facto constitutivo, porque sem este a obrigação não fica individualizada, sendo o requerimento executivo inepto por falta de indicação da respetiva causa de pedir[7].

Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, o titulo prescrito vale como documento particular respeitante à relação jurídica subjacente[8].

Quanto aos títulos prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, José Lebre de Freitas[9] defende haver que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal. Em seu entender, no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (artigos 221º, nº1, e 223º, nº1, do CC).

No caso em apreço, encontramo-nos perante um cheque prescrito que o exequente apresenta precisamente enquanto quirógrafo – título assinado pelo devedor e que contenha o reconhecimento de uma obrigação pecuniária –, alegando que o mesmo foi emitido para pagamento de um empréstimo da quantia de 22.000,00 €.

À data da emissão do cheque, o mútuo de valor superior a 20.0000 € só seria válido se fosse celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2.000 € se o fosse por documento assinado pelo mutuário (artigo 1143º do Código Civil, na redação do DL 343/98, de 6/11).

A declaração negocial a que respeita a obrigação reconhecida pelo executado com a subscrição do cheque, carecendo da forma legalmente prescrita – encontrava-se por lei sujeita a escritura pública –, é, assim, nula por falta de forma, nos termos do artigo 220º do Código Civil (CC).

Segundo o disposto no nº1 do artigo 364º do CC, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Como salienta Maria dos Prazeres Pizarro Beleza[10], esta impossibilidade de substituição significa somente que, faltando o documento (ou documento de valor probatório superior), não é possível recorrer a outro meio de prova para obter os efeitos que a declaração negocial teria, se fosse válida; não impede, naturalmente, a utilização de outras provas (testemunhal, por ex.), para provar a emissão de uma declaração nula por falta de forma e conseguir os efeitos decorrentes da nulidade (por ex. a restituição do que tiver sido prestado, no âmbito de um contrato nulo por falta de forma, cfr., artigo 289º). Na ação declarativa, nada obstará, assim, que se recorra ao cheque emitido pelo mutuário com vista ao pagamento da quantia mutuada e a prova testemunhal, para prova da existência do contrato com o fim de lograr a restituição da quantia mutuada como consequência da nulidade do negócio.

E na ação executiva?

A invalidade formal do negócio que levou à subscrição do título não poderá deixar de afetar a eficácia de tal documento enquanto título executivo, uma vez que a obrigação que se mostra reconhecida em tal título respeita a um negócio inválido.

Não podemos concordar com aqueles que defendem que, tal como na ação declarativa o juiz pode decretar a restituição como decorrência do conhecimento oficioso da nulidade, também o poderá fazer na ação executiva, precisamente porque essa atividade declarativa não existe em sede de ação executiva.

É certo que Anselmo de Castro defende que, quanto às obrigações pecuniárias, quando representativas de um mútuo formalmente nulo, será o título sempre exequível para a restituição da respetiva importância[11]

Contudo, haverá que ter em consideração a configuração dada por aquele autor ao título executivo – não só considera o título condição necessária e suficiente, como faz coincidir a causa de pedir material com o próprio título executivo, “sendo inútil, por irrelevante, tudo quanto sobre aquela e para além do título exponha na petição[12]”.

Ora, não é esta a posição por nós adotada relativamente a cada uma das referidas questões.

O título executivo – documento onde consta a obrigação cuja prestação coativa se pretende – não se confunde com a causa de pedir da ação executiva – facto jurídico concreto, simples ou concreto, de onde emerge a pretensão deduzida pelo autor (artigo 498º, nº4, do CPC).

Aderindo-se à conceptualização defendida por João de Castro Mendes e Antunes Varela, a causa de pedir e o título executivo são conceitos estrutural e funcionalmente distintos: o título executivo é o documento donde consta (não donde nasce) a obrigação que se pretende obter por via coativa; a causa de pedir é o facto (as mais das vezes complexo nos seus efeitos) que serve de fonte à pretensão processual. Ou ainda, “a causa de pedir é um elemento essencial de identificação da pretensão processual, ao passo que o título executivo é um instrumento probatório especial da obrigação exequenda[13].

