Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
505/17.4T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: DOAÇÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
PACTO SUCESSÓRIO
INCAPACIDADE
ACÇÃO DE INTERDIÇÃO
PENDÊNCIA
ACTOS ANULÁVEIS
PREJUÍZO
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 149, 946, 1756, 2028. 2058, 2170 CC
Sumário: I. Apenas podem considerar-se na sentença factos que, mesmo que provados, sejam relevantes para a questão de direito atento o pedido e as várias soluções jurídicas plausíveis; assim, se se pede a prova de factos que não substanciam os fundamentos recursivos, eles, vg., atento o princípio do artº 130º do CPC, não podem ser considerados.

II - Provando-se apenas que alguém cedeu gratuitamente o seu direito a metade da meação e quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito de seu marido, tal não consubstancia pacto sucessório ou doação por morte do doador, proibidos pelos artºs 2028º e 946º do CC.

III - A substanciação do conceito de prejuízo como requisito do artº 149º do CC, necessário à anulação de atos praticados pelo interditando/inabilitando na pendência da acção, é a seguinte:

i) Se o ato for oneroso deve apreciar-se, sensata mas sagazmente, na perspectiva do homo prudens atentas as circunstâncias envolventes;

ii) Se o ato for gratuito o ato deve sempre ter-se como prejudicial, ou, ao menos, como tal ser presumido, e competindo ao beneficiado ilidir tal presunção.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

M (…) e marido, A (…), instauraram contra  B (…) e marido, B (…);  M (…) e marido, N (…);  A (…); e R (…), acção declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediram:

a) Se declare nula e de nenhum efeito, por constituir pacto sucessório, a escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que M (…) foi doadora e as RR. B (…) e M (…)donatárias;

Se assim se não entender,

b) Se declare a anulação da mesma escritura, em razão da incapacidade da declarante, por anomalia psíquica;

c) De decrete a anulação dos testamentos e atos de última vontade outorgados pela M (…) em 4 de outubro de 2013 e em 15 de novembro de 2013, ambos no Cartório da Dra. (…)em razão da  incapacidade da declarante, que padecia já à data de anomalia psíquica, estando incapaz de perceber o sentido e alcance das declarações que proferia;

Quando assim se não entenda,

d) Que se decrete a anulação da escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que a M (…) foi doadora e as aqui RR. B (..:) e M (…) donatárias, bem como dos testamentos e atos de última vontade outorgados pela M (…) em 4 de outubro de 2012 no Cartório Notarial de (...) , em 21 de junho de 2013 e em 15 de novembro de 2013, estes no Cartório Notarial da Dra. (…), em virtude de terem sido obtidas as declarações da declarante por coação e/ou dolo, diretamente exercidas pelas beneficiárias de ambos os documentos, para o efeito do seu enriquecimento patrimonial;

Caso assim se não entenda,

e) Declarar-se a incapacidade sucessória das RR. B (…) e M (…) para receber da M (…) qualquer deixa testamentária em virtude de indignidade, por haverem determinado a declaração de vontade de M (…), a qual não obteriam de outra forma, e contra a vontade da declarante.

Para tanto, alegaram:

Em 31 de dezembro de 2016 faleceu, no estado de viúva, M (…), mãe da A., correndo nessa data inventário judicial para partilha dos bens do seu marido e pai da A., A (…), após a sua morte.

A falecida havia outorgado, em 26.3.2015, escritura pública pela qual cedeu gratuitamente o seu quinhão hereditário por óbito do marido às 1ª e 2ª RR., o que foi mantido em segredo até ao óbito da doadora,  constituindo tal um pacto sucessório.

Entre outubro de 2012 e novembro de 2013 a falecida outorgou 3 testamentos, instituindo herdeiros nos 2 primeiros os seus netos, aqui 3º e 4º RR., e excluindo-os no 3º testamento, em que instituiu como herdeiras da sua quota disponível apenas as 1ª e 2ª RR.

Estes documentos foram outorgados pela falecida quando esta se encontrava doente, incapaz de entender e querer, não tendo noção do valor do dinheiro, desbaratando o seu património, sem vontade própria, pelo que havia delegado na sua empregada, aqui 1ª R., a administração dos seus dinheiros.

