Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
268/11.7T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO DA NULIDADE
RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEAS B) A D) NO N.º 1 ART.º 668.º DO C.P.C.
Sumário: Sendo cometida alguma nulidade processual, para a sanar, deve, em regra, apresentar-se reclamação, não constituindo, em princípio, o recurso o meio próprio para a atacar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e mulher B... instauraram, no Juízo de Grande Instância Cível de Anadia, da comarca do Baixo Vouga, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C..., D... e E...E..., pedindo que se condene estes a:

a) reconhecerem que os autores são donos e possuidores do prédio constituído por um terreno dentro do aglomerado urbano, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Águeda, com a área de 830,50 m2, onde se encontra em construção uma moradia que se há-de compor de r/c e 1.º andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o n.º X..., e inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo Y....º.

b) desocuparem e a entregarem aos autores, livre, limpo e desocupado aquele prédio.

c) pagarem aos autores todos os prejuízos que lhes causarem com a ocupação abusiva que vêm fazendo do referido imóvel, designadamente no pagamento da quantia mensal € 400,00, por cada mês ou parcela de mês, que o ocupem, até efectiva.

Alegaram, em síntese, que são donos do prédio acima descrito e que a respectiva propriedade lhes adveio por sentença, já transitada em julgado, no âmbito de um processo judicial de execução especifica do contrato-promessa de compra e venda, outorgado entre os aqui autores, na qualidade de promitentes compradores e os aqui réus, na qualidade de promitentes vendedores. Mais alegaram que a aquisição do imóvel encontra-se inscrita no registo predial em seu favor. Os réus não lhe entregam o prédio e continuam a ocupá-lo, sem a sua autorização, o que lhes causa um prejuízo mensal não inferior a € 400,00 correspondente o valor de renda do dito prédio no mercado de arrendamento.

Os réus contestaram, mas, por decisão posterior, foi ordenado o desentranhamento desse articulado.

Foi proferido despacho que, ao abrigo do artigo 484.º n.º 1 do Código de Processo Civil[1], julgou "confessados os factos alegados nos arts. 8º, com exclusão de «abusivamente», 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 17º da petição inicial" e "o alegado nos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, da petição inicial comprovado através da junção dos documentos juntos a fls. 11 a 27".

Os autores apresentaram alegações nos termos do artigo 484.º.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julgo a presente acção procedente por provada, e consequentemente, decido:

a) Condenar os Réus C..., D...e E... a reconhecerem os Autores A... e mulher B... donos e possuidores do prédio descrito em 1) dos Factos Provados.

b) Condenar os Réus C..., D...e E... a desocuparem e a entregarem, livre, limpo e desocupado o prédio descrito no ponto 1) dos Factos Provados aos Autores A... e mulher B... , e

c) Condenar os Réus C..., D...e E... a pagarem aos Autores A... e mulher B... todos os prejuízos que lhe causarem com a ocupação abusiva que vêm fazendo do referido imóvel, designadamente no pagamento da quantia mensal €400,00, por cada mês ou parcela de mês, que ocupem, a partir da citação até efectiva entrega do imóvel."

Inconformados com tal decisão, os réus dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1.ª Terminados os articulados houve omissão do estipulado no normativo do n.º 5 do Art.º 486 - A. bem como do estabelecido no normativo do na alínea b) do Art.º 508 do C.P.C..

2.a Foi omitido despacho destinado ao aperfeiçoamento dos articulados nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do Art. 508.º não fixando o Tribunal a quo "... prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando ... a parte não haja apresentado documento essencial …"

3.a Tal ocorreu em violação do princípio processual de igualdade das partes estipulado no normativo do Art.º 3-A do C.P.C..

4.ª Violando o disposto no normativo do n.º 1 do Art.º 20.º da Constituição em conjugação com o estipulado nos normativos dos Art.º 8 e n.º 3 do Art.º 18.º da Lei 34/2004 alterada pela Lei 47/2007.