Tal distinção entre título e causa de pedir na ação executiva encontra-se plasmada no nosso regime processual civil, estabelecendo-se na al. e), do nº1 do artigo 810º do CPC [na redação que lhe foi dada pelo DL 226/2008, de 20.11, ao qual corresponde o atual 724º, nº1, al- e)] que o requerimento executivo deve conter, entre outros elementos, “a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo”.

É certo que, tendo a execução por base um título executivo que deve acompanhar o requerimento executivo, a indicação da causa de pedir só tem de ter lugar quando não conste do título.

Como refere Lopes do Rego em anotação a tal norma, “a especificidade da ação executiva, assente necessariamente no título executivo, leva, em regra, a que não caiba ao exequente o ónus de “expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ressurgindo tal ónus de alegação dos factos que servem de “causa petendi”, nos casos em que eles não constem integralmente do título executivo, cabendo, então ao exequente a exposição sucinta da matéria de facto que fundamenta a pretensão executiva[14]”.

Também a afirmação de Anselmo de Castro[15] de que o título executivo é condição necessária e suficiente não pode ser aceite sem algumas considerações.

 Com efeito, se é indiscutível que o título executivo é condição necessária da ação executiva – sem título não haverá execução – a doutrina tem vindo a considerar que a afirmação de que o título é condição suficiente – no sentido de dispensar qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere – não se pode afirmar em termos absolutos.

“A suficiência é um atributo do título enquanto mero documento e refere-se à presunção que dele deriva quanto à existência e subsistência da obrigação exequenda, presunção que dispensaria o juiz de qualquer investigação material sobre esta e lhe permitiria, desde logo, promover a execução[16]”.

Tendo o princípio da suficiência o sentido único de o título ser suficiente para legitimar a pretensão executiva, não dispensando o juiz da apreciação dos restantes pressupostos processuais, a doutrina e a jurisprudência maioritárias vão no sentido de atribuir ao juiz o poder/dever de averiguar da desconformidade entre o título e o direito que se pretende executar, tanto no plano da realidade substancial, como no da realidade formal[17].

Na opinião de Soveral Martins[18], o juiz na sua atividade de heterocomposição não se poderá limitar a conhecer a existência do título enquanto mero documento, tendo de levar mais longe essa atividade de forma a indagar do seu próprio conteúdo instrumental: se o juiz apura a verificação dos requisitos de existência do documento mas apura que nele se não verificam os requisitos formais de exigibilidade deverá julgar inexistente o título executivo (ex., sentença não assinada pelo juiz); assim como, se o juiz apura a existência do documento e dos requisitos de exigibilidade mas constata que ele não é forma válida da declaração do resultado compositivo final deverá igualmente julgar inexistente o título executivo: “De facto, a lei exige, por vezes, que a declaração dos resultados compositivos seja formalizada através de certos documentos sob pena de invalidade formal. É o caso dos contratos de transmissão da propriedade de imóveis ou dos contratos de mútuo de valor superior a vinte mil escudos cujo consenso obrigacional deve ser declarado através de escritura pública. E, assim, se o comprador do imóvel ou o mutuante intentarem ação executiva com base em simples documento particular este não será título executivo por vício formal de declaração[19]”.

Igual opinião é partilhada por José Lebre de Freitas:

“No plano da validade formal, é óbvio que quando a lei substantiva exija certo tipo de documento para a sua constituição ou prova, não se pode admitir execução fundada em documento de menor valor probatório para o efeito de cumprimento de obrigações correspondentes ao tipo de negócio em causa. Não pode, por exemplo, ser admitida execução para entrega de um andar com base em documento particular de compra e venda[20]”.

E Lebre de Freitas[21] dá ainda como exemplo de vício formal que afeta o ato jurídico a que a declaração de ciência se reporte, os casos em que é confessada a prática dum ato sujeito a forma especial ou em que é reconhecido um direito que também só por ato formal se possa constituir.

