Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
295/12.7T6AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: REGISTO DE NASCIMENTO
ACÇÃO DE REGISTO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 510º, Nº 1, AL. B), 668º E 715º DO CPC
Sumário: I – É substancialmente nula, por omissão de pronúncia, a decisão que se abstenha, infundadamente, de apreciar questão que foi colocada à sua atenção e cujo conhecimento se não mostre prejudicado pela resposta encontrada para qualquer outra.

II - Todavia, a nulidade da decisão é irrelevante nos casos em essa nulidade não constitua o único fundamento do recurso e este seja julgado de harmonia com o sistema da substituição.

III - O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O Ministério Público propôs, no Juízo de Família e Menores de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga, contra A… e C…, e F…, acção declarativa, com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo a declaração de que os dois primeiros não são pais do último, e a eliminação, do registo de nascimento deste, da filiação, materna e paterna, e da avoenga, e a declaração da perda, pelo mesmo, dos apelidos P….

Fundamentou esta pretensão no facto de F… não ser filho biológico de A… e C...

Os réus A… e C… alegaram, em contestação, designadamente que F… lhes foi entregue no dia do parto, que a mãe tinha hábitos alcoólicos e relacionamentos promíscuos por dinheiro e o pai é completamente desconhecido, que nunca, até à data, ninguém questionou a sua maternidade e paternidade, que F… foi criado sempre como seu filho, tendo vivido consigo e sustentado e educados unicamente por si, que F… sempre os tratou como pai e mãe, tendo para com eles um elo afectivo intenso, obedecendo-lhes e respeitando-os como filho, que sempre o amaram e consideraram como tal, formando uma família unida, que, por F… ter vindo viver para Aveiro vieram também para Aveiro para estarem próximos dele, que estão todos os dias com ele, com a companheira e com os seis netos, que têm o seu apelido, que a comunidade cigana em que se inserem sempre tomou por adquirido que F… é seu filho e que os filhos deste são seus netos e que o artº 1807 do Código Civil é inconstitucional por violação do artº 36 da Constituição de República Portuguesa.

O Ministério Público limitou-se a replicar que está em causa apenas a reposição da verdade biológica relativamente à maternidade/paternidade do réu F...

O Sr. Juiz de Direito, por despacho de 8 Janeiro de 2013, depois de observar, designadamente, a conclusividade do resultado obtido através do meio de prova científica apresentada, perícia de investigação da paternidade de perfil genético de ADN, ordenou a notificação dos réus partes para, no prazo de 10 dias, virem ao processo informar se aceitam que o Tribunal profira de imediato sentença decidindo a causa, sem necessidade de um julgamento, e declarou que o seu silêncio seria entendido como aceitação tácita.

 Como os réus contestantes nada disseram, e o Ministério Público declarou, quando o processo lhe foi continuado com vista, nada ter a opor, foi logo proferida, no despacho saneador, decisão que - sem dizer uma só palavra sobre a questão da inconstitucionalidade do artº 1807 do Código Civil, por violação do artº 36, nºs 1, 4 e 6 da Constituição da República Portuguesa - alegada na contestação – julgou a acção inteiramente procedente.

É esta sentença que os réus A… e C… impugnam no recurso - no qual pedem que se declare a nulidade desta sentença ou, subsidiaria ou alternativamente, a sua revogação – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

Na resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu, naturalmente, pela improcedência dele.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso especificou, na sentença, como fundamentos de facto:

1 – F…, aqui 3º Réu, foi registado na … como tendo nascido no dia 16/06/1981 na freguesia de …, sendo filho de C… e de A…, aqui 1º e 2º Réus.

2 – Tal assento de nascimento foi lavrado apenas com base em declarações do 2º Réu prestadas no dia 14/06/1982.

3 – No entanto, não foi a 1ª Ré quem deu à luz o 3º Réu, nem o 2º Réu é o pai biológico daquele.

4 – Com efeito, do resultado da perícia hematológica de investigação de parentesco realizada, prova científica, concluiu-se que o 1º e 2º Réus são excluídos como progenitores biológicos do 3º Réu.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[1].

Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, a inconstitucionalidade de uma norma, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente.

Sublinha-se justamente este ponto, em vista do facto de os recorrentes terem ampliado no recurso a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas pela decisão recorrida. Realmente, ao passo que, na contestação, se limitaram a invocar a inconstitucionalidade material do artº 1807 do Código Civil – que consagra a impropriamente chamada imprescritibilidade da acção de impugnação da maternidade – por violação do direito a constituir família, do princípio da não discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento e do direito à não privação dos filhos, consagrados nos nºs 1, 4 e 6 do artº 36 da Constituição - no recurso alegam que também o artº 1859 nº 1 do Código Civil merece, no seu ver, por ofensa daqueles mesmos direitos e princípio, um idêntico juízo de desvalor constitucional.

 Tratando-se, porém, de uma questão de conhecimento oficioso, ela constitui objecto admissível da impugnação.

Assim, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que esta Relação deve resolver são as de saber se a sentença impugnada deve ser declarada nula, por encontra ferida de nulidade substancial, resultante de error in procedendo decorrente de uma omissão de pronúncia, ou revogada, por ter incorrido num error in iudicando.

Efectivamente, de harmonia com a alegação dos recorrentes, a sentença impugnada, além de substancialmente nula por não se ter pronunciado sobre a questão da inconstitucionalidade do artº 1807 do Código Civil, está também ferida de um erro de julgamento por violação de uma norma que incide sobre as normas que nela foram aplicadas e que determina a invalidade destas últimas: no ver dos recorrentes, os artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil, na acepção ampla de que o M.P. dispõe de poder discricionário e não condicionado por razões de interesse social relevante para impugnar paternidades legalmente estabelecidas, são inconstitucionais por violação do artº 36 da C.R.P.

                 A resolução destes problemas vincula ao exame, leve mas minimamente estruturado, da causa de nulidade da decisão judicial representada pela omissão de pronúncia, das formas de estabelecimento e de impugnação da maternidade e da paternidade, e da compatibilidade ou conformidade das normas contidas nos artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil - na dimensão normativa de harmonia com a qual o Ministério Público dispõe da faculdade discricionária e ilimitada de impugnar a maternidade e a paternidade - com normas e princípios constitucionais.

                Como se notou já, o tribunal recorrido antecipou, logo para o despacho saneador, o conhecimento do mérito da causa, e limitou-se a julgar os factos relativos ao registo do nascimento do réu F… e à paternidade biológica deste. Há, portanto, também que ponderar os pressupostos da antecipação, logo para o despacho saneador, do conhecimento do objecto da causa.

                3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada.

Como é extraordinariamente comum, os recorrentes assacam à decisão recorrida o vício da nulidade substancial. Valor negativo que, no seu ver, radica nesta causa precisa: a omissão de pronúncia. Falta de pronúncia que, segundo os impugnantes decorre da circunstância de a sentença impugnada não ter apreciado a questão da inconstitucionalidade – material - do artº 1807 do Código Civil.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[2]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso, é nula a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte do CPC).

Face a este enunciado é bem de ver que a sentença impugnada se encontra, realmente, ferida com o vício grave da nulidade que os recorrentes lhe assacam.

Realmente, os recorrentes alegaram, logo no articulado em que deduziram a sua defesa, que se o artº 1807 do Código Civil permite ao M.P. sem qualquer razão atendível de interesse público, moral ou patrimonial, impugne a maternidade e dessa forma destrua, pelo menos institucionalmente uma família, então viola o artº 36 da C.R.P, e como tal deve ser declarado inconstitucional.

Todavia a sentença impugnada guardou sobre esta questão um absoluto e comprometedor silêncio.

É, portanto, patente que a sentença impugnada deixou, de todo, por resolver a questão sobre que tinha que se pronunciar, deixou, por inteiro, por decidir objecto que devia apreciar. É, portanto, irremissivelmente nula.

Simplesmente, a arguição de nulidade da sentença não leva em boa consideração o regime a que obedece, na Relação, o seu julgamento.

No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso.

Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum – como, aliás, sucede na espécie sujeita - é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação.

Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC)[3].

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

3.3. Formas de estabelecimento e de impugnação da maternidade e da paternidade.

É indiscutível que um dos princípios estruturantes de ordem pública do direito da filiação – que, contudo, não goza de dignidade constitucional - é o da verdade biológica[4].

O princípio da verdade biológica, que surge tradicionalmente referido contexto do estabelecimento da filiação, exprime a tendência de fazer corresponder a atribuição jurídica da filiação biológica com a filiação biológica efectivamente existente, de modo a que os vínculos biológicos tenham uma tradição jurídica fiel, que o pai e a mãe juridicamente reconhecidos sejam, realmente, os progenitores, os pais biológicos do filho. Numa palavra: por força do princípio da verdade biológica, a verdade jurídica e a verdade biológica devem ser coincidentes.

Este princípio traz implicada, entre outras consequências, a de que não devem ser considerados como pais jurídicos pessoas que não foram os progenitores do filho, o que vincula, por vez, a que se sejam disponibilizados instrumentos jurídicos de correcção nos casos em que a aplicação das normas de estabelecimento da filiação tenham produzido resultados jurídicos desconformes com a realidade biológica, o mesmo é dizer, a possibilidade de impugnar a maternidade e/ou a paternidade que tiverem sido estabelecidas, mas que não correspondem à maternidade e/ou à paternidade biológicas.

Não oferece, portanto, dúvida séria que o direito português da filiação se orienta, de forma prevalente, no estabelecimento da filiação, por um critério biológico, como patentemente decorre da contraposição legal entre a filiação em sentido estrito e a adopção, do estabelecimento da maternidade e, sobretudo, da liberdade probatória admitida no âmbito das acções de filiação – marcada pela abertura a métodos científicos, tida, aliás, como a expressão mais lídima do princípio da verdade biológica[5] (artºs 1586, 1796 e 1801 do Código Civil).

A força do critério biológico no estabelecimento da filiação pode fundar-se, genericamente, no direito à identidade pessoal - do filho – e no direito ao desenvolvimento da personalidade – dos pais – objecto de consagração constitucional expressa (artº 26 nº 1 da CRP). Além disso – diz-se - tratando-se de filho menor o princípio da verdade biológica pode ainda justificar-se pela expectativa de um melhor desempenho das responsabilidades parentais ou do cuidado parental – dado que este depende da constituição do vínculo da filiação - por parte daqueles que são os pais genéticos da criança.

Como é bem de ver, porém, o biologismo, i.e., a submissão, quase exclusiva, do estabelecimento da filiação ao critério biológico, tem um preço: a desconsideração de outros interesses relevantes e igualmente dignos de tutela, como, por exemplo, o interesse concreto do filho, o de não perturbação da paz da família ou da estabilidade sócio afectiva de uma relação jurídica que não tenha fundamento num vínculo biológico.

A verdade, porém, é que o biologismo não constitui um valor absoluto, nem sequer no plano da própria filiação biológica: os direitos à identidade pessoal são, como quaisquer outros, susceptíveis de compressão; com uma frequência indesejável nem sempre se confirma ou preenche a expectativa da maior aptidão ou competência dos pais biológicos para o exercício da função e do cuidado parental, o que vincula o legislador ao estabelecimento de um sistema de protecção da criança e de promoção dos seus direitos e, no seu contexto, a previsão de providências que, com fundamento no comprometimento sério dos vínculos afectivos próprios da filiação, legitimam, em última extremidade, mesmo a ruptura da relação jurídica de filiação coincidente com a realidade biológica (artºs 1978 nº 1 do Código Civil, 35 nº 1 g) e 38-A da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro).

O entendimento de que a realidade biológica não é o único interesse atendível é patente em face dos casos em que o legislador ordinário se afasta do princípio da verdade biológica, como sucede, por exemplo, com a sujeição das acções de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade a prazos de caducidade (artºs 1817, 1873 e 1842 do Código Civil), com a exclusão da averiguação oficiosa susceptível de revelar uma ligação incestuosa (artº 1809 a) e 1886 a) do Código Civil), com o impedimento do estabelecimento da filiação depois de decretada a adopção plena (artº 1987 do Código Civil). Dentro destas situações de possível não correspondência entre a filiação biológica e a filiação estabelecida deve ainda referir-se que o cônjuge que consentiu na inseminação artificial heteróloga não pode impugnar a paternidade (artº 1839 nº 3 do Código Civil) e que a perfilhação do filho maior não emancipado exige o seu assentimento (artº 1987 do Código Civil).

Isto demonstra que o direito positivo, apesar de aceitar primordialmente um critério biológico no estabelecimento da filiação, acolhe igualmente, um critério sociológico nesse mesmo estabelecimento: em homenagem a certos interesses de ordem social e familiar, admite-se algumas situações em que a filiação legalmente estabelecida pode não coincidir com a filiação biológica.

                No estabelecimento da filiação – que consiste no fenómeno de recepção ou no reconhecimento pela ordem jurídica do vínculo da filiação – a lei faz um claro distinguo entre o estabelecimento da filiação quanto à mãe, ou estabelecimento da maternidade, e o estabelecimento da filiação quanto ao pai, ou estabelecimento da paternidade.

Relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento; a paternidade, essa, presume-se em relação ao marido da mãe, e nos casos de filiação fora do casamento estabelece-se por reconhecimento (artºs 1796 nºs 1 e 2 do Código Civil). Esta diferenciação assenta na circunstância de a relação natural entre o filho e a mãe ser patente e clara no momento do parto – mas já não posteriormente – enquanto a relação natural entre e o filho e o pai decorre de um processo biológico oculto, só determinável através de certas presunções. Isto explica que, enquanto as formas de estabelecimento da maternidade – a declaração e o reconhecimento judicial – se referem exclusivamente ao próprio facto da filiação e têm por objecto exclusivo a relação biológica de maternidade – as formas de estabelecimento da paternidade – a presunção de paternidade, a perfilhação e o reconhecimento judicial – comportam entre elas a possibilidade de uma forma de estabelecimento por acto voluntário – mas sem carácter negocial – do pai – a perfilhação.

Numa palavra: o estabelecimento da maternidade, o direito positivo orienta-se pelo sistema da filiação, dado que a maternidade se estabelece pela prova da filiação biológica, ao passo que o estabelecimento da paternidade obedece ao sistema do reconhecimento, pois que se admite a sua constituição voluntária.

A declaração de maternidade é o modo normal de a estabelecer e consiste na indicação da maternidade, que tanto pode ser efectuada pela mãe como por terceiro, declaração que se faz, em regra, por menção da maternidade no registo de nascimento do filho (artºs 1804 nº 2 e 1805 nº 2 do Código Civil).

A declaração de maternidade está normalmente conexa com a declaração de nascimento: o declarante do nascimento deve identificar, tanto quanto possível, a mãe do registando (artºs 112 nº 1 do Código de Registo Civil – CRC - e 1803 do Código Civil). A obrigação de declarar o nascimento cabe, desde logo, aos pais (artº 97 nº 1 do CRC).

O sistema de estabelecimento da paternidade assenta no distinguo entre filhos nascidos dentro e fora do casamento: a paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se por reconhecimento (artº 1796 nº 2 do Código Civil). As formas de estabelecimento da paternidade - por presunção e por reconhecimento – traduzem a dificuldade de uma prova directa do acto de procriação, de que resulta a paternidade, que impõe o recurso frequente a inferências probabilísticas retiradas de regras ou máximas de experiência, que, de resto, são igualmente utilizadas para recusar o seu estabelecimento ou permitir a sua impugnação (artºs 1826 nº 1, 1831 nº 1, 1839 nº 2 e 1871 do Código Civil).

Assim, assente na verificação sociológica de que os cônjuges observam normalmente os deveres de coabitação e de fidelidade, pelo que, segundo os dados sociais comuns, o pai de um filho nascido na constância do casamento, é o marido da mãe, presume-se que o filho nascido ou concebido na pendência do casamento tem como pai o marido da mãe (artº 1826 nº 1 do Código Civil). A paternidade presumida consta obrigatoriamente do registo de nascimento e, em princípio, é inadmissível qualquer menção que contrarie essa paternidade (artº 1825, 1ª parte, do Código Civil).

Quanto aos filhos concebidos ou nascidos fora do casamento, a relação de paternidade estabelece-se por reconhecimento (artºs 1876 nº 2 e 1847 do Código), São, porém, duas, as formas de reconhecimento ou estabelecimento da filiação fora do casamento: a perfilhação e o reconhecimento judicial (artº 1847, 1849 a 1863 e 1869 a 1874 do Código Civil).

A perfilhação é o acto pelo qual uma pessoa declara relevantemente que certa outra já concebida ou nascida, fora do casamento, ou falecida, é seu filho (artºs 1847 e 1854 do Código Civil). A perfilhação é uma declaração de ciência e não, rigorosamente, um negócio jurídico, dado que o perfilhante se limita a declarar que alguém é seu filho e não que quer que esse alguém seja seu filho: é, por isso, um acto jurídico não negocial, porque os seus efeitos jurídicos decorrem da lei e não da vontade do perfilhante (artº 1852 nº 1 do Código Civil).

Como se vê, o sistema de estabelecimento da paternidade assenta na distinção entre filhos nascidos do casamento e filhos nascidos fora do casamento, pelo que bem se pode perguntar se o regime não viola o princípio constitucional da não discriminação entre filhos nascidos fora e dentro do casamento (artº 36 nº 4 da Constituição da República Portuguesa). Mas não parece que aquele princípio impeça em absoluto a admissibilidade de especificidades materialmente fundadas em relação ao regime aplicável aos filhos nascidos fora do casamento, maxime das regras de reconhecimento da paternidade: as circunstâncias do nascimento são diversas e, por isso, os modos de estabelecimento da paternidade não podem ser iguais[6].

Tanto a maternidade como a paternidade podem ser objecto de acções negativas correctoras, i.e., destinadas a impugnar uma maternidade ou uma paternidade estabelecida, demonstrando que a relação de filiação não é verdadeira.

Como a maternidade só se estabelece pela prova da própria filiação biológica, o acto voluntário do seu estabelecimento não tem eficácia constitutiva, do que decorre a possibilidade de impugnação, sem limite de prazo, da maternidade estabelecida através de declaração (artº 1807 do Código Civil).

A acção negativa de impugnação da maternidade – que é uma acção de estado – tem por objecto a maternidade estabelecida e por finalidade a sua destruição e entre os legitimados para a sua proposição conta-se o Ministério Público (artº 1807 do Código Civil).

A paternidade conhece também uma acção negativa correctora: a impugnação de paternidade (artº 1838 do Código Civil). Para esta acção só têm legitimidade, o marido da mãe, a mãe, o filho, representado quando menor não emancipado, por um curador especial, porque a acção deve ser proposta contra os seus representantes legais, e ainda o Ministério Público (artº 1839 nº 1 e 1846 do Código Civil).

Todavia, a legitimidade do Ministério Público para a acção de impugnação necessita de ser integrada por um requerimento de quem se declarar pai do filho e desde que seja reconhecida, pelo tribunal, a viabilidade do pedido (artº 1841 nº 1 do Código Civil).

O verdadeiro pai não tem, pois, legitimidade para propor a acção de impugnação da paternidade acção, apenas podendo requerer ao Ministério Publico essa propositura – o que constitui, de resto, um afloramento nítido da prevalência da filiação biológica, a qual, no caso concreto, posterga mesmo – discutivelmente – o interesse do filho (artº 1841 do Código Civil). Neste caso, o verdadeiro pai requer, no prazo de 60 dias, a contar da data em que a paternidade do marido da mãe consta do registo ao tribunal de família da área da residência do menor a averiguação oficiosa para impugnação da paternidade; o tribunal procederá às diligências necessárias para averiguar da acção da acção de impugnação, e, caso conclua pela viabilidade, ordenará a remessa do processo ao Ministério Público junto do tribunal competente para a acção de impugnação (artºs 1841 nºs 2 e 3 do Código Civil, 155 nº 1, 202, 204, 205 e 207 do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro).

Como quer que seja, a acção do Ministério Público depende, aqui, de solicitação de um particular, ao passo que as impugnações, quer da maternidade declarada, quer da paternidade que resulta da perfilhação, são oficiosas e dependem somente da aquisição, pelo Ministério Público, dos factos relevantes (artºs 1807 e 1859 nº 2 do Código Civil).

Esta diferença permite afirmar que o interesse público da fixação do status do filho com base na verdade biológica – razão que constitui a justificação da intervenção oficiosa – sofre uma compressão quando se trata de destruir a paternidade do marido. Aqui o Estado só actua para corrigir a paternidade falsa quando um interesse particular relevante o estimula, o que mostra que o interesse prevalente é, neste domínio, o do respeito pela intimidade da vida familiar conjugal.

Seria, talvez, de esperar uma atitude de reserva idêntica no caso de impugnação da maternidade falsa de mãe casada. Mas não: neste caso, o legislador impõe ao Ministério Público uma actuação oficiosa, apesar da inevitável intrusão ou intromissão na família conjugal. Esta diferença de tratamento acaba por mostrar que – na lógica do legislador – o interesse público da verdade biológica se impõe especialmente no tocante ao estabelecimento da maternidade e que admite contemporização quanto à paternidade do marido, por exemplo, no caso de nenhum dos particulares interessados impugnar uma paternidade marital consabidamente falsa.

A acção de impugnação da paternidade pode ser intentada nos seguintes prazos: pelo marido, no prazo de três anos, contados desde que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade; pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento; pelo filho, até dez anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe (artº 1842 nº 1 a) c) do Código Civil, na redacção do artº 1 da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril). Como a paternidade que se impugna é a paternidade presumida do marido da mãe, só é possível impugnar essa paternidade depois do estabelecimento da maternidade pelo que, enquanto essa maternidade não estiver estabelecida, os prazos para a propositura da acção pelo marido e pelo filho só se contam a partir do seu estabelecimento (artº 1842 nº 2 do Código Civil).

A perfilhação comporta também uma acção negativa: a perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado e a respectiva acção pode ser instaurada, sem dependência de qualquer prazo, designadamente pelo Ministério Público (artº 1859 nºs 1 e 2 do Código Civil). O objecto da prova da impugnação varia – aliás, curiosamente - consoante o autor da acção correspondente: quando é proposta por pessoa diversa da mãe ou do perfilhado, o autor deve provar que o perfilhante não é o pai biológico do perfilhado (artº 1859 nº 3, a contrario, do Código Civil).

                Como se vê o direito de impugnar, tanto a maternidade como a perfilhação – rectius, a paternidade estabelecida por via da perfilhação – não caduca. O interesse público de coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica, que justificam esta imprescritibilidade, sobrepõem-se às exigências de segurança e estabilidade das situações familiares adquiridas, que sugerem a imposição de um prazo de caducidade, o que pode suscitar algumas perplexidades dado que para outras acções se preveem prazos de caducidade, significando que nesses casos a segurança jurídica e a protecção dos laços familiares entretanto estabilizados e consolidados são relevantes e justificam que a filiação legalmente estabelecida não coincida com a filiação biológica.

                A inserção de um ser humano numa cadeia de relações intersubjectivas revela-se fundamental para a construção da sua identidade pessoal. Todavia, a determinação dos laços de filiação não se afigura essencial apenas para pessoa; essa determinação é também relevante para a sociedade em geral, dado que esta se serve dos laços de filiação para identificar os seus membros e para os classificar em categorias, como resposta a uma preocupação de ordem e racionalização no seio da diversidade natural, além de se basear neles para definir os papéis que a sociedade espera de cada um dos seus membros, com a finalidade de assegurar a sobrevivência do grupo.

                A fixação do estado de filho implica o surgimento de um núcleo de efeitos jurídicos, designadamente os que lhe são atribuídos por se encontrar numa determinada posição relacional. O status familiae, base da identificação social da pessoa, resulta da perspectivação de uma determinada pessoa sob o ponto de vista da sua situação jurídica perante a família, natural ou adoptiva.

                As acções correctoras negativas visam o esclarecimento de situações facticamente relevantes – a extinção do estado de filho – e de situações que contendem com o interesse público, traduzido na necessidade de que as relações sociais sejam estruturas e construídas com base na verdade dos factos – factos biológicos – forma de estruturação acolhida pelo legislador, viabilizando-se, antes de mais, com base nos mesmo factos, a redefinição do papel ou estatuto, dotado de relativa estabilidade, ocupado por uma pessoa perante outra.

                Determinar se uma pessoa é não filho de outra, não interessa, pois, só a estes dois indivíduos – mas também à sociedade em geral, uma vez que o estabelecimento de um vínculo acarreta em cadeia a redefinição das posições de muitas outras pessoas, sendo, além disso, do interesse público que a filiação assente na verdade biológica.

                O interesse público no esclarecimento de relações geracionais, sob o prisma da verdade da natureza, explica, do mesmo passo, a imprescritibilidade das apontadas acções negativas de impugnação da maternidade estabelecida por declaração e da paternidade estabelecida por via da perfilhação, e a legitimidade do Ministério Público para a sua instauração.

                Todavia, a verdade é que não se deixa de se por em dúvida se é sempre justificável, em todos os casos, a prevalência da verdade biológica e a impugnação oficiosa e sem limites[7], ainda que ela não satisfaça a realidade sociológica e afectiva dos particulares interessados. Se a realização do princípio da falsa aparência de um status deve ceder à realidade biológica, exacto é, decerto, que essa realização é irrecusavelmente susceptível de aniquilar a verdade concreta e afectiva, sacrificando-a a favor da verdade genética.

                Apesar de a filiação não constituir assunto apenas da esfera privada de uma família – dado as suas malhas impregnarem a sociedade e a sua organização – não existirão estruturas familiares, perfeitamente consolidadas e em paz, que não deverão ser questionadas?

 Não é de estranhar, por isso, que se alegue a incompreensibilidade da permissão, incluindo pelo Ministério Público, da impugnação[8], a todo o tempo, da maternidade declarada e da perfilhação e se questione o fundamentalismo biológico que lhe subjaz.

                É exacto que a impugnação aberta a um largo espectro de interessados e a todo o tempo constitui, de certa maneira, a contrapartida da declaração de maternidade e da perfilhação facilitadas e a manifestação pela verdade biológica da filiação: como não há uma indagação prévia sobre a veracidade da declaração ou do reconhecimento, o controlo é diferido e garantido através, de uma legitimidade ampla, por um lado, e da imprescritibilidade da impugnação, por outro.

                Todavia, não é difícil divisar toda uma constelação de situações em que o esclarecimento da verdade biológica traz uma perturbação incalculável e em que, portanto, não compensa os danos individuais e sociais que causa: a surpresa na mudança de identidade, a hesitação sobre a validade ou a eficácia de actos praticados no exercício do cuidado parental, a nova repartição de patrimónios hereditários, etc.,

                Patentemente, a legitimidade alargada para a proposição das acções negativas apontadas prescinde de qualquer equilíbrio da verdade biológica com a estabilidade de situações adquiridas e consolidadas, com a garantia de paz jurídica e com a defesa do interesse do filho, esquecendo que a manutenção do interesse concreto deste pode satisfazer-se com a manutenção de um vínculo parental a que não subjaz um laço genético. Em absoluto remate: a estabilidade, a segurança e paz jurídicas, o desejo de evitar a perturbação causada pela relevação tardia e a supremacia dos interesses do filho na manutenção desse status, são tudo valores proeminentes que o regime de impugnação apontado se mostra, em absoluto, insensível[9].

                Se voltarmos a nossa atenção para a espécie do recurso, por aplicação do apontado regime, a procedência da impugnação é, de todo, inexorável: apesar de já terem decorrido mais de 31 anos sobre o nascimento do filho, como tanto a declaração de maternidade como a perfilhação não são verdadeiras – dado que o réu F… não é, comprovadamente, filho biológico dos réus C… e A… – a impugnação oficiosa deve proceder, com a consequente extinção retroactiva do vínculo da filiação. À perda da parentela, soma-se, para o filho, a perda dos apelidos.

                Mas a verdade é que bem pode duvidar-se da exactidão de uma das proposições que subjaz a esta conclusão: a de que a paternidade do réu F… foi estabelecida por reconhecimento, mais precisamente por perfilhação.

                Como se apontou, a perfilhação é uma forma de reconhecimento do estabelecimento da filiação fora do casamento. Simplesmente, no caso a paternidade daquele réu foi estabelecida no contexto do casamento dos recorrentes.

                Como decorre da certidão do registo – ou melhor dos registos[10] - do facto de nascimento do réu F…, os recorrentes eram casados um com outro, tendo o assento do registo de nascimento, datado de 14 de Junho de 1982 sido lavrado com base em declaração do apelante A...

                Desde que, ao declarar o facto do nascimento do filho e a respectiva maternidade, o recorrente afirmou também que era casado com a mãe declarada, o estabelecimento da paternidade daquele não resultou de perfilhação – de reconhecimento – mas da actuação da presunção pater est, pelo que o serviço do registo estava obrigado a fazer a respectiva menção, negando-se a aceitar, por exemplo, uma declaração de perfilhação conflituante, pelo que ao recorrente não era permitido sequer declarar, a menos que alegasse que o filho tinha sido concebido antes do casamento, que, apesar de ser o marido da mãe declarada, não era o pai do registando (artºs 1828 e 1835 do Código Civil, e 118 e 124 nº 2 do CRC).

                 Realmente, nos casos – como o do recurso - em que a declaração de maternidade é feita pelo marido da mãe, o estabelecimento da paternidade não resulta do acto jurídico não negocial da perfilhação, mas, dado que se trata, ao menos segundo o declarante, de filho nascido na constância do casamento, da apontada presunção. Na verdade neste caso, o estabelecimento da paternidade constitui simples consequência de a mulher relativamente à qual é declarada a maternidade ser casada.

                Maneira que em tal caso, o que se impugna – ou o que deve impugnar - é a paternidade presumida e não a perfilhação. O que daqui decorre, quer para recusar ao Ministério Público a legitimidade para a impugnação da paternidade e, em qualquer caso, para a extinção, por caducidade do direito de impugnar – e correspondentemente para a procedência da acção de impugnação da acção de impugnação da perfilhação - é meramente consequencial.

                Mas vamos, que, realmente, o caso ainda é, no tocante ao estabelecimento da paternidade, de perfilhação mais exactamente, do estabelecimento da paternidade por via da perfilhação, por se entender que a declaração de maternidade feita pelo marido da mãe declarada, envolve, simultaneamente, para além da declaração de maternidade e do desencadear da presunção pater est – a perfilhação do filho.

                O que se deve perguntar – e esse é um dos objectos do recurso – é se o regime da imprescritibilidade da acção oficiosa de impugnação, tanto da maternidade como da perfilhação – de que decorre a consequência dramática declarada pela sentença apelada, é ou não constitucionalmente impróprio.

                3.4. Compatibilidade ou conformidade das normas contidas nos artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil com normas e princípios constitucionais.

                O problema da compatibilidade das normas da lei ordinária relativas ao estabelecimento da filiação tem sido debatido a propósito das acções – positivas e negativas – sujeitas a prazos de caducidade.

                Assim, o Tribunal Constitucional, reponderando jurisprudência anterior, de sentido inverso, e consolidando uma viragem jurisprudencial iniciada com o acordão nº 486/2004[11], terminou, pelo acordão nº 23/2006, de 10 de Janeiro[12], por declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artº 1817 do Código Civil, aplicável por força do artº 1873, do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 26 nº 1, 36 nº 1 e 18 nº 2 da CRP.

O acordão deu por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, reconhecido no artº 26, nº 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e paternidade. O acordão admitiu, porém, que outros valores para além da ilimitada recepção à verdade biológica da filiação – como os relativos à certeza e à segurança jurídica – poderiam intervir na ponderação de interesses em causa, como que comprimindo a revelação da verdade biológica, e não deixou sequer de ponderar, na perspectiva do pretenso pai, o direito deste à reserva da intimidade da vida privada e familiar, intimidade que poderia ser perturbada, sobretudo se a revelação for muito surpreendente, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai ou pelo decurso do tempo, que poderia mesmo afectar o seu agregado familiar – o que explica o cuidado – escudado na vinculação ao objecto do recurso - na recusa da declaração de inconstitucionalidade de qualquer limite temporal, mas apenas do concreto limite temporal – então - previsto no artº 817 nº 1 do Código Civil.

Talvez por o acordão apontado não ter concluído pela ilegitimidade constitucional de todo e qualquer prazo de caducidade, o legislador interveio – alterando, através da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, a redacção dos artºs 1817 e 1842 do Código Civil – mantendo a sujeição da acção de investigação e de impugnação da paternidade a prazos de caducidade que se limitou a alargar (artº 1) – mas o Supremo continuou uma jurisprudência reiterada em que conclui pela imprescritibilidade da acção, e pela consequente inconstitucionalidade material do artº 1817 nº 1 do Código Civil[13]. Porém, a jurisprudência constitucional, através do acordão nº 401/2011, terminou – ainda que não nemine discrepanti – por não julgar inconstitucional a apontada norma, na redação da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, prevê o prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.

O Supremo, porém, continua, porém, com fundamento na imprescritibilidade da acção, a insistir na conclusão da inconstitucionalidade material do artº 1842 nº 1 a) do Código Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação a todo o tempo, pelo presumido progenitor[14] - apesar da reiterada jurisprudência de sentido contrário[15].

A ponderação da jurisprudência constitucional tirada a propósito da conformidade constitucional dos prazos de caducidade apostos pelo legislador ordinário tanto a algumas acções positivas como a algumas negativas de filiação, tem inteira justificação dado que os argumentos aduzidos para sustentar aquela conformidade são transponíveis, mutatis mutandis, para o problema da ilegitimidade constitucional das normas contidas nos artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil, enquanto permitem a impugnação, pelo Ministério Público, e sem quaisquer limites, a impugnação da maternidade e da perfilhação, respectivamente.

Não sofre duvida o reconhecimento pelo texto constitucional de um direito à identidade pessoal, que tem por sentido garantir aquilo que identifica cada pessoa, como indivíduo, único, irrepetível e irredutível e que, portanto, compreende no seu perímetro, designadamente, além do direito ao nome – em sentido lato, de modo a incluir o direito ao patronímico[16] - também o direito a conservar essa mesma identidade pessoal (artº 26 nº 1 da CRP).

 Do mesmo modo, a Constituição consagra também, no mesmo texto, um direito ao desenvolvimento da personalidade – entendido como o direito à conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção[17] - que tem, decerto, por dimensão, a protecção da integridade da pessoa.

Indiscutível é também a consagração na Constituição de um direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que se desdobra em duas vertentes: o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; a proibição de divulgação de informações de que disponha sobre a vida privada e familiar de outrem[18] (artºs 26 nº 1, in fine, e nº 2, e 80 do Código Civil).

Exacto é, igualmente, que a Constituição estabelece, a favor dos pais, uma garantia de não privação dos filhos, que é também um direito subjectivo daqueles. As restrições a este direito estão subordinadas a uma dupla reserva: sob reserva de lei e sob reserva de decisão judicial, quando se trate de separação forçada, contra a vontade dos pais. Os filhos não podem ser separados dos pais, excepto quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais que estão adstritos relativamente a eles, sempre mediante decisão judicial (artº 36 nº 6). Este direito constitui, de outro aspecto, dimensão ineliminável da garantia constitucional da protecção da família - que significa desde logo e em primeiro lugar, a protecção da unidade da família, ideia cuja manifestação mais relevante é o direito à convivência ou seja, o direito dos seus membros de viverem juntos ou, pelo menos, de manterem contactos pessoais entre si, direito que comporta uma dimensão negativa, como o direito de não serem impedidos de se juntarem ou, ao menos, de se contactarem, e que exige a realização das condições que permitam essa convivência (artº 67 nº 1 da Constituição da República Portuguesa).

O direito a constituir família faz também parte da tutela constitucional da filiação (artº 36 nº 1 da Constituição da República Portuguesa). O direito à constituição da família significa, no que à filiação diz respeito, que, na qualidade de progenitores, todos têm o direito de estabelecer a sua paternidade ou maternidade relativamente a outrem e que, na qualidade de filhos, todos têm direito de estabelecimento da sua filiação. Expressão de um tal direito é a possibilidade de declaração da maternidade pela mãe e de estabelecimento da paternidade por perfilhação do pai, ou a possibilidade, que não pode ser condicionada pelo nascimento do filho fora do casamento, de investigação da maternidade ou da paternidade (artºs 1806, 1814 a 1925, 1849 a 1868, e 1869 a 1873).

Mas o direito à constituição da família – na sua dupla vertente de direito ao estabelecimento da paternidade ou maternidade e de direito ao estabelecimento da filiação – não vale absoluta ou irrestritamente.

O exercício deste direito está, desde logo, limitado por certos valores sociais que justificam algum desinteresse ou alheamento do direito positivo no estabelecimento de uma filiação correspondente à verdade biológica: esses valores podem referir-se, v.g., aos custos humanos e sociais do estabelecimento de uma filiação incestuosa – o que obsta à averiguação da maternidade ou da paternidade relativamente a certos parentes do filho – ou às vantagens num oportuno esclarecimento das situações duvidosas sobre a filiação, o que determina, por exemplo, a imposição de certos prazos para a impugnação judicial da maternidade ou da paternidade (artºs 1809 a), 1866 a), 1817 e 1873 do Código Civil).

Depois, não estabelecendo a Constituição, ela mesma, o critério a que deve obedecer o estabelecimento da filiação – pelo que deixa implicitamente ao legislador ordinário a fixação desse mesmo critério – o núcleo daquele direito só seria afectado, se o critério adoptado pela lei infraconstitucional para aquele estabelecimento se mostrasse irracional, arbitrário ou desrazoável, o que comprovadamente, não ocorre com o princípio orientador do nosso direito da filiação: o da verdade biológica - que, aliás, cede, muitas vezes, em favor de um critério sociológico – e que assenta na constatação de que a relação de filiação é, antes de mais, um vínculo de base natural, portanto, pré-jurídico.

                Apesar de os recorrentes advogarem a desconformidade das normas aplicadas na decisão recorrida com o artº 36 da CRP (sic) por certo que têm em vista a indicada garantia de não privação dos filhos ou o apontado direito à constituição da família, dado que nenhum dos outros direitos consagrados naquele preceito constitucional – como por exemplo, ou de contrair casamento, ou a garantia dos institutos divórcio ou da adopção - têm qualquer conexão relevante com as normas que, no seu ver, estão feridas de invalidade por inconstitucionalidade.

                Mas não parece que as normas relativas à impugnação da maternidade e da paternidade conflituem como direito à constituição da família ou com a garantia dos pais de não privação dos filhos. Em primeiro lugar, esta última garantia tem patentemente em vista os filhos menores, como inculca a referência aos deveres dos fundamentais dos pais para com os filhos, o que seguramente, não é o caso do réu F…; depois, aquela garantia – tal como o direito à constituição da família - pressupõe a verdade ou a licitude da constituição do vínculo da filiação, o que, também não é comprovadamente o caso do recurso, dado que a matéria de facto apurada é concludente no sentido da falsidade da relação jurídica parental de filiação entre aquele réu e os apelantes.

                Simplesmente há que convocar para o caso, como parâmetro de aferição da licitude constitucional das soluções normativas da lei ordinária apontadas, outros bens e valores constitucionalmente relevantes.

                A verdade do vínculo da filiação, abrangendo ambos os pais, corresponde decerto a interesse geral de ordem pública, a um eminente princípio de organização social. Mas importa que o objecto do estabelecimento da verdade daquele vínculo seja alcançado senão o mais rapidamente possível e numa fase precoce da vida do filho, ao menos num prazo razoável, evitando-se o prolongamento injustificado de uma situação de indefinição na permanência da relação de filiação. Se é do interesse público a veracidade da relação de parentalidade, é-o também que essa verdade seja estabelecida o mais breve possível de modo a evitar a consolidação de situações jurídico-familiares assentes numa desconformidade entre a filiação jurídica e a filiação biológica.

                Interesse que tem também uma nítida dimensão subjectiva, representado pela segurança, para, o filho e para os pais, em não ficaram ilimitadamente expostos á ameaça grave, que paira sobre um e outros, da instauração, sem qualquer limite temporal, da impugnação oficiosa e de destruição retroactiva, a todo o tempo, do vínculo legal da filiação.

                A impugnação, pelo Ministério Público, sem qualquer limite ou restrição, absolutiza a tutela da relação biológica, deixando sem qualquer protecção o interesse da paz jurídica da família e é susceptível – considerado certo contexto – de lesar o direito fundamental de qualquer dos seus membros – especialmente os direitos do filho - que é de todo alheio à constituição da relação jurídica de filiação em desconformidade com a verdade genética – à reserva e intimidade da vida privada, à identidade e à integridade da sua personalidade, bens de personalidade que serão seguramente afectados, sobretudo se a impugnação for actuada muitos anos depois da constituição da relação jurídica de filiação (artº 26 nºs 1 da CRP).

                Se, por exemplo, o direito à identidade pessoal, fundamenta um direito da pessoa a conhecer ou a estabelecer a sua identidade genealógica, dado que desse direito à identidade pessoal decorre o direito de qualquer pessoa a conhecer os seus progenitores – que torna constitucionalmente ilegítima a sujeição das acções de investigação da maternidade e da paternidade a prazos desrazoáveis – esse mesmo direito há-de fundamentar o direito à integridade da identidade pessoal. Se tenho o direito a saber quem sou, não terei o direito a permanecer quem sou? Saber quem sou exige saber de onde venho, quais são os meus antecedentes genéticos, onde estão as minhas raízes familiares, geográficas e culturais. Todavia, o direito à identidade e integridade pessoais compreende também, como dimensão ineliminável, o direito a continuar a ser aquilo que sempre fui.

                Todavia, mesmo que se deva recusar uma verdadeira afectação do conteúdo essencial de qualquer daqueles direitos, também logo no plano da justificação – e, portanto, já não no dos seus efeitos – a solução normativa em causa – ao menos em dadas condições - não deve considerar-se constitucionalmente inadmissível, ao menos por violação da exigência da proporcionalidade – lato sensu – consagrada no artº 18 nº 2 da Constituição? As normas legais apontadas não traduzirão – nalgumas circunstâncias, ao menos - uma apreciação desrazoável e desproporcional dos interesses ou valores em presença, particularmente quanto à intensidade e à natureza das consequências, designadamente não patrimoniais, que advém da perda, para o filho – v.g., como é o caso, mais de trinta anos depois do estabelecimento da filiação jurídica – das pessoas que considerava seus pais, que se apresentam claramente desproporcionais em relação as vantagens da procedência da impugnação – o respeito pela verdade biológica? Será legítimo, sem qualquer restrição, sujeitar o filho a consequências pessoais tão gravosas e sacrificar todo um conjunto de bens e de direitos da personalidade ao interesse da coincidência entre a filiação jurídica e a filiação genética?

                Por último, há que perguntar se as normas cuja propriedade constitucional se questiona – que não são, evidentemente, o instrumento adequado à desmotivação de raptos de crianças e de adopção clandestinas – não sobrevalorizam excessivamente – e, desse modo, indevidamente – o interesse da correspondência entre a filiação jurídica e a filiação biológica, em detrimento de interesses atendíveis de estabilidade e segurança jurídica – princípios que podem deduzir-se do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artº 1 da Constituição, relativamente aos quais não há razão decisiva para os limitar às questões da estabilidade e determinabilidade normativas, excluindo a sua convocação para a tutela de situações de facto, que, por virtude da sua larga permanência no tempo, se mostram perfeitamente e consolidadas.

                Note-se que a tutela de valores sociologistas – por oposição ao biologismo dominante – traduzido na restrição à impugnação, por exemplo, da perfilhação, corresponde à orientação de ordens jurídicas com as quais a portuguesa tem marcadas afinidades culturais[19].

O que até agora se disse – de forma deliberadamente simplificadora - serve para mostrar, que, ao menos nos casos de comprovada consolidação da família e da verdade sociológica – decorrente, por exemplo, de uma posse de estado[20] de filho por largo tempo – a conclusão da impropriedade constitucional da legitimidade do Ministério Público para, sem qualquer limite de tempo, impugnar a maternidade ou a perfilhação constitui um proposta de solução perfeitamente plausível.

                 Plausibilidade que nos conduz ao último dos problemas que o recurso coloca: o dos pressupostos da antecipação logo para o despacho saneador do conhecimento do mérito da causa.

3.4. Pressupostos da antecipação, para o despacho saneador, do conhecimento do mérito da causa.

Como já se apontou, a decisão impugnada foi logo proferida no despacho saneador e assenta no nítido e declarado pressuposto de que os únicos factos relevantes para a apreciação do pedido se resumem aos da filiação biológica do réu F… e de que a declaração do direito do caso se basta com prova desses factos – o que, talvez explique que não tenha perdido uma só palavra acerca da questão da constitucionalidade material do artº 1807 do Código Civil invocada pelos réus contestantes.

Não será, talvez, excessivo recordar, a este propósito, o convencimento de Ronald Dworkin[21] de que para um caso só pode haver uma única solução acertada, mesmo tratando-se de um hard case. Sustenta aquele autor uma right-answer thesis, nos termos da qual para determinada solução jurídica não são susceptíveis de configurar-se várias soluções acertadas ou igualmente defensáveis. O domínio da espessa e complexa teia de argumentos que entretecem o direito vigente em toda a sua extensão e a consideração dos general principles of law permitiria o encontrar da única solução acertada. A proposta de Ronald Dworkin – que levou L. A. Hart apelidá-lo de nobre sonhador – não parece realista.

Parece, antes, dever aceitar-se uma conciliação da procura de uma perspectiva pragmática e realista com o respeito da racionalidade e cientificidade do Direito. A right answer thesis não deve ser discutida em termos de verdade jurídica à qual se possam reconduzir conteúdos com determinado status ontológico, mas como ideia regulativa no sentido kantiano de representação que orienta com sentido o pensar e agir. Colocado deste modo o problema, já não se torna necessário defender o superior e absoluto acerto de uma decisão jurídica em relação a todas as alternativas pensáveis, mas, mais modestamente, apenas perante as hipóteses de solução jurídica do litígio, efectivamente tidas como possíveis. O horizonte do acerto é, portanto, mais reduzido.

Neste contexto, há que indagar se, entre as diversas soluções possíveis do problema, a adoptada pela decisão impugnada é aquela que, pelo menos, melhor perspectiva de acerto possui face ao sistema jurídico considerado no seu conjunto.

Uma solução jurídica não é demonstrável - mas apenas argumentável. O ónus de argumentação que, com a exposição anterior, se procurou cumprir, mostra que há razões ponderosas que são susceptíveis de justificar, para a questão problematizada no recurso, uma solução plausível diferente.

O despacho saneador pode apreciar tanto os aspectos jurídico-processuais da acção – como o mérito desta (artº 510 nº 1 do CPC). No plano das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença.

Na verdade, a apreciação do mérito da acção e o proferimento da decisão sobre a sua procedência ou improcedência é realizada, em regra, na sentença final (artº 658 do CPC). Mas em certas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode conhecer do mérito da acção nesse despacho sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, de algum dos pedidos cumulados, do pedido reconvencional ou ainda da procedência de alguma excepção peremptória (artº 510 nº 1 b) do CPC). Caso isso suceda, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença e dele cabe, naturalmente, recurso de apelação (artº 510 nº 3, 2ª parte, e 691 nº 1 do CPC).

Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. Maneira que se os elementos os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.

No caso, o despacho saneador, por entender que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito do pedido, conheceu logo dele, julgando-o procedente.

É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja justa.

Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas (artº 510 nº b) do CPC).

Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento. A esta luz, o conhecimento do mérito da acção, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo.

Para que há-de prosseguir o processo, se não há factos sobre os quais possa incidir a prova ou se há já factos que devam considerar-se assentes que excluem, de harmonia com a lei substantiva aplicável, uma decisão de procedência?

Não é razoável que, em nome do direito à prova, i.e., à apresentação de provas destinadas a provar os factos alegados em juízo, como dimensão ineliminável do direito ao processo justo, se prossiga num processo para demonstrar factos que, mesmo a provarem-se, não garantem à parte a procedência do direito que pela acção pretende fazer valer e declarar.

Mas isto só é assim no caso de a apreciação do mérito da acção, segundo as vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objecto, não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador.

Não é esse o caso.

A exposição anterior mostrou a existência de factos controvertidos – dado que apesar de não terem sido impugnados na réplica não se consideram admitidos por acordo, dado o carácter indisponível do objecto da causa que torna inadmissível a sua confissão[22] - e, portanto, carecidos de prova, com indiscutível relevância para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção (artºs 490 nº 2, 505 e 511 nº 1 do CPC).

Estão nessas condições, todos os factos alegados pelos réus contestantes relativos à consolidação da família e à verdade sociológica da filiação.

Portanto, o processo não possibilitava o conhecimento imediato do mérito do pedido, logo no despacho saneador. Se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam essa antecipação – por existir outra solução plausível da questão de direito - é meramente consequencial a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão que ordene o prosseguimento da causa de modo a que o julgamento do mérito seja feito na sua sede normal: a sentença final[23].

Expostos todos os argumentos, afirma-se em síntese apertada que:

 a) É substancialmente nula, por omissão de pronúncia, a decisão que se abstenha, infundadamente, de apreciar questão que foi colocada à sua atenção e cujo conhecimento se não mostre prejudicado pela reposta encontrada para qualquer outra.

b) Todavia, a nulidade da decisão é irrelevante nos casos em essa nulidade não constitua o único fundamento do recurso e este seja julgado de harmonia com o sistema da substituição.

c) O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.

O Ministério Público sucumbe no recurso. Não deverá, porém, suportar as respectivas custas, visto que, no caso, actua em nome proprio, interesses que lhe são estatutariamente confiados e, por isso, está delas isento (artº 3 nº 1 a) do RCP).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, revoga-se a decisão impugnada e determina-se a sua substituição por outra que ordene, como for de direito, o prosseguimento da instância, com a selecção da matéria de facto, assente e controvertida.

Não há lugar a tributação.                                                                               

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa

                                                                                                             


[1] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.
[2] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1987, pág. 472.
[4] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação, Adopção, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 52 a 54, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, AAFDL, Lisboa, 1980, págs. 130 a 132, e João de castro Mendes, Direito da Família, AAFDL, Lisboa, 1990/1991, págs. 226 a 228; em sentido diverso, Carlos Pamplona Corte-Real e José da Silva Pereira, Direito da Família, Tópicos para uma reflexão crítica, AAFDL, Lisboa, 2008, págs 95 a 98.
[5] Pamplona Corte Real, “Relatório apresentado no concurso para Professor Associado da FDL”, Reforma do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 117.
[6] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição, págs. 419 e 420, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, cit., págs. 152 e 153, e Guilherme de Oliveira, “Caducidade das acções de investigação”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Volume I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, pág. 50. A Corte Constitucional italiana, por acordão de 18 de Abril de 1991 – in Il Diritto di Famiglia e della Persone, III, 1991, págs. 475 e ss. - pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da imprescritibilidade da acção de impugnação do reconhecimento da paternidade, em confronto com a sujeição a prazos da acção de impugnação da paternidade presumida. Aquele tribunal sustentou que a não fixação de prazos, na acção de impugnação do reconhecimento voluntário, não viola nenhum princípio constitucional, nomeadamente, o da igualdade entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, e que a propositura da acção não consubstancia um meio de o autor do reconhecimento se subtrair aos seus deveres familiares - um dos fundamentos da inconstitucionalidade – dado que estes não são exigíveis quando a filiação assenta numa aparência. O tribunal não deixou, porém, de advertir a insegurança e a incerteza que a imprescritibilidade desta acção pode ocasionar em torno do status de filho.
[7] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, cit., pág. 68.
[8] Maria José de Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, BFD, Stvdia Ivridica, UC, Coimbra Editora, 1996, págs. 81 e 82.
[9] Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, 1983, pág. 438.
[10] Realmente, o processo mostra que o facto do nascimento do réu F… foi objecto de dois registos lavrados na mesma conservatória do registo civil: um, com o nº 687 lavrado no dia 14 de Junho de 1982 – incluso a fls. 7 – outro – inserto a fls. 41 - com o nº 3410, lavrado no dia 17 de Março de 2010
[11] DR, II Série, nº 35, de 18 de Fevereiro de 2005.
[12] DR, I Série-A, de 8 de Fevereiro de 2006.
[13] V.g., Acs. de 17.04.08, 21.09.10 e 06.09.11.
[14] Acs. do STJ de 25.03.10 e de 19.06.12, www.dgsi.pt.
[15] Acs. do TC nºs 589/2007, 179/2010, 446/2010, 39/2011, 449/2011 e 634/2011.
[16] São múltiplos e de natureza diversa os interesses tutelados pelo direito ao nome - constituído por vocábulos gramaticais que, no assento de nascimento, se destinam a identificar a pessoa singular. Desde logo o interesse um interesse do próprio indivíduo: a identificação da pessoa ou chamamento, em termos de não ser confundida com os restantes membros da comunidade. É este interesse que subjaz à garantia constitucional do direito à identidade pessoal e, a nível infraconstitucional, o reconhecimento, no domínio dos direitos de personalidade, do direito ao uso do nome e a opor-se que seja ilicitamente utilizado por outrem (artºs 26 nº 1 da CRP, 70 e 72 nº 1 do Código Civil). Do direito subjectivo geral de personalidade, distingue-se, como direito especial, o direito ao nome. Este é um direito de personalidade, que se distingue dos demais direitos de personalidade tanto pelo fim - a identificação do portador - como pelo seu objecto mediato: os vocábulos que integram o nome da pessoa, que manifestamente são exteriores ao corpo que serve de suporte material à pessoa e ao espírito que a anima. As peças essenciais da identificação nominal, com uma função diferenciada e complementar, são apenas o nome - ou prenome ou nome próprio - e os apelidos - cognome. O nome da pessoa visa igualmente a integração formal do indivíduo na família a que pertence, para o efeito da sua identificação. É essa, de resto, a função típica dos apelidos dentro da estrutura legal e corrente do nome da pessoa. O nome constitui em regra o modo de designação especial da pessoa dentro do círculo restrito de familiares; o apelido destina-se a indicar a família a que a pessoa pertence e, completando com o prenome o nome individual, serve igualmente para identificar o seu titular no meio social. O nome constitui não apenas um elemento de referenciação objectiva do indivíduo através da família a que ele pertence, mas também um elo de ligação sentimental da pessoa ao património moral do seu clan familiar. O nome, maxime os apelidos, constituem um símbolo e instrumento da unidade institucional da família, dado que fortalecem os laços de afeição e os vínculos de solidariedade que unem em regra os membros da mesma família e constitui um factor de integração pessoal do individuo na sociedade familiar a que seja biologicamente estranho. O nome das pessoas, devido especialmente à função de elemento primordial de identificação civil dos indivíduos que desempenha, é, em princípio, um atributo imutável da área da personalidade. E a regra da imutabilidade tanto abrange o prenome ou o nome propriamente dito como os apelidos e o próprio sobrenome que o completam.
[17] Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, Stvdia Ivridica, nº 40, Portugal-Brasil, Coimbra Editora, Ano 2000, 1999, págs. 76 e ss.
[18] Paulo Mota Pinto, “A protecção da vida privada e a Constituição”, BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra 2000, págs. 157 e 158.
[19] Guilherme de Oliveira, “O estabelecimento da filiação, mudanças recentes e perspectivas”, Temas de Direito da Família, 1, FDUC, CDF, Coimbra Editora, 1995, págs. 39 e 41.
[20] A ideia geral de posse de estado é uma situação de facto – daí que se fale de posse - normalmente correspondente a uma situação familiar, designadamente, a de filho. A posse de estado – que é referida na lei em relação à mãe, ao pai e aos cônjuges (artºs 1816 nº 2 a), 1871 nº 1 a), 1832 nº 2 e 1883 do Código Civil) – decompõe-se, no que diz respeito à filiação em três elementos: a reputação como filho pelos pretensos pais (nomen): os progenitores dão-lhe o nome de filho e aceitam que o pretenso filho os trate como pais; o tratamento como filho pelos supostos progenitores (tractatus) – que se manifesta na assumpção de um comportamento perante o suposto filho semelhante ao decorrente do cuidado parental; a reputação como filho pelo público (fama).
[21] A Matter of Principle, Cambridge, Massachusetts, London, 1985, parte II.
[22] De harmonia com o Assento do STJ de 16 de Outubro de 1984 – DR I Série, de 16 de Outubro de 1984 – por respeitarem a direitos indisponíveis, os factos confessados pelo pretenso pai em acção de investigação da paternidade contra ele proposta devem ser levados ao questionário e não à especificação.
[23] A decisão da Relação sobre a insuficiência da matéria de facto para o conhecimento do mérito da causa é sempre irrecorrível e, portanto, não é susceptível de ser controlada pelo Supremo (artºs 510 nº 1 e 712 nº 6, por analogia, do CPC e Assento do STJ nº 10/94, BMJ nº 436, pág. 15). Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ROA nº 54, 1994, pág. 623 e Antunes Varela, RLJ, Ano 126, pág. 31.