Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
252/11.0GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: PROVA
CRIME
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXAME SANGUÍNEO
CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 01/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO CRIMINAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 156º Nº 2 E 153º Nº 8 CE
Sumário: 1.- A condutor interveniente em acidente de viação e cujo estado de saúde não permita que seja submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado, a lei não exige o seu consentimento prévio para a colheita de amostra de sangue
2.- Não padecem de inconstitucionalidade as normas contidas nos artigos 153º nº 8 e 156º nº 2 do Código da Estrada
Decisão Texto Integral: 1 – Recorreu o sujeito-arguido A... da sentença documentada na peça de fls. 50/56, que, na sequência de pertinente julgamento, o condenou à pena principal de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), bem como à acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, a título punitivo dum crime de condução automóvel em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do C. Penal), pugnando pela pessoal absolvição, em nuclear razão de alegada invalidade – nulidade – da colheita sanguínea que, na sequência do pessoal transporte a unidade hospitalar para assistência clínica a ferimentos contraídos em acidente rodoviário (despiste) em que interveio, lhe terá sido desautorizadamente realizada, com vista à analítica indagação da presença de álcool – aliás confirmada (TAS de 2,14 g/l) – e da condução automóvel sob a respectiva influência, como se observa do referente quadro-conclusivo (por transcrição):
«[…]
1. São elementos do tipo objectivo do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o exercício da condução de veículo com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 1,2 g/l;
2. A Douta sentença recorrida deu como provado que o arguido, ora recorrente, no dia 18 de Agosto de 2011, pelas 22h15, conduziu o ciclomotor 22-GD-92, tendo sofrido um despiste;
3. Deu também como provado que o recorrente era portador de uma TAS de 2,14 g/l, estribando-se no relatório final elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal - Serviço de Toxicologia Forense (INML - STF) - a que corresponde relatório de exame toxicológico, que fixou aquela TAS (fls. 5);
4. Na actual redacção do Código da Estrada, relativo ao procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool, dada pelo Dec. Lei n.º 44/2005, de 22/02, foi eliminada a possibilidade do condutor para a recusa do exame de pesquisa de álcool através de exame de sangue;
5. Resulta assim agravada a responsabilidade criminal dos examinandos, pois tal recusa, legítima, à colheita de sangue, nos casos admissíveis, passa a ser punida como crime de desobediência;
6. Para eliminar o direito do condutor/examinando poder livremente recusar a colheita de sangue - porque tal alteração legislativa tem um conteúdo inovatório - o Governo necessitava de autorização legislativa da Assembleia da República;
7. O Governo legislou sem prévia autorização legislativa da Assembleia da República, assim em violação do disposto no art. 165° n.° 1 al. c) da CRP, que consagra a matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República;
8. As normas do art. 152° n.º 3, 153° n.º 8 e 156° n.º 2 do CE estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, que expressamente se suscita, com a consequente ilegalidade da prova obtida pelo relatório final do INML - STF, a fls. 5;
9. Sem conceder, não resulta do relatório do INML-STF, ou qualquer outro documento constante dos autos, que o recorrente tenha autorizado ou consentido, por alguma forma, a recolha do seu sangue;
10. Não resultou também como provado que o recorrente estava impossibilitado de prestar o seu consentimento ou manifestar a vontade de recusa à colheita de sangue, sendo certo que o consentimento apenas se presume quando opera em benefício da pessoa privada da capacidade de o declarar;
