Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/12.3PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: OFENDIDO
REPARAÇÃO
CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
REVOGAÇÃO
SENTENÇA
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 82º-A NºS 1 E 2 CPP
Sumário: 1.- A condenação oficiosa no pagamento de indemnização civil ao abrigo do artº 82º-A CPP, deverá observar o prévio cumprimento do contraditório.

2.- A inobservância do contraditório consubstancia irregularidade de conhecimento oficioso que acarreta a anulação da sentença nessa parte, determinando a reabertura da audiência para dar cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 82º-A do C.P.P..

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.

Nos presentes autos foi a arguida A... condenada na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 5 €, pela prática de um crime de abuso de confiança, do art. 205º, nº 1, do Código Penal.
Foi, também, condenada a pagar à ofendida B.... a quantia de 1830 €, ao abrigo do art. 82º-A do C.P.P.

2.
Inconformada a arguida recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1. O tribunal a quo veio, em sentença proferida e depositada em 20 de Junho de 2013, condenar a arguida"[...] pela prática de um crime de abuso de confiança p.p. pelos art. 205.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 130 dias de multa à razão diária de 5 euros o que perfaz o montante de € 650. [...] Ao abrigo do disposto no art. 82.º A do Cód. Proc. Penal, a arguida vai ainda condenada a efectuar o pagamento da quantia de € 1830 à ofendida B.... [...] no pagamento das custas criminais com taxa de justiça que fixa em 2 Ucs [... ]".
2. Contudo, a arguida não pode conformar-se com tal decisão, pelo que, pelo presente, recorre, de facto e de direito, da sentença proferida.
- DO ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
3. Salvo o devido respeito e melhor opinião, o tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto, em especial, os pontos 2., 3., 4., 5., 6. e 7. dos factos dados como provados;
4. Deveria, outrossim e salvo melhor entendimento, ter julgado tais factos como não provados.
5. Desde logo, mal andou o tribunal a quo ao ter decido como provado o facto referente ao valor das peças em ouro, porquanto não foram carreados para os autos elementos que permitissem ao tribunal a quo considerar que as peças de ouro em causa teriam um valor monetário de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros), nem existe qualquer referência a qualquer documento ou prova de outra natureza que ateste o valor das peças e que tenha servido para a formação da convicção do tribunal a quo.
6. Acresce que as testemunhas C....e de D....não presenciaram qualquer dos factos, detendo um conhecimento indirecto, limitado ao que a ofendida - com que têm uma longa e próxima relação - lhes havia dito.
7. Ora, tais depoimentos são, pela sua natureza, absolutamente inábeis para deles retirar a ilação que o tribunal a quo firmou na sentença ora sindicada.
8. Ora, relativamente aos factos, ambas as testemunhas apenas se limitaram a reproduzir a versão que lhes havia sido transmitida pela ofendida, não tendo podido assegurar que a ofendida tenha entregue as peças de ouro (o colar de contas de Viana e a libra Rainha Vitória) à arguida ou que as referidas peças tenham entrado na esfera de posse da arguida.
9. A arguida sempre negou os factos de que vinha acusada, refutando veemente que a ofendida lhe tenha entregue as peças em ouro e que elas tenham estado na sua posse.
10. Assim, deveria o tribunal a quo ter firmado entendimento no sentido da absolvição da arguida, partindo do pressuposto de que, "O crime de abuso de confiança só se consuma a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é, quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua." (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 16 de Maio de 2007, no âmbito dos autos de processo n.º 101/06.ITACVL.C1), o que não se aconteceu in casu;
11. Na verdade, a prova em que o tribunal a quo sustenta a sua convicção resume-se ao depoimento da ofendida, porquanto as restantes testemunhas de acusação foram peremptórias em afirmar que o seu conhecimento dos factos lhe havia sido dado por interposta pessoa.
12. Com efeito, a prova produzida em audiência de julgamento não é cabal para dela infirmar: a) que a ofendida entregou as peças de ouro à arguida (factos 2. e 4. dado como provado); b) que o valor das duas peças de ouro era de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros) (facto 2. e 5. dado como provado); c) que a arguida se apropriou das referidas peças de ouro, não as tendo devolvido, tendo-as feito suas (facto 4. dado como provado); d) que o alegado prejuízo da ofendida terá sido no valor de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros) (facto 5. dado como provado); e) que a arguida agiu com intenção de fazer suas as peças que a ofendida se havia comprometido emprestar-lhe (facto 6. dado como provado); e) que a arguida tenha agido intencional e conscientemente, dando à ofendida a indicação de que as peças haviam ficado em poder desta última (facto 7. dado como provado).
13. A convicção do julgador tem de ser objectivável e motivável em elementos objectivos, que a tornem credível e conforme com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da razoabilidade.
14. Ao ter decidido como na sentença sindicada, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e, bem assim, as mais elementares regras da prova e o princípio in dubio pro reo (número 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).
15. Com efeito, perante a prova produzida em audiência de julgamento sempre deveria o tribunal a quo ter lançado mão do princípio in dubio pro reo, que impunha a absolvição da arguida.
16. Assim, e face à alteração da matéria de facto dada como provada, como se requer, resulta clara a inexistência de factos subsumíveis na tipificação legal do crime de abuso de confiança, sendo certo que, ainda que não se procedesse a tal alteração da matéria de facto sempre se diria não estarem preenchidos tais elementos, como se verá seguidamente.
Não obstante, e sem prescindir no atrás alegado
DO RECURSO DE DIREITO
17. O tribunal a quo errou manifestamente na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, tendo violado as regras da experiência comum na apreciação que fez de algumas provas e baseando-se em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.
18. Com efeito, o tribunal a quo alicerçou a sua convicção no total ênfase atribuído ao depoimento da ofendida, que considerou "[...] entristecida [...]", "serena", com "atitude e postura humilde e modesta [...]", de "modesta condição", com "atitude generosa e ingénua [...]" e no depoimento das testemunhas C....e de D....foram valorados tendo por base o carácter das profissões que exercem, ofuscando a relação próxima de há longos anos (mais do que uma relação de conhecimento, uma relação de amizade) que liga ambas as testemunhas à ofendida e ofuscando que o conhecimento dos factos de ambas as testemunhas advinha dos relatos que lhes haviam sido feitos pela ofendida.
19. Com efeito, o tribunal a quo apreciou as provas enunciadas supra numa atitude paternalista para com a ofendida, resultando claro e evidente, aos olhos de um qualquer cidadão comum, que os fundamentos que serviram de base à formação da convicção do julgador são parciais, ilógicos e inaceitáveis.