Também para Miguel Teixeira de Sousa, “a invalidade formal do negócio jurídico afeta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respetivo documento como título executivo. Essa invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, mas também a exequibilidade do título[22]”.

“Se a lei substantiva exige determinado tipo de documento para a constituição ou prova de determinado tipo de negócio jurídico, a execução só pode fundar-se em documento de força probatória igual ou superior àquele (artigo 364º do CPC), para o feito de cumprimento de obrigações correspondentes a esse tipo de negócio[23]”.

Segundo Francisco Lucas Ferreira de Almeida[24], é na força probatória do escrito, atentas as formalidades a observar, que radica a eficácia do título executivo, pelo que a virtualidade para servir de fonte à execução depende da observância da forma legal pelo ato ou negócio jurídico certificado.

Também para Rui Pinto, a invalidade formal do próprio negócio (v.g., nulidade, facto impeditivo da obrigação) é também um vício formal do próprio título[25].

E, em nosso entender, não nos podemos socorrer da jurisprudência constante do assento do STJ nº4/95, proferido no âmbito de uma ação declarativa, onde se sustenta que se o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e desde que na ação tenham sido apurados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento nº nº1 do artigo 289º do Código Civil.

É que, se tal solução levanta algumas dúvidas na doutrina na sequência da aplicação do princípio do dispositivo aos factos e ao direito, mesmo na ação declarativa[26], em que há uma atividade do juiz com vista à declaração do direito do autor, maiores dificuldades encontramos em permitir tal reconhecimento na ação executiva, em que o título tem de valer por si próprio.

Com efeito, se através da ação declarativa se visa a declaração de direitos – pré-existentes ou a constituir pela sentença – ou a declaração de meros factos jurídicos, na ação executiva não se cuida já de declarar direitos, mas de assegurar a sua reparação coativa, no pressuposto de que existem e de que foram violados: “A declaração ou acertamento é assim o ponto de chegada da ação declarativa e, ao invés, o ponto de partida da ação executiva[27]”.

Na ação declarativa, no âmbito da atividade declarativa aí desenvolvida tendente ao reconhecimento do direito do autor, permitir-se-á, eventualmente, ao juiz, desde que os factos provados nos autos o consintam, reconhecer o dever de restituição da quantia mutuada com um fundamento distinto do alegado pelo autor.

Contudo, na ação executiva, face à inexistência de qualquer atividade declarativa, a obrigação exequenda tem de emergir diretamente do próprio título, ou, como afirma José Lebre de Freitas, “a obrigação exequenda tem de constar do título[28]”.

Ou, como refere Rui Pinto, se o direito substantivo ainda tiver de ser declarado, por não decorrer do título, não poderá ser executado[29].

Se a obrigação reconhecida no título tem por fonte um negócio nulo por falta de forma, o juiz só pode limitar-se a reconhecê-lo, não cabendo qualquer indagação sobre as consequências da declaração de tal nulidade, ou seja, qualquer atividade com vista à averiguação sobre se uma vez declarado nulo tal negócio, sempre se imporia a restituição da quantia peticionada pelo exequente.

A pretensão executiva aqui exercida pelos exequentes consiste no cumprimento da obrigação de liquidação da quantia mutuada por força da celebração de um contrato de mútuo, nas condições então acordadas, e não na restituição derivada da nulidade do negócio, a operar com fundamento no artigo 289º, do Código Civil.

Quanto a uma eventual obrigação de restituição por força da nulidade de tal negócio, não se mostra refletida no título.

A verdadeira causa da obrigação executada é aquele mútuo que, sendo nulo por falta de forma, não produzirá quaisquer efeitos, não sendo permitido ao juiz a “convolação” da causa de pedir da ação executiva.