11. A recolha de sangue sem qualquer fim ou intenção médico-terapêutica, sem o respectivo consentimento da pessoa visada, constitui uma violação da sua integridade física, sendo desta forma nula ou inválida a prova obtida pela recolha e análise ao sangue, e a sua valoração processual para condenação do recorrente inconstitucional.
12. Foram violadas as normas do art. 25° e do art. 32° n°. 8, ambos da CRP, e a norma do art. 126° do CPP;
13. Sem conceder, também não consta do relatório do INML-STF ou qualquer outro documento constante dos autos, qualquer menção/informação/explicação dada ao recorrente de que a recolha do seu sangue e consequente análise destinar-se-ia para fins de obtenção de prova, tendo em vista a sua responsabilização criminal;
14. Inexiste também qualquer relatório médico que contenha informação sobre a situação clínica do recorrente, que demonstre e comprove que o seu estado de saúde ou as suas condições físicas não lhe permitiam, de forma esclarecida e informada, recusar ou consentir na recolha de sangue para tal efeito;
15. O recorrente tinha o direito a saber que a recolha de sangue era para efeitos de sua responsabilização criminal e, assim, poder, querendo, fazer valer o seu direito processual penal à não auto-incriminação;
16. Ainda que incorresse no crime de desobediência;
17. Foi assim omitido um procedimento essencial ao direito fundamental do recorrente a um processo justo;
18. A recolha de sangue ao recorrente, para efeito de sua responsabilização criminal em processo penal, sem que lhe seja explicada a faculdade de recusa é nula por violação do seu direito de defesa e do seu direito à não incriminação e, por conseguinte, este meio de prova inválido;
19. Foi violada a norma do art. 32° n.º 1 da CRP;
20. Sem conceder, no caso sub judice está dado como provado que o recorrente sofreu um despiste;
21. Consagra o art. 156° n.º 1 do CE que: 1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153°
22. O método regra para a determinação da TAS é o exame de pesquisa no ar expirado;
23. A análise de sangue surge como ultima ratio, só devendo ser realizada quando não for possível a realização da prova por pesquisa de álcool no ar expirado, por o estado de saúde do examinando o não permitir - cfr. à contrario do n.º 1 do citado art. 156° do CE;
24. Tal avaliação ou juízo sobre o estado de saúde exige-se assim de técnico do foro médico;
25. Não se encontra provado nos autos, no relatório final do INML-STF ou outro documento médico - clinico, que o estado de saúde do recorrente não permitiu a submissão ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado;
26. Também não consta dos autos que o recorrente não tenha conseguido, após três tentativas sucessivas, expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo - cfr. dispõe o n.º 1 do art. 4° da Lei n.º 18/2007, de 17/5;
27. Inexiste assim qualquer razão para a sua não sujeição ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado;
28. No domínio da legalidade da prova a falta de cumprimento dos trâmites legais não é susceptível de sanação, sendo sempre necessário que o processo documente essa legalidade - a falta de documentação da legalidade não pode corresponder à legalidade do meio de prova;
29. Foram violadas as normas do art. 156° n.º 1 e 2 do CE, do art. 1° n.º 3, do art. 2° nºs, 1 e 2 e do art. 4° n.º 1 da Lei n.º 18/2007, do art. 125° do CPP;
30. Por tudo o que se vem de expor deve ter-se por ilegal, nulo e inválido o meio de prova que resulta do relatório final do Instituto Nacional de Medicina Legal-Serviço de Toxicologia Forense de fls. 5.
31. Estribando-se a prova da TAS exclusivamente neste relatório final, deve o ponto 2 da matéria dada como provada, no que respeita à TAS de 2,14 g/l, ser julgado como não provada;
32. Dos demais elementos probatórios valorados não é possível aferir a TAS - apesar da confissão do recorrente, que não tem a razão de ciência de a abranger;
33. Por consequência, não resulta da matéria dada como provada o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime por que o recorrente vem condenado, pelo que se impõe a sua absolvição.
[…]»