As 1ª e 2ª RR. isolaram a falecida, não a deixando contactar com a família, instruindo-a, e ameaçando-a que a deixariam sozinha e doente, de forma a que afastá-la da intenção de beneficiar os netos, o que fizeram aquando da outorga da doação e dos dois últimos testamentos, que a falecida não entendeu e não quis.

Citados os Réus, foi apresentada contestação separada pelos 1ºs e 2ºs, alegando, em síntese:

Que a  (…) sempre esteve lúcida, e na posse de todas as suas faculdades mentais, até à sua morte, tendo disposto da sua herança e da sua meação de forma livre e consciente, sem qualquer interferência das RR. B (…) e M (…), não ocorrendo qualquer das invocadas causas de invalidade dos atos por si praticados, em causa nos autos.

Concluem pela improcedência da acção.

3.

Prosseguiu o processo os seus termos  tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se os Réus dos pedidos contra si formulados pelos Autores.»

4.

Inconformados recorreram os autores.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegaram as rés M (…) e B (…), pugnando pela manutenção da decisão, aduzindo esta os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª - Procedência da acção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Pretendem os autores a alteração da decisão sobre a matéria de facto, com inclusão do teor factual constante da conclusão D), ou seja, de factualidade que foi dada como provada na acção de inabilitação que tramitou relativamente à fenecida M (...) .

Atendíveis e considerados na  sentença, apenas podem ser os factos que, mesmo e não obstante se encontrarem provados, tenham interesse para a decisão segundo qualquer uma das versões plausíveis da questão de direito.

Aqueles factos foram provados na sentença de inabilitação, pelo que, constituindo esta documento autêntico não colocado em crise,  os mesmos, em princípio, poderiam ser dados como provados.

Porém, a inadmissibilidade da sua consideração, por inócuos ou irrerelevantes, dimana do próprio teor decisório de tal sentença.

Efetivamente, e como nela se plasmou, a data da incapacidade foi fixada em Agosto de 2016.

E os atos e factos que os colocam sub sursis nesta nossa acção são todos anteriores a tal data.

Ora como em tal decisão é outrossim acertadamente mencionado, certo é que, mesmo no domínio e para os efeitos da acção de interdição e inabilitação, estes estados de interdição ou inabilitação apenas se constituem com a sentença que os decreta.

E sendo que a data da fixação do começo da incapacidade é uma mera declaração natural ou de facto que nem sequer constitui presunção judicial quanto à existência daqueles  estados.

 Pelo que os factos contemporâneos  de tal data não invertem o ónus da prova sobre  a sua existência no momento da prática do ato, o qual continua a impender sobre quem impugna a validade do mesmo.

Tal entendimento tem aplicação, por igualdade ou por maioria de razão, para atos externos  discutidos em outros processos como os que estão em dilucidação nos presentes autos.

Competindo assim aos autores provar que os atos anteriores a tal início de incapacidade já estavam  atingidos e determinados por esta, pois que  doadora já estava afetada na sua capacidade de entender e  querer, como alegam.

O que, como se vê da matéria de facto dada como não provada, e que eles não impugnam,  não lograram efectivar – cfr. als. i) a r) dos factos não provados.

A assim ser, e uma vez que nem na acção de inabilitação foi provada incapacidade anterior a agosto de 2016 e sendo certo que os atos em causa são anteriores, há que reiterar a irrelevância, ou, no mínimo, a inoquídade de tal matéria.

Acresce que, bem vistas as coisas, tais factos não relevam para alicerçar a pretensão dos recorrentes tal como a definem nas suas conclusões, as quais, como se viu, delimitam o objecto do recurso.

Na verdade,  os recorrentes conformaram-se  com a sentença da 1ª instância na parte em que lhes indeferiu a sua pretensão com base no argumento de que a doadora já estava afetada na sua capacidade de entender e  querer.

  Sendo que nas conclusões recursivas eles insurgem-se contra o ato de doação  apenas com dois fundamentos, a saber:

 i) porque constitui um «pacto sucessório» proibido por lei e, assim, nulo - artºs 946.º, 1756.º n.º 2 e 2170.º do CC;

ii) porque ele foi praticado já na pendência da acção de interdição e causaram prejuízo à doadora – artº  artº149.º do CC.

Ora os factos aditandos não  consubstanciam ou alicerçam qualquer um destes fundamentos.

Antes se reportando com a incapacidade da requerida gerir, de forma autónoma, os seus bens. Ou seja, com a factualidade nesta vertente também alegada pelos autores  mas não dada como provada – aludidas als. i) a r).

