Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3005/22.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
MANIFESTA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR
USO ABUSIVO DO PEAP
NÃO HOMOLOGAÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 222.º-A, 17.º-B, E 215.º, APLICÁVEL POR REMISSÃO DO ARTIGO 222.º-F, N.º 5, TODOS DO CIRE.
Sumário: I – Só é permitido ao requerente aceder ao processo especial para acordo de pagamento (PEAP) caso se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente.

II – O PEAP não se destina a pessoas que já se encontravam, manifestamente, insolventes aquando da instauração do respetivo processo, caso em que se impõe não homologar o acordo de pagamento.

Decisão Texto Integral:
Relator: Arlindo Oliveira
1.º Adjunto: Emídio Francisco Santos
2.º Adjunta: Catarina Gonçalves

            Processo n.º 3005/22.7T8LRA.C1 – Apelação

            Comarca de ..., ..., Juízo de Comércio

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA e BB, casados um com o outro no regime da comunhão de adquiridos, residentes na Estrada Principal, nº 1036, ..., ... ..., instauraram o presente processo especial para Acordo de Pagamento, nos termos do disposto no art. 222º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE).

Foi nomeada administradora judicial provisória, nos termos do disposto no art.222º-C, nº 4, do CIRE.

A Exmª Sra. Administradora Judicial Provisória juntou lista provisória de créditos, a qual foi publicada em 17/08/2022. Todavia, a 18/08/2022 foi junta lista provisória de créditos rectificada, tendo sido admitidas as rectificações aí constantes por despacho de 22/08/2022.

Tal lista foi objecto de uma impugnação, a qual foi julgada improcedente por decisão proferida a 05/10/2022, decisão essa que não foi objecto de recurso, pelo que já transitou em julgado, tendo a referida lista se tornado definitiva.

Por reqº de 24/11/2022 foi apresentado pelos Devedores o acordo/plano de pagamento.

Através do anúncio publicado no dia 25/11/2022 deu-se conhecimento de que foram concluídas as negociações de acordo de pagamento sem observância do disposto no nº 1 do artº 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo foi junto ao processo, correndo desde tal publicação, o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do artº 222º-F do CIRE).

Tal prazo terminou, portanto, no dia 05/12/2022.

A Exmª Sra. Administradora Judicial Provisória veio comunicar o resultado da votação do acordo de pagamento.

Dos sentidos de voto elencados pela Exmª Sra. Administradora Judicial Provisória, conjugados com a lista definitiva de credores, conclui-se que:

Num total de créditos constantes da lista definitiva de € 65.817.604,62:

- votaram credores representando 76,184% dos créditos com direito de voto;

- votaram favoravelmente credores representando 57,689% dos créditos com direito de voto;

- votaram desfavoravelmente credores representando 18,495% dos créditos com direito de voto.

No caso em apreço, o acordo obteve o voto favorável de credores cujos créditos representam mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.

Por outro lado, não existem créditos subordinados.

Assim, o acordo de pagamento encontra-se aprovado.

*

Através do requerimento de 05/12/2022, o credor Banco 1..., SA veio requerer a não homologação do acordo de pagamento alegando, muito em suma e para além do mais, a violação não negligenciável de regras de conteúdo que obstam à sua homologação (mormente a manifesta situação de insolvência dos devedores, que se traduz em uso abusivo do PEAP; omissões/contradições e ambiguidades do acordo), bem como que a sua situação ao abrigo do plano é menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

*

Através do requerimento de 06/12/2022, veio o Digno Magistrado do MºPº, em representação da credora Fazenda Nacional, requerer a não homologação do acordo de pagamento, invocando o incumprimento de normas tributárias e a inviabilidade de tal acordo, em face dos baixos rendimentos dos devedores.

Caso assim não se entenda, requereu que tal acordo seja declarado ineficaz relativamente à Fazenda Nacional.

*

Os devedores responderam a tais requerimentos nos termos constantes nos requerimentos entrados em 12/12/2022, pugnando pela homologação do plano/acordo de pagamento.

*

Através do requerimento de 14/12/2022, veio o credor Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de ... requerer a não homologação do acordo de pagamento, invocando o incumprimento de normas tributárias.

Em caso de homologação, requereu que tal acordo seja considerado ineficaz em relação aos créditos que lhe foram reconhecidos.