2 – O Ministério Público pronunciou-se – em primeira instância e nesta Relação – pela insubsistência argumentativa e pela consequente improcedência recursória, (vide referentes peças processuais – de resposta e parecer – de fls. 79/101 e 110/111, nesta sede identicamente tidas por reproduzidas nos respectivos dizeres).

3 – Exercitando a faculdade conferida pelo n.º 2 do art.º 217.º do CPP, o id.º recorrente reiterou a tese e pretensão recursórias, (vd. 114/115).


II – AVALIAÇÃO


1 – Como emerge da economia da peça recursória, máxime da vertente conclusiva da respectiva motivação (supra transcrita), funda o id.º arguido-recorrente a nuclearidade da sua tese de invalidade da valoração do relatório da análise sanguínea para pesquisa de alcoolemia – efectuada em unidade hospitalar para onde foi transportado na sequência de acidente rodoviário em que interveio – em pretensa nulidade de tal meio de obtenção probatória, alegadamente decorrente de desautorizada recolha de sangue para o efeito, supostamente inconsentida pela dimensão normativa integrada pelos preceitos ínsitos nos arts. 25.º e 32.º, n.º 8, da Constituição, e 126.º do Código de Processo Penal[1].

2 – Com o devido respeito, só por incúria ou má-fé processual se compreende que, para além de nunca antes haver suscitado nas sucessivas/apropriadas fases processuais de primeira instância qualquer pretensa invalidade procedimental ou probatória – associada ao conjectural atropelo à disciplina legal de recolha de sangue para análise, com vista à detecção de alcoolemia, de todo processualmente irrevelado –, de modo a permitir o oportuno exercício do concernente contraditório pelo Ministério Público e a condicionar a respectiva/adequada apreciação jurídica pelo competente julgador, tal sujeito – devidamente representado por advogado, que, sendo técnico do direito, se haverá, naturalmente, que presumir bem esclarecido quer sobre ordenamento jurídico quer quanto à orientação jurisprudencial nacional – ainda temerariamente teime em tal construção defensiva, em incauto menosprezo da vasta e bem-consolidada linha jurisprudencial já de há muito a propósito produzida quer pelo Tribunal Constitucional quer pelos diversos tribunais de segunda instância nacionais, mormente pelo deste tribunal da Relação de Coimbra, no fundamental sentido de que, do confronto entre os direitos individuais à incolumidade da integridade física e a protecção da segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, da comum segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida e/ou a integridade física – bens jurídicos protegidos, máxime, pelo tipo-de-ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º do C. Penal) –, se deverá conceder natural prevalência a est’último interesse geral, em conformidade com a estatuição normativa do n.º 2 do art.º 18.º da Constituição[2], e, logo, ao reconhecimento da constitucionalidade do comando legal resultante da dimensão normativa decorrente da integrada interpretação do n.º 8 do art.º 153.º e do n.º 2 do art.º 156.º (que ao caso sub judice atine, posto que, na sequência do despiste que protagonizou, o dito utente viário logo foi conduzido a unidade hospitalar), ambos do Código da Estrada (CE), e dos ns. 3 do art.º 1.º, 1 do art.º 4.º e 1 do 5.º, todos da Lei n.º 18/2007, de 17/05[3], postulante da obrigatoriedade da recolha de sangue para pesquisa de alcoolemia a condutor ou peão interveniente em acidente de viação que, por efeito de sequelas físicas em tal evento contraídas, houvesse na sequência sido conduzido a estabelecimento oficial de saúde, independentemente do respectivo consentimento, e, por consequência, à validade constitucional/legal da judicial valoração, máxime em sede de julgamento, do relatório resultante do próprio/adequado procedimento técnico-analítico, de que são exemplificativo exemplo os seguintes acórdãos:

2.1 – Do Tribunal Constitucional (em que se incluem também os reconhecedores da – questionada – constitucionalidade orgânica das normas impositivas da sujeição à recolha sanguínea para pesquisa de alcoolemia a condutor/peão que, sendo interveniente em sinistro rodoviário, haja sido conduzido a estabelecimento oficial de saúde):
– Ns. 319/95, 479/2010, 485/2010, 15/2011, 16/2011, 28/2011, 47/2011, 48/2011, 397/2011 e 407/2011, disponíveis/consultáveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos;

2.2 – Deste Tribunal da Relação de Coimbra:
– De: 14/07/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 113/09.3GBCVL.C1); 10/11/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 35/09.8PTFIG.C1); 26/01/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 52/10.5GAANS.C1); 20/12/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 387/08.7GTLRA.C1) e da mesma data, de 20/12/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 408/09.6GAMMV.C1); 25/01/2012 (produzido no âmbito do proc. n.º 136/10.0GBAND.C2)[4], e 23/05/2012, (produzido no âmbito do proc. n.º 123/09.0GTVIS.C1), todos disponíveis/consultáveis em http://www.dgsi.pt/jtrc;