Mas está bom de ver que este facto não é, só por si ou em concatenação com outros provados, o bastante para se concluir pela verificação de qualquer dos aludidos fundamentos recursivos,  pois que não pode integrar/substanciar a previsão  de qualquer dos normativos citados, nem, aliás, com eles tem conexão direta.

Pelo que a mesma não pode ser dada como provada, até pela perspectivação do  princípio geral da proibição  da prática de atos inúteis – artº 130º do CPC.

5.1.2.

Por conseguinte, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

1. A A. I (…) é filha de M (…), que faleceu, no estado de viúva, em 31 de Dezembro de 2016 – 1º e 2º PI.

2. À data do óbito da D.ª M (...) corria termos sob o n.º 142/10.4TBRSD, na Secção Cível  de Lamego deste Tribunal de comarca, o processo de inventário para partilha da herança de seu marido, e pai da aqui A., Dr. (…), no qual aquela Senhora exerceu, em vida, as funções de cabeça de casal – 3º PI.

3. E, à data do óbito da D.ª M (...) , estava também pendente na mesma secção cível, ação contra ela proposta pela aqui A., em 17 de novembro de 2011, de Interdição/ Inabilitação, sob o n.º 201/11.6TBRSD, tendo o anúncio a que se refere o artigo 945º do CPC sido publicado em 22 de Dezembro de 2011, e a falecida citada em 6 de Fevereiro de 2012 – 4º a 6º PI.

4. Após o óbito a A. requereu que a ação prosseguisse os seus termos, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado já na pendência desta ação, pela qual se decidiu decretar a inabilitação da falecida D. M (…) por motivo da sua anomalia psíquica – 7º e 8º PI.

5. A sentença proferida naqueles autos fixou como data do início da incapacidade o mês de agosto de 2016, tendo a decisão transitado em julgado em 14.6.2017 – fls. 600-605.

6. Em 26 de Março de 2015 no Cartório Notarial da Dr.ª (…)foi outorgada escritura pública que se designou de “cessão gratuita de quinhão hereditário”, na qual a falecida M (…) declarou «cede(r) gratuitamente às segunda e terceira outorgantes – as aqui rés B (…) e M (…) –, em comum e partes iguais, metade indivisa (sendo um quarto indiviso para cada uma) do direito à meação e quinhão hereditário que lhe pertence por óbito de seu marido, A (…)…» - 10º e 11º PI.

7. No mesmo documento declararam as aqui Rés B (…) e M (…) que «aceitam esta doação nos termos exarados» - 12.º PI.

8. No processo de inventário pendente, a doadora continuou a figurar, e a apresentar-se naquela ação como titular dos direitos – 14º PI. ,

9. A falecida D. M (…) outorgou, depois de instaurada e publicitada a ação de interdição, três testamentos: - em 4 de Outubro de 2012 no Cartório Notarial de (...) - em 21 de Junho de 2013, e - em 15 de Novembro de 2013, ambos no Cartório da Dr.ª (…)23.º PI.

10. Pelo testamento de 4 de Outubro de 2012, instituiu os seus netos (…), aqui Réus, herdeiros em comum e partes iguais da sua quota disponível e legou à aqui também Ré Benvinda a quantia de 125.000 euros - 24.º PI.

11. Pelo testamento de 21 de Junho de 2013, instituiu herdeiros da quota disponível, em comum e partes iguais, na proporção de um terço indiviso para cada um, a Ré B (…) e os seus referidos netos (…) 25.º PI.

12. Finalmente, pelo testamento de 15 de Novembro de 2013, institui herdeiras da sua quota disponível, em comum e partes iguais, apenas as aqui Rés M (…) e B (…) - 26.º PI.

13. No dia 12 de Julho de 2011, a falecida M (...) outorgou duas escrituras públicas de confissão de dívida, pelas quais se reconhecia devedora de respetivamente 15.000,00 à R. M (…) e € 16.000,00 à R. B (…) - 43.º a 45º PI.

14. A Ré B(…) a era à época empregada doméstica da D. M (...) - 46.º PI.

15. Em Novembro de 2010 a M (…) confessou-se devedora a (…) de  uma divida na quantia de 26.530 €, a que acresceria temporariamente uma prestação mensal de 255 euros, em virtude de declarado acidente de trabalho, devendo a dívida ser «satisfeita à custa da sua quota legitimária na herança de seu falecido marido» - 47º a 49º PI.

16. A D. M (...) vendeu a totalidade das peças de ouro que integravam o património do casal que formava com seu falecido marido - 52.º PI.

17. Em Março de 2012 a D. M (...) fez 83 anos – 57º PI.

18. A D. M (...) , em inícios de 2013, vivia em R (...) , na casa onde sempre viveu com o seu marido e onde, encontrando-se agora sozinha, era acompanhada de perto pela Ré B(…)que ali passava o dia e até ali pernoitava, e pela Ré M (…), que ali a visitava quase diariamente, tendo deixado de receber as visitas da filha e do genro, aqui AA., e de falar com eles ao telefone - 75.º e 76º PI.

19. A D. M (...) sofreu de um carcinoma do peito, a que foi operada em Abril de 2013, e de uma fratura da bacia, em Outubro de 2014), patologias que obrigaram a internamento hospitalar, a intervenções cirúrgicas e períodos de recuperação – 78º PI.

20. A R. B (…) acompanhou sempre a D.ª M (...) , incluindo aos exames médicos e perícias para avaliar o seu estado mental, fornecendo as informações de vida, bem estar ou necessidades da Senhora que lhe foram solicitadas – 84º e 85º PI.

21. No decurso do mês de Dezembro de 2016 o estado de saúde físico da D. M (...) agravou-se substancialmente, e pelo menos a Ré B (…) chamou o médico assistente da D. M (...) a casa, que entendeu que esta deveria ser imediatamente internada em estabelecimento hospitalar – 111º e 112º PI.

22. Até à sua morte, a D. M (...) manteve-se lúcida, bem sabendo o que queria e o que dizia, mantendo a sua memória intacta até pelo menos agosto de 2016, e um discurso inteiramente eloquente, conseguindo exprimir a informação que pretendia veicular de forma clara, processando toda a informação que lhe surgia de forma normal e natural, mantendo preservadas as capacidades de resposta e a tomada de decisão, quer as mais simples e quotidianas, quer, até agosto de 2016, as mais complexas e necessitadas de ponderação e análise crítica – 25º, 52º e 75º cont. R. (…); 29º a 34º cont. R. M (…).

23. Sempre denotou orientação no tempo e no espaço, demonstrando no final de vida as limitações próprias da idade, principalmente físicas, tendo sempre gerido a sua vida e os seus bens como quis – 26º e 27º cont. RB (…), 36º e 37º cont. R. M (…)

24. A D. M (...) reproduzia facilmente acontecimentos marcantes da sua vida pessoal e familiar passados há dezenas de anos, conseguindo datar e localizar tais vivências, preocupava-se em cumprir os compromissos assumidos, gostava de passear e se movimentar, sabendo que o imobilismo prejudicava a sua saúde, tratava de si própria, cuidando da sua higiene e lavando-se sem o auxílio de terceiros, vestia-se sem ajuda de terceiros, escolhendo o vestuário que diariamente usava, denotando preocupação com a sua imagem apenas saindo de casa quando julgava estar apresentável, reconhecia e distinguia o bem do mal, o certo do errado, o conveniente do desadequado, e tinha a perfeita noção de quem lhe fazia bem ou mal, sabendo bem que a A. pretendia reduzi-.la e mesmo prejudica-la quando intentou a ação de  interdição – 38º a 49º, 108º e 110º cont. R. M (…)

25. Face à idade avançada e aos problemas de saúde que sofria, a D. M (…) precisou cada vez mais de apoio para cuidar das coisas que implicassem esforços físicos, tratando a R. B (…) de tudo quanto a falecida lhe solicitasse, nomeadamente a lide da casa, realizar compras, ir à farmácia, e outras, tendo esta R. trabalhado para a falecida cerca de 25 anos, mantendo em virtude do longo convívio uma relação também de amizade – 48º a 51º cont. R. B (…)

26. A R. B (…) adquiriu bens e levantou dinheiro da conta da falecida a pedido desta, e à medida que esta lhe solicitava – 29º cont. R. B (…)

27. As Rés e a falecida M (…) não quiseram condicionar, nem condicionaram, a validade da doação de quinhão hereditário ao decesso da doadora – 10º a 13º cont. R. M (…).

28. Pelo menos até 2012 o filho da A., e aqui Réu, (…), tinha autorização para efetuar levantamentos da conta bancária da falecida na C (...) , gerindo ainda uma parte das propriedades da sua avó; sendo a A. co-titular da conta da sua mãe – 30º a 32º cont. R. B (…)

29. A falecida tinha despesas mensais fixar de pelo menos € 1.800 ou 2.000, com empregada doméstica que pernoitava ainda em sua casa, com os serviços de outras pessoas, com energia elétrica, água e gás para as suas habitações em R (...) e no P (...) , despesas de condomínio, seguros, alimentação, televisão e telefones, despesas médicas, tratamento do jardim, animais e outras despesas correntes – 58º a 70º cont. R. M (…)

30. E tinha como únicos rendimentos certos e estáveis duas pensões de reforma no valor global de cerca de € 320 mensais, apenas conseguindo sobreviver com dignidade com os rendimentos da produção agrícola dos prédios rústicos que administrava – 76º e 77º cont. R. M (…)

31. Os AA., pelo menos desde meados de 2012, ausentaram-se da vida da falecida, não mais se preocupando com ela e não a ajudando, fazendo com que a D. M (...) fosse submetida a testes, exames e relatórios para a declararem incapaz, facto que a angustiava e envergonhava, com o objetivo de a colocarem em situação económica dependente dos AA. – 130º a 134º coint. R. M (…).

32. Nos esporádicos contactos que mantinham, a A. e sua mãe discutiam, não se imiscuindo as RR. na relação que a falecida mantinha com a filha e o genro, e sendo alheias aos conflitos entre eles, e nunca tendo exercido sobre a falecida qualquer autoridade ou domínio, suscetível de a manipular à prática de atos que a sua vontade não ditasse – 135º a 138º cont. R. M (…)

33. A R. B (…) sempre apoiou de forma incondicional a D. M (…), perante os problemas de saúde que a afetaram, tudo fazendo para melhorar o seu-bem estar e qualidade de vida, tendo chegado a dormir junto à cama da Sra. para o caso de esta necessitar de alguma coisa durante a noite – 55º a 57º cont. R. B (…)

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A julgadora decidiu, de jure,  aduzindo o seguinte discurso argumentativo:

«a) Pacto sucessório:

Defendem os AA. que a cessão gratuita de quinhão hereditário constitui um verdadeiro pacto sucessório, por ter sido outorgado para produzir efeitos após a morte da doadora.

Não lograram os AA. provar o facto, alegado, de se destinar a cessão a ser utilizada após a morte de M (…), ou de ter sido mantido em segredo com tal objetivo. O que sabemos é que a habilitação de cessionário no inventário pendente, aberto por morte do pré-falecido marido de M (…), foi suscitada após o decesso da doadora – o que é manifestamente insuficiente para extrair a mencionada conclusão. Do que resulta não se poder concluir que o negócio jurídico celebrado foi um negócio mortis causa – caso em que haveria de se considerar o estatuído no art. 2028º do Código Civil (doravante, CC), que prevê apenas serem permitidos os contratos sucessórios previstos na lei, cominando os pactos sucessórios com a nulidade. Esta proibição (dos pactos sucessórios) destina-se a garantir a faculdade individual de decisão do de cuius quanto à disposição por morte dos seus bens e do sucessível quanto ao direito a suceder (1 ).

Atentemos no preceito em causa, que dispõe que “Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta”: O negócio jurídico em causa nos autos não é enquadrável em qualquer destas situações: não há renúncia à sucessão do falecido marido (art. 2170º do CC, citado pela A,), que a doadora havia anteriormente aceite (art. 2050º do CC); e não está a regular a sua sucessão, mas apenas a dispor do seu direito à herança de outra pessoa. O que é legítimo. Naturalmente que qualquer pessoa pode dispor dos seus bens e direitos patrimoniais até à sua morte, o que a doadora fez.

Acresce que, não se encontrando ainda a herança partilhada, o único que a doadora podia alienar era o direito, aos bens que viriam a compor a sua meação.

O n.º 2 do art. 946º do CC, convocado pela A., estabelece que “Será, porém, havida como disposição testamentária a doação que houver de produzir os seus efeitos por morte do doador, se tiverem sido observadas as formalidades do testamento”. Ora, no caso da escritura de cessão gratuita (doação) em causa nos autos, a produção dos seus efeitos, como de todos os negócios jurídicos em que a lei não prevê momento diverso, ocorre com a produção da declaração, ou seja, por mero efeito do contrato, conforme dispõe o art. 408º do CC.

