Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
452/13.9TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 755º, Nº 1, AL. F) E 759º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I- A norma do art.755º, nº 1, al. f) do C. Civil deve ser objecto de interpretação restritiva, no sentido de conferir o direito de retenção ao promitente-comprador “consumidor”.

II - A qualidade de consumidor assume um verdadeiro elemento constitutivo do direito de retenção.

III - A norma do art.759º, nº 2 do C. CIv. ao estatuir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente não enferma de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- O Autor – A… – instaurou, na Comarca de Coimbra, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:

C…, Sociedade de Construção e Urbanização, Lda.

C…, S.A.

J… e mulher, M...

Alegou, em resumo:

Por documento particular de 4/4/2011 celebrou com a 1ª Ré C…, Lda um contrato promessa bilateral de compra e venda que tem por objecto as fracções autónomas “E” e “G” do prédio urbano sito na Rua …, pelo preço de € 195.000,00, e desde Janeiro de 2012 que está na posse das fracções.

A Ré, promitente vendedora, recusou-se a efectivar a escritura pública, tendo incumprido o contrato promessa, pelo que lhe assiste o direito à resolução do mesmo, com a restituição do duplo sinal, ou seja € 250.000,00, e o direito de retenção (art.755 nº1 f) CC), que prevalece sobre a hipoteca e penhora registadas a favor dos demais demandados.

Pediu:

Que se declare resolvido o contrato-promessa de compra e venda;

A condenação da 1ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 250.000,00, acrescida de juros à taxa legal até integral pagamento;

Que se reconheça - como garantia do crédito invocado - ao Autor a quantia de € 250.000,00, acrescida dos juros à taxa legal, até integral pagamento;

A condenação dos Réus a verem reconhecido o direito de retenção do Autor sobre as referidas fracções.

            Contestaram os Réus.

            A C… defendeu-se por impugnação, alegando inexistir verdadeira tradição, pelo que não tem o Autor direito de retenção, sendo inconstitucional o art. 759 nº2 do CC ao conferir prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente.

            A Ré C… Lda refutou, em síntese, o incumprimento definitivo do contrato promessa, pelo que não se verifica fundamento da resolução

            O Autor replicou.

            No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

            1.2. – Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

i)Declarar legítimo o exercício do direito potestativo de resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre Autor e a Ré “C…, Sociedade de Construção e Urbanização, Lda.”, melhor identificado no ponto A) da fundamentação de facto;

ii)Condenar a Ré “C…, Sociedade de Construção e Urbanização, Lda.” a pagar ao Autor a quantia de € 250.000,00 respeitante ao dobro do sinal, acrescida de juros à taxa de 4%, vencidos desde a data da citação da Ré;

iii)Condenar os Réus a reconhecer ao Autor o direito de retenção previsto no artigo 755º, n.º1, al. f) e 759º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Civil, para satisfação do crédito de € 250.000,00;

iv) Julgar improcedente o pedido de compensação de créditos, formulado pela Ré “C…, Sociedade de Construção e Urbanização, Lda.” e absolver o Autor do pedido.

1.3.- Inconformada, a C… recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegou o Autor no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            O direito de retenção e a qualidade de consumidor do Autor;

            A inconstitucionalidade material do art.759 nº2 do CC.

            2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)

2.4.- O direito de retenção e a qualidade de consumidor do Autor

A sentença recorrida, depois de julgar procedente o pedido de resolução do contrato promessa de compra e venda das fracções, por incumprimento imputável à promitente vendedora, e condenar a Ré C…, Lda a pagar o duplo sinal (€ 250.000,00), reconheceu  ao Autor o direito de retenção sobre as fracções, como garantia do seu crédito, ao abrigo do disposto no art.755 nº1 f) CC.

A Apelante objecta dizendo não se verificar o direito de retenção por falta de comprovação da qualidade de “consumidor” do Autor e, por outro lado, arguiu a inconstitucionalidade material do art.759 nº2 CC.

O art.755 nº1 f) do CC confere o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve tradição da coisa a que se reporta o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.442 CC.

Trata-se de uma direito real de garantia que “consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” (P.Lima/A.Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág.722).

A alínea f) do nº1 do art.755 do CC foi aditada pelo DL nº 379/86 de 11/11, e contem a seguinte redacção:

Gozam do direito de retenção “f)O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.”

Do preâmbulo ao diploma legal consta a seguinte justificação, em termos de política legislativa:
“ Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente, apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.
O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.
Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.
Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar adequado, incluindo-se entre os restantes casos de direito de retenção [artigo 755.º, n.º 1, alínea f)].”.

Considerando o propósito de conciliar os interesses no confronto com os credores hipotecários, em face do regime do art.759 nº2 CC, a norma do art.755 nº1 f) do CC vem sendo objecto de interpretação restritiva, no sentido de atribuir o direito de retenção ao promitente-comprador “consumidor”.

Argumenta-se, em síntese, que a intenção legislativa foi a de proteger o promitente-comprador nos contratos-promessa sinalizados tendo havido a tradição da coisa, sendo “uma norma de tutela do consumidor”, como realçado no preâmbulo. Por conseguinte, a ratio legis é no sentido de que só beneficia o consumidor (cf. , por ex., Pestana de Vasconcelos, “Direito de Retenção, contrato promessa e insolvência”, Cadernos de Direito Privado nº33, pág. 3 e segs.).