*

A Exmª Administradora Judicial Provisória pronunciou-se sobre os referidos requerimentos de não homologação, nos termos constantes no requerimento entrado em 19/12/2022, pugnando pela homologação do plano/acordo de pagamento.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz, foi proferida a decisão de fl.s 229 a 244 v.º (aqui recorrida), na qual, a final, se recusou a  homologação do plano apresentado pelos requerentes, ficando as custas a seu cargo.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso, os requerentes/devedores AA e BB, o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 266), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

Direito ao PEAP

A. Os Devedores (pessoas singulares) têm direito a apresentar um PEAP e não estão obrigados a apresentar-se à insolvência, (nº2 do artigo 18º CIRE);

B. Este direito foi avaliado, ponderado e reconhecido na Douta Decisão de abertura do PEAP (de 21-7-2022), proferida pela Douta Magistrada que, após compulsar toda a documentação legalmente exigível, reconheceu e confirmou o direito destes a acederem ao PEAP. Tal documentação era e ainda é a mesma, não existindo alterações a esta durante o PEAP;

C. O conteúdo dispositivo da Douta Sentença proferida, de abertura do PEAP, comporta (e bem) duas dimensões, a saber:

• A declaração de abertura propriamente dita (Artigo 38º nº2 do CIRE);

• A Nomeação do AJP – (Artigo 222º-C nº4 do CIRE);

D. Tendo sido afixados os dois Editais refletindo as duas distintas decisões;

E. Pelo que a Douta Sentença (Refª. 101017452), quanto à admissibilidade do PEAP, já transitou em Julgado há muito (mais de três meses), pelo que não faz qualquer sentido voltar a apreciar o tema, pois que o mesmo se encontra resolvido e consolidado;

F. E esta Douta Decisão, considerando estas duas vertentes, foi precedida da aferição plena e atenta do direito dos devedores a apresentar um PEAP, não lhe reconhecendo qualquer impedimento de natureza legal substantiva ou documental;

G. Direito aí ponderado e reconhecido pela Douta Magistrada que, após compulsar, analisar e sindicar toda a documentação legalmente exigível, reconheceu e confirmou o direito dos Devedores a acederem ao PEAP;

--*--

- Do prejuízo do Credor:

H. O Banco 1... não fica prejudicado com o acordo de pagamentos aprovado ao contrário do que se afirma na Douta Sentença ora em recurso.

I. O Banco 1... invoca esta questão, sem cumprir o seu ónus de apresentar a respectiva prova,

J. Os devedores, ao contrário do Banco 1..., juntou aos autos prova bastante em como o acordo de pagamentos é mais vantajoso para os credores (incluindo o Banco 1...) do que o cenário de

liquidação em processo de insolvência plena.

K. O Douto Tribunal a quo, conclui, no exercício do seu competente escrutínio, que existe um suposto prejuízo para o Banco 1.... Conclusão baseada em pressupostos errados.

L. Já que o Acordo preconiza a venda de um imóvel “casa da ...” sobre o qual o Banco 1... não detém hipoteca. De facto as 2 hipotecas que garantem 2 dos créditos do Banco 1... incidem sobre imóveis no ....

M. Portanto os termos do acordo de pagamentos não afetam assim a as receitas do previsto rateio nem as garantias reais existentes do Banco 1..., sobre bens de terceiros.

N. Em resumo não se pode concluir nem considerar plausível que, em confronto com o Artigo 216º do CIRE, se possa proclamar que o Credor Banco 1... fique pior com o Acordo de Pagamentos do que com a insolvência, ao contrário do que se afirma e conclui na Douta Sentença a quo ora em recurso (pág.ª 31,).

Pelo que, nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente Recurso ser admitido e, por consequência:

Ser revogada a Douta Sentença de 28-12-2022 (Refª 102337206) que contém a Decisão de não homologação do Acordo de Pagamentos PEAP aprovado pelos credores, com as consequências processuais daí decorrentes;

E, concomitantemente:

Que o Acordo de Pagamentos PEAP já aprovado pelos credores seja homologado tal como está, e portanto oponível a todos os Credores detentores de créditos alterados, nos termos legais, assim se fazendo a costumada justiça.

Contra-alegando, o recorrido Banco 1..., pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos na mesma expendidos, designadamente que os requerentes já se encontram numa situação de insolvência, pelo que não se verifica o primeiro dos pressupostos para recorrer ao PEAP e que nada receberá com o acordo proposto, uma vez que da venda do imóvel só será satisfeito o credor CC, que beneficia de hipoteca sobre o imóvel que se pretende vender e decorridos 5 anos, nada mais será pago, nem sequer se vislumbrando com que meios poderão ser pagos os créditos da AT e Segurança Social, dados os rendimentos auferidos pelos requerentes e respectivo património.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se o plano de pagamentos apresentado pelos requerentes não deve ser homologado, por os mesmos já se encontrarem actualmente insolventes; bem como por conter ambiguidades e contradições, dada a inexistência de rendimentos dos requerentes para solver a parte dos créditos que se propõem pagar e; ainda, porque coloca o credor Banco 1... e outros, numa situação mais desfavorável decorrente da aprovação do plano.

É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:

1. Por requerimento apresentado em juízo a 18/07/2022, os aqui Devedores apresentaram-se a processo especial para acordo de pagamento.

2. Foi nomeada administradora judicial provisória, nos termos do disposto no art.222º-C, nº 4, do CIRE.

3. A Exmª Sra. Administradora Judicial Provisória juntou lista provisória de créditos, a qual foi publicada em 17/08/2022.

4. Todavia, a 18/08/2022 foi junta lista provisória de créditos rectificada, tendo sido admitidas as rectificações aí constantes por despacho de 22/08/2022.

5. Tal lista foi objecto de uma impugnação, a qual foi julgada improcedente por decisão proferida a 05/10/2022, decisão essa que não foi objecto de recurso, pelo que já transitou em julgado, tendo a referida lista se tornado definitiva.

6. Em tal lista foram reconhecidos os seguintes créditos:

- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, o crédito comum de € 598 166,32 e o crédito garantido de € 257,32, o que perfaz o total de € 598.423,64;

- A... S.A., o crédito comum de € 203 802,10;

- CC, o crédito comum de € 37 964 395,00;

- B... S.A., o crédito comum de € 69 748,64;

- Banco 2... S.A., o crédito comum de € 12 252,46;

- Banco 3..., S.A., o crédito comum de € 451 435,83;

- Banco 4..., o crédito comum de € 687 129,99;

- Banco 5..., S.A., o crédito comum de € 83 098,31;

- Banco 6... S.A., o crédito comum de € 1 030 931,49;

- C... DAC, os créditos comuns de € 1 131 666,50, € 3 402 734,60 e de € 20 309,84;

- D..., SA, o crédito comum de € 341 168,64;

- INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P - CD ..., o crédito comum de € 5 028 696,59;

- DD, o crédito comum de € 5 000,00;

- E..., SARL, o crédito comum de € 4 778 576,09;

- Banco 1... S,A., o crédito comum de € 1 545 876,72;

- F..., S.A., o crédito comum de € 3 313 668,02;

- G... S.A., os créditos comuns de € 137 506,40, € 205 395,24 e de € 4 789 416,23;

- H...,S.A., o crédito comum de € 16 372,29;

No total de € 65.817.604,62.

7. Por reqº de 24/11/2022 foi apresentado pelos Devedores o acordo/plano de pagamento.

8. Através do anúncio publicado no dia 25/11/2022 deu-se conhecimento de que foram concluídas as negociações de acordo de pagamento sem observância do disposto no nº 1 do artº 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo foi junto ao processo, correndo desde tal publicação, o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do artº 222º-F do CIRE).

9. O plano/acordo de pagamento foi aprovado pela maioria dos credores.

10. Do plano/acordo de pagamento apresentado pelos devedores, e cujo respetivo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta, para além do mais, o seguinte:

«(…)

E. Credores não afectados por este Plano:

Os créditos privilegiados do Estado, AT e SS, não são afectados por este Plano de pagamentos;

Porque os Créditos do Estado regem-se por distintos normativos que, nos termos do Artigo 30º, nº3 da LGT, se sobrepõem (mesmo) às leis especiais como o CIRE;

--*--

F. As condições adaptadas ao Processo Especial para Acordo de Pagamentos, incluindo, em especial, as medidas de reestruturação do passivo propostas:

Resumidamente, o pagamento do passivo será adaptado aos reais rendimentos dos Devedores, suplementado com a entrega e venda de património sendo que, com o produto do mesmo, se fará o rateio pelos credores;

--*--

I. Condições especiais para cada classe de credores:

a. Trabalhadores -

Não se aplica, pois não existem.

b. Estado, AT e Segurança Social -

As responsabilidades subsidiárias, por factos tributários anteriores à aprovação deste Plano, serão regularizadas pelo devedor principal nas condições legal e habitualmente estabelecidas pela AT e pela SS, ou pelos eventualmente revertidos nos termos a seguir indicados:

Diferimento do pagamento dos créditos, a apurar para com a AT e a SS, que subsistam a final, para logo após o decurso do prazo e do tempo processual destinado à impugnação e à oposição sobre esses eventuais créditos;

Nessa altura, aplicar-se, nos termos legais, o disposto no CPPT e LGT;

Estes credores NÃO serão assim afetados por este Plano de pagamentos, pois o seu pagamento será feito nos termos próprios do CPPT e LGT.

*

c. Créditos Garantidos afetados pelo plano:

Não existem créditos com garantias que incidam sobre bens dos Devedores, com excepção dos créditos com garantia sobre o imóvel, propriedade da Requerente Mulher.

Tendo em vista, a satisfação dos interesses dos credores, propõe-se que o imóvel (matriz predial urbana nº ...85 da União de Freguesias ... e ...) seja alienado pela AJP no prazo de dois anos, nos termos e condições do Artigo 164º do CIRE;

O Produto desta venda deverá ser rateado de acordo com as percentagens que constam e estão definidas na lista definitiva de créditos e credores, segundo os procedimentos do CIRE;

*

d. Créditos comuns por força de avales prestados:

Estes créditos não beneficiam de qualquer garantia real sobre os bens dos Devedores,

Estes credores ratearão entre si os rendimentos disponíveis dos devedores durante 5 anos, na exacta proporção das percentagens atribuídas a cada credor na lista definitiva de créditos e credores, valores a calcular pela AJP.