5.a Pelo que a decisão de considerar os factos articulados pelos AA confessados nos termos do Art.º 484.º do C.P.C. é "contra legem".

6.a A omissão no formalismo estipulado no normativo do n.º 5 do Art.º 486-­A. e no n.º 1 alínea b) bem como no n.º 2 do Art.º 508 determina a nulidade da Douta Sentença nos termos do estipulado no n.º 1 b), c) e d) do Art. 668.º C.P.C..

7.ª Por outro nos termos da alínea d) do n.º 1 do Art.º 668.º do C.P.C. o Tribunal a quo na decisão produzida não inferiu as consequências dos factos invocados e provados pelos AA.

8.ª Os AA não invocam um registo definitivo nos termos do Art.º 7.º do Código de Registo Predial.

9.a Os AA não pedem a execução específica da clausula 11 do aludido contrato de compra e venda logo os AA autorizam os RR a permanecer no referido imóvel.

10.a Pelo que apresente acção não tem as características de uma Acção de Reivindicação nos termos do estipulado no Art.º 1311 do C.C..

11.ª Não existe por parte dos AA a prova de um direito real nos termos do Art.º 1315 do C.C..

12.a A propriedade e a posse são duas realidades jurídicas diferentes não sendo os AA titulares nem de uma nem de outra.

13.a Pelo que a Douta Sentença é nula nos termos do estipulado nas alíneas b) a d) no n.º 1 Art.º 668.º do C.P.C..

Os autores contra-alegaram defendendo que "a douta sentença não violou qualquer disposição legal e assim se deve manter, devendo assim julgar-se improcedente o recurso interposto."

O Meritíssimo Juiz pronunciou-se no sentido de que a sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) "houve omissão do estipulado no normativo do n.º 5 do Art.º 486 - A. bem como do estabelecido no normativo do na alínea b) do Art.º 508 do C.P.C."[2], averiguando-se previamente se tal matéria pode ser aqui conhecida;

b) "a omissão no formalismo estipulado no normativo do n.º 5 do Art.º 486-­A. e no n.º 1 alínea b) bem como no n.º 2 do Art.º 508 determina a nulidade da Douta Sentença nos termos do estipulado no n.º 1 b), c) e d) do Art. 668.º C.P.C."[3];

c) "nos termos da alínea d) do n.º 1 do Art.º 668.º do C.P.C. o Tribunal a quo na decisão produzida não inferiu as consequências dos factos invocados e provados pelos AA."[4];

d) "não existe por parte dos AA a prova de um direito real nos termos do Art.º 1315 do C.C.", nomeadamente o direito de propriedade [5];

e) a sentença "é nula nos termos do estipulado nas alíneas b) a d) no n.º 1 Art.º 668.º do C.P.C."[6].


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

1- A aquisição do terreno dentro do aglomerado urbano, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Águeda, com a área de 830,50 m2, onde se encontra em construção uma moradia que se há-de compor de r/c e 1.º andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o número X..., inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo Y... está inscrita registral e definitivamente a favor dos Autores através da cota Ap. 1845 de 2010/12/23 11: 59: 06.

2- No prédio identificado em 1) já ali se encontra construída uma casa de habitação, composta de rés-do-chão, primeiro e segundo andar e quintal com árvores de fruto.

3- Tal prédio veio à posse dos Autores, por lhes ter sido adjudicado por douta sentença, já devidamente transitada em julgado em 02/12/2010, proferida no processo ordinário, que correu termos pelo Juízo de Grande Instância Cível de Anadia – Comarca do Baixo Vouga, sob o número 179/10.3T2AND, conforme melhor se alcança da certidão da sentença, já transitada em julgado, junta como doc. n.º 2 com a petição inicial, cujo teor se reproduz aqui para todos os efeitos legais.

4- Tal sentença resultou do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda que o Réu da alínea a), celebrou com os Autores e no qual os segundos Réus se obrigaram também a cumprir o ali estipulado, e por força do seu incumprimento, foi declarado o dito prédio a favor dos Autores.