Também Almeida Costa, autor do anteprojecto legislativo em que se baseou a reforma de 1986 (DL º 379/86 de 11/11) afirma que a consagração legal do direito de retenção aos promitentes compradores foi “uma deliberada opção legislativa, dentro de uma política de defesa do consumidor (…)” (Contrato Promessa – Uma síntese do seu regime actual, 5ª ed., pág. 68).
Esta interpretação foi reforçada com o AUJ do STJ de 20/3/2014 (DR 1ª Série de 19/5/2014) ao uniformizar a jurisprudência, nos seguintes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755 nº1 alínea f) do Código Civil”

O acórdão, conforme fundamentação, parece ter acolhido a tese da “imputabilidade reflexa” e fez uma interpretação restritiva do art. 755 nº1 f) CC, limitando a sua aplicação aos consumidores.

A jurisprudência tem vindo a seguir esta interpretação restritiva embora sobretudo na aplicação dos casos no âmbito do regime insolvencial, mas já defendida em todas as demais situações (cf., por ex., Ac STJ de 30/4/2015 ( proc. nº 1187/08), Ac STJ de 9/7/2015 ( proc. nº 1242/10), disponíveis em www dgsi.pt).

Sendo assim, a qualidade de consumidor assume um verdadeiro elemento constitutivo do direito de retenção.
A Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96 de 31/7( rectificada pela Declaração de rectificação nº 16/96 de 13/11), alterada pela Lei nº 85/98 de 16/12 e pelo DL nº 67/2003 de 8/4), que funciona como lei-quadro em sede de Direito do Consumidor, define o consumidor como “ todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
O conceito operatório de consumidor postula, assim, a verificação de quatro elementos: o elemento subjectivo (“todo aquele”), o elemento objectivo (“ a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços e transmitidos direitos”), o elemento teleológico (“destinados a uso não profissional”) e o elemento relacional (“ pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”)
Tem-se entendido que a LDC acolheu a noção estrita de consumidor, a mais relevante no Direito Comunitário, como a pessoa singular que adquire um bem ou serviço para uso não profissional, ou seja, uso privado, com vista à satisfação das necessidades pessoais ou familiares, ou seja, com um fim alheio ao âmbito da sua actividade profissional, sendo que a contraparte do consumidor será sempre pessoa singular ou colectiva que exerce, com carácter empresarial, uma actividade económica ( cf., por ex., Jorge Carvalho, Os Contratos de Consumo, pág. 26 e segs., Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., pág.44; Ac STJ de 20/10/2011 ( proc. nº 1097/04), em www dgsi.pt ).

            Segundo a factualidade apurada, mais do que a simples detenção, o Autor está na posse das fracções (cf. alíneas M) a X)), por resultar até a inversão do título (cf. alínea R), V)e W)), comprovando-se o corpus e o animus da posse, na medida em que passou a fazê-lo em nome próprio, como verdadeiro proprietário.

            E, sem dúvida, que assume a posição de consumidor, na acepção definida, por ser patente que as fracções objecto da promessa de compra e venda se destinavam à habitação, para seu uso privado e familiar, ou seja, para uso não profissional. Com efeito, sabe-se que o Autor passou a utilizar as ditas fracções da forma como entendeu, suportando as despesas, chegando a facultá-las ao filho e amigo.

            A Apelante refuta este entendimento com a circunstância de se provar que ele pretendia arrendar as fracções (alínea U)), mas este facto de modo algum infirma a noção de consumidor. Sabe-se apenas que pretendia, o que não está sequer demonstrado que o tenha feito, mas em qualquer caso não era pelo simples facto de dar de arrendamento as fracções que, por si só indiciaria um uso profissional, não privado.

            A Apelante parece restringir o “uso privado” ou “uso não profissional” à habitação própria e permanente do Autor, mas sem fundamento.

2.5.- O problema da inconstitucionalidade material do art.759 nº2 do CC

            A sentença recorrida discorreu sobre a questão e justificou a conformidade constitucional, com apoio da jurisprudência, sumariando os argumentos, adrede utilizados.

            A Apelante insiste em que a norma do art.759 nº2 do CC ao estatuir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança, consagrados nos arts. 2, 18 nº2, 20, da CRP.

            Não se ignora que o regime da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca tem sido objecto de vários estudos doutrinários, verificando-se que alguns deles apontam para uma interpretação restritiva ou correctiva do art.759 nº2 CC, no sentido de excluir da sua órbita o direito especial de retenção do art.755 nº1 f) CC, passando pela querela da inconstitucionalidade e até mesmo a própria supressão do instituto ( cf., por ex., Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, pág.169 e segs. Maria Isabel Campos, Da Hipoteca, pág. 225 e segs.).

            Adere-se, no entanto, à posição sufragada na sentença, para a qual se remete, sendo que a jurisprudência tanto do Tribunal Constitucional, como do Supremo é no sentido da não inconstitucionalidade.

            Assim, o TC nos acs nº 374/2003, de 15/7/2003, nº 594/2003 de 3/12/2003, nº 356/2004, de 19/5/2004, nº 698/2005, de 14/12/2005 (disponíveis no site do tribunal) rejeitou a inconstitucionalidade, nomeadamente pela violação dos princípios imputados.

            Também o STJ mantém orientação uniforme, ao estabelecer que a norma do art.759 nº2 do CC interpretada no sentido de que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca anteriormente constituída e registada não padece de inconstitucionalidade material ( arts. 2, 13, 18 nº2, 20 nº1, 165 b) CRP) ( cf., por ex., Ac STJ de 29/1/2003 ( proc. nº 02B4480) , de 9/7/2014 ( proc. nº 1206/11), de 9/7/2015 ( proc. nº 1242/10), em www dgsi.pt ).

            2.6.- Síntese conclusiva

i)A norma do art.755 nº1 f) do CC deve ser objecto de interpretação restritiva, no sentido de conferir o direito de retenção ao promitente-comprador “consumidor”.

ii)A qualidade de consumidor assume um verdadeiro elemento constitutivo do direito de retenção.

iii)A norma do art.759 nº2 do CC ao estatuir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente não enferma de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 3 de Novembro de 2015.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )