Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1869/12.1JFLSB.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
INQUÉRITO
COMPETÊNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 12/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 262º, 263º, 268º CPP
Sumário: Na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objetos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direção do inquérito.
Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de inquérito n.º 1869/12.1JFLSB, a correr termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Alcobaça, de que os presentes autos constituem apenso, proferido que foi despacho de arquivamento, o Ministério Público determinou a remessa dos autos à Mma. Juiz de Instrução Criminal «com a promoção de que a nota apreendida nos autos a fls. 17, seja declarada perdida a favor do Estado e que ordenada a sua subsequente destruição, nos termos do disposto no artigo 109.º, nºs 1 e 3 do Código Penal.».

Apresentados os autos à Mma. Juiz de Instrução Criminal veio esta a proferir o seguinte despacho:

«Fls. 17: Encontra-se apreendida nos autos a fls. 17 uma nota de € 100,00, que submetida a exame revelou ser falsa.

Tal nota, pelas suas características não pode ser introduzida na circulação.

Este modo e ao abrigo do artigo 268.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal e 109º do Código Penal, declaro a nota de € 100 perdida a favor do estado.

Devolva os autos ao Ministério Público, a quem cabe dar destino à mesma.»

2. Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

«1ª – Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. 31 proferido no dia 16 de Outubro de 2012 pela Mmª. Juiz de instrução Criminal, no qual decidiu, depois e ter declarado perdida a favor do Estado a nota falsa, por não poder ser introduzida na circulação, nos termos do disposto no artigo 268º, nº 1, al. e), do Código de Processo Penal e 109º, do Código Penal, ordenar:

-- “Devolva os Autos ao Ministério Público, a quem cabe dar o destino a mesma.”

2ª --Dispõe o artigo 109º, nº 3, do Código Penal, que “se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”

3ª -- Por força das legais conjugadas dos artigos 109º, nº 3, do Código Penal e 268º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Penal e 79º, nº 1, da L.O.F.T.J., compete ao Juiz de Instrução Criminal --- e não apenas ao “Juiz de Julgamento” --- “ordenar que os objectos perdidos nos termos anteriores sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”

4ª -- Ao ter-se decidido nos termos enunciados na 1ª Conclusão, violou-se do douto despacho a quo o disposto nos artigos 109º, nº 3, do Código Penal, 268º, nº 1, al. e), do Código de Processo Penal e 79º, nº 1, da L.O.F.T.J.;

5ª -- Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, porque provado, devendo Vª. Exªs. ordenar que o douto despacho a quo proferido pela Mmª. Juiz de Instrução Criminal seja substituído por outro no qual:

a) Se julgue competente para se pronunciar quanto ao destino a dar à nota falsa declarada perdida favor do Estado em fase de inquérito;

b) E, em consequência, ordene que a nota falsa já declarado perdido a favor do Estado por douto despacho de fls. 31, seja “colocado fora comércio”, através da sua destruição nos termos promovidos pelo Ministério Público a fls. 25 in fine.

                                         Contudo, Vas. Exas.

                                         Decidirão

                                         Conforme for de

                                         LEI e JUSTIÇA.»

3. A Mma. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido.

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

5. Foram colhidos os vistos e realizou-se a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

A questão suscitada no presente recurso consiste em saber a quem compete pronunciar-se, em fase de inquérito, sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado.

Nos termos do n.º 1 do artigo 262º do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, cabendo a sua direcção ao Ministério Público, nos termos do artigo 263.º do mesmo código.

Cabendo a direcção do inquérito ao Ministério Público, só haverá lugar à intervenção de um juiz, a funcionar como juiz de instrução criminal, nos casos excepcionais previstos na lei e que se prendam com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Entre os actos cuja competência, na fase de inquérito, a lei defere em exclusividade ao juiz de instrução, previstos nos artigos 268.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, encontra-se a “declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º” – artigo 268.º, n.º 1, e) do Código de Processo Penal.

A decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é distinta da decisão de perda a favor do Estado dos mesmos objectos.