5- Os Réus, apesar de saberem que o prédio acima identificado, lhes não pertence, ocupam-no fazendo dele a sua residência, sem autorização dos Autores.

6- Os Autores não pretendem que os mesmos continuem a ocupar aquele seu prédio, pois, pretendem efectuar obras no referido imóvel e colocá-lo no mercado do arrendamento ou vendê-lo ou dele fazer o que entenderem.

7- Nesse sentido, os Autores já comunicaram, por diversas vezes, aos Réus, e há mais de 4 meses, para que estes entreguem o dito imóvel, conforme melhor se alcança das cópias das cartas enviadas aos Réus como docs. n.os 4 a 6, cujo teor se reproduz aqui para todos os efeitos legais.

8- Os Réus prometeram ao Autor marido, entregarem tal imóvel até 28 de Fevereiro de 2011…

9-… o que não ocorreu.

10- O prédio identificado em 1) e 2) não se encontra acabado, nomeadamente, muitos dos compartimentos não têm portas, tem apenas uma casa de banho provisória no rés-do-chão, sendo que o local, destinado a casa de banho, não se encontra acabada, não tem sanita, lavatório, bidé, banheira, azulejos, ou seja está em massas grossas e sem o chão aplicado, tal como todo o piso do primeiro andar, destinado a quartos, sala e cozinha...

11-…e não se encontra participado no serviço de Finanças e nem possui licença de habitabilidade.

12- O valor da renda que o prédio identificado em 1) renderia no mercado de arrendamento nunca seria inferior a € 400,00 mensais.


2.º

Os réus sustentam que não se observou o disposto no "n.º 5 do Art.º 486 - A. bem como do estabelecido no normativo do na alínea b) do Art.º 508 do C.P.C.", o que, na perspectiva deles, "determina a nulidade da Douta Sentença nos termos do estipulado no n.º 1 b), c) e d) do Art. 668.º C.P.C." e faz com que a "decisão de considerar os factos articulados pelos AA confessados nos termos do Art.º 484.º do C.P.C." seja "contra legem".

O n.º 5 do artigo 486.º-A dispõe que "findos os articulados e sem prejuízo do prazo concedido no n.º 3, se não tiver sido junto o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa por parte do réu, ou não tiver sido efectuada a comprovação desse pagamento, o juiz profere despacho nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 508.º, convidando o réu a proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC."

A ter ocorrido a omissão que os réus mencionam, é evidente que a mesma consiste numa nulidade, pois, nesse caso, não se terá praticado o acto imposto por este n.º 5.[7]

O artigo 202.º dispõe que "das nulidades mencionadas nos artigos 193.º e l94.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 198.º e nos artigos 199.º e 200.º pode o tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas. Das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso".

Percebe-se, assim, o famoso postulado de que "dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se". Na verdade, face a uma nulidade processual o interessado tem que contra ela reclamar[8] e a reclamação é apresentada e julgada[9] no "tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou o tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu"[10].

Com efeito, "as nulidades processuais que não se reconduzam a alguma das nulidades previstas no art. 668.º, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição ou preclusão que não é compatível com a sua invocação apenas no recurso da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se à decisões que tenham sido proferidas sobre reclamações oportunamente deduzidas com base na omissão de certo acto, da prática de outro que a lei não admita ou da prática irregular de acto que a lei previa"[11].

Deste modo, se os réus entendem que antes de ser proferida a decisão recorrida foi cometida alguma nulidade[12], tinham que, em devido tempo, dela ter reclamado no tribunal a quo e, julgada essa reclamação, se discordassem da respectiva decisão poderiam, então, questioná-la em sede de recurso[13].

