Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1236/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: ARRESTO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
GARANTIA DO PAGAMENTO
Data do Acordão: 05/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 406, N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A prática de actos ou assunção de atitudes que inculquem a suspeita de que o devedor pretende subtrair os seus bens à acção dos credores torna justificável o receio de perda da garantia patrimonial do crédito.
2. Estando provado que entre requerentes e requeridos foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de duas fracções dum imóvel; que os requerentes entregaram, a título de sinal e princípio de pagamento, 83% do preço; que decorreram quase dois anos entre a data em que deveria ter sido celebrada a escritura de compra e venda e a data da sentença sem que os requeridos se tenham proposto realizá-la; e que os requeridos estão incontactáveis e puseram já à venda as fracções prometidas vender, deve entender-se que está provado o receio de perda de garantia patrimonial.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... e mulher, B... requereram, na comarca de Castelo Branco, providência cautelar de arresto de fracções de um imóvel contra C... e D..., alegando, em síntese, que celebrara com eles um contrato promessa de compra e venda de duas fracções desse imóvel, pagando avultada quantia a título de sinal e princípio de pagamento e que, tendo já decorrido o prazo de realização da escritura do contrato prometido, têm-se esquivado a fazê-lo, onerou todas as fracções com hipoteca, tem uma delas penhorada e tem em venda todas as fracções.
Produzida a prova sem prévia audição dos requeridos, o sr. Juiz entendeu que, apesar de verificada a existência do crédito dos requerentes, não se constata a ocorrência de factos donde resulte o receio da perda da respectiva garantia patrimonial e indeferiu a requerida providência.

2. Inconformados, os requerentes agravam para esta Relação com os fundamentos que sintetizam nas seguintes conclusões:
1) De acordo com os artigos 406.º n° 1 e 407.º n° 1 do CPC, conjugados, são requisitos do Arresto: justificado receio da perda da garantia patrimonial do crédito; demonstração da probabilidade da sua existência; consequente receio invocado, ou seja "periculum in mora";
2) O Código Civil, dispõe no seu artigo 619.º n° 1 que "o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei do processo".
3) Resulta assim da conjugação destes preceitos legais que a função do arresto é garantir a satisfação do direito do credor, de forma que obtida sentença de condenação, esta produza o seu efeito útil;
4) No caso dos Autos entendeu o Meretíssimo Juiz "a quo" pela probabilidade da existência do crédito, o qual ficou demonstrado, mas na perspectiva do Sr. Dr. Juiz entendeu não ter sido demonstrado o justo receio da perda da garantia patrimonial.
5) Decisão da qual os recorrentes discordam em absoluto;
6) O fundado receio da perda da garantia patrimonial tanto pode resultar da existência de sinais de o devedor se estar a colocar numa situação de insolvência, que o impeçam de garantir o seus créditos, como se encontrar num processo de dissipação do seu património através da venda de bens que dificultem assim aos credores a satisfação do seu crédito, ou até pelas dificuldades que os credores possam ter no contacto com os devedores, tudo indícios de que o devedor se furta ao cumprimento das suas obrigações e intencionalmente, coloca o credor numa situação de fragilidade e perigo.
7) Provou-se nos autos que os requeridos não dão notícias nem cumprem com as suas obrigações assumidas num contrato promessa, receberam dinheiro (e muito) dos requerentes a título de sinal e início de pagamento, furtando-se aos contactos dos requerentes e colocaram à venda os imóveis que prometeram vender aos recorrentes e do qual receberam 83% do preço, ou seja € 249398,94 de uma quantia global de € 299278,73.
8) O contrato promessa foi celebrado em 27/06/2003 e a escritura pública deveria ter sido celebrada no dia 27/03/2004, incumbindo aos requeridos a sua marcação, avisando os requerentes, com a antecedência mínima de 15 dias por carta registada, o que até ao momento não fizeram e evitando estas interpelações para procederem à celebração da compra e venda prometida.
9) Nos últimos dias os pavilhões que prometeram vender aos requerentes, foram postos à venda, através da imobiliária 2Century 21”
10) Deveria ter sido dado como provado, que estavam à venda todos os pavilhões, por tal te sido esclarecido pela testemunha Rui.
11) A não verem decretado o presente arresto corre-se o risco de os requerentes verem esfumadas as suas garantias patrimoniais, até porque os requerentes já pagaram aos requeridos a quase totalidade do valor dos imóveis objecto do contrato promessa.
12) A obrigação patrimonial existe; os devedores/requeridos não têm intenção de a cumprir; vai para dois anos que os requeridos estão em mora furtando-se a qualquer contacto por parte dos requerentes; já receberam destes a quase totalidade do preço; o risco de os requerentes verem o património dos devedores dissipado é enorme, esfumando-se assim a possibilidade de os requerentes reaverem o seu crédito; existe assim um receio real por parte dos requerentes atendendo à normal tramitação processual, de em tempo útil obterem uma sentença condenatória que possa produzir os seus efeitos.
13) Os requerentes não conhecem outros bens aos requeridos, nem têm acesso a tal informação, por desconhecerem o seu domicílio actual.
14) Os requerentes só agora intentaram a presente providência cautelar e não antes (a mora tem dois anos) porque só agora o perigo de dissipação dos bens é real, com a venda dos mesmos, concretizando-se assim a intenção dos requeridos não cumprirem com o acordado com os requerentes;
15) No procedimento cautelar é suficiente a prova da probabilidade da existência do crédito e a justificação do justo receio de perda da garantia patrimonial,
16) porquanto aos requeridos está sempre garantido o exercício do post-contraditório.
17) Violados estão por isso os artigos 384°, n.º ; 406.º n.º 1 e 407.º , n.º 1 do Código do Processo Civil e ainda o disposto no artigo 619° do Código Civil.


3. Não foram apresentadas contra-alegações, o processo tem os vistos legais. Cumpre agora conhecer e decidir, tendo em conta os factos dados como provados, que a seguir se transcrevem:
1) Os requerentes celebraram com os requeridos um contrato promessa de compra e venda de dois prédios urbanos, correspondentes a dois pavilhões, em conformidade com o teor do documento junto com o requerimento inicial sob o n.º1, e que aqui damos por integralmente reproduzido.
2) Os requerentes, como sinal e princípio de pagamento entregaram aos requeridos a quantia de duzentos e quarenta e nove mil trezentos e noventa e oito euros e noventa e quatro cêntimos, na data da assinatura do referido contrato promessa.
3) Tal contrato foi assinado pelas partes no dia 27.06.2003.
4) Os aqui requeridos prometeram vender aos requerentes, e estes comprar, os seguintes prédios:
5) Pavilhão composto por piso 0 e piso 1, com hall de laboração, duas divisões e casa de banho, no piso 0, e uma divisão e duas casas de banho e uma varanda no piso 1, com uma área coberta de 914,70 m2, sendo 824,20 m2 no piso 0 e 90,50 m2 no piso 1, identificado com a letra C no documento anexo ao contrato;
6) Pavilhão composto por piso 0 e piso 1, com hall de laboração, duas divisões e casa de banho, no piso 0, e uma divisão e duas casas de banho e varanda no piso 1, com uma área coberta de 914,70 m2, sendo 824,20 m2 no piso 0 e 90,50 m2 no piso 1, identificado no documento anexo ao contrato com a letra D.
7) Os prédios supra referidos, que no momento da assinatura do contrato- promessa já se encontravam construídos, mas ainda não se encontravam averbados na matriz, neste momento encontram-se registados a favor dos requeridos sob a descrição n.º 06808, pela inscrição G1 e constituídos em propriedade horizontal com a inscrição F-2, sendo que as fracções prometidas vender aos requerentes são as correspondentes às letras “C” e “D”, em conformidade com a certidão da Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, junta sob o documento n.º 2, e que aqui damos por integralmente reproduzida.
8) Sobre o prédio cuja propriedade se encontra inscrita em nome dos requeridos e a que corresponde a descrição n.º 06808/04102001, correspondente ao prédio sito na Zona Industrial, designado por Lote D 1, cuja constituição em propriedade horizontal deu lugar às fracções designadas pelas letras “ A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M e N” já esteve registada uma penhora, com a ap. 03/10022005, para garantia de uma dívida no valor de 12 600,85 Euros; e está registada uma hipoteca com apresentação 38/07.11.2002, para garantia de um crédito no valor máximo de 1 355 483,20 Euros.
9) O registo da penhora referida em 6) já caducou em 19.10.2005.
10) A escritura pública do contrato prometido deveria ter sido celebrada até ao dia 27.03.2004, incumbindo aos requeridos a sua marcação, avisando os requerentes com a antecedência mínima de 15 dias por carta registada.
11) Até ao momento os requeridos não marcaram a escritura pública para a celebração do contrato prometido.
12) Os requerentes já procuraram por todos os meios ao seu alcance para falar com os requeridos para procederem à celebração do contrato prometido, o que não têm conseguido, por desconhecerem o seu domicílio, evitando estes interpelações para procederem á celebração da compra e venda prometida.
13) O preço total acordado para a compra e venda prometida foi de duzentos e noventa e nove mil duzentos e setenta e oito euros e setenta e três cêntimos.
14) Nos últimos dias os requeridos colocaram à venda os pavilhões que prometeram vender aos requerentes, através da imobiliária “Century 21”.


4. A providência foi indeferida porque se entendeu inexistir o pressuposto do justificado receio dos requerentes perderem a garantia patrimonial do seu crédito, pelo incumprimento do contrato promessa e delapidação do património dos promitentes vendedores, de modo a que nele já não existam bens que garantam a restituição do sinal em dobro a quando da execução do respectivo título.
Diz o artigo 406.º, n.º1 do Código de Processo Civil que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.
É normal e perfeitamente admissível que os agravantes tenham requerido o arresto porque receiam que os agravados tenham já o seu património a salvo duma futura execução a mover por aqueles, quando esta surgir. E para que o receio não seja apenas subjectivo e quiçá caprichoso, o legislador exige que seja justificado, sendo aqui que tem de intervir a acção do intérprete, na medida em que a lei não define situações padronizadas.
O sr. Juiz entendeu que, não tendo sido alegada e provada a inexistência de património suficiente para responder pelo crédito, isso basta para que se não tenha por justificado o receio dos agravantes e aponta até o facto de ainda não estarem vendidas nem postas à venda as restantes fracções do prédio. Os agravantes não alegaram nem provaram que, apesar do incumprimento do contrato promessa e venda das fracções que lhes foi prometido vender, não existem no património dos requeridos bens suficientes para garantir a restituição do sinal em dobro, a que têm direito.
Mas isso não significa, com o devido respeito, que se tenham esgotado todas as situações possíveis de, ainda assim, o receio ser justificável com base em factos concretos que revelem, à luz duma prudente ponderação, a justificação do receio.
Decidiu-se em acórdão desta Relação ( Acórdão de 26-11-2002, Proc. 3306/02 (H. Roque), em www.dgsi.pt/jtrc/nsf/ ) que “só existe justificado receio da perda da garantia patrimonial do crédito, quando as circunstâncias se apresentam do modo a convencer que está iminente a lesão do direito, a perspectivar, justificada e plausivelmente, o perigo de ser vir a tornar inviável, ou altamente precária, a realização da garantia patrimonial do crédito do requerente”.
Abrantes Geraldes, em “Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, 2.ª edição, pág. 187”, citado pelos agravantes, escreve, a dado passo, que: “o fundado receio da perda da garantia patrimonial tanto pode resultar da existência de sinais de o devedor se estar a colocar numa situação de insolvência, que o impeçam de garantir o seus créditos, como se encontrar num processo de dissipação do seu património através da venda de bens que dificultem assim aos credores a satisfação do seu crédito, ou até pelas dificuldades que os credores possam ter no contacto com os devedores, tudo indícios de que o devedor se furta ao cumprimento das suas obrigações e intencionalmente, coloca o credor numa situação de fragilidade e perigo”.
Assim, dizemos nós, a prática de actos ou assunção de atitudes que inculquem a suspeita de que o devedor pretende subtrair os seus bens à acção dos credores torna justificável o receio de perda da garantia patrimonial do crédito.
Está provado que entre requerentes e requeridos foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de duas fracções dum imóvel; que os requerentes entregaram, a título de sinal e princípio de pagamento, 83% do preço; que decorreram quase dois anos entre a data em que deveria ter sido celebrada a escritura de compra e venda (27/03/2004) e a data da sentença (22/12/2005) sem que os requeridos, como era seu dever contratual, se tenham proposto realizá-la; e que os requeridos estão incontactáveis e puseram já à venda, através duma imobiliária, as fracções prometidas vender.
São factos que, além de revelarem uma situação de incumprimento, também não podem deixar os promitentes-compradores indiferentes quanto à justa expectativa de reparação dos seus prejuízos, sobretudo quando não lhes é possível contactar com os promitentes – vendedores. São legítimas, por isso, as preocupações dos apelantes, sendo que só os apelados poderão demonstrar que são infundadas, e se decidiu na ausência da sua audição.
A ausência de prova da inexistência de outros bens dos requeridos não assegura que os requerentes ainda possam ter o seu crédito garantido com o património daqueles. E entre o prejuízo dos requeridos com a imobilização parcial e temporária do seu património e o eventual prejuízo irrecuperável dos requerentes com o indeferimento da providência, parece que seria sensato optar pelo deferimento e esperar que os requeridos apresentem prova de que o receio dos requerentes é infundado, tendo em vista o disposto nos artigos 385.º, n.º 5 e 388.º, 1, a) do Código de Processo Civil. Descurar esta hipótese e partir, sem mais, para o indeferimento é que se afigura desajustado, face às circunstâncias do caso concreto, podendo estar a deixar, ao que tudo indica, os requerentes em situação delicada. A ponderação de interesses atendíveis, impõe ao intérprete uma solução de equilíbrio, que aponta no deferimento da providência, nesta fase do processo cautelar, considerando que o receio dos agravantes perderem a garantia patrimonial do seu crédito é justificado.
Devem, pois, proceder as conclusões da alegação dos recorrentes, tendo-se por violadas as disposições legais citadas.

5. Decisão
Por todo o exposto acordam os juízes desta Relação conceder provimento ao agravo, em consequência do que decretam o arresto nos bens do requerido, indicados no requerimento inicial
Sem custas no recurso, mantendo-se as da 1.ª instância.
Coimbra,
[ Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Ferreira de Barros e Helder Roque]