Como afirma António Abrantes Geraldes, defendendo que a exequibilidade prevista na citada al. c), do artigo 46º está reservada às obrigações de entrega de bens imóveis validamente constituídas[30], “é característico do título executivo que dele transpareça, sem incertezas, o direito que se pretende exercitar. A acção executiva não constituiu o meio idóneo para definir direitos litigiosos, servindo apenas para veicular o cumprimento coercivo de obrigações suja constituição ou reconhecimento beneficiem do grau de certeza de segurança necessário[31]”.

Concluímos, assim, em conformidade com o decidido no Acórdão do STJ de 10-07-2008, posição igualmente sustentada no Acórdão do STJ de 20.02.2014[32], que, não garantindo o título a validade do negócio jurídico que lhe subjaz e sendo a nulidade de conhecimento oficioso, “a invalidade formal do negócio atinge a exequibilidade da pretensão incorporada no título e a do próprio título executivo”.

E, por falar em acórdãos recentes, haverá que citar o Acórdão do TRP de 25.01.2016[33], no qual se afirma que “um cheque que se encontre privado da sua eficácia cambiária, por prescrição da obrigação tabular, e que titule um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, não pode servir como título executivo”.

Concluindo, confirma-se o juízo de inexequibilidade do título face à pretensão exequenda, improcedendo a apelação.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo apelante.                     

Coimbra, 16 de março de 2016

Maria João Areias

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro ( com declaração de voto )

Declaração de voto

Alterei a minha posição, expressa como adjunto no acórdão de 17.6.2014, no proc.6322/11 desta Relação. Esta alteração está também já subjacente no acórdão que relatei a 16.3.2016 (hoje), no proc.981/12.

 (Fernando Monteiro)


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. No recurso a um título de crédito como mero quirógrafo, a obrigação exequenda deixa de ser abstrata e passa a ser causal, razão pela qual exige sempre a indicação do respetivo facto constitutivo.
2. Se a obrigação reconhecida no título executivo tem por fonte um negócio nulo por falta de forma, o juiz só pode reconhecê-lo, não lhe incumbindo qualquer atividade com vista à averiguação sobre se uma vez declarado nulo tal negócio sempre se imporia a restituição da quantia peticionada (ou de parte dela) pelo exequente.
3. A invalidade formal do negócio jurídico afeta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do documento enquanto título executivo.
4. O cheque prescrito não constitui título executivo quando para o negócio subjacente à sua subscrição a lei exija a celebração de escritura pública, sendo este nulo por falta de forma.