Portanto, se alguma nulidade foi cometida e se ela contaminou o processado que se lhe seguiu, como por hipótese a decisão que julgou confessados os factos articulados pelos autores[14] ou a sentença que posteriormente foi proferida, o que há que atacar, pelo meio próprio, é a nulidade e uma vez reconhecida esta, naturalmente que se anulará o processado subsequente que dependa do acto afectado por tal vício[15].

Não tendo sido suscitada e reconhecida qualquer nulidade relacionada com o que decorre do n.º 5 do artigo 486.º-A, naturalmente que falta o pressuposto essencial em que assentam as conclusões de que, por esse motivo, está ferida de nulidade a "Douta Sentença nos termos do estipulado no n.º 1 b), c) e d) do Art. 668.º C.P.C." e de que a "decisão de considerar os factos articulados pelos AA confessados nos termos do Art.º 484.º do C.P.C. é contra legem".

Diga-se, por último, que neste capítulo não se consegue compreender como podem os réus afirmar que não se cumpriu o disposto naquele n.º 5, dado que no despacho de 23-11-2011[16], de que estes foram, evidentemente, notificados[17], ordena-se que se "notifique os Réus para, no prazo de 10 dias, procederem conforme o preceituado no art. 486.º-A, n.º 5, do C.P.C., com o cominatório previsto no n.º 6 do citado art."


3.º

Os réus também censuram a decisão recorrida por "nos termos da alínea d) do n.º 1 do Art.º 668.º do C.P.C. o Tribunal a quo" não ter inferido "as consequências dos factos invocados e provados pelos AA."[18]

Nesta parte, dizem os réus que os autores invocam "um direito de propriedade alicerçado no registo provisório de uma acção. Tal direito é por natureza provisório e sujeito a prazo de caducidade. Pelo que não pode ser invocado no âmbito de uma acção típica de reivindicação nos termos do Art.º 1311.º do C.C.. Assim não se pode reconhecer um direito que não existe."

Segundo o artigo 668.º n.º 1 d) "é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento". Significa isso, que o juiz tem que "conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções que oficiosamente lhe cabe conhecer"[19].

No caso dos autos, como já se viu, um dos pedidos formulados foi o de condenação dos réus a reconhecerem que os autores são donos e possuidores do prédio constituído por um terreno dentro do aglomerado urbano, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Águeda, com a área de 830,50 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o n.º X..., e inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo Y....º.

Portanto, na sentença recorrida, ao condenar-se os réus a reconhecerem que os autores têm esse direito de propriedade e são possuidores desse bem, por se entender que lhes assiste tal direito, conheceu-se uma das questões de que havia que conhecer, pois ela tinha sido colocada à apreciação do tribunal, o mesmo é dizer que não se pode, desse modo, ter cometido a indicada nulidade. Questão diversa é a de saber se se decidiu e apreciou correctamente este pedido. Mas, se, porventura, a resposta for negativa, então estaremos perante um erro de julgamento e não de uma nulidade prevista no artigo 668.º n.º 1 d).


4.º

Outra das críticas dos réus resulta do seu entendimento de que "não existe por parte dos AA a prova de um direito real nos termos do Art.º 1315 do C.C."[20], uma vez que "não invocam um registo definitivo nos termos do Art.º 7.º do Código de Registo Predial"[21] e "não pedem a execução específica da clausula 11 do aludido contrato de compra e venda"[22], "pelo que apresente acção não tem as características de uma Acção de Reivindicação"[23].

Provou-se que:

- está inscrita registral e definitivamente a favor dos autores, através da cota Ap. 1845, de 2010/12/23, a aquisição do terreno dentro do aglomerado urbano, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Águeda, com a área de 830,50 m2, onde se encontra em construção uma moradia que se há-de compor de r/c e 1º andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o número X..., inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo Y....º.

- este prédio veio à posse dos autores, por lhes ter sido adjudicado por sentença, já devidamente transitada em julgado em 2-12-2010, junta como doc. n.º 2 com a petição inicial, cujo teor se reproduz aqui para todos os efeitos legais.

- essa sentença resultou do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda que o réu C... celebrou com os autores e no qual os réus D...e E... se obrigaram também a cumprir o ali estipulado, e por força do seu incumprimento, foi declarado o dito prédio a favor dos autores.

Sobre esta matéria afirmou-se na decisão recorrida:

"Antes do mais, convirá consignar que a pretensão deduzida nos autos pelas Autores se circunscreve, no essencial, no âmbito da acção típica de reivindicação (art. 1311.º, do Código Civil) - acção real por excelência, concedida para defesa do direito de propriedade, bem como dos demais direitos reais (art. 1315.º, do Código Civil), que constitui instrumento processual através do qual se manifesta uma das características congénitas daquele direito, que consiste na sequela.

Acerca deste tipo de acções escreveram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 112, em anotação ao referido art. 1311.º),: «A acção de reivindicação ... é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela.»

São, assim, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no n.º 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação.

Manuel Rodrigues (In «A reivindicação no direito civil português», in R.L.J., ano 57.º, pág. 144), refere que há: «na acção de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide. Da sua causa pretendi e do seu fim resulta imediatamente a natureza da reivindicação.»

Neste tipo de acções de reivindicação, a causa de pedir reveste uma natureza complexa, sendo constituída pelo acto ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real limitado) na esfera jurídica do autor e ainda pelos factos demonstrativos da violação desse direito (ocupação abusiva, um simples impedimento de utilização da coisa, etc.).

Esta é a solução imposta pelo art. 498.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que consagrando no nosso ordenamento jurídico a teoria da substanciação, estabelece que nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (no caso sub iudice, o direito de propriedade).

A este propósito elucidativamente escreveu o Prof. Alberto dos Reis(R.L.J., ano 84, pág. 138), «...o direito de propriedade na acção real, por excelência, aparece, não como causa de pedir, mas como objecto da acção, como efeito jurídico que com a acção se pretende obter (...) a causa de pedir, o verdadeiro fundamento, está no acto ou facto jurídico que se invoca para justificar o direito de propriedade.»

Desta feita, o reconhecimento do direito real (neste caso, mais concretamente, do direito de propriedade) constitui o efeito jurídico que com a acção se pretende obter, de que deriva, como consequência lógica, a entrega da coisa reivindicada.

Em relação ao primeiro daqueles elementos que constituem a causa de pedir, salientam os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela,: «se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.

Mas, se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet).

É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominus auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir – probatio diabolica - lhe chamam alguns autores.

Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse, se ela puder ser oposta ao detentor, e do registo (arts. 1268.º, do Código Civil, e 7.º do Código de Registo Predial).»

Nesta conformidade, constitui entendimento dominante, quer da doutrina, quer da jurisprudência, que na acção de reivindicação recai sobre o autor o ónus de alegação e prova, em todas as suas cambiantes, de uma forma de aquisição originária da propriedade ou a presunção resultante do registo, sob pena de a sua pretensão ser desatendida.(Cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in «Código Civil Anotado», vol. II, pág. 115 e Acórdão da Relação de Coimbra, de 24.02.92, in C.J., Tomo I, pág. 104).

Se o autor, por essas vias, demonstrar o seu direito, o possuidor só pode evitar a restituição da coisa se conseguir provar uma de três situações: a) Que a coisa lhe pertence, por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) Que tem sobre a coisa direito real que justifique a sua posse; c) Que detém a coisa por virtude de direito pessoal bastante.(Vide: A. Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, 1979, pág. 848).

Depois destes considerandos genéricos tocantes ao tipo de acção em que nos movemos, passemos a apreciar o nosso caso.

Ora, flui dos factos assentes em 1) e 2) dos Factos Provados que a propriedade referente ao dito prédio se encontra registada a favor dos Autores, pelo que este se presume iuris tantum proprietário destes prédios, por via do disposto no art. 7.º do Cód. Reg. Predial, sendo que os Réus não só não lograram elidir a dita presunção.