Enquanto esta assume natureza jurisdicional posto que haverá que fixar com trânsito em julgado a extinção do direito de propriedade do respectivo dono sobre os mesmos, já aquela não interfere minimamente com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade.

Assim, sendo o inquérito uma fase processual em que a regra é a competência do Ministério Público na sua direcção, não se tratando de matéria reservada ao juiz de instrução nos termos do citado artigo 268.º, a decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é tomada pelo Ministério Público na fase de inquérito, assim como o será pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz presidente na fase de julgamento.

Neste sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e de Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, página 503.

No mesmo sentido vai a jurisprudência dominante, podendo citar-se, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/7/2009, Proc.º 318/08.4GAACB-A.C1, da Relação do Porto de 9/6/2010, Proc.º 321/07.1EAPRT-A.P1, de 16/3/2011, Proc.º 551/08.9GBVLG-A.P1, de 14/9/2011, Proc.º 271/11.7TASTS-A.P1 e de 7/11/2012, Proc.º 22/08.3FBPVZ-A.P1; da Relação de Lisboa de 26/9/2006, Proc.º 6187/2006-5 e de 28/11/2006, Proc.º 6205/2006-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; da Relação do Porto de 22/6/2011, Proc.º 1896/02.7PAVNG-A.P1, Referência 7316/2011, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com ([1]).

Em abono da sua tese, o recorrente sustenta que o despacho recorrido desaplicou a norma do n.º 3 do artigo 109.º do Código Penal que não distingue entre juiz de julgamento e juiz de instrução criminal.

A interpretação das normas jurídicas não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, sendo certo que, na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – artigo 9.º, nºs 1 e 3 do Código Civil.

Se a norma do artigo 109.º, n.º 3 do Código Penal tivesse a virtualidade de resolver a questão da competência para a destruição dos objectos na fase do inquérito, então não se vê qual seria a utilidade e a necessidade da norma do artigo 268.º, n.º 1, e) do Código de Processo Penal na qual o legislador revelou uma especial preocupação ao conferir competência exclusiva ao Juiz de Instrução Criminal para a declaração de perda de objectos mesmo na fase do inquérito.

Aliás, se fosse intenção do legislador conferir ao Juiz de Instrução Criminal competência para decidir sobre o destino dos objectos na fase de inquérito, não se compreende porque não o fez expressamente à semelhança do que sucedeu com a declaração de perda a favor do Estado – alínea e) do n.º 1 do artigo 268.º do Código de Processo Penal.

A norma do artigo 109.º, n.º 3 do Código Penal, atenta a sua localização, num diploma de natureza substantiva, reporta-se a situações relativas à fase processual de julgamento em que se compreende que se defira a competência para a declaração de perda dos objectos ao juiz de julgamento com o decorrente reconhecimento da possibilidade de determinar a destruição dos objectos e com a natural competência do mesmo para a destruição dos objectos que, neste contexto processual, já declarara perdidos a favor do Estado.

Conclui-se, pois, que, na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direcção do inquérito.

Improcede, portanto, o recurso interposto.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Sem tributação.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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                   Coimbra,

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[1] - Em sentido contrário podem citar-se, de algum modo, os arestos invocados pelo recorrente, a saber, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 22/11/2011, Proc.º 792/10.9GAALM-A.L1-5 e da Relação de Évora de 24/4/2012, Proc.º 427/10.0GCSTB-A.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.; A situação dos presentes autos é, todavia, bastante diferente, pois aqui está em causa uma nota falsa enquanto no primeiro dos citados arestos estava em causa produto estupefaciente razão pela qual foi aplicada a norma especial do artigo 62.º, n.º 6 do DL n.º 15/93, de 22/1; por outro lado, no segundo dos referidos arestos, estava em causa saber se estavam preenchidos os pressupostos de que o artigo 109.º do Código Penal faz depender a declaração de bens ou objectos a favor do Estado, sendo que, em momento algum, se aborda a questão de, deferida a declaração de perda a favor do Estado do objecto, saber a quem compete ordenar a posterior destruição do mesmo.