A herança encontrava-se aberta, e a sua partilha em litígio, no processo de inventário pendente. Assim, a doadora havia já aceite o direito a perceber a sua quota parte da herança do seu marido: o seu quinhão hereditário (art. 2050º do CC). Este direito, a preencher com bens determinados no momento da partilha, é livremente alienável pela sua proprietária, nomeadamente nos termos em que o fez,

b) Pendência da ação de interdição:

Resulta dos factos provados que a falecida M (…) havia já sido citada para os termos da ação intentada tendo por objeto a sua declaração de interdição quando outorgou os testamentos de 4.10.2012, de 21.6.2013 e de 15.11.2013, bem como a escritura de doação outorgada em 2015.

No capítulo que gere as interdições, estabelece o n.º 1 do art. 149º do CC, sob a epígrafe “Atos praticados no decurso da ação”: “São igualmente anuláveis os negócios jurídicos praticados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da ação nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito”. Este regime é subsidiariamente aplicável às inabilitações, conforme art. 156º do mesmo Código.

Os negócios jurídicos objeto de impugnação foram celebrados após a publicidade da ação de interdição (anúncios), e da citação da requerida. No entanto, a final não foi decretada a interdição, mas a inabilitação; e o início dos efeitos da declaração de inabilitação foi fixado em agosto de 2016, data muito posterior à outorga dos atos jurídicos impugnados, pelo que se não verificava qualquer situação de inabilitação que fundasse a sua anulabilidade ao abrigo do preceito legal citado.

Acresce que para que seja decretada a anulabilidade dos negócios jurídicos mister é a alegação e prova de que os mesmos causaram prejuízo ao interdito ou inabilitado, o que manifestamente não resulta da factualidade provada.»

5.2.2.

Quanto ao primeiro fundamento do recurso.

Desde logo o artº 946º do CC.

Prescreve este:

1. É proibida a doação por morte, salvo nos casos especialmente previstos na lei.

2. Será, porém, havida como disposição testamentária a doação que houver de produzir os seus efeitos por morte do doador, se tiverem sido observadas as formalidades dos testamentos.

As doações por morte são as que produzem os seus efeitos por morte do doador, quer se trate de contrato sucessório, caso em que a morte funciona como causa de devolução dos bens,  quer a morte funcione como condição ou termoP. Lima e A. Varela, CC Anotado, 2º, 190.

O nº1 deste preceito proíbe as doações sob condição suspensiva da pré-morte ou a termo incerto; vai, pois, além do campo de aplicação do artº 2028º - Ac. RE de 06.04.1978, CJ, 2º, 571.

Antes da morte a doação não confere qualquer direito ao beneficiário - - RT, 90º-206.

 O nº2 consagra um caso de conversão de uma doação por morte numa disposição testamentária – Oliveira Ascensão, REDC, 46º, 147.

Para que a doação preencha os requisitos da parte final deste segmento normativo, terá de constar de escritura pública, uma vez que esta é o ato notarial equiparado, na forma, aos testamentos – RT, 90º, 205.

No caso vertente reitera-se o vertido na sentença: inexistem factos que possam alicerçar a conclusão de que nos encontramos perante um pacto sucessório.

Depois, e como ressuma dos factos provados – ponto 6 – inexistiu por parte da falecida M (...) qualquer doação para produzir efeitos depois da sua morte.

Antes e apenas ela cedeu o seu direito a metade da sua meação e do seu quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito de seu marido já falecido.

Acresce ter-se apurado que as rés e a falecida M (...) não quiseram condicionar a validade da cessão ao decesso da cedente. – ponto 27.

Logo, não cobra, meridianamente, aplicação o invocado artº 946º.

Ademais, e como outrossim na decisão se expende, o caso não se subsumiria na previsão do artº 2028º.

Estipula este artigo:

1. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta.

2. Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos na lei, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo no disposto no nº2 do artº 946º.

Perante este nº2 concluiu-se que tanto os contratos sucessórios como as doações por morte são convertíveis em deixas testamentárias, reunidos os requisitos de forma.

No caso vertente tais requisitos estão reunidos pois que a cessão foi feita mediante escritura pública.