Mas mesmo se não houvesse a presunção, não é menos verdade defluir dos factos assentes em 3) e 4 que o prédio adveio aos Autores, por via da execução especifica, nos termos previstos no art. 830.º do C.C. do contrato de promessa de compra e venda do dito prédio outorgado entre os aqui Autores e os aqui Réus, pelo que, também, por via da execução especifica, a propriedade do dito imóvel se transmitiu aos Autores, em conformidade com o disposto nos arts. 408.º, n.º 1; 879.º, al. a) e 939.º, todos do C.C.

Vale isto por dizer, então, que os Réus não alegaram, e muito menos, provaram qualquer facto impeditivo, extintivo ou modificativo do direito da Autora à restituição dos prédios reivindicandos.

Procedem, assim, os pedidos conectados com o reconhecimento da propriedade dos prédios, em causa, e cumulativamente, a restituição do dito prédio à Autora."

Dito isto, resta manifestar inteira concordância com o Meritíssimo Juiz a quo, que bem e fundamentadamente analisou e decidiu a questão.

Realça-se a circunstância de que se provou que "está inscrita registral e definitivamente a favor dos autores (…) a aquisição do" imóvel em causa. E, como é sabido, o artigo 7.º do Código do Registo Predial dispõe que "o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define", norma esta que "estabelece uma presunção de verdade ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."[24] 

Acontece que esta presunção iuris tantum não foi ilidida.

Por outro lado, não é verdade que os autores "não invocam um registo definitivo nos termos do Art.º 7.º do Código de Registo Predial"[25], visto que na petição inicial estes dizem que "o referido prédio, encontra-se registado a favor dos Autores. Pelo que, beneficiam da presunção da sua propriedade, resultante do registo do prédio a seu favor, nos termos do art.º 7.º do C. do Registo Predial e art. 350.º n.º 1 do Código Civil"[26].

Aqui chegados, conclui-se que, contrariamente ao que é dito pelos réus, provaram-se factos de onde resulta que os autores são titulares do direito de propriedade do imóvel em disputa.


5.º

Por último os réus consideram que a sentença "é nula nos termos do estipulado nas alíneas b) a d) no n.º 1 Art.º 668.º do C.P.C."[27].

Esta afirmação, retirado o que neste aspecto tinha sido dito anteriormente pelos réus em matéria de nulidades da sentença[28] e que já se apreciou, não tem a menor sustentação; perante o que resta ela é vaga e infundada, pois não se alicerça em algo concreto que possa corresponder às apontadas nulidades.

O artigo 668.º n.º 1 estipula que "é nula a sentença quando:

(…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".

Vejamos melhor.

A fundamentação, a que se refere a alínea b), consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decide de determinada forma. E, no que toca à fundamentação de direito, esta "contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador. (…) Não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão"[29]. Por outro lado, "só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente".[30]

A sentença do tribunal a quo está fundamentada, pois nela figuram as razões, de facto e de direito, que conduzem às conclusões a que aí se chega.

Já nos casos abrangidos pela alínea c) "há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença); a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente"[31]. Com efeito, se a decisão é "a conclusão de um raciocínio" a fundamentação são as "premissas de que ela emerge"[32]. Haverá, então, "um vício, puramente, lógico do discurso judicial e não um erro de julgamento, e consiste no facto de os fundamentos aduzidos pelo juiz para neles basear a sua decisão, constituindo o seu respectivo antecedente lógico, estarem em oposição com a mesma, conduzindo a um resultado oposto ao que está expresso nesta[33].

Não se encontra na sentença qualquer contradição entre a sua fundamentação e o que nela se decide.

Finalmente, relativamente ao vício referido na alínea d) já acima nos referimos, sendo certo que "para ser apreciada, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia tem de ser acompanhada da indicação das questões das quais o tribunal deveria ter conhecido e não conheceu."[34] Sucede que, sem prejuízo do que face ao que os réus disseram na conclusão 7.ª e que atrás já se apreciou, não se aponta qualquer questão que tenha ficado por conhecer, ou alguma que indevidamente tenha sido conhecida.