2.3 – Do Tribunal da Relação do Porto:
– De: 20/10/2010 (produzido no âmbito do proc. n.º 1271/08.0PTPRT.P1); 18/05/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 438/08.5GCVNF.P1); 19/10/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 294/10.3PTPRT.P1); 23/11/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 179/09.6GNPRT.P1), e de 04/01/2012 (produzido no âmbito do proc. n.º 125/09.7GACRZ.P1), disponíveis/consultáveis em http://www.dgsi.pt/jtrp;

2.4 – Do Tribunal da Relação de Évora:
– De 11/10/2011 (produzido no âmbito do proc. n.º 101/09.0GBMMN.E1), e de 20/12/2012 (produzido no âmbito do proc. n.º 45/09.5GECUB.E2); disponível/consultável em http://www.dgsi.pt/jtre.

Porque bastantemente de tal ilustrativo, tem-se por oportuno recordar a nuclearidade da fundamentação dos referidos acórdãos desta Relação de Coimbra de 20/12/2011 e 25/01/2012, respectivamente produzida em sede recursória dos procs. ns. 408/09.6GAMMV.C1 e 123/09.0GTVIS.C1, incidente sobre similar problemática, cuja essencial juridicidade ora se reitera (com realces do ora relator):
«[…]
Validade do exame de detecção de álcool efectuado ao arguido:
[…]
O procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas está actualmente estabelecido no Código da Estrada aprovado pelo Decreto-lei nº 44/2005 de 23 de Fevereiro e pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, estabelecido na Lei nº 18/2007 de 17 de Maio.
Daqueles diplomas decorre que em caso de fiscalização é obrigatório sujeitarem-se, a) os condutores, b) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, c) as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
O regime geral da fiscalização assenta na obrigatoriedade do sujeito passivo se sujeitar, por regra, a um exame de pesquisa de álcool no ar expirado, realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, a que se pode seguir um procedimento diferenciado relativo à contraprova.
[…]
A detecção de álcool no sangue dos condutores através de análise sanguínea não constitui qualquer prova proibida pelos arts. 32º/8 da Constituição da República Portuguesa e pelo art.º 126º do Código de Processo Penal.
O art.º 156º do Código da Estrada ao regular a fiscalização da condução sob a influência de álcool prevê a realização de exames para a sua detecção, começando pelo uso dos alcoolímetros regularmente aprovados, passando à análise sanguínea e rematando com o exame médico.
Também no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool aprovado pela Lei n.º 18/2007 de 17/5 se prevê que «A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo» (art. 1º/3).
[…] “Trata-se de prova pericial cuja utilização seriada a lei estabelece com minúcia, pelo que não é de utilização indiscriminada ou arbitrária”.
O arguido alega que a análise ao sangue constitui prova proibida, traduzindo-se numa agressão física à sua pessoa, por não se ter verificado o consentimento.
Mas carece de fundamento esta alegação já que nenhum direito é absoluto, mesmo os constitucionalmente consagrados, prevendo a Constituição que a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias … desde que tais restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
[…] a intervenção policial na sua função de fiscalização do trânsito é também uma acção de prevenção da prática de outras violações contra a liberdade, o património e vida e a integridade física quer do agente fiscalizado quer dos restantes utentes da estrada.
[…]”.
Embora a regra seja a liberdade e a restrição a excepção, esta também está constitucionalmente consagrada em obediência ao princípio da proporcionalidade na limitação recíproca dos direitos de cada um.
[…]
“A obrigatoriedade geral pressupõe, assim, algumas especificidades no âmbito do procedimento da colheita de sangue, em função das circunstâncias em que o sujeito passivo se encontrar, nomeadamente existirem condições de saúde, clinicamente demonstradas, em que o exame não possa ser realizado ou quando após três tentativas sucessivas, o examinado não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo (cf. artigos 153º nº 8 do CE e 4º da Lei n.º 18/2007).
[…]
Insere-se nestas situações o caso específico dos exames efectuados a condutores ou peões que intervenham em acidentes de viação cujo estado de saúde não permita que sejam submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado (cf. 156º n.º 2 do CE).
Nestas situações, ou seja, quando não for possível a realização de exame por ar expirado, através de um procedimento próprio, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool» (cf. 156º nº 2 do CE e 4º e 5º da Lei nº 18/2007).
As necessidades de prevenção que estão na origem deste regime são tão fortes que impõem, inclusive, uma cominação criminal ao médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool, ou de substâncias psicotrópicas, (é punido por crime de desobediência - cf. artigo 152º n.º 5 do CE.
Todo este regime está estabelecido no Código da Estrada e na Lei nº 18/2007 e é, por isso, (presumivelmente) conhecido pelos cidadãos, quer sejam condutores, quer sejam peões (que, no caso, sejam intervenientes em acidentes de viação), quer sejam pessoas que se proponham iniciar a condução.
