Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4575/17.7T8PRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
CONTRATO
TRESPASSE
NULIDADE
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.236, 237, 405, 410 CC, 46 Nº1 CPC, DL N.º 168/97, DE 04/07
Sumário: 1.- Muito embora a qualificação dum negócio jurídico não se confunda com a sua interpretação, há uma relação estreita entre as duas operações, pois, para qualificar um determinado negócio, atribuir-lhe um nomen juris impõe-se, antes do mais, fixar-lhe o seu conteúdo, definir o sentido da declaração ou declarações negociais, ou seja, interpretá-lo.

2.- São elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar, e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio. Na interpretação, também se atende à qualificação dada pelas partes, mas não decisivamente. A final, só relevará se estiver de acordo com o conteúdo do negócio.

3.- Tendo sido dado à execução um documento denominado “contrato promessa de trespasse” e que configura mero documento particular, com data de 06/10/2006, pode configurar título executivo, se verificados os requisitos postos no anterior art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

4. Ainda que as partes qualifiquem o negócio como de contrato promessa de trespasse, verifica-se um verdadeiro trespasse se através dele, por si só, operou a transmissão do estabelecimento e a obrigação de pagamento do respectivo preço.

5.- Estando em causa a transmissão de um estabelecimento de restauração e bebidas(art. 1.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 168/97, de 04/07, na redacção do DL n.º 57/2002, de 11/03, e arts. 1.º e 2.º do DR n.º 38/97, de 25/09, na redacção do DR n.º 4/99, de 01/04, todos vigentes à data da celebração do “contrato” dado à execução ) a falta da menção ao alvará de licença ou de autorização implica a inexistência do título executivo ( por nulidade do contrato ).

6. A função primacial dos embargos de executado - tal como a da oposição à execução, que lhes sucedeu - não é a de dirimir um litígio entre as partes, em aspectos que possam extravasar o andamento e tramitação da acção executiva, mas apenas, como decorre do seu carácter incidental, resolver uma questão, substantiva ou adjectiva, na estrita medida em que esta se projecta no destino do processo de que os embargos são dependência: na verdade, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, visando a pronúncia que neles é feita, quer sobre o mérito, quer sobre matéria processual, servir exclusivamente as finalidades e os fins da execução.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

P (…) veio, por apenso à execução que lhe move J (…) deduzir a presente oposição mediante embargos de executado.

Alegou, em apertada síntese, que o estabelecimento não estava licenciado e que a prestação ora exigida apenas seria devida quanto a exequente entregasse a documentação necessária à celebração do prometido contrato de trespasse, o que não aconteceu, podendo o executado recusar a prestação. Mais invocou que ocorre a prescrição dos juros de mora que ultrapassem os cinco anos anteriores à citação, tudo nos termos que constam na p.i. e que aqui se dão por reproduzidos.

A exequente, devidamente notificada, apresentou contestação, invocando, em apertada síntese, que o executado não demonstra a inaptidão ou falta de requisitos legais que legitime a excepção de não cumprimento, sendo o prazo de prescrição de 20 anos, que não se verifica, concluindo pela improcedência da oposição, tudo nos termos que constam na contestação e que aqui se dão por reproduzidos.

      

*

Oportunamente, foi proferida decisão onde se consagrou que:

«Face ao exposto, por verificada a falta de título de executivo, julga-se a oposição mediante embargos de executado procedente e, em consequência, declara-se extinta a execução. Não se condena a exequente nos termos do art. 858.º do CPC nem por litigância de má-fé.

Custas a cargo da exequente.

Registe, notifique e, após trânsito, com essa menção, comunique ao AE».

*

J (…), embargada e exequente aos autos à margem identificados e aqui representada por (…) naqueles autos à margem referenciados, notificada do Despacho Saneador/Sentença, que julgou procedente a oposição à execução, deduzida pelo embargante e executado mediante embargos de executado, por verificada a falta de título executivo, determinando-se em consequência a extinção da execução, e com a mesma não se conformando, veio interpor RECURSO DE APELAÇÃO, alegando e concluindo que:

(…)

Legal e tempestivamente notificado, para o efeito, P (…) executado nos autos supra referidos, e neles melhor identificado, veio apresentar as suas Contra-Alegações.