Portanto, a sentença não padece de qualquer uma destas nulidades.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos réus.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] São deste código todas as normas adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusão 1.ª.
[3] Cfr. conclusão 6.ª.
[4] Cfr. conclusão 7.ª.
[5] Cfr. conclusão 11.ª.
[6] Cfr. conclusão 13.ª.
[7] Cfr. artigo 201.º n.º1 do Código de Processo Civil.
[8] Há algumas excepções como é, por exemplo, a prevista na parte final do n.º 4 do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
[9] Também aqui há excepções, nomeadamente no caso das nulidades mencionadas no n.º 2 do artigo 204.º e na situação prevista no n.º 3 do artigo 205.º, ambos do Código de Processo Civil.
[10] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, 1945, pág. 513. Isso também resulta do artigo 205.º.
[11] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime, pág. 187.
[12] Importa dizer que não é mencionada qualquer nulidade das referidas na primeira metade do artigo 202.º, o que significa que não se trata de uma que seja de conhecimento oficioso.
[13] Neste sentido veja-se os Ac. da Rel. Lisboa de 19-2-2009 e 25-3-2010 nos Proc., respectivamente, 169/2002.L1-1 e 594/2002.L1-6, em www.gde.mj.pt.
[14] Da qual os réus não recorreram.
[15] Cfr. artigo 201.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
[16] Cfr. folha 104-A.
[17] Cfr. folha 104-C.
[18] Cfr. conclusão 7.ª.
[19] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 704.
[20] Cfr. conclusão 11.ª.
[21] Cfr. conclusão 8.ª.
[22] Cfr. conclusão 9.ª.
[23] Cfr. conclusão 10.ª.
[24] Seabra Lopes, Direito dos Registos e Notariado, 5.ª Edição, pág. 413.
[25] Cfr. conclusão 8.ª.
[26] Cfr. artigo 3.º da petição inicial.
[27] Cfr. conclusão 13.ª.
[28] Cfr. o que já tinha sido dito nas conclusões 6.ª e 7.ª.
[29] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 688.
[30] Ac. STJ de 21-6-2011 no Proc. 1065/06.7TBESP, em www.gde.mj.pt. Neste sentido pode também ver-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, obra citada, pág. 687, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, obra citada, pág. 703, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, Alberto dos Reis CPC Anotado, Volume V, 1984, pág. 140, Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 806, Ac. STJ de 15-3-74 BMJ 235-152, Ac. STJ de 8-4-75 BMJ 246-131, Ac. STJ 24-5-83 BMJ 327-663, Ac. STJ de 4-11-93 CJ-STJ 1993-III-101, Ac. STJ de 8-1-2009 no Proc. 08B3510, Ac. STJ de 18-3-2010 no Proc. 10908-C/1997.L1.S1, Ac. Rel. Lisboa de 4-3-2010 no Proc. 7572/07.7TBCSC-B.L1-6, Ac. Rel. Coimbra de 22-3-2011 no Proc. 1279/08.5TBGRD-H.C1, Ac. Rel. Coimbra de 29-3-2011 no Proc. 129-C/2001.C1 e Ac. STJ de 15-12-2011 no Proc. 2/08.9TTLMG.P1S1, estes em www.gde.mj.pt.
[31] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 690.
[32] Alberto dos Reis, Comentário, Vol. II, 1945, pág. 172 e 173.

[33] Ac. STJ de 20-10-09 no Proc. 3763/06.6.YXLSB.S1, www.gde.mj.pt. Neste sentido veja-se também o Ac. STJ de 3-2-2011 no Proc. 1045/04.7TBALQ.L1.S1, www.gde.mj.pt.
[34] Ac. STJ de 9-10-2008 no Proc. 07B3011, em www.gde.mj.pt.