Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
208/14.1 GCCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO;
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L CRIMINAL DE CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, 55.º E 56.º DO CP; ARTS. 61.º, N.º 1, AL. B), 119.º, AL. C), E 495.º, DO CPP
Sumário:
I – A jurisprudência bem como a doutrina têm sufragado que o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova é precedido de audição pessoal do arguido.
II – A revogação da suspensão da pena não é uma consequência automática da conduta do condenado, estando sempre dependente da verificação do pressuposto “que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
III - E que um tal juízo só é susceptível de ser formulado após a recolha dos elementos para o efeito reputados indispensáveis, entre os quais a audição pessoal do arguido, tendo em consideração que a prisão constitui sempre a ultima ratio do sistema criminal.
IV – Mas também a jurisprudência se pronuncia no sentido de que não será tal audição do condenado presencial, apenas, se inequivocamente dada essa possibilidade ao arguido só por culpa dele a mesma não foi levada a cabo, ou porque faltou à diligência, ou porque se ausentou sem rasto da morada constante do TIR, etc.
V – A inviabilização da audição presencial - por comportamento imputável ao próprio arguido - não contagia nem compromete o exercício do contraditório na vertente de direito de audiência.
VI – Tendo o Tribunal a quo encetado os esforços exigíveis e possíveis no sentido de ouvir o arguido sobre o incumprimento do plano de reinserção fixado e das demais obrigações a que estava obrigado, a não audição do arguido apenas se deve a culpa sua.
VII – Tendo o arguido incorrido em sucessivos incumprimentos das obrigações que condicionavam a suspensão da execução da pena, quer a sujeição ao plano de reinserção, que o Tribunal flexibilizou até ao limite do admissível e que mesmo assim o recorrente inviabilizou, nunca contactando a equipa da DGRSP nas diversas vezes que se deslocou a Portugal, quer quanto ao pagamento da quantia à APAV cuja entrega lhe incumbia comprovar no processo no prazo de um ano e que também não fez, verifica-se infracção grosseira e repetida dos deveres ou regras de conduta imposto e que o plano individual de reinserção do arguido revelou também que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I. Relatório.
1.1. No âmbito dos presentes autos de Processo comum singular, foi proferido, com data de 4 de Dezembro de 2017, despacho judicial cujo teor é como segue:
«O arguido AA foi condenado nestes autos de processo comum singular, por decisão proferida em 06.02.2015 transitada em julgado em 09.03.2015 na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 8 meses, com regime de prova e imposição de regras de conduta.
Sucede que o arguido embora tenha iniciado o cumprimento do PIRS homologado nos autos, se ausentou do país passando a residir no Luxemburgo, não cumprindo as obrigações que lhe foram impostas (fls. 261, 286, 287).
Face à deslocação do arguido para o estrangeiro, o PIRS foi reajustado, considerando a realidade profissional e residencial do arguido, e adaptado a tal circunstância mantendo-se o compromisso e obrigação pelo arguido de comparecer junto da DGRSP quando em Portugal, o que se comprometeu a fazer e não cumpriu (fls. 297, 299 a 301, e 303 a 305).
O arguido não procedeu, ainda, ao pagamento da quantia de € 500 à APAV, como fixado por sentença.
O arguido condicionou, e acabou por comprometer em definitivo os objectivos da intervenção da DGRSP, de quem não permite a intervenção, e com a qual não colabora de forma alguma (fls. 312 e 313, 341 e 342).
A ofendida veio a apresentar queixa-crime contra o arguido onde imputa ao mesmo a prática de factos susceptíveis de integrar, pelo menos, os crimes de injúria e ameaça, a que respeita o auto de violência doméstica NUIPC 000166/17.0PBCLD, conduta que viola, desde logo, o teor da sentença em que foi condenado nestes autos (fls. 324ss).
Por constar dos autos que, embora fosse conhecido o seu paradeiro no Luxemburgo, o mesmo mantinha, para efeitos de notificação a morada por si indicada no TIR que prestou, foi designado dia para audição de condenado, tendo o arguido sido notificado nos termos legalmente previstos considerando o TIR válido, tendo-o ainda sido o respectivo defensor, sendo a diligência agendada de acordo com a disponibilidade por aquele manifestada.
O arguido não compareceu na data designada para a respectiva audição.
Em sede de audição de condenado foi ouvido o técnico de reinserção social que acompanha a execução da medida, o qual, confirmou a total falta de colaboração do mesmo, que depois de se deslocar para o Luxemburgo nunca compareceu às reuniões agendadas para os períodos em que o mesmo referiu deslocar-se a Portugal, desprezando os compromissos assumidos e desinteressando-se em absoluto do destino dos presentes autos e da pena que nos mesmos lhe foi imposta.