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o artigo 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Disponível in www.dgsi.p.t.
[3] Cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 19.02.2009, relatado por Pires da Rosa, e de 13.07.2010, relatado por João Camilo, Acórdãos do TRL de 13.10.2011, relatado por José Mouro, e de 08.05.2012, relatado por António Santos, Acórdãos do TRC de 20.06.2012, relatado por Carlos Querido, e de 24.04.2012, relatado por Moreira do Carmo, Acórdãos do TRP de 22.04.2013, relatado por Carlos Gil, e de 04.11.2011, relatado por Ramos Lopes, e Acórdão TRC de 17.06.2014, relatado por Maria Inês Moura, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt.
[4] “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª ed., Coimbra Editora 1977, págs. 41 e 42.
[5] Acórdão do TRP de 22-04-2013, relatado por Carlos Querido, disponível in http://www.dgsi.pt.
[6] Note-se que o legislador, consciente de tal risco, potenciado pelo aumento do número de hipóteses em que a execução se inicia pela penhora de bens do executado, optou por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem (ressalvados os títulos de crédito) – cfr., Exposição de Motivos que precede tal proposta.
[7] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “A Acção Executiva Singular”, LEX, Lisboa 1998, pág. 69.
[8] Desde que a forma escrita seja suficiente para a prova do negócio jurídico, porquanto, se a lei exigir escritura pública, não será, a nosso ver, bastante que o título de crédito mencione a relação subjacente.
[9] “A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª ed., Coimbra Editora, pág. 74. Segundo tal autor, executando-se título referente a negócio jurídico para o qual a lei exija forma escrita, não se coloca o problema da necessidade de alegação dos factos quando o título não mencione a causa, visto que a causa deve então constar do título sob pena de este não poder fundar a execução: quer a alínea b), quer a alínea c) do artigo 46º exigem a validade da obrigação titulada (artigo 812º.2-c) – José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, Coimbra Editora 2003, pág. 281.
[10] “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, anotação ao artigo 364º, pág. 846.
[11] E, em consonância com a sua tese de que a exequibilidade e validade formal do título podem não coincidir, acaba por considerar que, quando o título executivo se não revista de força probatória legal, não é ao executado que compete a prova negativa dos factos constitutivos do direito, mas sim ao exequente a prova da sua existência –  “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª ed., Coimbra Editora 1977, pág. 49.
[12] “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, págs. 15 e 90.
[13] Antunes Varela, anotação ao Acórdão do STJ de 24.11.83, in RLJ Ano 121, págs. 147 e 148, e, em igual sentido, João de Castro Mendes, “A Causa de Pedir na Acção Executiva”, 1965.
[14] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 2ª ed. 2004, Almedina, pág. 25.
[15] Ação Executiva Singular, pág. 39.
[16] Soveral Martins, “Processo e Direito Processual Executivo”, Centelha 1984-1985, págs. 163 e 164.
[17] Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 20.02.2014, relatado por Serra Batista, disponível in www.dgsi.pt.
[18] “Processo e Direito Processual Executivo”, Centelha 1984-1985, págs. 168 e ss.
[19] Autor e obra citados, pág. 169 e 170.
[20] “A Acção Executiva depois da reforma da reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora 2009, pág. 72.
[21] Obra citada, pág. 72, nota 84.
[22] “A Acção Executiva Singular”, LEX Lisboa 1998, pág. 70, e em igual sentido, “A Reforma da Acção Executiva”, LEX Lisboa 2004, pág. 70, na qual afirma, a propósito do alargamento do âmbito dos títulos executivos introduzido na al. c), do art. 46º, às obrigações de entrega de coisa imóvel, pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 08/03: “É claro que se exige que o acto negocial seja válido quanto à forma pela qual foi celebrado, porque a exequibilidade de um documento pressupõe que ele respeita as exigências de forma”.
[23] J. M. Gonçalves Sampaio, “A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas”, 2ª ed., Almedina 2008, pág. 74; em igual sentido, se pronuncia ainda Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., Almedina 2009, pág. 161.
[24] “Direito Processual Civil”, Vol. I, Almedina 2010, págs. 122 e 123.
[25] “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 151.
[26] Reconhecendo que aquilo que o Supremo quis, uma vez mais, foi evitar a instauração de uma segunda ação em que as partes viessem, na sequência da primeira, pedir a restituição do que houvessem reciprocamente prestado, Paula Costa e Silva acaba por aceitar a posição tomada pelo Supremo no citado Assento nº 4/95, na medida em que tanto a previsão em que o autor se funda, como aquela a que o tribunal reconduz os factos arrolados, determinam a produção de um mesmo efeito prático – “Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo”, Coimbra Editora 2003, págs. 565 e ss., em especial, pág. 567, pág. 572 nota (1204), e pág. 577 nota (1217).
[27] José Lebre de Freitas, “Concentração da Defesa e Constituição de caso julgado em embargos de executado”, in Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra Editora 2002, págs. 452 e 453.
[28] “A Acção Executiva, depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora 2009, pág. 74.
[29] “Manual da Ação Executiva e Despejo”, Coimbra Editora, pág.146.
[30] Em igual sentido, Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed. 2004, Almedina, pág. 83.
[31] “Títulos Executivos”, in Revista THEMIS, Ano IV, nº7-2003, “A Reforma da Acção Executiva”, págs. 45 e 46.
[32] Acórdãos relatados, respetivamente, por Nuno Cameira e Batista Serra, disponíveis in http://www.dgsi.pt.
[33] Acórdão relatado por Sousa Lameira, disponível in www.dgsi.pt.