20. Assim, a prova produzida em audiência deveria, salvo melhor entendimento, ter sido apreciada pelo tribunal a quo de forma mais pragmática, verificando-se e concluindo-se, designadamente, que os depoimentos das testemunhas C....e de D....foram depoimentos indirectos, porquanto o seu conhecimento era limitado ao que haviam ouvido dizer pela ofendida.
21. Como concluiu o tribunal a quo, e bem nesta parte, a arguida e a ofendida estavam sozinhas na habitação desta última, não existindo ninguém que tenha presenciado a alegada entrega e a suposta apropriação das peças de ouro. Esta sim, é a dinâmica do processo, e apenas esta materialidade (a entrega ou não entrega das peças de ouro) constitui o seu objecto.
22. Ora, o que podem as testemunhas saber sobre o que realmente aconteceu?! Viram?! Estavam lá?! O próprio tribunal a quo concluiu que não! Não pode o tribunal a quo concluir pela responsabilidade penal de uma pessoa tão-só porque as testemunhas arroladas e inquiridas em julgamento - com relação de proximidade com a ofendida - discorrem acerca da ingenuidade e da tristeza de quem é alegadamente ofendido.
23. A inadmissibilidade do depoimento indirecto resulta inequivocamente da lei, pelo que, ao decidir da forma que o fez, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 127.º e 129.º, bem como o disposto no número 2 do artigo 374.º, todos do Código de Processo Penal.
24. Acresce que o depoimento da testemunha de defesa - F...- não foi sequer considerado, por, alegadamente, o tribunal a quo ter entendido que, por ser amiga da arguida, o depoimento da testemunha se mostrou "parcial e comprometido [...]". Pergunta-se: os depoimentos das testemunhas já identificadas não são também, e no fundo, depoimentos de amigos próximos ou de pessoas do círculo de relação próxima da ofendida"! Poderá retirar-se das palavras da testemunha F.... um tal apego que justifique a sua total irrelevância? Porque razão o tribunal a quo efectuou uma valoração dispare dos testemunhos?
25. Assim, e em face de todo o exposto, a prova produzida foi deficientemente valorada pelo tribunal a quo. A prova produzida em audiência de julgamento não pode, por si só e sem mais, conduzir à conclusão plasmada na sentença ora sindicada com a condenação da arguida, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida da prática do crime de que vem acusada.
Ainda sem prescindir no atrás alegado,
26. A sentença proferida pelo tribunal a quo encontra-se ainda inquinada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) do número 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal), porquanto o tribunal a quo não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto, designadamente quanto ao valor das peças de ouro.
27. Com efeito, dos pontos 1. e 5. dos factos dados como provados resulta que as peças de ouro (colar contas de Viana e a libra da Rainha Vitória) tinham o "valor global de € 1.830,00 [...]" e "A arguida causou um prejuízo no valor de € 1.830,00.".
28. Salvo melhor entendimento, a prova produzida em audiência de julgamento não se revela bastante para a decisão da matéria de facto em causa. Aliás, o tribunal a quo - e mal, segundo defendemos - firmou o seu entendimento com base nas grosseiras contradições das testemunhas e da ofendida, que não foram valoradas / ponderadas pelo tribunal recorrido nesse sentido.
29. Tanto que, apesar dos diferentes valores referidos pelas duas testemunhas e pela ofendida, não diligenciou o tribunal a quo por aferir, com a necessária certeza, qual o real valor das peças em ouro.
30. Ora, na tarefa da descoberta da verdade material, impunha-se ao tribunal a quo ter ido mais além, designadamente no apuramento da verdade material no que ao valor das peças se refere. Impunha-se assim ao tribunal a quo e relativamente ao valor das peças de ouro em causa, decisão diversa da que veio a ser tomada, com importantes reflexos na condenação em reparação oficiosa dos prejuízos considerados sofridos pela ofendida.
31. Não o tendo feito, e limitando-se à menção do valor indicado nas peças de acusação, que não havia sido sujeito a qualquer confirmação, o tribunal a quo formou incorrectamente a decisão por deficiência da premissa em causa (valor das peças).
32. Ora, neste seguimento, violou o tribunal a quo o disposto no número 1 do artigo 7º do Código de Processo Penal, o número 1 do artigo 124.º do Código de Processo Penal e igualmente o artigo 340.º do Código de Processo Penal.
33. Assim sendo, e em face do exposto, deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que profira a decisão de absolvição da arguida.
Acresce ainda que,
34. O tribunal a quo não assegurou, quanto à reparação oficiosa dos alegados prejuízos sofridos pela ofendida, o exercício do contraditório, tal como exigido no número 2 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal; para além de, in casu, não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação daquele normativo.
35. Com efeito, o tribunal a quo vedou à arguida a possibilidade de se pronunciar acerca da reparação oficiosa dos prejuízos que a ofendida terá (alegadamente) sofrido e, bem assim, acerca da determinação do valor das peças, que fixou de forma arbitrária e por mera remissão para o libelo acusatório, na quantia de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros), não tendo possibilitado que a arguida se pronunciasse pela aplicação do normativo em causa ou sequer pelo valor arbitrado.
36. Tal como decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (proferido em 19 de Outubro de 2011, disponível e acessível, na íntegra, em www.dgsi.pt), que acompanhamos, "[...] A condenação em indemnização, sem observância do contraditório, nos casos especiais previstos no art.º 82º-A, do C. Proc. Penal (não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil), configura uma compressão intolerável de um direito, consubstanciando uma irregularidade processual, com evidente paridade com nulidades de natureza insanável, devendo o seu conhecimento e reparação ser oficioso. [...]"(negritos nossos).
37. Assim sendo, na sentença sindicada o tribunal a quo também violou o disposto no artigo 82.º-A e no artigo 123.º, ambos do Código de Processo Penal, o que deve determinar a invalidade da sentença, que deverá ser revogada em conformidade.
38. Por outro lado, não se verificam preenchidos os requisitos de que depende o arbitramento oficioso de qualquer quantia a título de reparação por prejuízos, porquanto não resulta existirem especiais de protecção da vítima. Aliás, é manifesto não estarem verificadas, in casu, quaisquer "particulares exigências de protecção da vítima", de que a lei faz depender a aplicação do instituto da reparação oficiosa dos prejuízos.
39. O tribunal a quo considerou apenas provado, com interesse para a questão, que a ofendida B.... "vive sozinha, de forma modesta" (cfr. ponto 12. dos factos dados como provados), pelo que a quantia arbitrada a título de reparação oficiosa é ilegal e destituída de fundamentos.
40. Assim, ao condenar oficiosamente a arguida - ao abrigo deste preceito legal - no pagamento da reparação à ofendida, a sentença recorrida violou também o disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que não emita qualquer juízo de condenação da arguida na reparação dos alegados prejuízos».

3.
O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Nos mesmos termos se pronunciou o Exmº P.G.A.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P. A arguida respondeu, reafirmando o que já havia dito.

4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
 
*
*

FACTOS PROVADOS

5.
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
«1. No dia 1 de Abril de 2011 a arguida deslocou-se à residência da sua amiga B...., sita na ...., nesta comarca de Coimbra.
2. Nesse local, onde ambas almoçaram, B....emprestou à arguida um colar de “contas de Viana” e uma “libra da Rainha Vitória”, tudo no valor global de € 1.830,00, bens esses que lhe pertenciam.
3. A arguida comprometeu-se a devolver essas peças em ouro, depois de as usar numa festa de batizado em que ia participar no dia 10 de Abril de 2011, pelo que as mesmas foram-lhe entregues nessas condições.
4. Acontece que nos dias que seguiram ao dia 10 de Abril de 2011 a arguida não devolveu as mencionadas peças em ouro à sua proprietária, nem até hoje o fez, assim se apropriando das mesmas em seu benefício, fazendo-as suas, não obstante saber que não lhe pertenciam e que apenas lhe tinham sido facultadas nas condições supra referidas.
5. A arguida causou a B.... um prejuízo no valor de € 1.830,00.
6. Agiu com a intenção - alcançada - de fazer seu o colar de “contas de Viana” e a “libra da Rainha Vitória”.
7. Atuou livre e conscientemente (dando à queixosa a indicação de que o colar e a libra tinham ficado com esta).
8. A arguida, bem sabia que tais bens não lhe pertenciam e que, dessa forma, praticava ato punido por lei e que atuava contra a vontade da sua legítima proprietária.
Mais se provou que:
9. A arguida não tem antecedentes criminais.
10. Encontra-se a tirar um mestrado na Escola Superior de Educação de Coimbra e está desempregada desde 27 de Fevereiro de 2012, auferindo um subsídio de cerca de € 537.
11. É solteira e vive sozinha.
12. B.... vive sozinha, de forma modesta, na residência supra indicada».

6.
E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente «os factos descritos nos artigos 14º a 20º do PIC».

7.
O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«A convicção do tribunal baseou-se:

No conjunto e no confronto da prova carreada para os autos, analisada em audiência, e da prova produzida em julgamento a qual foi valorada à luz das regras da lógica, da experiência e do normal acontecer.
Como assim, e em suma, B...., ofendida, relatou entristecida e de forma serena o contexto da ação, referindo a amizade que tinha com a arguida e o facto de lhe ter, efetivamente, emprestado o colar e a libra, para a sua amiga usar na festa de batizado.
Mais referiu que tinha colocado o colar e a libra num saquinho de veludo e o tinha entregue à arguida, esclarecendo que vira a arguida colocar as coisas dentro da sua carteira.
Ora, apesar de a arguida ter negado tal facto, insistindo que as coisas tinham ficado em cima da mesa da entrada de casa de B.... (onde – segundo apuramos - apenas reside e estava esta senhora), o que é certo, é que a atitude e postura humilde e modesta, mas também segura, desta última, conferiram – não só, mas também por isso mesmo - grande credibilidade ao seu depoimento.
Com efeito, a sua idade (mais de 50 anos), a sua modesta condição, a sua “triste certeza” – de que arguida ficara com o colar e a libra - e a sua atitude generosa e ingénua (como foi referido, com enfase, por algumas das testemunhas inquiridas em julgamento) e – finalmente - o cuidado com que guardava os referidos objetos em ouro, não é consentânea com a de alguém que “se esquece” de coisas valiosas e cuidadosamente colocadas dentro de um “saquinho de veludo” em cima de uma mesa à entrada de casa e está a deturpar os factos e sem razão - aparente ou invocada - com isso sacrifica – pelo caminho – uma amizade.
Já a arguida, em bom rigor, tem o direito de se defender, quer remetendo-se ao silêncio quer apresentando uma versão dos factos distinta da realidade (posto que não é ajuramentada).
Finalmente, e não menos importante, ponderamos – no confronto da prova - o depoimento das testemunhas C....(vice-provedor da Santa Casa da Misericórdia) e de D.... (médica) e ainda o de E..., os quais atestaram a seriedade da ofendida e corroboram a leitura dos factos, dando ainda conta da natureza modesta, ingénua e honesta da ofendida – que conhecem há muito anos – e a sua preocupação com a não devolução das peças em ouro que emprestara à arguida. 
Posto isto, o depoimento de F... – amiga da arguida – mostrou-se parcial e comprometido, sobretudo porque, não estando presente em casa da ofendida, afigurou-se demasiado empenhada em transmitir a versão da arguida, sua amiga.
Destarte, os factos apurados, mereceram prova cabal e segura e – em rigor - não foram infirmados por qualquer meio de prova.
No que concerne aos elementos subjetivos – que se prendem com o conhecimento da ilicitude e a intencionalidade da conduta – os mesmos foram extraídos, como consequência lógica, do cotejo da prova produzida quanto aos factos objetivos supra descritos.
Finalmente, tivemos ainda em consideração o teor do Certificado de Registo Criminal juntos aos autos».
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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:
I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
II – Erro notório na apreciação da prova
III – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
IV – Violação do art. 82º, nº 2, do C.P.P. 

*
I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

            A arguida impugna a decisão sobre a matéria de facto no que respeita aos pontos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da matéria assente porque, diz, não foi feita prova no sentido decidido.
            Os factos em causa são os seguintes:
«2. Nesse local, onde ambas almoçaram, B....emprestou à arguida um colar de “contas de Viana” e uma “libra da Rainha Vitória”, tudo no valor global de € 1.830,00, bens esses que lhe pertenciam.
3. A arguida comprometeu-se a devolver essas peças em ouro, depois de as usar numa festa de batizado em que ia participar no dia 10 de Abril de 2011, pelo que as mesmas foram-lhe entregues nessas condições.
4. Acontece que nos dias que seguiram ao dia 10 de Abril de 2011 a arguida não devolveu as mencionadas peças em ouro à sua proprietária, nem até hoje o fez, assim se apropriando das mesmas em seu benefício, fazendo-as suas, não obstante saber que não lhe pertenciam e que apenas lhe tinham sido facultadas nas condições supra referidas.
5. A arguida causou a B.... um prejuízo no valor de € 1.830,00.
6. Agiu com a intenção - alcançada - de fazer seu o colar de “contas de Viana” e a “libra da Rainha Vitória”.
7. Atuou livre e conscientemente (dando à queixosa a indicação de que o colar e a libra tinham ficado com esta)».
            Para demonstrar o erro de julgamento imputado a arguida convoca os depoimentos da ofendida B.... e das testemunhas C.... e D....: quanto ao primeiro, diz que a ofendida não apontou um valor concreto às peças alegadamente emprestadas; quanto aos segundos, refere que elas nada viram, pelo que não podia o tribunal ter considerado o que disseram para fundamentar o decidido.

            Como resulta da fundamentação da matéria de facto, os factos pressupostos do ilícito imputado à arguida assentaram no depoimento prestado pela ofendida B.....
            As razões para a credibilização das suas palavras, com a consequente desvalorização das palavras da arguida, constam do texto e são claras.
Por um lado foram realçadas a atitude e postura da ofendida, tidas como reveladoras de segurança naquilo que dizia.
 A isto acresceu um outro dado, bastante relevante na economia da decisão: a sentença refere a modéstia da condição da ofendida – que, no caso, tem que reportar-se à condição económica -, diz que ela era especialmente cuidadosa com as peças de ouro em causa nos autos e conclui, na sequência, que não era razoável que, conforme a arguida pretendeu demonstrar, ela se esquecesse das peças em cima de uma mesa, à entrada da casa.
            Diz, ainda, que também foram considerados os depoimentos de C.... e D...., que atestaram a seriedade da ofendida e a sua preocupação com a não devolução das peças de ouro que emprestara à arguida. 

            Desta síntese resulta evidente que, como acima dissemos, os factos integradores do crime de burla resultaram, apenas, do depoimento da ofendida.
            Assim não tem sentido a invocada violação do art. 129º do C.P.P., que versa sobre o depoimento indireto.
            Mas repare-se que mesmo que os depoimentos das referidas testemunhas tivessem sido cruciais para prova dos pressupostos do crime, o conhecimento destas assentou naquilo que a ofendida lhes havia dito. E a ofendida foi ouvida.
            Ou seja, por uma razão ou por outra, não tem fundamento a nulidade invocada.

            Então, e no que ao depoimento das testemunhas respeita, não há qualquer desconformidade entre o que a sentença refere e a prova produzida.

            Mas o mesmo sucede em relação ao depoimento da ofendida.
            Se não repare-se.
            A sentença baseou a condenação no depoimento de B.... e a arguida aceita que esta disse, em julgamento, que lhe tinha emprestado as peças de ouro e que nunca as recebeu de volta.
            É isto que a sentença consignou.
            Portanto, também neste particular não existe qualquer disparidade entre o que a sentença refere e a alegação da arguida.

            E nem em relação ao valor das peças de ouro – que a ofendida emprestou à arguida e esta não devolveu -, ocorre qualquer dissidência.
            Como aconteceu quanto ao mais, também o valor atribuído às peças assentou nas palavras da ofendida e a arguida aceita que esta indicou o valor consignado no ponto 2. da matéria assente.

            Ao relevo atribuído pela sentença recorrida ao depoimento da ofendida no que ao valor respeita a arguida contrapõe dizendo, por um lado, que o valor não foi indicado com precisão e dizendo, por outro lado, que o valor indicado foi demasiado preciso.
            Tendo presente as considerações que a sentença recorrida teceu a propósito da personalidade da ofendida, e que expusemos acima, é natural que esta soubesse, com precisão, o valor das peças de ouro que emprestou, nomeadamente, também, por as ir emprestar.
Independentemente de se tratar de peças valiosas, não percebemos a estranheza manifestada pela arguida pelo facto de a ofendida, proprietária daqueles bens, saber o valor das peças de ouro que tinha. A isto diremos, apenas, que é tão natural saber como não saber.

            Então, e aqui chegados, concluímos que o que está em causa no recurso é não a disparidade entre o conteúdo dos depoimentos relevados e o consignado na sentença, mas sim a convicção que o tribunal formou perante as provas produzidas, sobretudo perante os depoimentos da ofendida e da arguida.
            O que está em causa é, portanto, o processo de formação da convicção.
*
Dispõe o art. 127º do C.P.P. que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Apreciação livre da prova não é apreciação arbitrária da prova. E para o garantir exige a lei, no nº 2 do art. 374º do C.P.P., a fundamentação da sentença, «que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal» (à violação deste comando corresponde a nulidade da decisão, conforme determina o art. 379º, nº 1, al. a)).
Como toda a discricionariedade jurídica, também a livre apreciação da prova tem limites que não podem ser ultrapassados. Esta liberdade de apreciação é uma liberdade pré-determinada ao dever de perseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios de objectivos e, portanto, susceptível de motivação e de controlo. Não se trata de mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), envolvendo a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis (daí o papel essencial que assume a imediação).
Para além disso intervêm deduções e induções do julgador, baseadas nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos [1].

Portanto, a livre apreciação da prova pressupõe a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção.

No caso as conclusões a que o tribunal recorrido chegou têm assento na prova produzida.
Que prova?
O depoimento da ofendida, claro.
A convicção é a certeza adquirida, o convencimento.
Então a livre convicção é o processo de convencimento do juiz sobre os factos, feito de acordo com a regra enunciada.
Esta livre convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado. Também não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios. Do mesmo modo não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados na decisão.
A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível e o juiz, que não é divino, não consegue alcançar um tal patamar.
Mas o processo também não se basta com a verdade formal, apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem.
O que verdadeiramente se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, e obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida [2].
Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.
Mas esta liberdade não é arbitrariedade. O juiz tem uma margem de liberdade de apreciação, mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo [3].
            Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que consiste, afinal, na opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos há, pelo menos, duas versões em confronto no julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir [4], terá ele que fazer a sua opção de acordo com as regras enunciadas.
No processo de sindicância da decisão recorrida o tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma, fundada na sua própria interpretação da prova. Ao invés, o recurso destina-se a verificar se os factos em apreciação estão devidamente suportados pela análise crítica feita às provas.
Então, a censura desferida à formação da convicção do tribunal recorrido não pode assentar no ataque à fase final da formação de tal convicção, ou seja, à valoração da prova, mas deve assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente na existência dos dados objectivos referidos na motivação, na violação dos princípios de prova quanto à aquisição de tais dados ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Entender as coisas de outra forma era inverter a posição das personagens do processo, substituindo a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão [5].

E dito tudo isto bem se percebe quão indispensável é que o juiz cumpra o dever constitucional de fundamentação adequada, consagrado no nº 1 do art. 205º da Constituição, pois é a motivação que constitui o mecanismo de controlo do processo de formação da convicção do tribunal. É a motivação que legitima a decisão, ou seja, é a motivação que legitima o poder judicial num Estado de Direito, pois que o que se exige é que o seu destinatário e a comunidade em geral percebam a decisão proferida, isto mesmo que com ela não concordem.
            Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a determinadas fontes de prova em detrimento de outras, só haverá fundamento válido para proceder à alteração da decisão se esta não se apresentar como uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência. Dito de outro modo, se a decisão do julgador for uma das soluções plausíveis a retirar da prova produzida, prova esta analisada e valorada segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que julgue de acordo com a sua livre convicção.
Por isso a lei exige que quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto se indiquem as provas que imponham decisão diferente da recorrida: só quando essas provas impõem decisão diferente da recorrida é que se concluirá que a decisão não respeitou tais provas e haverá, por isso, que proceder à alteração. Ao invés, se as provas apenas permitirem decisão diferente e se a decisão impugnada estiver devidamente fundamentada, então tudo se passa no âmbito de liberdade de apreciação atribuída por lei ao juiz, pelo que ela será imodificável.

            A valoração da prova por declarações depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa, da motivação e do interesse de cada um, nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criação de uma realidade virtual.

            Dito isto entendemos que a decisão de facto, que se encontra devidamente fundamentada, corresponde não só a uma leitura possível da prova, como à única leitura da prova.

            Em sede final de impugnação a arguida invoca a violação do princípio in dubio pro reo, derivada do facto de o tribunal ter decidido contra a arguida em caso de dúvida.

            O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo ao princípio inscrito no art. 127º do C.P.P., impondo a orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos.
A dúvida sobre a ocorrência dos factos desfavoráveis existe quando, na sentença, se percebe que a certeza sobre os mesmos não foi alcançada; existe, ainda, quando da prova não resulta a certeza afirmada na sentença.
Contrariamente à tese do recurso, a dúvida que convoca a intervenção do princípio in dubio pro reo aquando da decisão sobre a matéria de facto não depende da quantidade de prova existente num sentido e no outro – “contra” e “pró” arguido -, nem da existência de uma ou várias teses sobre os factos a julgar.

No caso havia a tese da ofendida e a tese da arguida. A sentença recorrida optou pela tese da ofendida – daí a condenação -, e explicou o que levou a essa decisão.
No momento em que o tribunal recorrido se convenceu da veracidade das palavras da ofendida alcançou a certeza necessária à condenação.
E tudo isto está devidamente explicado.
Não tem sentido, pois, invocar a violação do princípio do in dubio.

Pelo exposto improcede a impugnação.
*

II – Erro notório na apreciação da prova

            Conceptualmente, o vício do erro notório na apreciação da prova acontece quando o tribunal dá como provado um facto logicamente inaceitável, notoriamente errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto [6].
Desdobra-se, portanto, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida.
Para além disso verifica-se, ainda, o vício do erro notório quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
            Quanto à característica da notoriedade do erro, entende-se que ele tem que ser interpretado como se interpreta o «conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório» [7].
            Finalmente, e como resulta do texto expresso da lei, este vício – tal como os demais enumerados no nº 2 do art. 410º do C.P.P. -, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

            A arguida imputa à sentença recorrida o vício do erro notório na apreciação da prova na base da seguinte fundamentação: «O tribunal a quo errou manifestamente na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, tendo violado as regras da experiência comum na apreciação que fez de algumas provas e baseando-se em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios».
            Da alegação resulta que o que a arguida põe em causa é, de novo, o processo de formação da convicção do tribunal recorrido o que, como resulta do exposto, nada tem a ver com o vício invocado.
Para além disso do texto da sentença não resultam quaisquer ilogicidades na decisão suscetíveis de configurarem o erro notório na apreciação da prova, invocado.
*

            III – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

            O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre se no elenco dos factos provados não constarem todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime cuja prática se imputa ao agente, bem como os elementos indispensáveis à escolha e determinação da pena.
Este vício nada tem que ver, portanto, com a suficiência das provas que suportam a matéria de facto provada, circunscrevendo-se, apenas, ao elenco – insuficiente -, da matéria provada.

            A arguida alega a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque, e citamos, «o tribunal a quo não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto, designadamente quanto ao valor das peças de ouro … na tarefa da descoberta da verdade material, o tribunal a quo podia e devia ter ido mais além, designadamente no apuramento da verdade material no que ao valor das peças se refere. Não o tendo feito, e limitando-se à menção do valor indicado nas peças de acusação, que não havia sido sujeito a qualquer confirmação, o tribunal a quo formou incorrectamente a decisão por deficiência da premissa em causa (valor das peças)».
            Portanto, a arguida retoma a impugnação da convicção do tribunal recorrido, tema que já foi abordado e decidido.

            A propósito da alegada insuficiência a arguida aborda, ao de leve, os deveres de investigação do tribunal e conclui pela violação do art. 340º do C.P.P.

O art. 340º do C.P.P., que inicia o capítulo relativo à produção da prova, diz no seu nº 1, que «o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa».
Esta norma, que regula a admissão da prova na audiência de julgamento, é uma consequência do princípio da investigação em que assenta o nosso processo penal.
Desta asserção não se pode concluir, porém, que entre nós impera, afinal, o princípio do inquisitório, que atribui ao juiz o dever de realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos.
Se é verdade que do princípio da investigação resulta que «sobre o juiz recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente … o facto submetido a julgamento» [8] tal não significa, contudo, que quem pretenda demonstrar uma determinada realidade fique desonerado de requerer a produção dos meios de prova necessários a esse desiderato, no momento processual próprio.
Por isso, porque esta norma não tem a virtualidade de anular toda a estrutura do processo penal, mantêm-se as demais regras sobre a matéria, constantes dos art. 284º, nº 2, al. b), 285º, nº 3, 287º, nº 2 e 315º, nº 1, 3 e 4, todos do C.P.P.

Como dissemos acima, a norma do art. 340º do C.P.P. regula a admissão da prova na audiência de julgamento. Se estamos em sede de audiência isto significa que há muito passou a fase de indicação de prova no processo.
E como as regras disciplinadoras do processo se mantêm, então o que consta do art. 340º do C.P.P. é uma faculdade excecional pensada para provas supervenientes, ou cujo conhecimento foi superveniente, ou que não foi possível apresentar no momento próprio por uma razão atendível. Finalmente é ainda necessário que tais provas sejam relevantes (nº 4).
Estes os pressupostos de admissibilidade da indicação superveniente de novas provas, não obstante a fase processual respetiva já ter sido ultrapassada.

Quando a iniciativa da produção da prova caiba ao juiz, ela radicará na circunstância de ter vindo ao seu conhecimento a existência dessa prova.
E este conhecimento resultará, obviamente, de essa nova prova, não indicada no processo, ter sido referida na audiência, de forma expressa ou implícita, mas sempre em termos tais que o fez concluir que essa prova existe.
Para além disso terá que resultar que essa prova, de cuja existência o tribunal só nesse momento teve conhecimento, é importante para a descoberta da verdade.
Finalmente, esta iniciativa pressupõe que os intervenientes processuais nada requereram nesse sentido.

Assim, do princípio da investigação resulta que a atividade investigatória do tribunal não está limitada pelo material indicado pelos intervenientes. Seguindo, de novo, Figueiredo Dias [9] diremos que o tribunal não está inibido de investigar a existência de causas de justificação de um facto criminoso, antes está obrigado a fazê-lo, se a possibilidade da sua verificação foi referida, abordada, aflorada durante a discussão da causa e nenhum dos intervenientes teve a iniciativa de diligenciar nesse sentido. Porém, o juiz já não tem a obrigação de indagar «autónoma e exaustivamente, da inexistência de causas justificativas» quando nada para isso aponte.
Do mesmo modo não é ao juiz que incumbe demonstrar a tese da acusação nem é a ele que incumbe curar de propor novas provas com vista a esse fim, quando as que foram apresentadas se revelem insuficientes, quando ninguém falou da existência de outras provas novas, para além das indicadas, essenciais àquela demonstração e quando o Ministério Público nada fez nesse sentido.

Mas, e apesar da referência ao art. 340º do C.P.P., a questão colocada pela arguida não se inscreve nesta querela.
O que a arguida alega é que não se provou o valor das peças de ouro pelo que, diz, o tribunal deveria ter diligenciado pela prova de tal facto.
Ora, em relação ao valor das peças de ouro da ofendida, emprestadas à arguida e que esta não devolveu, ou o tribunal recorrido se bastava com a prova produzida, e decidia, ou a achava insuficiente e, sendo-o, a questão do valor ficaria em aberto.
No caso o tribunal teve por boa a prova apresentada e fundamentou o decidido de forma cabal.
Portanto, não tem sentido o requerido.
*

IV – Violação do art. 82º-A, nº 2, do C.P.P. 
Na parte relativa à matéria de facto não provada consta da sentença recorrida que «não se provaram, para além dos que supra se fizeram constar, os factos descritos nos artigos 14º a 20º do PIC».
Este “PIC” será o pedido de indemnização civil, pois é naqueles termos que normalmente as sentenças e acórdãos se lhe referem.
Mas no processo não foi deduzido qualquer pedido de indemnização.
Por isso é que a condenação em indemnização assentou no disposto no art. 82º-A do C.P.P.
Sobre esta questão é o seguinte o excerto da sentença recorrida que se lhe refere:
«Face à modesta condição de vida da ofendida e posto que se encontram reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual (decorrente do disposto no artigo 483º do C.Civ.) - não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil - ao abrigo do disposto no art. 82º A do Cód. Proc.Penal, a arguida deverá ainda, efetuar o pagamento da quantia de € 1830 à ofendida, o que se determina».
            É esta a fundamentação de facto e de direito que presidiu à condenação em indemnização.
*
A arguida alega, quanto a isto, que foi violado o art. 82º-A do C.P.P., por não se verificarem os pressupostos materiais de que depende a aplicação desta norma e por não ter sido dado cumprimento ao princípio do contraditório, estabelecido no nº 2, já que o tribunal recorrido procedeu à condenação sem lhe ter dado a oportunidade de se pronunciar sobre a questão.

O art. 82º-A do C.P.P., cuja epígrafe é “reparação da vítima em casos especiais”, dispõe:
«1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. 2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
…».

A primeira questão que se coloca, antes de analisar se os pressupostos materiais da condenação em indemnização, com recurso ao mecanismo do art. 82º-A do C.P.P., se verificam, é sobre o princípio do contraditório.
Tal como o demandado civil tem que ter conhecimento do pedido de indemnização, quando este seja deduzido, também nos casos em que a condenação em indemnização civil ocorre sem que exista tal pedido o arguido terá que ter conhecimento, previamente à condenação, da possibilidade de lhe vir a ser imposto o pagamento de uma indemnização ao lesado.
E porquê? Naturalmente porque não pode ser surpreendido com uma decisão que não estava no seu horizonte poder acontecer.
Por isso quando o juiz conclua que pode sobrevir a condenação em indemnização, nos termos do nº 1 do art. 82º-A, do C.P.P., terá que informar o arguido dessa possibilidade e dar-lhe, consequentemente, o direito de se pronunciar.

No caso isto não foi feito, pois em momento algum a arguida foi notificada da possibilidade de também vir a ser condenada a indemnizar a ofendida.
Foi violado, pois, o comando do nº 2 do art. 82º-A do C.P.P.

Como sabemos, a nossa lei processual adotou o princípio da legalidade das nulidades, nos termos do qual «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada» - art. 118º, nº 1, do C.P.P.
Em decorrência de tal princípio estabeleceu, no nº 2, que os casos em que não seja cominada a nulidade o ato ilegal será irregular.

O art. 82º-A do C.P.P., que ordena o cumprimento do princípio do contraditório, não avança sobre o vício gerado quando isso não ocorra.
A omissão verificada também não integra o elenco dos art. 119º e 120º do C.P.P., que enumeram as nulidades não expressamente referidas como tal em outras disposições legais.
Então resta a irregularidade, do nº 1 do art. 123º do C.P.P., que estabelece que «qualquer irregularidade do processo só determina a invalidada do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado».

Não havendo dúvida que se trata de irregularidade – e não de nulidade, como é alegado -, o que há que ver é se a omissão do cumprimento do nº 2 do art. 82º-A do C.P.P. pode, ou não, ser conhecida, já que o momento da sua arguição não respeitou nem o prazo estabelecido no art. 123º do C.P.P., nem o do art. 105º deste mesmo diploma.

Sobre esta questão já foi decidido nesta relação, em 19-10-2011 [10], que esta irregularidade comprime, de forma intolerável, um direito fundamental de um interveniente processual, direito este que decorre diretamente da Constituição.
Por isso, e não obstante a sua arguição intempestiva, o acórdão decidiu conhecê-la, por via da possibilidade de ser oficiosamente conhecida, uma vez que este não está sujeito a qualquer prazo.
E, conhecendo da irregularidade, remeteu o processo ao tribunal recorrido para a mesma ser sanada.

Entendemos que se trata de uma solução curiosa porque, de alguma forma, desvirtuadora do regime legal das irregularidades processuais que, enquanto “infrações” secundárias, não mereceram, por parte da lei, uma especial proteção.
O prazo estabelecido na lei para a sua arguição é disso demonstrativo.
Mas, e mantendo a terminologia usada, há “infrações” e “infrações” e há aquelas, como o acórdão referido diz, que violam bases fundamentais do nosso edifício processual penal. O princípio do contraditório é uma dessas bases essenciais deste edifício.
Então, se uma qualquer irregularidade pode ser conhecida oficiosamente, por maioria de razão estas irregularidades devem sê-lo, isto mesmo que tenham sido arguidas por um interveniente processual e que não possam ser atendidas no âmbito desta arguição.
Por via disso decidimos, também, conhecer este vício cometido na sentença.

Como se disse, o tribunal recorrido condenou em indemnização sem ter cumprido o princípio do contraditório, o que inquina a sentença recorrida no que respeita ao pedido de indemnização, razão pela qual se anula a mesma, nesta parte.
Assim, o processo terá que regressar à 1ª instância para, antes de ser proferida decisão sobre a indemnização a atribuir à ofendida, ser dado cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 82º-A do C.P.P.
E para que isto suceda terá a audiência que ser reaberta.
Cumpridas estas formalidades deverá o tribunal a quo proferir nova sentença, decidindo a questão da eventual indemnização a atribuir.
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            DISPOSITIVO

            Por todo o exposto, e na procedência parcial do recurso, anula-se a sentença recorrida no segmento relativo à condenação civil, remete-se o processo à 1ª instância determinando-se a reabertura da audiência para dar cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 82º-A do C.P.P. e para, caso tal se mostre necessário, proceder à produção de prova relacionada com esta matéria, finda a qual haverá que proferir nova sentença.

Sem custas.




Coimbra, 2014-01-22
Olga Maurício (Relatora)
José Calvário

[1] Acórdão do T.R.C. de 18-8-2004, processo 1937/04.
[2] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.
3 Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.
4 Nos termos do nº 2 do art. 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais estes «não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».
5 Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, de 24-3-2004.




[6] Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. anotado, vol. II, pág. 740.
[7] Acórdão do S.T.J. de 6-4-1994, processo 046002, relatado pelo sr. conselheiro Ferreira Vidigal.
[8] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág.192.
[9] Obra citada, pág. 193.
[10] Proferido no processo nº 257/10.9JACBR, relatado pela srª desembargadora Maria Pilar Oliveira.