O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido.
Notificada para se pronunciar, sobre a promoção do Ministério Público a defesa do arguido vem arguir a nulidade da diligência realizada por falta de notificação do arguido e a sua audição presencial.
Face ao supra exposto, e considerando que o arguido foi notificado do despacho que designou dia para a respectiva audição na morada por si escolhida para o efeito no TIR prestado, o qual apenas se extinguirá com a extinção da pena, o mesmo foi, em nosso entender validamente notificado.
Ademais, o defensor oficioso do arguido foi notificado da data designada, era igualmente conhecedor da morada em que o arguido, tanto quanto se sabe de momento, residirá no Luxemburgo, tendo assim sido conferida oportunidade para exercício de contraditório quanto aos factos reportados pela DGRSP quanto ao incumprimento do arguido do PIRS e da sentença proferida nos autos, e bem assim da promoção do Ministério Público quanto às consequências de tal incumprimento, v. nesse sentido Ac. Relação de Coimbra de 25.09.2013, e Ac. Relação do Porto, de 29.03.2017.
Em conformidade com a promoção de fls. 386, atendendo ao circunstancialismo supra descrito de que resulta que o arguido se revela completamente indiferente à decisão proferida, demonstrando um total desrespeito para com a lei, e um profundo desinteresse para com a sua própria condição, julgamos que o circunstancialismo supra descrito e referido na promoção que antecede é manifestamente demonstrativo da forma desinteressada com que o arguido enfrentou a sua condenação bem como as condições de suspensão que lhe foram impostas pois que, não manifestou qualquer interesse na viabilização do referido plano de reinserção.
Concluímos portanto que o arguido violou com culpa as imposições a que foi sujeito, e que as finalidades que motivaram a suspensão já não podem ser alcançadas por tal meio, devendo-se em consequência determinar o cumprimento da pena de prisão aplicada (art.º 56.º, n.º 1 als. a) e b) e n.º 2 do Cód. Penal).
Pelo exposto, declaro revogada a suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses aplicada nestes autos e, em consequência, determino que o arguido cumpra a mesma pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Oportunamente, emitam-se os competentes mandados de detenção do arguido para cumprimento de pena em Estabelecimento Prisional competente.
Notifique
1.2. Inconformado com o decidido, o arguido AA, entretanto já mais identificado nos autos, interpôs recurso (constante de fls. 412/416), pedindo que no respectivo provimento seja revogado o despacho proferido pelo Tribunal a quo, decidindo-se que o mesmo é nulo nos termos do art.º 119.º, al. c) do Código de Processo Penal, ou, caso assim não se entenda, substituído por outro que determine a aplicação do disposto numa das alíneas do art.º 55.º do Código Penal, ou, em última análise, determine a repetição da audição do arguido, devendo o arguido ser notificado para o efeito, na sua morada no Luxemburgo, tudo isto fundado nas seguintes conclusões extraídas da motivação apresentada (transcrição):
1.ª O douto despacho decidiu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, determinando o cumprimento da pena de prisão em que o arguido foi condenado nos termos do art.º 56.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
2.ª O arguido foi condenado na pena de 2 anos e oito meses de prisão, suspensa por igual período, mediante regime de prova e o dever de entregar a quantia de 500,00 euros à APAV.
3.ª O arguido iniciou o cumprimento do plano.
4.ª Posteriormente o arguido emigrou e passou a residir no estrangeiro, tendo sio o plano adaptado por forma a que este cumprisse as obrigações de suspensão quando se encontrasse em território nacional,
5.ª Considerou o douto tribunal a quo que o arguido não voltou a comparecer na DGRSP, nem a contactar esta entidade.
6.ª Também considerou que o arguido não demonstrou que tivesse efectuado o pagamento à APAV.
7.ª Considerou o douto tribunal a quo que o arguido foi notificado para ser ouvido em declarações e este não compareceu nem justificou a sua ausência.
8.ª Na verdade, o arguido iniciou o plano de reinserção no dia 1 de junho de 2015 e informou a DGRSP- Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) que no dia 18 de junho de 2015 ia emigrar por razões de dificuldades económicas, para o Luxemburgo, e que se comprometia a comparecer nesses serviços nos períodos em que se encontrasse em Portugal, conforme se refere o relatório inicial da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção).
9.ª No dia 1/7/2015 o douto tribunal a quo determinou que “Uma vez que o arguido não está impossibilitado de se deslocar para o estrangeiro nada a determinar. No entanto, mantém a sua morada para efeitos de notificação.”
10.ª No relatório intercalar da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) esta informa o Tribunal no dia 15 de abril de 2016 que a residência do arguido no Luxemburgo passou a ser a seguinte: ----------- e que o arguido tinha revelado que se deslocaria a Portugal em dezembro de 2016 para passar o Natal, tencionando nessa data efetuar o pagamento de 500,00 € à APAV.
11.ª Ora, do relatório de 22 de junho de 2017 da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) enviado para o douto tribunal refere que “desde a última informação enviada ao tribunal em 7/02/2017, não foi possível contactar o arguido. Apesar de se ter comprometido a comparecer nestes serviços quando se deslocasse a Portugal, situação que previa para a época da Páscoa, AA não o fez, embora segundo a ofendida tenha estado em Portugal durante uns dias.”
12.ª Face a este relatório o douto tribunal notificou o arguido para a morada do mesmo em Portugal, bem sabendo que o mesmo não se encontrava em Portugal, bem sabendo o douto tribunal a quo que o arguido estaria no Luxemburgo, na morada de que dispunha, e não envidou quaisquer esforços no sentido de notificar o arguido nesta morada, a fim de se poder pronunciar sobre o relatório da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção).
13.ª O arguido podia e devia ter estado presente se o douto tribunal a quo o tivesse notificado na morada do Luxemburgo, da qual tinha sido informado e tinha conhecimento.
14.ª A doutrina, nomeadamente Maia Gonçalves, André Lamas Leite e Paulo Pinto Albuquerque, consideram que a audição do arguido aquando da decisão de revogar a pena suspensa é obrigatória e presencial.
15.ª No entender de Paulo Pinto de Albuquerque a não audição do arguido nestas condições constituem uma nulidade nos termos do art.º 119.º, al. c) do Código de Processo Penal.
16.ª Assim, o douto despacho que decidiu a revogação da suspensão da execução da pena é nulo, não produz nenhum efeito e deve ser revogado pelo douto tribunal de recurso.
17.ª A revogação da suspensão consiste numa aplicação de uma sanção mais gravosa para o arguido, e por isso é necessário a sua presença na respectiva audiência para análise da sua revogação, pelo que não estando ele presente não se pode dar cumprimento ao princípio do contraditório, consagrado no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
18.ª Desta forma o douto tribunal ofendeu e violou o art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, devendo assim o douto despacho ser julgado inconstitucional e em consequência ser o mesmo revogado.
19.ª Além disso o douto despacho do tribunal a quo violou o art.º 6.º, n.º 3, als. b) e c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dado que não permitiu ao arguido apresentar a sua defesa sobre os factos controversos.
20.ª O douto despacho do tribunal a quo violou o art.º 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, uma vez que este determina que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido o parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico.”
21.ª André Lamas Leite considera que para o cumprimento do princípio do contraditório previsto nos art.ºs 32.º, n.º 5 da CRP; 6.º, n.º 3, als. b) e c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o douto tribunal a quo não pode decidir sem prévia audição do arguido, e conclui que tal só poderá ser obrigatório para o tribunal, tendo este, antes de determinar a revogação da suspensão da pena privativa da liberdade, envidar todos os esforços necessários para que se consiga a audição do arguido. Isto é que se deve dar uma oportunidade ao condenado para se pronunciar sobre essa consequência que lhe é desfavorável.
22.ª E o douto tribunal a quo não envidou todos os esforços necessários para que se conseguisse a audição do arguido, isto é, não envidou todos os esforços para que o arguido estivesse presente na respectiva audição, apesar de ter sido possível bastando para o efeito ter notificado o arguido na morada do Luxemburgo onde residia, e que era do conhecimento do douto tribunal a quo.
23.ª Ora, do relatório da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) do dia 22 de junho de 2017, refere este que o arguido esteve em Portugal durante uns dias na Páscoa e este não compareceu nos respetivos serviços para a continuidade do Plano.
24.ª Contudo, nem o Tribunal conhece, nem a DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) conhece ou dá a conhecer em que dias é que o arguido esteve em Portugal, e se só esteve na sexta, sábado e Domingo de pascoa, dias em que os serviços de reinserção social estiveram fechados e o que seria impossível a sua deslocação aos mesmos.
25.ª Também se desconhece se efetivamente o arguido entregou os 500,00 euros à APAV, não havendo por parte da DGRSP - Equipa do Oeste (responsável pelo Plano de reinserção) qualquer alusão ao mesmo.