Importa sublinhar que o regime legal dá ao cidadão objecto de fiscalização a total liberdade de não querer efectuar o exame de pesquisa de álcool. Ainda aqui a liberdade individual, «de ir livre e conscientemente para o Inferno», na expressão de Figueiredo Dias, é absolutamente garantida.
Essa liberdade individual tem, no entanto, os seus custos. Ou seja, a recusa a submeter-se a exame implica a punição por crime de desobediência – artigo 152º nº 3 do CE.
É isso que exigem as razões de prevenção que estão na origem da fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool.
Recorde-se que sobre a relevância do exame de colheita de álcool e a sua eventual colisão com outros direitos o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de que «o exame para pesquisa de álcool (...), destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob influência de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as de outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal» (Ac. nº 319/95).
[…]
O que importa reter do que se vem dizendo é que o cidadão, desde que esteja em condições de o fazer, se pode recusar sempre a submeter-se ao exame de detecção, assuma este a forma de colheita por ar expirado ou por exame ao sangue. Não há testes coercivos, nesta como noutras matérias.
Recusa que o cidadão terá que fazer perante a autoridade policial ou perante o médico, consoante as circunstâncias.
É evidente que o limite à recusa está na impossibilidade de ser prestada por virtude de razões de saúde (por exemplo, estado de inconsciência decorrente de um acidente de viação ou mesmo, decorrente de estado de inconsciência decorrente da própria quantidade de álcool que ingeriu).
Ora, nesses casos, como se viu, a lei expressamente impõe que seja realizado através da colheita de sangue em estabelecimento oficial de saúde.
Não tendo sido manifestada qualquer recusa (podendo ou não ter sido, consoante os casos) então o que há a fazer é apenas e só efectuar a pesquisa.
É evidente que poderá a entidade fiscalizadora ou o médico que está perante o cidadão a quem tem que efectuar a colheita, deparar-se com circunstâncias que lhe permitam percepcionar que a vontade do cidadão era recusar-se a tal exame (veja-se o caso da existência de uma declaração escrita ou mesmo a existência de prova testemunhal absolutamente credível e actualizada que indique a vontade do cidadão a recusar-se a fazer, naquele momento, o exame).
Nessas situações – e só nessas – então se deve suscitar a questão do consentimento do cidadão, nomeadamente o que fazer perante essa dúvida, sabido que não pode a ordem jurídica suportar a realização de «exames forçados» ou contra a vontade do titular do direito em causa”.
Após um acidente de viação em que interveio (despiste), o arguido, foi transportado ao Hospital para aí ser assistido (assim como o acompanhante no veículo).
[…]
O arguido suscita a questão de não ter sido pedido o seu consentimento ou autorização para se sujeitar ao exame.
O arguido em momento algum expressou qualquer vontade de recusa à realização do exame, nem existia previamente qualquer circunstância que permitisse concluir ser essa a sua vontade – recusar-se a submeter-se ao exame, com as consequências legais que isso implica.
[…]
Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que se sujeitar ao exame de recolha de sangue para os efeitos referidos. […].
[…]
Não se foi, nesta matéria, para a exigência de um consentimento expresso para a recolha de exames.
Apenas uma palavra quanto à questão do consentimento e da sua relevância no regime penal, estabelecido nos artigos 38º e 39º do CP.
No caso do consentimento presumido, estabelece o artigo 39º n.º 2 do CP que «há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permite razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado».
É doutrina pacífica que «o consentimento presumido assume sempre carácter subsidiário, no sentido de que só é legítima a sua invocação quando não for possível obter a manifestação expressa da vontade ou houver perigo sério na demora […].
Se não existem motivos para pôr em dúvida séria a vontade real da pessoa que está em causa no sentido de não ser admissível a prática do acto médico então o acto é válido, por presumivelmente consentido.
Ora no caso dos autos, como se referiu, em momento algum se suscitou essa questão da vontade real do arguido em recusar ou não permitir o acto médico que possibilitou a concretização do exame.
[…]
Daí que não seja sequer de suscitar-se a questão do consentimento.
Em síntese, a recolha de sangue efectuada ao arguido não sofre de qualquer patologia processual, sendo válida, e nessa medida, a prova produzida decorrente desse exame […].
Quer quanto ao exame através do ar expirado quer através da recolha de sangue, não é necessário consentimento expresso do arguido, para que o mesmo seja efectuado. No entanto pode haver recusa quer a um ou a outro desses exames, mas em tal circunstância, o arguido incorrerá em crime de desobediência.
[…]»