(...)

*

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de Facto assente na 1ª Instância e que consta da sentença recorrida:

II.1. Factos provados

Resulta desde já provada a seguinte factualidade face aos documentos juntos aos autos, ao acordo e à confissão das partes, efectuada a análise crítica da prova, excluindo os factos que não apresentam relevo para a decisão da causa ou não servem para consubstanciar a pretensão deduzida:

1.º Nos autos de execução foi apresentado como título executivo o documento denominado “contrato promessa de trespasse”, datado de 06/10/2006, que se encontra anexo ao r.e. e aqui se dá por reproduzido, em que foram outorgantes a ora exequente, na qualidade de primeiro outorgante, e o ora executado, na qualidade de segundo outorgante.

2.º Consta no contrato referido em 1.º, entre o mais, o que consta, destacado, de fls. 58-58v. dos Autos, na correspondência às cláusulas, na numeração de 1 (uma) a 9 (nove);

*

Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608º do mesmo Código.

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Das conclusões, circunstancialmente, formuladas em recurso -

 (das quais haverá, aqui, igualmente, de se dizer que desenvolvem, de forma profusa e tautológica pontos de apreciação, em desrespeito pelo disposto no art. 639° NCPC sem levar em devida conta que justamente por "conclusões se entendem as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação" (Alberto dos Reis, CPC Anot. 5.-359 E, sobretudo, que «as conclusões consistem na enunciação em forma abreviada dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso. Com mais frequência do que seria para desejar vê-se, na prática os recorrentes indicarem corno conclusões, o efeito jurídico que pretendem obter com o provimento do recurso, e, às vezes, até com a procedência da acção. Mas o erro é tão manifesto que não merece a pena insistir neste assunto. Se as conclusões se destinam a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e os seus fundamentos, pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido, é claro que tudo o que fique para aquém ou para além deste objectivo é deficiente ou impertinente (Rodrigues Bastos Notas ao CPC 3°.299);

E são realidades distintas o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões, como logo resulta das diferentes consequências ligadas à falta de alegações ou à falta de conclusões. Sendo as conclusões a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, com que se pretende obter o provimento do recurso, constitui grosseira afronta ao disposto no art. 690. ° do CPC (639° NCPC) apresentar como conclusões a (quase) reprodução integral, cópia por decalque, da parte que constitui as alegações (Ac. STJ, de 16.9.200S: Proc. 0882103.dgsi.Net);

Revelando a análise do processado que as "conclusões" são uma versão, nem sequer abreviada, das alegações, têm similar estrutura, não só gráfica como de fundamentação dessas alegações, e são argumentativas e não conclusivas (ou seja, são realmente uma reprodução das alegações, só que "um pouco" mais sucintas), mas sendo possível extrair das mesmas - em dimensão inteligível e noemática -, as questões que o recorrente pretende ver tratadas, não pode o tribunal deixar de conhecer o recurso!… (Cf. Ac. STJ, de 27.5.2010: Proc. 327/1998.S1.dgsiNet),

derivam - na sua própria matriz constitutiva e redactorial -, as seguintes questões:

1.

JJ- –Este contrato promessa de trespasse de estabelecimento comercial, não obstante não elencar a taxatividade dos contratos típicos, sendo antes um contrato atípico ou inominado, mas que configura as características do contrato típico que lhe subjaz, no caso, o contrato de trespasse,

KK- – Ou seja, o contrato promessa tem de conter os elementos essenciais do negócio definitivo, isto é, o contrato de trespasse, o que no presente caso acontece.

LL- – Assim sendo, com este contrato promessa ficou consignado que pela transmissão da propriedade do estabelecimento comercial da aqui Recorrente embargada para o Recorrido, também embargante, teria que ser pago um preço de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), em duas prestações, uma de 20.000,00 € (vinte mil euros) e outra de 5.000,00 € (cinco mil euros).

MM- – Com datas definidas e consideradas essenciais por ambas as partes, a data da outorga do contrato promessa, 6 de Outubro de 2006, para a primeira prestação, e 1 de Dezembro de 2006, data em que o restante do preço (5.000,00 €) teria que ser liquidado.

NN-– Ora, a partir do momento em que o contrato promessa de trespasse de estabelecimento, apesar de atípico, isto, é um contrato que não é reconduzível a modelos ou tipos de contrato especialmente regulados, na definição do Prof. Rui Pinto Duarte, na sua obra, “A Interpretação dos Contratos”, Livraria Almedina, mas que integra as características e os efeitos do negócio definitivo (trespasse) e que enquanto documento particular assinado pelo devedor, ora executado, assume uma obrigação de pagamento, certa, líquida e exigível,

OO-– Tal confere validade substancial ao contrato e se o mesmo prevê prazos específicos para pagamento, está assinado pelo devedor, este nada fez para reagir contra uma possível falta de características do objecto do negócio (estabelecimento), podem ser títulos executivos e podem servir de base a execuções como a que está presentemente em curso.

PP- – Atente-se até que em causa está a liberdade de celebração dos contratos, como um corolário da liberdade contratual, prevista no art.º405.º do Código Civil, seja na vertente de liberdade de celebração do contrato em “stricto sensu”, seja na vertente de liberdade de fixação do conteúdo do mesmo contrato.

QQ- – Pelo que não se afigura à Recorrente curial que possa ser colocada em crise a validade deste contrato, quando o mesmo é válido, é legal, não é típico, mas sim atípico, bem entendido, contudo configura o preenchimento das características do negócio jurídico definitivo pretendido, para além de que está assinado pelo devedor.

RR-– Nem teve até à presente data qualquer sujeição a verificação da sua autenticidade, nunca a mesma foi questionada por quem quer que fosse, do mesmo modo que nem sequer foram desencadeados procedimentos que questionassem a sua eventual falsidade ou falsificação.

SS- – Pelo que, em face do exposto, se percebe que em qualquer circunstância, mesmo que a poder ser considerada uma eventual nulidade do título (o que não se concebe nem concede), jamais determinaria que a obrigação exequenda nele contida seja inexequível.

Apreciando, em termos prodrómicos, diga-se - função do disposto no art. 405º Código Civil (liberdade contratual) -, que a autonomia privada reconduz-se a "uma permissão genérica de produção de efeitos jurídicos", correspondendo a "um espaço de liberdade jurígena atribuída, pelo direito, às pessoas" (MENEZES CORDEIRO, Trat. Dir. Civ., Parte geral, I, 1, 2.ª ed., 2000, p. 217), ou "um processo de ordenação que faculta a livre constituição e modelação de relações jurídicas pelos sujeitos que nelas participam" (JOAQUIM SOUSA RIBEIRO, O problema do contrato, p. 21).

Naturalmente que, sendo o princípio da liberdade contratual apanágio do direito das obrigações, e as partes livres de celebrar ou não os acordos que bem entenderem, devem fazê-lo, nos termos dos arts. 405.° e 227.º, n.º 1, do CC, com respeito dos deveres de protecção, informação e lealdade (Cf. Ac. RL, 29-10-1998: CJ, 1998,4.º-132).

Com este alcance, refira-se que, muito embora a qualificação dum negócio jurídico não se confunda com a sua interpretação, há uma relação estreita entre as duas operações, pois, para qualificar um determinado negócio, atribuir-lhe um nomen juris impõe-se, antes do mais, fixar-lhe o seu conteúdo, definir o sentido da declaração ou declarações negociais, ou seja, interpretá-lo.

São elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar, e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio.

Na interpretação, também se atende à qualificação dada pelas partes, mas não decisivamente. A final, só relevará se estiver de acordo com o conteúdo do negócio (Cf. Ac. RE, 13-1-2000: CJ, 2000, 1.º-264).

-

Circunstancialmente - face à matéria de facto considerada provada, em decisório -, configura-se como incontroverso e incontrovertível o que, aí, em decisório sai firmado e se reconduz a:

«No caso concreto, foi dado à execução um documento denominado “contrato promessa de trespasse” e que configura mero documento particular, com data de 06/10/2006, podendo, em abstracto, configurar título executivo, se verificados os requisitos postos no anterior art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Tendo presente a denominação dada ao documento pelas partes contratantes, importa salientar, por um lado, que o contrato-promessa é uma convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, à qual são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma, e as que, por sua razão de ser, se não devam considerar extensivas ao contrato-promessa (art. 410.º, n.º 1, do CC). Se a referida convenção visar a celebração de contrato para o qual a lei exija documento - autêntico ou particular - só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula, ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral (art. 410.º, n.º 2, do CC). Por outro lado, cabe salientar que o contrato de trespasse, em regra, “é aquele por via do qual uma pessoa transmite a outra, em regra mediante um preço, determinado estabelecimento, integrante de instalações, utensílios e outros elementos corpóreos ou incorpóreos” – cfr. Ac. do STJ de 17/05/2007, disponível em www.dgsi.pt.

Analisado o documento dado à execução quanto ao seu clausulado, entende-se que o mesmo, em rigor, produziu todos os efeitos relevantes do trespasse no momento da sua celebração. Com efeito, embora as partes aludam à outorga de um contrato de trespasse (cláusula 9.ª), o certo é que o denominado “contrato-promessa” opera ou constitui, por si só, a transmissão do estabelecimento identificado e a obrigação de pagamento do respectivo preço (cfr., nomeadamente, as cláusulas 2.ª, 3.ª e 7.ª).

Neste contexto, afigura-se que a qualificação do “contrato” não pode ser encarada linearmente, no sentido do mesmo constituir efectivamente um “contrato-promessa” na acepção legal. Com efeito, tendo em conta os critérios postos no art. 236.º do CC (nada mais foi concretamente invocado pelas partes quanto à vontade negocial), o “contrato-promessa” celebrado entre as partes não tem verdadeiramente como objecto uma promessa do contrato definitivo, antes acaba por produzir e esgotar todos os efeitos associados ao trespasse».

Do mesmo modo, se não pode arredar o que aí se destaca quanto à circunstância de:

«(…) no caso concreto, estar em causa, primeiramente, ainda que tal assim não tenha sido configurado, a inexistência de título executivo por invalidade do “contrato” em virtude da falta da menção ao alvará de licença ou de autorização de utilização, visto estar em causa a transmissão de um estabelecimento de restauração e bebidas, atenta a actividade de snack-bar e café, conforme consta no contrato e está assumido pelas partes, ou seja, estabelecimento que presta serviços de alimentação e de bebidas/cafetaria – art. 1.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 168/97, de 04/07, na redacção do DL n.º 57/2002, de 11/03, e arts. 1.º e 2.º do DR n.º 38/97, de 25/09, na redacção do DR n.º 4/99, de 01/04, todos vigentes à data da celebração do “contrato” dado à execução e que se têm por aplicáveis (art. 12.º do CC), pelo menos para efeitos de determinar a validade do “contrato” no contexto da exequibilidade.

Dispunha o art. 14.º, n.º 2, do DL n.º 168/97, de 04/07, vigente à data, que a existência de alvará de licença ou de autorização de utilização para serviços de restauração ou de bebidas concedido ao abrigo do presente diploma, ou a existência da autorização de abertura no caso dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas existentes à data da entrada em vigor do presente diploma, ou ainda a abertura dos estabelecimentos com base num deferimento tácito do pedido de emissão do alvará de licença ou de autorização para serviços de restauração ou de bebidas deve ser obrigatoriamente mencionado nos contratos de transmissão ou nos contratos-promessa de transmissão, sob qualquer forma jurídica, relativos a estabelecimentos ou a imóveis ou suas fracções onde estejam instalados estabelecimentos de restauração ou de bebidas, que venham a ser celebrados em data posterior à entrada em vigor do presente diploma, sob pena de nulidade dos mesmos».

Assim acontecendo, também se revela de adequação o se haver entendido que:

«(…) o mesmo é omisso quanto à existência do dito alvará de licença ou de autorização (ou outra hipótese), nos termos previstos no aludido normativo, isto independentemente de saber se o alvará existia ou não efectivamente (a este respeito, nota-se que o executado alega que inexistia tal alvará, ao passo que a exequente, curiosamente ou não, se limita a afirmar que não foi demonstrada a inexistência, sem afirmar expressamente que existia o alvará, nomeadamente identificando-o ou fornecendo quaisquer outros elementos relevantes a esse respeito).

Nas palavras do Ac. da RP de 20/06/2011, disponível em www.dgsi.pt,

“Há que distinguir entre licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (v.g., habitação, comércio, profissão liberal, etc.) e a licença de utilização para o exercício de qualquer espécie daquele género (farmácia, consultório médico, restaurante, etc.)”, sendo que a primeira é relativa ao “licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização e conciliá-lo com os direitos dos restantes condóminos e com a própria estrutura e configuração do edifício e suas acessibilidades” (e resulta, em regra, do título constitutivo da propriedade horizontal).

(…)

A falta da menção obrigatória exigida tem essa dimensão pública que lhe confere o carácter de nulidade pura ou típica, não sendo sequer uma nulidade atípica que esteja apenas e só na disponibilidade das partes (…)».

O que, tudo, traveja que:

«(…) o reconhecimento da nulidade do “contrato”, em sede da presente oposição à execução (embargos de executado), implica a destruição da eficácia de tal “contrato” enquanto aparente título executivo para obter o pagamento do “preço” peticionado pela exequente, mas não originando a extracção de quaisquer outras consequências resultantes dessa nulidade, por extravasarem o âmbito e o objecto da oposição, na qual não pode ocorrer a condenação de qualquer partes (v.g., restituição de tudo o que tiver sido prestado nos termos do art. 289.º, n.º 1, do CC, ou outras eventuais consequências ao abrigo de outros institutos), se for caso disso, até porque esses eventuais direitos não se encontram devidamente definidos no documento em todos os seus contornos e pressupostos, com a segurança jurídica necessária, sendo certo que a execução foi instaurada com base no “contrato”, afigurando-se inadmissível que possa ser convolada para qualquer outro efeito por via da declaração de nulidade (art. 265.º do CPC), atenta a desconformidade entre o suposto título e a obrigação exequenda que o mesmo aparentemente incorporava (no caso específico da acção executiva tem vindo a ser entendido que a causa de pedir é a obrigação exequenda, ou seja, os factos constitutivos da obrigação exequenda – cfr., quanto a isto, o Ac. da RC de 09/09/2014, disponível em www.dgsi.pt)».

Assim se tornando inevitável concluir que:

«o reconhecimento da nulidade do “contrato” dado à execução implica a inexequibilidade desse mesmo “contrato” e não se relaciona com a matéria atinente a outras eventuais consequências materiais daquela nulidade, que apenas poderão ser eventualmente abordadas através dos meios declarativos comuns, a impulso das partes, e se verificados os pressupostos legais para o efeito (conforme se refere no Ac. da RC de 18/05/2010, disponível em www.dgsi.pt, “A oposição à execução tem unicamente por finalidade evitar o prosseguimento da acção executiva, no seu todo ou em parte, através de defesa que leve à extinção, total ou parcial, da mesma”).

Assim, verificada a falta de título executivo (por nulidade do “contrato”), deverá ser julgada procedente a presente oposição nessa exacta medida e, em consequência, declarada extinta a execução (art. 732.º, n.º 4, do CPC), ficando prejudicada a apreciação da demais matéria invocada pelo executado».

Em tais termos, pois, “como se salientou no Ac. do STJ de 10.12.13, na execução, a causa de pedir não é o próprio título executivo, mas os factos constitutivos da obrigação exequenda reflectidos naquele.

O título executivo terá de representar o acto jurídico pelo qual o executado reconhece uma obrigação para com o exequente.

Sugestiva e curiosamente o cit. Ac. do STJ de 19.2.09 expressa que “o título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro, mas o que está dentro dele, o direito ou a pretensão que é o seu conteúdo” (Cf. Ac. RC de 09-09-2014, Proc. nº 581/11.3TBFND-A.C1, Relator:   FRANCISCO CAETANO).

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O que, em tais termos, só consente apreciar, e como decorrência, pois, que a função primacial dos embargos de executado - tal como a da oposição à execução, que lhes sucedeu - não é a de dirimir um litígio entre as partes, em aspectos que possam extravasar o andamento e tramitação da acção executiva, mas apenas, como decorre do seu carácter incidental, resolver uma questão, substantiva ou adjectiva, na estrita medida em que esta se projecta no destino do processo de que os embargos são dependência: na verdade, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, visando a pronúncia que neles é feita, quer sobre o mérito, quer sobre matéria processual, servir exclusivamente as finalidades e os fins da execução (Cf. Ac. STJ. de 12.11.2009: Proc. 3910/05.5TVLSB-A.L1.S1.dgsi.Net). Exactamente, porque os embargos de executado ou a oposição à execução assumem a estrutura de contra acção declarativa, tendente a obstar aos efeitos da execução, por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação ou de excepção, regendo-se o ónus de prova pelo disposto no art. 342.º do Cód. Civil (Cf. Ac. STJ. de 25.3.2004: Proc. 04B954.dgsi.Net).

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É que, diversamente da contestação da acção declarativa, a oposição à execução, constituindo, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à acção executiva, toma o carácter duma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da acção que nele se baseia. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo (judicial ou não), cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal; e autores há que, levando mais longe a incidência da procedência da oposição no plano da exequibilidade, negam que ela tenha por objecto a apreciação da subsistência da obrigação titulada, afirmam que o seu fim é tão-só combater directamente a exequibilidade do título, mediante a declaração da inadmissibilidade da execução nele fundada, e consequentemente defendem a natureza constitutiva da sentença que a julgue procedente. Quando a oposição tem um fundamento processual, o seu objecto é, já não uma pretensão de acertamento negativo do direito exequendo, mas uma pretensão de acertamento, também negativo, da falta dum pressuposto processual, que pode ser o próprio título executivo, igualmente obstando ao prosseguimento da acção executiva, mediante o reconhecimento da sua inadmissibilidade (Cf. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma, 4ª Edição, 2004, pp. 188-189). Tal como, circunstancialmente, se verifica.

O determina responder negativamente àss questões formuladas em 1.

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Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº 7, NCPC), que:

1.

A autonomia privada reconduz-se a "uma permissão genérica de produção de efeitos jurídicos", correspondendo a "um espaço de liberdade jurígena atribuída, pelo direito, às pessoas", ou "um processo de ordenação que faculta a livre constituição e modelação de relações jurídicas pelos sujeitos que nelas participam".

2.

Com este alcance, refira-se que, muito embora a qualificação dum negócio jurídico não se confunda com a sua interpretação, há uma relação estreita entre as duas operações, pois, para qualificar um determinado negócio, atribuir-lhe um nomen juris impõe-se, antes do mais, fixar-lhe o seu conteúdo, definir o sentido da declaração ou declarações negociais, ou seja, interpretá-lo.

3.

São elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar, e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio. Na interpretação, também se atende à qualificação dada pelas partes, mas não decisivamente. A final, só relevará se estiver de acordo com o conteúdo do negócio.

4.

No caso concreto, foi dado à execução um documento denominado “contrato promessa de trespasse” e que configura mero documento particular, com data de 06/10/2006, podendo, em abstracto, configurar título executivo, se verificados os requisitos postos no anterior art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

5.

O contrato de trespasse, em regra, “é aquele por via do qual uma pessoa transmite a outra, em regra mediante um preço, determinado estabelecimento, integrante de instalações, utensílios e outros elementos corpóreos ou incorpóreos” – cfr. Ac. do STJ de 17/05/2007, disponível em www.dgsi.pt.