26.ª Portanto, o douto tribunal a quo não podia revogar, pura e simplesmente a suspensão da execução da pena de prisão, sem se ter assegurado dos factos atrás descritos.
27.ª Sendo assim, há não só uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como há um erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, als. a) e c) do Código de Processo Penal, devendo nestes casos ser revogado a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
28.ª Não existe qualquer prova nos autos que comprove que o arguido infringiu grosseiramente ou repetidamente os deveres ou as regras de condutas que lhe foram impostas ou o plano de reinserção social.
29.ª E por isso o douto tribunal a quo não devia ter aplicado o disposto no art.º 56.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e, em consequência, decidido pela revogação da suspensão da execução da pena.
30.ª Se tivesse sido provado, o que não se fez prova, que o condenado deixou culposamente de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta ou não corresponder ao plano de reinserção social, o douto tribunal a quo devia ter aplicado uma das alíneas do art.º 55.º do Código Penal.
31.ª Portanto o douto tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, não devia ter aplicado o art.º 56.º, n.º 1, al. a), mas sim o art.º 55.º do Código Penal.
32.ª É que a revogação da suspensão da pena de prisão prevista no art.º 56.º, n.º 1, al. a) deve ser a ultima ratio, ou seja, quando nenhuma das medidas previstas nas alíneas do art.º 55.º do Código Penal seja suficiente para que o fim último da suspensão da pena de prisão, isto é, afastar o condenado da prática de crimes no futuro seja atingido.
33.ª Pelo que o douto tribunal a quo violou o disposto no art.º 55.º do Código Penal.
34.ª Devendo para o efeito revogar a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
1.3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 420.
1.4. Notificado ao efeito, o Ministério Público respondeu ao recurso (fls. 423/424) sustentando o seu improvimento, baseado na seguinte sínteses de fundamentos:
1.ª O arguido não cumpriu o plano elaborado pela DGRSP, nem inicialmente, nem quando adaptado à sua nova situação.
2.ª O arguido voltou a praticar factos, durante o período de suspensão contra a ofendida.
3.ª O arguido não entregou a quantia que lhe foi determinada, à APAV.
4.ª De facto, o arguido comunicou nos autos que estava ausente no Luxemburgo, porém, manteve, para efeitos de notificações, a morada já constante do TIR.
5.ª Assim, foi notificado na morada por si indicada, mas também na pessoa do seu Defensor, não tendo comparecido em Tribunal.
6.ª Durante todo o período de suspensão o arguido manteve uma postura de desinteresse no cumprimento das injunções determinadas, mas também de reincidência, voltando a praticar factos, de natureza ilícita, contra a aqui ofendida.
7.ª Em conclusão, a falta do arguido à data designada para a sua audição coaduna-se perfeitamente com o comportamento de desinteresse que o mesmo vinha manifestando, pelo que não resta senão concluir que se frustrou o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora aplicada.
1.5. Observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 432/436) conducente também à negação de provimento à impugnação deduzida.
1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
1.7. Porque nenhum fundamento obstava ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.
Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.
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II. Fundamentação.
2.1. Delimitação do objecto do recurso.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, tal como transposto nas conclusões apresentadas, e porque não intercede fundamento conducente a qualquer intervenção oficiosa, as questões decidendas traduzem-se em verificarmos i) se deve revogar-se o despacho em crise por violação do princípio do contraditório, constitucional e ordinariamente consagrado; na negativa a tal questão, ii) se, em todo o caso, o mesmo despacho deveria ter chamado à colação o art.º 55.º do Código Penal, que não, como sucedeu, a subsequente art.º 56.º do mesmo diploma substantivo.
Vejamos, pois:
2.2. Começa o arguido por esgrimir da nulidade insanável do despacho recorrido, de acordo com o elencado art.º 119.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e isto por omissão da sua audição presencial, prévia à revogação da suspensão da execução da pena facultada aquando da prolação da sentença condenatória nestes mesmos autos.
Prevê, o art.º 495.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Falta de cumprimento das condições de suspensão”:
1. Quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 51.º, no n.º 3 do artigo 52.º e nos artigos 55.º e 56.º do Código Penal.
2. O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.
Dispõe, por seu turno, o art.º 56.º do Código Penal, sob a epígrafe “Revogação da suspensão”:
1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Finalmente, o art.º 61.º, n.º 1, al. b) do aludido diploma adjectivo penal, estabelece o direito de o arguido «Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.».
A jurisprudência tem sufragado que da interpretação conciliada das referidas normas se deve extrair que o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova é precedido de audição pessoal do arguido, isto porquanto se escreve no citado art.º 495.º, n.º 2, «o tribunal decide,…depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado». Também da mesma norma resulta que esta audição é presencial, pois aí se estatui que o condenado seja ouvido «na presença do técnico, que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão». Ademais se sustenta que tal entendimento deve inclusive ser seguido nas situações em que a possibilidade da revogação da suspensão da execução da pena de prisão decorrer do fundamento constante do art.º 56.º, n.º 1, al. b), do Código Penal – seja, de no período correspectivo o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado -, já que, realça-se, sempre urge aquilatar então e ainda de acordo com tal normativo, se “as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.” – cfr. Acs. do TRE de 12/7/2012, Rel. Desembargadora Ana Maria Brito; do TRG de 18/4/2016, Rel. Desembargador Lee Ferreira; do TRP de 6/3/2013, 9/3/2016 e de 29.03.2017, Rel. respetivamente, Desembargadores Moreira Ramos, José Carreto e Luísa Arantes e do TRL de 30.06.2009, e 05.05.2009 e do TRC de 16.01.2008, todos disponíveis in www.dgsi.pt e mencionados, por seu turno, no Ac. do TRP, proferido no âmbito do recurso n.º 24/16.6 PGGDM.P1, igualmente acedido nesse sítio.
Idêntico entendimento é sufragado na doutrina, sendo exemplificativo, nomeadamente, o que a propósito do cerne da presente questão escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição actualizada, Lisboa 2011, pág. 1252: “O arguido deve ser ouvido pessoal e presencialmente, sendo irrelevante o motivo da revogação da suspensão, sob pena de nulidade do artigo 119.º, alínea c), uma vez que a lei não relaciona a audição do arguido com nenhum motivo especial.” [sublinhado nosso]
Em abono desta jurisprudência e doutrina a consideração de que a revogação da suspensão da pena não é uma consequência automática da conduta do condenado, estando sempre dependente, reitera-se, da verificação do pressuposto “que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”. E que um tal juízo só é susceptível de ser formulado após a recolha dos elementos para o efeito reputados indispensáveis, entre os quais a audição pessoal do arguido, tendo em consideração que a prisão constitui sempre a ultima ratio do sistema criminal.
A suspensão da execução da pena é uma pena de substituição autónoma, traduzindo-se a sua revogação sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena – a pena de prisão. Estando, por isso, em causa um acto decisório que influi no direito à liberdade do arguido e com a liberdade do arguido, que “pessoalmente o afecta”, forçoso se torna reconhecer legalmente o seu direito constitucional de contraditório e de audiência - art.ºs 61.º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, acima mencionado, e 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Sendo esta a regra, a prática judiciária coloca bastas vezes, porém, vicissitudes a que importa não estar alheio (por exemplo, dificuldades de comunicação entre os condenados e os serviços de acompanhamento, que podem levantar dúvidas aos julgadores, quer sobre os reais intentos dos arguidos no cumprimento do que lhes foi determinado, quer sobre a exacta dimensão dos seus incumprimentos), e daí que também a jurisprudência se pronuncie no sentido de que apenas não será tal audição do condenado presencial se inequivocamente dada essa possibilidade ao arguido só por culpa dele a mesma não foi levada a cabo, ou porque faltou à diligência, ou porque se ausentou sem rasto da morada constante do TIR, etc.
Escreve-se, nomeadamente, nos arestos seguintes:
Deste TRC, de 14/09/16, in www.dgsi.pt/jtrc: “O art.º 495.º n.º 2 do CPP, determina que o condenado seja ouvido quando esteja em causa o incumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações. Mas sob pena de paralisação do processo, esta audição só é indispensável quando o condenado seja encontrado.”
Ainda do mesmo TRC (num caso referente a uma revogação por incumprimento de PTFC, mas cuja identidade justifica o regime similar decorrente do art.º 498.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), o Ac. de 06/07/16, in www.dsgs.pt/jtrc): “Antes de ser proferido o despacho de revogação, o tribunal assegurou os direitos de defesa do arguido e do contraditório, notificando-o para comparecer e notificando o defensor para se pronunciar. O arguido não pode assim fundamentar a falta de cumprimento do art.º 495.º, n.º 2, aplicável ex vi o art.º 498.º, n.º 3 do CPP, por ter sido ele quem tornou impossível o seu cumprimento, com as ausências injustificadas para início do PTFC e para declarações em tribunal (...) por se ausentar da residência, com paradeiro desconhecido.”
Do TRE, de 12/07/12: “No caso, e da leitura que fazemos do art.º 495.º, n.º 2 do CPP, o direito de audiência concorre com o direito de presença, ou seja, a garantia do contraditório implica a audição presencial do arguido. É certo que desta garantia do contraditório na modalidade de direito de presença não decorre a inviabilização de decisão na falta do arguido, ou seja, na impossibilidade de o fazer comparecer perante o juiz — o que, no limite, colocaria a decisão judicial na disponibilidade deste, ou, pelo menos, a possibilidade de poder retardar intoleravelmente o processo.
(…)
Mas a inviabilização da audição presencial - por comportamento imputável ao próprio arguido - não contagia nem compromete o exercício do contraditório na vertente de direito de audiência.
Ou seja, exigindo a lei que o contraditório se exerça, no caso, na sua expressão máxima de audição presencial - vendo, ouvindo e intercomunicando directamente - frustrada aquela, é ainda possível garanti-lo na sua expressão mínima - audição no processo através do defensor (o defensor exerce no processo os direitos que a lei reconhece ao arguido - art.º 63.º, n.º 1 do CPP).
…nos casos de impossibilidade de localização do arguido, e uma vez esgotadas as diligências adequadas e possíveis a obter a comparência perante o juiz, pode o contraditório ser assegurado na expressão mínima de audição através do defensor. A observância do principio do contraditório antes da revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é satisfeita com a notificação do defensor do arguido para se pronunciar sobre a questão, quando a audição do condenado não é viável, por este se ter ausentado sem comunicar nova morada ao tribunal e por não ser possível apurar tal morada.”
No caso vertente, o arguido foi condenado, por sentença de 6/02/2015, pela prática de um crime de violência doméstica, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 3, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período de 5 anos, sujeita a regime de prova assente num plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP e ainda ao pagamento da quantia de € 500.00, ao Gabinete da APAV das Caldas da Rainha, no prazo de um ano, devendo juntar comprovativo desse pagamento ao processo no mesmo prazo.
Foi, ainda, o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida KK, com excepção dos relativos a questões referentes ao filho de ambos.
Na sentença foi ainda consignado que o arguido continuaria sujeito às obrigações decorrentes da medida de coacção de termo de identidade e residência que havia prestado, até ser declarada extinta a pena aplicada, isto em conformidade exactamente com a redacção assumida por este normativo.
O arguido esteve presente na sessão da audiência de julgamento em que se procedeu à leitura da sentença, como decorre da acta de fls. 239 a 24l.
Por despacho de 26/05/2015, foi homologado o plano de reinserção social apresentado pela DGRS (fls. 271), tendo o arguido sido notificado desse despacho com cópia do plano (fls. 272 e 280),
A 15 de Junho de 2015 (fls. 286) o arguido veio comunicar ao processo que iria residir para o Luxemburgo, em morada que indicou. Prestou idêntica informação à equipa da DGRSP que acompanhava o plano de reinserção social (fls. 288).
Sobre essa informação recaiu o despacho de fls. 290, que determinou que se mantinha para efeitos de notificações a morada em Portugal e manteve o plano de reinserção homologado, face ao compromisso assumido pelo arguido de contactar a equipa nas suas deslocações a Portugal, ainda que condicionado pela permanência no estrangeiro,
A DGRSP nos sucessivos relatórios de execução da medida foi dando nota da falta de contactos do arguido. A 15/04/2016 (fls. 304 e 305) informou que a equipa logrou contactar telefonicamente o arguido, tendo o mesmo indicado novo endereço no Luxemburgo e comunicado a intenção de contactar aquela equipa quando se deslocasse a Portugal, o que não ocorreu como resulta do relatório de fls. 312 e 313.
A 22/06/2017 (fls. 341 a 342) a equipa da DGRSP remeteu ao processo relatório de incumprimento, face à falta de contactos do arguido.
Foi então determinada a notificação do arguido para prestar os esclarecimentos constantes da promoção de fls. 343.
Nada tendo sido dito, foi designado dia para audição do ora recorrente (fls. 359 e 368), não tendo o mesmo comparecido nem justificado a respectiva falta (fls. 379 a 381).
Na sequência foi proferido o despacho ora em crise.
De todo o relatado, e ao invés do que proclama o recorrente, o Tribunal a quo encetou os esforços exigíveis e possíveis no sentido de o ouvir sobre o incumprimento do plano de reinserção fixado e das demais obrigações a que estava obrigado.
O recorrente sabia que a sua morada para efeitos de notificações no processo era a que constava do TIR que havia prestado, a cujas obrigações se encontrava sujeito até à extinção da pena, como resulta do citado art.º 214.º, n.º 1, al. e), na redacção introduzida através da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, sucedendo que jamais veio requerer ao processo a alteração dessa morada.
Atento este circunstancialismo, nada há a apontar ao Tribunal a quo na sua decisão de revogação da suspensão da pena de prisão que fora aplicada ao arguido.
Os arestos que mencionámos adequam-se, como uma luva, à situação dos autos, em que o arguido se colocou na situação de impossibilidade da sua audição presencial, ausentando-se da morada indicada no TIR prestado no processo, sem cuidar, como era seu dever, de fornecer ao Tribunal a sua nova morada.
A culpa pela não audição presencial do arguido, como obriga o n.º 2 do art.º 495.º do Código de Processo Penal, é assim devida, única e exclusivamente, a si próprio, e não a qualquer inoperância, ineficácia ou incumprimento de regras por parte do Tribunal que, ao invés, fez tudo o que estava ao seu alcance para notificar o ora recorrente para a sua tomada de declarações. O Tribunal a quo não estava obrigado a fazer todas e quaisquer diligências para encontrar o arguido, mas apenas diligenciar, de forma séria e adequada, para descobrir o seu paradeiro, o que, in casu, foi assumido com suficiente cuidado e empenho (cfr. com interesse, ainda, Ac. TRP, in recurso 360/11.8GBETR.P1, acedido em www.dgsi.pt/jtrp).
É certo que a audição do condenado é obrigatória, como estipula o referenciado comando legal, mas na esteira dos arestos citados, sob pena de paralisação intolerável do processo, essa audição só é indispensável quando o condenado seja encontrado, não podendo por isso o arguido fundar uma hipotética nulidade pela sua não audição depois de ter sido ele próprio a tornar impossível a realização da mesma, ausentando-se, sem justificação, da morada indicada nos autos, e colocando-se numa situação de paradeiro que apenas ele próprio escolheu como passando a ser o seu para os efeitos convenientes neste concreto processo.
Nestes casos, como é o presente, a observância do principio do contraditório previamente exigida para a revogação da suspensão de execução da pena de prisão é satisfeita com a notificação do defensor do arguido para se pronunciar sobre a questão, como sucedeu na situação sub judice, em que o defensor foi notificado da promoção do Ministério Público no sentido daquela revogação e do cumprimento efectivo da pena de prisão.
De anotar, ainda, que o despacho recorrido não enferma dos vícios que lhe são apontados e previstos nas als. a) e c), do n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal, uma vez que se encontra devidamente fundamentado, não padece de qualquer insuficiência ou incorre em qualquer erro (ademais notório).
Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo no seu procedimento, não tendo cometido qualquer nulidade, muito menos, insanável, razão pela qual terá de improceder este primeiro fundamento do recurso.
Apreciemos, seguidamente, do segundo deles.
2.3. O despacho judicial recorrido e supra transcrito, revogou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao condenado AA, e, em consequência, determinou o cumprimento pelo mesmo da pena de dois anos e oito meses de prisão em que tinha sido condenado, a 6 de Fevereiro de 2015 [suspensa, porém, por igual período de tempo, sujeita: a) a regime de prova assente num plano de reinserção social – depois devidamente homologado, ut despacho de fls. 271 -, a incidir, entre o mais que for conveniente para a ressocialização do arguido, no seu problema de instabilidade emocional com eventual sujeição a consulta de despiste na área da saúde mental e ao cumprimento das orientações terapêuticas que lhe forem definidas pelos serviços clínicos, bem como b) ao dever de entregar, no prazo de um ano, a quantia de € 500,00 à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – Gabinete das Caldas da Rainha, juntando aos autos o comprovativo do pagamento findo o prazo], por entender que o arguido, face ao circunstancialismo supra descrito demonstrou revelar-se completamente indiferente à condenação emitida, comprovando um total desrespeito para com a lei, e um profundo desinteresse para com a sua própria condição, não manifestando qualquer interesse na viabilização do referido plano de reinserção.
Nas conclusões 28 e segs. da peça recursiva, vem agora o arguido/recorrente, sustentar a revogação do despacho recorrido, por outro, que mantendo a suspensão da pena, lhe imponha alguma das adimplências previstas pelo art.º 55.º do Código Penal, ou, pelo menos, possibilite a sua inquirição presencial.
Todos sabemos que a suspensão da execução da pena de prisão, prevista no art.º 50.º do Código Penal tem como pressuposto material de aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, que conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente.
O novo ordenamento jurídico-penal estatuído com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/82, de 3 de Setembro consagrou, de forma dogmaticamente iniludível, a suspensão da execução da pena de prisão como pena de substituição. Do ponto de vista dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas. A pena de suspensão assume a categoria de pena autónoma, apartando-se da ideia de que se possa constituir como «[…] um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas – Editorial Noticias, 1993, 90).
A finalidade principal desta pena de substituição, é o afastamento do arguido, no futuro, da prática de novos crimes.
Ora, a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova. Nestas duas últimas hipóteses, que como vimos é a presente, o Tribunal da condenação, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, que assenta num plano de reinserção social do condenado.
Sendo a suspensão da execução da pena sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta, estas podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes, ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula “rebus sic stantibus” (art.ºs 51.º, n.º 3; 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º 2, do Código Penal).
Verificando-se uma situação de incumprimento das condições da suspensão, haverá que distinguir duas situações, em função das respectivas consequências: uma primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação (que com a revisão de 2007 passou a ser designado de “plano de reinserção”), pode o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no art.º 55.º do Código Penal, a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão; e outra segunda, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (art.º 56.º, n.º 1, do Código Penal e Ac. TRL, in recurso n.º 317/14.7PBPDL-A-L1-9, acedido em www.dgsi.pt/jtrl).
Como refere Anabela Rodrigues em Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia, embora a propósito dos requisitos de suspensão da pena e das exigências de prevenção geral, «que assim é quanto à prevenção geral, resulta do facto de nenhum ordenamento jurídico suportar pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral - isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão.»
Da conjugação destes art.ºs 55.º e 56.º do Código Penal resulta claro, que o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, pode não justificar a revogação.
A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 56.º do Código Penal quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos, ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
A infracção grosseira é a que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção.
Já a infracção repetida dos deveres ou regras de conduta impostos ou do plano individual de reinserção é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo, revelando uma postura de desprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória.
A infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta imposto ou o plano individual de reinserção, durante o período de suspensão, determinará a revogação da suspensão enquanto circunstâncias que põem em causa, definitivamente, o prognóstico favorável que a aplicação da pena de suspensão necessariamente supõe.
In casu, caberá aquilatar destes pressupostos materiais, pois que, pese embora na sua decisão o Tribunal a quo se reporte ao art.º 56.º, n.º 1 als. a) e b) e n.º 2 do Código Penal (sublinhado nosso), verdade é que tal menção não pode ser dada como processualmente adquirida uma vez que falta (pelo menos por ora já que o processo não foi suspenso para aguardar eventual decisão a proferir sobre uma alegada agressão entretanto cometida pelo arguido na pessoa da ofendida) o pressuposto formal imprescindível ao equacionar da previsão desta mesma al. b): ter o arguido cometido crime pelo qual tivesse sido condenado. Continuando,
Como decorre do antes exposto, o arguido incorreu em sucessivos incumprimentos das obrigações que condicionavam a suspensão da execução da pena, quer a sujeição ao plano de reinserção, que o Tribunal flexibilizou até ao limite do admissível e que mesmo assim o recorrente inviabilizou, nunca contactando a equipa da DGRSP nas diversas vezes que se deslocou a Portugal, quer quanto ao pagamento da quantia à APAV cuja entrega lhe incumbia comprovar no processo no prazo de um ano e que também não fez,
Como referem Leal Henriques e Simas Santos, in Código Processual Anotado, anotação ao art.º 56.º, «as causas de revogação não devem, pois, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período de suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena.»
E Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, anotação ao mesmo preceito, refere que a infracção grosseira dos deveres e regras de conduta não tem de ser dolosa, «sendo bastante a infracção que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade» e a infracção repetida dos deveres e regras de conduta «é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo», revelando «uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória.»
É o que ressalta, indubitavelmente, da factualidade recolhida nos autos quanto ao comportamento do recorrente durante todo o período de suspensão de execução da pena.
Acresce que com a conduta assim assumida o arguido revelou também que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. Por forma alguma se lembrou dos condicionalismos a que estava adstrito e ao invés de aproveitar a flexibilidade que até lhe foi concedida, persistiu numa atitude autista que apenas denota que a ameaça da pena não foi dissuasor suficiente para uma vida pautada pela observância das regras de vida na sociedade. A prognose negativa impõe-se, sem mais, donde que apenas urja manter-se o decidido.
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III. Dispositivo.
São termos em que pelos fundamentos expostos, se acorda neste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, mantermos o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em três UC a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Coimbra, 24 de Abril de 2018
Brízida Martins (relator)
Orlando Gonçalves (adjunto)