Os rendimentos que os Devedores disponibilizam para os Credores são todos os rendimentos auferidos acima do salário mínimo, durante este período, e sujeito às atualizações legais nas reformas e no salário mínimo.

Por um princípio de equidade, e para salvaguarda dos interesses dos credores e efectiva transparência e independência, fica convencionado que a actual AJP assumirá funções de fiduciária, com o cariz e a natureza das funções previstas e descritas no CIRE, a expensas dos devedores.

e. Créditos subordinados:

Desconhecem-se, não foram reclamados. Na eventualidade de existirem, os mesmos serão perdoados.

*

f. Outros credores, NÃO afectados pelo Plano:

Todos os credores por responsabilidades anteriores à nomeação do AJP serão afetados por este PER, com a exceção dos créditos detidos pelo Estado - AT e SS (regime legal específico).

*

g. Outros credores, que NÃO reclamaram créditos:

Salvo declaração judicial declarativa, os credores que não reclamaram créditos e que não foram reconhecidos, aplicar-se-á o regime do Artigo 128º, nº5 do CIRE, ex-vi Artigo 222º-A, nº3 PEAP-CIRE.

--*--

II. A duração proposta das medidas de reestruturação propostas:

Este Plano de pagamentos durará 5 anos, terminando quaisquer pagamentos nessa data.

Estes pagamentos serão feitos mensalmente ao Fiduciário no dia 15 de cada mês;

A venda e o rateio de património a cargo da AJ deverão estar concluídos neste tempo;

--*--

III. As formas de informação e consulta dos representantes dos eventuais empregados;

Não aplicável neste PEAP, pois os devedores não têm empregados por sua conta.

--*--

IV. As consequências gerais relativamente ao emprego, tais como despedimentos, formas de trabalho a tempo reduzido ou similares;

Não é aplicável a um PEAP.

--*--

V. A situação reditícia dos Devedores, salários, vendas e outras receitas;

A Devedora aufere uma reforma mensal de 1.377 €;

O Devedor aufere um salário mensal de 705 €;

--*--

VI. Os fluxos financeiros dos devedores previstos para servir a dívida;

A Devedora continuará a receber a sua reforma do Estado e, com o que dela estiver disponível, nos termos legais, pagar o que aqui promete aos Credores;

O Devedor continuará a exercer a sua actividade de Gestor e pagar o que aqui promete aos credores [com o que da remuneração estiver disponível, nos termos legais);

(…)».

11. Os devedores declararam nos autos que apenas a devedora é proprietária dum bem imóvel, mais concretamente o prédio urbano, composto de casa de rés do chão para habitação e logradouro, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...03, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...85 – Freguesia ..., com o valor patrimonial tributário de € 45.969,35 (determinado no ano 2021), sobre o qual recaem os seguintes ónus:

- Hipoteca Voluntária constituída a 2004/05/31, a favor da Banco 5..., S.A., com o montante máximo assegurado de € 187.937,50, transmitida à I..., S.A. por registo efectuado a 2019/12/31, sendo que o crédito respectivo pertence actualmente ao credor CC;

- Penhora constituída a 2017/06/12, a favor da F..., SA, com a quantia exequenda de € 2.674.377,36;

- Penhora constituída a 2018/05/28, a favor do Banco 6..., SA, com a quantia exequenda de € 738.145,04;

- Penhora constituída a 2019/02/18, a favor do Banco 6..., SA, com a quantia exequenda de € 83.383,47.

12. O imóvel referido no facto anterior foi dado de arrendamento pelos devedores a terceira pessoa, mediante o pagamento, por esta, da renda mensal de € 80,00.

13. O credor Banco 1..., SA reclamou diversos créditos, no total de 1.545.876,72€, sendo que dois deles são emergentes de contratos de mútuos com hipotecas, nos valores de € 170 379,61 e de € 41 574,40.

14. Esses dois créditos de mútuos estão garantidos por duas hipotecas constituídas pelos ora Devedores sobre o prédio urbano sito em ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...39, freguesia ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artº ...05, registadas sob as aps. ...6 e ...7 de 2006/12/07, onde os devedores residem.

15. Aquando da constituição de tais hipotecas os Devedores tinham registado a seu favor a aquisição do prédio aludido no facto anterior, através da ap. ...0 de 1991/11/26 e da ap. ...3 de 1992/04/03.

16. Da informação predial actualizada respeitante ao imóvel referido nos factos anteriores consta, para além do mais, o seguinte:

• Pela ap. ...73 de 2010/10/04 foi registada uma acção intentada contra os Devedores por EE e FF com a seguinte menção quanto ao pedido: “Sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos réus, a que estão adstritos por contrato-promessa de compra e venda celebrado com os autores”;

• Registo de acção esse convertido em definitivo pela Ap. ...75 de 2022/06/07 com a seguinte menção: “DECISÃO FINAL: transmitida a NUA PROPRIEDADE para os autores (sujeitos activos), e reservado o DIREITO DE USO E HABITAÇÃO para os réus (sujeitos passivos)”;

• Nesse mesmo dia, foi registado um averbamento a essa Ap. ...75 com a seguinte menção: “COMPLETADO O AVERBAMENTO: mantêm-se em vigor as hipotecas voluntárias registadas pelas inscrições correspondentes à Ap. ...6 de 2006/12/07 e à Ap. ...7 de 2006/12/07 que oneram o prédio, comprometendo-se os réus (sujeitos passivos) a liquidar os empréstimos que estão na origem dessas mesmas hipotecas.”