  3 – Ora, como nos casos em referência, nunca nas diversas fases deste processo se suscitou a questão da vontade real do id.º arguido em recusar ou não permitir o acto médico que possibilitou a concretização do exame sanguíneo de pesquisa de alcoolemia, e de, consequentemente, optar pela sujeição a procedimento criminal tendente à pessoal punição por crime de desobediência.

Daí que, não lhe assistindo o direito potestativo a qualquer prévio pedido de autorização à recolha hematológica para tal finalidade na unidade hospitalar para onde – a seu benefício – foi conduzido para recebimento de assistência clínica a sequelas físicas aparentemente contraídas por efeito do sinistro para que concorreu, e encontrando-se firmemente estabilizado o ajuizamento da constitucionalidade orgânica das normas que tal procedimento jurídico-processual postulam, mormente pelos supra referenciados arestos do Tribunal Constitucional, nenhuma base de sustentação juridicamente válida ora se lhe reconheça.

Por conseguinte, por nenhuma nova razão plausível e juridicamente oponível a tal consolidada linha interpretativo-legal se alcançar, justificativa da concernente divergência, impor-se-á concluir pela manifesta improcedência do recurso e pela sua decorrente rejeição, [cfr. arts. 417.º, n.º 6, al. d) – aplicável por maioria de razão –, e 420.º, n.º 1, al. a) do C. P. Penal].


IV – DISPOSITIVO


Como assim – sem outras considerações, por inócuas –, decido:

1 – Rejeitar o avaliando recursopor manifesta improcedência.

2 – Condenar o id.º recorrente A... ao pagamento da sanção pecuniária equivalente a 4 (quatro) UC, pela infundada e temerária actividade recursiva, em conformidade com a estatuição normativa do n.º 3 do art.º 420.º do C. P. Penal, a que acrescerá o montante de 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento no recurso, (cfr. ainda arts. 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13/02).


***

Coimbra, 30/01/2013[5].

        

.........................................................................

(Abílio Ramalho – Juiz-desembargador-relator)


[1]Artigo 25.º (Direito à integridade pessoal)
1 – A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2 – Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.
***
Artigo 32.º (Garantias de processo criminal)
[…]
8 – São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
[…]
***
Artigo 126.º (Métodos proibidos de prova)
1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.
[2] Artigo 18.º (Força jurídica)
[…]
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
[…]
[3] Código da Estrada:
Artigo 153.º (Fiscalização da condução sob influência de álcool)
[…]
8 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
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Artigo 156.º (Exames em caso de acidente)
1 – Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º.
2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
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Lei n.º 18/2007, de 17/05:
Artigo 1.º (Detecção e quantificação da taxa de álcool)
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3 – A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
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Artigo 4.º (Impossibilidade de realização do teste no ar expirado)
1 – Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
2 – Nos casos referidos no número anterior, sempre que se mostre necessário, o agente da entidade fiscalizadora assegura o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.
3 – A colheita referida no número anterior é sempre realizada nos estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respectivo Governo Regional.
Artigo 5.º (Colheita de sangue)
1 – A colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente.
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[4] Relatado pelo próprio desembargador ora relator.
[5] Elaborei e revi o presente despacho, (cfr. art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal).