Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
668/16.T8ACB-AN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RECURSO PARA A RELAÇÃO
BAIXA DO PROCESSO
CONHECIMENTO SOBRE NULIDADES
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 139.º, N.ºS 5 E 6, E 617.º, N.ºS 1 E 5, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Remetido o recurso ao tribunal da relação e sendo por este proferido despacho interlocutório a determinar a baixa do processo à primeira instancia, para cumprimento do disposto no artigo 139.º n.º 6 do CPC, pode o juiz a quo aproveitar para se pronunciar sobre as nulidades invocadas nas alegações de recurso, caso não tenha feito aquando do despacho que admitiu o recurso.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 668/16.T8ACB-AN.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Na presente ação declarativa sobre a forma de processo comum que AA e outros movem contra a Massa Insolvente de C..., S.A,

proferida que foi sentença, foi dela interposto recurso de Apelação, no qual foi arguida a sua nulidade nos termos do artigo 615º, nº1, als. b) e d), do CPC.

Admitido tal recurso, e remetido ao Tribunal da Relação, por este tribunal foi proferida decisão no sentido de, constando que as contra-alegações foram apresentadas no 1º dia a que refere o nº5 do art. 139º do CPC, determinar a baixa do processo à 1ª instância para cumprimento do disposto no nº6 do art. 139º do CPC.

Pelo juiz a quo foi, então, proferido despacho a determinar a abertura de conclusão ao juiz que elaborou a sentença a fim de se pronunciar sobre as nulidades, por entender que teria de ser este a realizar tal incumbência.

A Massa Insolvente apresentou reclamação de tal despacho, alegando que a competência atribuída ao juiz de se pronunciar sobre as nulidades não constituiu um poder dever, mas uma mera prorrogativa a ser usada no tempo próprio, ou seja, no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, sendo que, no caso de não o fazer, após a subida ao tribunal superior , tal pronúncia só pode ocorrer quando o relator assim o entender indispensável ou quando não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer do objeto da reforma ou do recurso. Por outro lado, encontrava-se esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

Conclui pedindo a revogação do decidido.

Pelo juiz a quo foi proferido o seguinte Despacho, de que agora se recorre:

“ Veio a Ré reclamar do despacho que determinou a abertura de termo de conclusão ao Mmo. Juiz que elaborou a sentença recorrida, para se pronunciar sobre as nulidades da sentença invocadas no recurso. Considera a Ré que o despacho é extemporâneo.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no art. 617.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.

Em caso de omissão do despacho de apreciação da nulidade da sentença ou da sua reforma, estatui o n.º 5 do mesmo preceito que o juiz relator pode, se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o previsto no n.º 6.

Ou seja, se o juiz de julgamento não se pronunciar sobre as nulidades da sentença invocadas nas alegações de recurso, o Tribunal Superior irá, com certeza, mandar baixar o processo à 1.ª instância para que o juiz se pronuncie sobre as mesmas.

Face ao exposto, não se afigura extemporâneo o despacho do juiz de 1.ª instância que aprecia as nulidades da sentença invocadas nas alegações de recurso antes da prolação do despacho que determina a subida dos autos ao Tribunal Superior para apreciar o recurso.

Assim, julga-se improcedente a reclamação deduzida pela Ré.

Notifique.


*

Oportunamente, abra termo de conclusão ao Mmo. Juiz que elaborou a sentença recorrida, com remessa dos autos se necessário for, a fim de se pronunciar quanto às nulidades invocadas.”

*

Inconformada com tal decisão, a massa insolvente dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

 1. A decisão em crise – despacho - é nula porque os fundamentos estão em clara oposição com a decisão. Ou seja, da análise da fundamentação do despacho, conclui-se que esta não poderia conduzir à decisão que dela formalmente consta, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 alínea c) do CPC.

2. A decisão em crise foi proferida na sequência de reclamação apresentada pela recorrente, nos termos do disposto no art.º 195.º do CPC, atenta a nulidade do ato processual de remessa do processo ao juiz a quo, para se pronunciar sobre as nulidades invocadas na sentença, após a prolação do despacho que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso,

3. tendo inclusivamente o processo sido remetido a este Venerando Tribunal, distribuído e, inclusivamente, ter sido já proferida decisão no sentido da descida do processo à primeira instância, a título devolutivo e para cumprimento apenas do disposto no art.º 139, n.º 6 do CPC,

4. Ora, da análise da decisão verifica-se que fundamentação é totalmente incongruente à decisão proferida, nomeadamente, a de julgar improcedente a reclamação e abrir termo de conclusão ao Mmo. Juiz que elaborou a sentença recorrida, com a remessa dos autos se necessário for, a fim de se pronunciar quanto às nulidades invocadas;

5. Desde logo, por que na fundamentação do despacho em crise se concluí, primeiramente que as nulidades da sentença invocadas em sede de recurso são apreciadas no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso e, em segundo plano, que tal pronúncia, em momento posterior depende da decisão do juiz relator. Cabendo a este a apreciação sobre a indispensabilidade de tal pronúncia e a decisão da remessa do processo ao tribunal a quo.

6. Apelando a fundamentação de direito ao disposto no art.º 617.º, n.º 1 do CPC.

7. Ora, tal fundamentação aponta num sentido de que a decisão nela tomada seguisse um caminho completamente oposto, ou seja, o de determinar que a remessa do processo ao juiz que proferiu a decisão, para pronuncia das nulidades da sentença, se mostra extemporâneo e ilegal, desde logo atenta a fase em que o processo se encontra no tribunal superior a aguardar decisão sobre o recurso interposto,

8. E, tal decisão apresenta-se de tal forma desconforme com a fundamentação quando da mesma se faz constar que, não se afigura extemporâneo o despacho do juiz de 1.ª instância que aprecia as nulidades da sentença invocadas nas alegações de recurso antes da prolação do despacho que determina a subida, quando essa fase nem sequer corresponde à fase processual em que a decisão em causa foi proferida. Ou seja, a fundamentação, não sustenta por isso, antes pelo contrário, a decisão proferida.

9. Conforme consta do processo a decisão surge após a prolação do despacho que determina a subida do recurso, após a sua distribuição no Tribunal de Recurso, após ter sido proferida uma decisão, ainda que sobre questão incidental, por parte deste Tribunal da Relação e, em contravenção ao determinado por este Tribunal da Relação, no sentido de ter remetido o processo à primeira instância, a título devolutivo e apenas para cumprimento do disposto no art.º 139, n.º 6 do CPC, cfr. remessa a 23/11/2021 ref.ª 9933860.

10. Pelo exposto é nulo o despacho judicial em crise atenta a contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 alínea c) do CPC, pois que os fundamentos de direito – 617.º, n.º 1 do CPC - de que o juiz se serviu ao proferi-la exigem decisão oposta.

Termos em que, procedendo o recurso, deve ser declarada procedente a nulidade invocada, revogando-se a decisão de remessa do processo ao juiz que proferiu a sentença para se pronunciar sobre a nulidades invocadas nas alegações de recurso, proferindo-se assim Acórdão que retifique o despacho recorrido nos termos propugnados, tudo com as legais consequências.


*

Não foram proferidas contra-alegações
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, nº1 do CPC.
2. Se o tribunal a quo poderia apreciar as nulidades ao abrigo do disposto no artigo 617º do CPC, quando o recurso já havia subido ao tribunal superior, tendo baixado à 1ª instância para efeitos do nº6 do art. 136º do CPC
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 1. Nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, nº1 do CPC.
Segundo o Apelante, reconhecendo a decisão recorrida que compete ao juiz apreciar das nulidades no próprio despacho que se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso e que, em caso de omissão de tal apreciação, o juiz pode, se assim o entender, indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido, invocando o disposto no artigo 617º, nº1 do CPC, tal fundamentação está em completa contradição com o decidido, uma vez tal fundamentação apontaria no sentido de que a decisão nela tomada seguisse um caminho completamente oposto.
Não é de dar razão ao apelante.
Desde logo, porque no seu raciocínio omite o argumento essencial invocado na decisão recorrida para proceder, nesta fase à apreciação da questão da nulidade da sentença suscitada em sede de recurso: de que, se o juiz da primeira instancia não se pronunciar sobre as nulidades invocadas ou o pedido de reforma invocado, o tribunal superior irá, com certeza, mandar baixar o processo à 1ª instancia para que o juiz se pronuncie sobre as mesmas”.
Face a tal consideração, a decisão de considerar que o tribunal se encontrava ainda em tempo para se pronunciar sobre tais nulidades surge como o corolário lógico do anteriormente exposto.
Não se reconhece, assim, a existência de tal nulidade.
*
2. Se o tribunal a quo ainda estaria em tempo par se pronunciar sobre as nulidades da sentença arguidas em sede de alegações de recurso.
Segundo a Apelante, tendo sido proferido despacho a admitir o recurso e tendo o Tribunal da Relação proferido decisão incidental a remeter o processo à 1º instância, a titulo devolutivo e apenas para cumprimento do disposto no art. 139º, nº6 do CPC, o tribunal recorrido não pode aproveitar tal oportunidade para se pronunciar agora sobre tais nulidades, porquanto:
- estamos fora do momento determinado pelo artigo 617º do CPC;
- proferida a sentença esgotado fica o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – nº1 do art. 613º do CPC.
Não podemos acompanhar a posição da apelante.

A afirmação constante do nº1º do artigo 613º do CPC de que, proferida a sentença, fica de imediato esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, significa, antes de mais, que, quer conclua com a absolvição da instância, quer condene no pedido ou dele absolva, não pode, em regra, rever a decisão recorrida[1].

Significa, tão só, que o juiz não pode alterar a sua própria decisão, continuando a ter competência para os demais termos da causa, não o impedindo de continuar a apreciar todas as questões que nela venham a ser suscitadas (ex. incidente de habilitação de herdeiros, questões suscitadas com a conta do processo, etc., admissão de recurso, etc.), a requerimento das partes ou oficiosamente, enquanto juiz do processo.

Nas palavras de José Alberto dos Reis[2], o alcance de tal norma é o seguinte: “o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível”. As palavras “quanto à matéria da causa” marcam o sentido do princípio referido. “Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou o despacho, o poder jurisdicional do signatário extinguiu-se. Mas isto não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e que não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu”.

Ora, o juiz da primeira instância, podendo tê-lo feito no despacho a que alude o artigo 617º do CPC, não o fez, pelo que não houve até agora pela sua parte qualquer pronúncia sobre as invocadas nulidades da sentença.

Quando se afirma no nº1 do artigo 617º do CPC que “se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito do recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade de recurso”, aponta no sentido de esta apreciação constituiu um poder/dever do juiz, de tal modo que, se o tribunal superior entender indispensável tal pronúncia, pode mesmo determinar a baixa do processo para tal efeito (nº5 do art. 617º).

Daqui se extrai que, não se tendo o juiz pronunciado sobre as nulidades da sentença recorrida e podendo ainda vir a ser chamado a fazê-lo pelo tribunal ad quem, é claro que não se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional relativamente a tal matéria.

Passemos à questão da tempestividade de tal apreciação, relacionada com o facto de o juiz já ter proferido o despacho previsto no nº1 do art. 617º, de admissão de recurso, momento legalmente previsto para a apreciação da nulidade pelo juiz a quo, e de o processo ter sido remetido à 1ª instância para efeito diverso – unicamente porque o Tribunal da Relação, apercebendo-se de que as contra-alegações de recurso tinham sido enviadas no 1º dia útil após o prazo, remeteu os autos à 1ª instancia para cumprimento do disposto no nº6 do art. 139º do CPC.

Antes de mais, haverá que atentar à fase processual em que os autos se encontravam – admitido o recurso pela 1ª instância, o processo subiu ao tribunal da Relação, sem que este tenha chegado a proferir despacho de admissão de recurso. No Tribunal da Relação, sob a informação da secretaria de que “A recorrida praticou o acto de apresentação das contra-alegações de recurso no 1.º dia a que se refere a al. a), do n.º 5 do art.º 139.º do NCPC, sendo certo de que não resulta dos autos, nem da consulta à aplicação do "Sistema de Custas Judiciais", que a 1.ª instância tenha observado o disposto no n.º 6 do referido artigo”, o juiz relator limitou-se a proferir o seguinte despacho: “Remeta os autos à 1ª instância para cumprimento do normativo em causa.”

Ou seja, verdadeiramente, nem sequer se encontrava ultrapassada ou finda a fase de admissão do recurso por parte da 1ª instância, pelo que o tribunal a quo se encontrava em tempo de completar o seu despacho de admissão de recurso, apreciando as nulidades invocadas nas alegações de recurso.

A Apelação é de improceder, sem outras considerações.

*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela massa insolvente       

                                                                Coimbra, 9 de novembro de 2022


 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…)




[1] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. 2, 2ª ed., p.697.
[2] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora – 1984, pp. 126-127.