• Em 2022/06/23 foi registada nova aquisição por “Compra”, sendo a actual proprietária a sociedade “J..., LDA”.

17. Encontra-se pendente neste Juízo-Juiz ..., contra os aqui Devedores, o processo de insolvência nº 2941/22...., instaurado por A..., S.A. a 16/06/2022, o qual se encontra suspenso a aguardar o desfecho do presente PEAP.

18. Para além do processo referido no facto anterior, os Devedores relacionaram os seguintes processos que correm contra si:

_ Diversos processos de execução fiscal da AT, por reversão de tributos das suas empresas.

_ Diversos processos do IGFSS a correr na forma de execução fiscal por reversão de tributos das suas empresas.

_ PROC. 1269/20.... _ Juízo de Execução ... _ Juiz ... _ Exequente: B... SA/Executados K... e avalistas, Valor da Execução: _ 68.538,51 [_70.875,41]

_ PROC. 295/21... _ Juízo de Execução ... _ Juiz ... _ Exequente: A... /Executados: 20X20Q e avalistas: Valor da execução: _ 165.354,79

_ PROC. 296/21.... _ Juízo de Execução ... _ Juiz ... - _ Exequente: A.../Executados: K... e avalistas Valor da execução: _ 26.302,30

_ PROC. 3630/11.... _ ... _ Instância Central _ ... Secção de Execução _ J1 _Exequente: ... _ L... S.A./ Executados: Avalistas da M... Lda; Valor da execução: _ 259.538,63

_ PROC. 1339/16.... _ ... _ Juízo de Execução _ Juiz ... _ Exequente: Banco 6...: Avalistas da N... Lda/O... Lda e M... Lda; Valor da Execução: _ 991.473,00

_ PROC. 3080/11.... _ ... _ ... JUÍZO CÍVEL _ Exequente: P... S.A./ Executado AA Valor da Execução: _ 486.572,44

_ PROC. 230/21.... - Juízo de Execução ... _ Juiz ... _ Exequente: Banco 4.../ Executados: N... Lda/O... Lda e Avalistas Valor da Execução: _ 630.565,31.

Se o plano de pagamentos apresentado pelos requerentes não deve ser homologado, por os mesmos já se encontrarem actualmente insolventes; bem como por conter ambiguidades e contradições, dada a inexistência de rendimentos dos requerentes para solver a parte dos créditos que se propõem pagar e; ainda, porque coloca o credor Banco 1... e outros, numa situação mais desfavorável decorrente da aprovação do plano.

Como resulta do relatório que antecede, os recorrentes entendem que o acordo de pagamento apresentado e aprovado, deve ser judicialmente homologado, porque não são obrigados a apresentarem-se à insolvência, “tendo direito ao PEAP”, que já foi avaliado liminarmente, aquando da decisão de abertura do PEAP, pelo que não pode, agora, de novo, ser questionado; e porque inexiste prejuízo do credor reclamante decorrente da aprovação do plano.

Ao invés, como referido, na sentença recorrida, não se homologou o acordo de pagamentos, com o fundamento em os requerentes já se encontrarem insolventes e porque o acordo de pagamento contém ambiguidades relevantes e redunda em prejuízo para o credor Banco 1..., que nada iria receber.

É indubitável que, no âmbito de uma situação de insolvência ou pré-insolvência, nos termos do disposto no artigo 194.º do CIRE, se consagra o princípio da igualdade entre credores, ali se consagrando no seu n.º 1, a regra de que “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”, acrescentando-se no seu n.º 2 que o tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, que se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.

Nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE refere-se que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.

Assim, impõe-se uma abordagem do que se deve entender por “violação não negligenciável” (e, no reverso da situação, o que se entende por violação negligenciável) dos procedimentos ou de normas substantivas aplicáveis ao plano de recuperação/pagamento apresentado.

Por outro lado, importa não esquecer que a possibilidade de conformação do plano de recuperação aprovado pelos credores, limita, restringe, ou pode fazê-lo, a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano fixa em que medida se opera a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.

Isto porque, como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis no respectivo sítio do itij, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.

Dá-se relevância à recuperação da empresa, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora.

Como refere Menezes Cordeiro, in “Perspectivas Evolutivas do Direito da Insolvência”, Thémis, Ano XII, n.os 22/23, 2012, pág.s 40 a 42, como linha inovadora da citada reforma surge “a primazia da satisfação dos credores; a ampliação da autonomia privada dos credores; a simplificação do processo … a recuperação surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente.”.         

É no âmbito dos poderes de conformação do plano por parte da maioria dos credores de uma empresa em estado de pré-insolvência que surge a possibilidade de, nos termos do disposto no artigo 196.º do CIRE, lançar mão das (ou alguma (s)) providências nele referidas, designadamente o perdão ou redução do valor dos créditos, de capital ou de juros; condicionamento de reembolso de créditos; modificação de prazos de vencimento e taxas de juros; constituição de garantias e cessão de bens aos credores e outras ali não previstas, uma vez que, cf. seu n.º 1, se refere que “O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências …”, o que, fora de dúvidas faz transparecer a ideia de que será possível usar outras providências, para além das ali expressamente indicadas, desde que contidas e descritas no plano de recuperação.

Por idênticas razões, se permite, conforme estipulado no artigo 197.º do CIRE, desde que expressamente estatuído no plano de insolvência, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios que versem sobre bens da empresa pré-insolvente.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 25/03/14, acima já citado “A expressão “na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência”, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implica que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas al.s a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o Plano de Insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.”.

No mesmo sentido se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2013, a pág. 762 que ali defendem que “sendo o plano um meio alternativo de prossecução do interesse dos credores, que afasta o recurso à liquidação universal do património do devedor, ele deve conter, na plenitude, a regulação sucedânea dos interesses sob tutela, seja para evitar incertezas que sempre poderiam advir da concorrência de acordos ou estipulações estranhas ao instrumento geral, seja por razões de transparência, que aconselham que tudo fique devidamente explicitado para todos os credores poderem conhecer plenamente a situação e assim apreciá-la e valorá-la de modo a melhor fundamentarem a sua opção.

Adrede, está ainda a salvaguarda do princípio da igualdade.”.

Ali acrescentando a fl.s 762 e 763 que “Corolário fundamental do regime fixado no preceito é o de que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios existentes podem ser atingidos, desde que a afectação conste do plano, e nos termos nele especialmente previstos (…)

Naturalmente, a exigência da dispensa do acordo de cada um dos credores que perca garantias ou privilégios, bastando a observação da maioria comum, constitui um importante instrumento de facilitação da aprovação de planos de insolvência.”.

Daqui resulta que os credores, melhor dito, da sua maioria, dispõem de uma ampla autonomia quanto à forma como podem recuperar os seus créditos, ponderando a possibilidade de liquidação da empresa ou a sua viabilidade/recuperação, de acordo com o plano aprovado, sem que, como é óbvio, possam violar o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE.

Princípio, este que, como já referido, não tem um carácter absoluto, uma vez que na parte final do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE se estabelece a possibilidade de o mesmo poder ser derrogado por “razões objectivas”.

Derrogação, esta, que assenta em razões de proporcionalidade, princípio que, igualmente, goza de matriz constitucional, baseado em razões de adequação das medidas aos fins; necessidade ou exigibilidade das medidas e proporcionalidade em sentido estrito ou “justa medida”.

Como refere Jorge Reis Novais in “Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171, citado no Acórdão do STJ, em referência, “a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.”.

Por último, nesta sede, de considerar que, como defende Gisela Fonseca in “Direito da Insolvência – Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, Coimbra Editora, 2011, no texto “A Natureza do Plano de Insolvência”, o plano de insolvência tem uma natureza complexa, configurável como uma transacção, um verdadeiro contrato, que não exige, para ter eficácia, a concordância de todos os intervenientes, bastando para tal a aprovação ou consentimento de uma simples maioria deles.

Como ali se refere “A concretização do plano de insolvência permite aos credores a composição dos interesses emergentes do processo, de acordo com a sua própria vontade, revestindo-se, assim, de uma natureza negocial.”.

Esta ponderação de interesses, tendo em vista a salvaguarda do princípio da igualdade entre credores, violado este, no plano aprovado, deve conduzir a que o juiz recuse oficiosamente a aprovação do plano sempre que exista uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, conforme se acha disposto no artigo 215.º do CIRE, em que se enquadra a injustificada, desadequada, arbitrária ou injusta, violação do direito à igualdade entre credores, nos moldes em que este se encontra consagrado no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., de pág.s 826 a 828, devem considerar-se “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.

(…)

O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta.

(…)

Apenas cabe uma nota complementar para alertar não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por ele deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses.”.

Resta, assim, verificar se, ainda que aberto o processo de PEAP, podem ser sindicados os respectivos fundamentos, designadamente se o PEAP abrange as situações em que o requerente já esteja insolvente e se tal constitui violação não negligenciável, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 215.º do CIRE:

Efectivamente, de acordo com este preceito:

“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza …”.

Volvendo à invocada violação de regras relativas ao conteúdo do plano, importa ter em linha de conta que, de acordo com o disposto no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, deve ser recusada a homologação do plano, se tal lhe for solicitado por algum credor que se lhe haja oposto, se a sua situação ao abrigo de tal plano for previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Entendendo-se como normas relativas ao conteúdo, tanto as respeitantes à parte dispositiva do plano, como aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve apresentar – cf. autores e ob., por último, acima já, cit. a pág. 826.

No entanto, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág.s 832 e 833, para aferir de tal situação, importa proceder “a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.

Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele.

(…)

Ora, é exactamente a concretização da comparação que muitas vezes se revelará de extrema dificuldade exatamente porque importa avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.

(…)

Bem vistas as coisas, pois, o que substancialmente importa é a comparação entre a situação emergente da homologação do plano e a que interviria na sua ausência.”.

Descendo à situação em apreço, há a ter em conta o que se segue.

A figura do PEAP, surgiu com o DL n.º 79/2017, de 30 de Junho, que a regulamentou nos artigos 222.º-A e seg.s do CIRE.

De acordo com o artigo 222.º-A, o PEAP destina-se a permitir ao devedor singular que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes, acordo de pagamento.

Assim, desde logo, se terá de concluir que se o requerente do PEAP já se encontrar numa situação de insolvência actual, não se mostram reunidas as condições para recurso ao PEAP, uma vez que, como decorre do disposto no artigo 222.º-A, do CIRE, só se permite que o requerente aceda a tal figura, desde que respeite os pressupostos no mesmo enunciados: encontrar-se em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente.

A noção de situação económica difícil é fornecida pelo artigo 17.º-B, do CIRE, que a define como aquela em que o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.

Trata-se de conceito aberto e que pode abarcar um sem número de situações, para além das exemplificativamente referidas – neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª edição, pág.s 142/4.

Por outro lado, se o CIRE nos fornece as definições de situação económica difícil (no ora referido preceito) e de insolvência (artigo 3.º do CIRE), não nos indica o que deva entender-se por “insolvência meramente eminente”.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 03 de Novembro de 2015, Processo n.º 1690/14.2TJCBR.C1.S1, disponível no respectivo sítio do Itij, apoiando-se no que referem Ana Prata e Luís Martins, nas obras ali citadas, como tal “deve entender-se a situação em que o devedor está prestes a encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações ou o passivo está prestes a ser superior ao activo, mas ainda seja possível a recuperação”.

Como escreve Luís Martins in Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, 2.ª edição, pág. 20 “O conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito, impossibilidade de vender ativos, perdas empresariais, etc.). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas. A situação de insolvência iminente é conjeturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá vir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo (…)

Em bom rigor, estar numa situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, acaba por ser a mesma coisa e com a mesma abrangência. Se tem dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, acaba por se encontrar em situação de insolvência iminente. (…) Para concorrer ao PER o devedor não pode é estar numa situação de insolvência atual como consagrada no art. 3.º, situação que se verifica quando o devedor já se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, pois o PER é vedado a estes devedores”.

Por último e como decorre do disposto no artigo 3.º do CIRE, considera-se em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

 De assinalar, ainda que, embora algumas das considerações acima expostas (bem como outras que adiante se referirão) se relacionam com o PER, as mesmas são de transpor para o domínio do PEAP, uma vez que este tem um regime em tudo semelhante àquele – neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág.s 582/3.

Posto isto, vejamos, então, em que categoria se insere a situação dos requerentes: situação económica difícil; insolvência meramente eminente ou insolvência actual.

Ora, cf. resulta do item 6.º dos factos provados, foram reconhecidos créditos sobre os requerentes, no montante global de 65.817.604,23 € (sendo que o acordo de pagamento apenas contou com o voto a favor de um único credor, que detém 57,681% dos créditos, crédito privilegiado).

Por outro lado, como resulta do item 10.º dos factos provados, os requerentes indicam como meio de pagamento os valores resultantes da venda do imóvel identificado na al. I) deste item, cujo valor estimam em 50 mil euros (cf. fl.s 150), bem como os rendimentos que receberem, acima do salário mínimo, durante cinco anos, sendo que a requerente aufere uma reforma no montante de 1,377,00 € e o requerente o salário de 705,00 €, ambos mensais.

Como resulta dos itens 11.º e 12.º, a requerente é proprietária do imóvel nele identificado, com o VPT de 45.969,35 €, determinado em 2021, sobre o qual incide hipoteca voluntária, agora, a favor do credor que aprovou o plano e três penhoras, tendo sido dado de arrendamento a um terceiro, mediante a renda mensal de 80,00 €.

Relativamente ao imóvel identificado no item 14.º, pendem duas hipotecas e demais ónus descritos nos itens 15.º a 16.º.

Conforme item 17.º, encontra-se já pendente processo de insolvência movido por um dos credores contra os aqui requerentes, que se encontra a aguardar o desfecho dos presentes autos.

Por último, cf. item 18.º, pendiam já aquando da propositura dos presentes autos, contra os aqui requerentes as execuções ali melhor identificadas, de elevados montantes, como ali melhor resulta.

Assim, tendo por referência as noções de situação económica difícil, insolvência meramente iminente e insolvência actual, cotejando os rendimentos auferidos pelos requerentes e os avultados débitos, já vencidos, de que estes são sujeitos, tal como se considerou na sentença recorrida, tem de se concluir que os mesmos, já aquando da propositura dos presentes autos, se encontravam impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas; isto é, já se encontravam numa situação de insolvência actual e por conseguinte, impedidos de recorrer ao PEAP.

Face ao que, importa, agora, aferir das respectivas consequências a daí extrair, para efeitos da homologação do plano aprovado, designadamente se, o juiz, oficiosamente, com tal fundamento pode recusar a sua homologação, nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE, aplicável ex vi artigo 222.º-F, n.º 5, do CIRE.

 Não obstante o regime do PEAP limitar os casos em que permite a intervenção do juiz, tal não significa que o papel deste esteja limitado a uma mera “chancela” do desígnio das partes, designadamente dos credores, ainda que maioritários.

Especificamente, no que se refere à questão que nos ocupa, incumbe ao juiz homologar ou não o acordo de pagamento aprovado, nos termos previstos nos artigos 215.º e 216.º do CIRE, como decorre do disposto no seu artigo 222.º-F, n.º 5, nos moldes já acima explicitados.

Daqui decorre, ainda, que o facto de ter sido proferido despacho de abertura do PEAP, tal não limita, nem impossibilita o controlo jurisdicional a fim de se aquilatar da homologação ou não do acordo de pagamentos.

Assim o entendiam Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, no âmbito do PER, in PER, Comentários …, Coimbra Editora, 1.ª edição, a pág. 18, o que se mantém no âmbito do PEAP, que decalcou as normas do PER.

De resto, cf. artigo 222.º-C, n.º 5, do CIRE, o despacho de nomeação do AJP é irrecorrível, pelo que tal não pode afastar, nem afasta, a possibilidade de homologação ou recusa, a que se refere o artigo 222.º-F, n.º 5, do CIRE, o que ocorre em momento posterior ao da abertura do processo de PEAP.

Designadamente se o juiz verificar que o devedor se encontra numa situação de insolvência actual, não pode deixar de recusar a homologação do acordo, sob pena de permitir a violação não negligenciável, consistente na aprovação de um acordo de pagamento fora das condições previstas para o PEAP.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, 3.ª Edição, a pág. 139, no caso de se vir a concluir, já depois de proferido o despacho inicial de seguimento do PER, que não se verificam os respectivos pressupostos, o juiz “deve recusar a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por violação não negligenciável das regras procedimentais”.

Acrescentando, a pág. 783 que “… o plano consubstancia-se como um instrumento de autorregulamentação dos interesses dos credores, alternativo à liquidação universal do património do devedor, e por aqueles definido. Deve, por isso, ser aprovado em condições que, efetivamente, viabilizam a realização do fim a que se destina. Isto exclui que, mesmo por vontade dos credores, apurada na forma de lei, se constitua como um expediente de dilação ou suspensão do processo de insolvência ao serviço de objetivos que se não coadunem com o pensamento legislativo”.

O mesmo defende Maria do Rosário Epifânio, in O Processo Especial de Revitalização, pág. 24, quando ali refere que “o controlo dos pressupostos materiais será feito posteriormente (no despacho de homologação …”, se o não foi anteriormente.

Conclui-se do exposto que tal como anteriormente com o PER, também agora com o PEAP, este não é o meio adequado quando o requerente já se encontra numa situação de insolvência actual, devendo, em tal caso, se o processo chegar a essa fase, ser recusada a homologação do acordo de pagamento, sob pena de violação de norma não negligenciável, nos termos do citado artigo 215.º do CIRE.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 03/11/2015, já citado “… se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra efetivamente numa situação de insolvência atual, então o juiz não pode deixar de recusar oficiosamente a homologação, por isso que, nestas circunstâncias, estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o PER) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo.”.

Em suma, o PEAP não se destina a pessoas que, como é o caso, já se encontravam, manifestamente, insolventes aquando da instauração do PEAP, pelo que se impunha, como o fez a decisão recorrida, não homologar o acordo de pagamento.

Neste sentido, para além do já citado, o Acórdão do STJ, de 27/10/2016, Processo n.º 741/16.0T8LRA-A.C1.S1; o Acórdão deste Tribunal da Relação, de 13/11/2018, Processo n.º 1535/17.1T8CBR.C2 e o da Relação de Lisboa, de 23/3/2021, Processo n.º 6468/20.1T8SNT.L1-1, todos disponíveis no respectivo sítio do Itij.

Em face do que e sem necessidade de aferir da demais argumentação aduzida, mercê da inaplicabilidade à situação sub judice do PEAP, é de confirmar a decisão recorrida.

Consequentemente, é de manter a decisão recorrida, improcedendo o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 28 de Março de 2023.