6.

No documento dado à execução quanto ao seu clausulado, entende-se que o mesmo, em rigor, produziu todos os efeitos relevantes do trespasse no momento da sua celebração. Com efeito, embora as partes aludam à outorga de um contrato de trespasse (cláusula 9.ª), o certo é que o denominado “contrato-promessa” opera ou constitui, por si só, a transmissão do estabelecimento identificado e a obrigação de pagamento do respectivo preço (cfr., nomeadamente, as cláusulas 2.ª, 3.ª e 7.ª).

7.

Neste contexto, a qualificação do “contrato” não pode ser encarada linearmente, no sentido do mesmo constituir efectivamente um “contrato-promessa” na acepção legal. Com efeito, tendo em conta os critérios postos no art. 236.º do CC (nada mais foi concretamente invocado pelas partes quanto à vontade negocial), o “contrato-promessa” celebrado entre as partes não tem verdadeiramente como objecto uma promessa do contrato definitivo, antes acaba por produzir e esgotar todos os efeitos associados ao trespasse.

8.

No caso concreto, estar em causa, primeiramente, ainda que tal assim não tenha sido configurado, a inexistência de título executivo por invalidade do “contrato” em virtude da falta da menção ao alvará de licença ou de autorização de utilização, visto estar em causa a transmissão de um estabelecimento de restauração e bebidas, atenta a actividade de snack-bar e café, conforme consta no contrato e está assumido pelas partes, ou seja, estabelecimento que presta serviços de alimentação e de bebidas/cafetaria – art. 1.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 168/97, de 04/07, na redacção do DL n.º 57/2002, de 11/03, e arts. 1.º e 2.º do DR n.º 38/97, de 25/09, na redacção do DR n.º 4/99, de 01/04, todos vigentes à data da celebração do “contrato” dado à execução e que se têm por aplicáveis (art. 12.º do CC), pelo menos para efeitos de determinar a validade do “contrato” no contexto da exequibilidade.

9.

Dispunha o art. 14.º, n.º 2, do DL n.º 168/97, de 04/07, vigente à data, que a existência de alvará de licença ou de autorização de utilização para serviços de restauração ou de bebidas concedido ao abrigo do presente diploma, ou a existência da autorização de abertura no caso dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas existentes à data da entrada em vigor do presente diploma, ou ainda a abertura dos estabelecimentos com base num deferimento tácito do pedido de emissão do alvará de licença ou de autorização para serviços de restauração ou de bebidas deve ser obrigatoriamente mencionado nos contratos de transmissão ou nos contratos-promessa de transmissão, sob qualquer forma jurídica, relativos a estabelecimentos ou a imóveis ou suas fracções onde estejam instalados estabelecimentos de restauração ou de bebidas, que venham a ser celebrados em data posterior à entrada em vigor do presente diploma, sob pena de nulidade dos mesmos».

10.

A falta da menção obrigatória exigida tem essa dimensão pública que lhe confere o carácter de nulidade pura ou típica, não sendo sequer uma nulidade atípica que esteja apenas e só na disponibilidade das partes (…)».

11.

A função primacial dos embargos de executado - tal como a da oposição à execução, que lhes sucedeu - não é a de dirimir um litígio entre as partes, em aspectos que possam extravasar o andamento e tramitação da acção executiva, mas apenas, como decorre do seu carácter incidental, resolver uma questão, substantiva ou adjectiva, na estrita medida em que esta se projecta no destino do processo de que os embargos são dependência: na verdade, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, visando a pronúncia que neles é feita, quer sobre o mérito, quer sobre matéria processual, servir exclusivamente as finalidades e os fins da execução.

12.

Exactamente, porque os embargos de executado ou a oposição à execução assumem a estrutura de contra acção declarativa, tendente a obstar aos efeitos da execução, por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação ou de excepção, regendo-se o ónus de prova pelo disposto no art. 342.º do Cód. Civil.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela exequente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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Coimbra,  26    , Novembro de 2019.

António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Moreira do Carmo