Pelo que, caso fosse necessário, que não é, como se viu, sempre a doação ou cessão poderia ser tida como deixa testamentária.

Depois o artº 1756.º

Este estatui:

1. As doações para casamento só podem ser feitas na convenção antenupcial.

2. A inobservância do disposto no número anterior importa, quanto às doações por morte, a sua nulidade, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 946.º, e, quanto às doações em vida, a inaplicabilidade do regime especial desta secção.

 Reportando-se o nº1 do preceito às doações para casamento, ele não cobra aplicação no presente caso.

Outrossim tal acontece com o nº2 pois que já se viu que não nos encontramos perante uma doação por morte.

Finalmente o artº 2170º.

Prescreve ele:

Não é permitida em vida do autor da sucessão a renúncia ao direito de reduzir as liberalidades.

Este preceito reporta-se à inoficiosidade das liberalidades, entre vivos ou mortos,  por ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários – artº 2168º do CC.

Ora não é este o campo em que nos movimentamos.

Já se viu que a cessão não se reportou à própria herança da cedente, pelo que não se pode aqui falar em «autor da sucessão».

Ademais,  e mesmo que assim não fosse, nos autos  nada se apurou quanto à ofensa da legítima de herdeiros legitimários fossem eles quais fossem e a que herança concorressem,  ou à da cedente e/ou à do seu marido.

5.2.3.

No atinente ao segundo fundamento recursivo.

Impunha o artº 149º do CC, na redacção à data em vigor:

Artigo 149.º

(Actos praticados no decurso da acção)

1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da acção nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

2. O prazo dentro do qual a acção de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.

Este preceito é aplicável à inabilitação ex vi do disposto no artº 156º.

É inequívoco que o ato da cessão gratuita/doação foi praticado quando estava já a tramitar a acção de interdição: esta foi instaurada em 2011 e aquele praticado em 2015; e tendo, a final, sido decretada a inabilitação da M (...) .

Preenchidos estes requisitos do aludido preceito, resta apurar se, in casu, está presente o requisito final, qual seja, o prejuízo.

A doutrina vem entendendo que, relativamente a atos onerosos a questão de saber se há prejuízo para o interdicendo/inabilitando salda-se por apreciar se uma pessoa de normal diligência praticaria aquele ato naquelas circunstâncias

Ademais, a apreciação sobre a (in)existência do prejuízo reporta-se ao momento da prática do ato, não se tomando em conta eventualidades ulteriores que tornariam vantajoso não o ter realizado.

Já quanto aos negócios gratuitos, como as doações, entende-se que estas devem sempre ser consideradas prejudiciais, mesmo que as circunstâncias da sua realização  tornassem razoável a prática do ato por pessoa normal; é que a doação, seja qual for a sua justificação moral, importa sempre um empobrecimento imediato do doador, podendo, eventualmente por força de outras vicissitudes, causar-lhe grave dano – Cfr. – Mota Pinto, Teoria Geral, 1967, 135/136; C. Mendes, Teoria Geral, 1967, 1º, 171/173 e Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, 1º, 325; P. Lima e A. Varela, CC Anot. 1º, 97; M. Brito, CC Anot. 1º, 161.

5.2.4.

O caso em dilucidação.

O fundamento da pendência da acção de interdição como causa de anulação da doação, ao abrigo do artº 149º do CC, foi apreciado na sentença.

 A autora insurgiu-se contra o decidido neste particular.

A  noção do prejuízo está ínsita  naquela apreciação.

Logo, a apreciação sobre a sua (in)existência cabe na competência deste tribunal ad quem, porque tribunal de reponderação; e não se afigurando tal matéria como questão nova.

Ab inito importa dizer que o facto de o ato de doação não se ter traduzido numa  momentânea e imediata transferência de concretos bens para as donatárias, mas apenas se consubstanciando na cessão do direito por banda da M (...) da sua posição de interessada na herança do seu defunto marido, não é o bastante para se concluir que tal não lhe acarretou prejuízo.

Naturalmente que a cessão de tal direito transferiu para a esfera jurídica das donatárias o acervo patrimonial e financeiro que o preenchia/consubstanciava.

O que é o qb, para se concluir, em tese e sem prejuízo da necessidade de  posterior análise dos concretos contornos do caso, que tal lhe provocou ou poderia provocar prejuízo.

Ora vistos estes contornos, e mesmo que o ato fosse oneroso, os factos provados, versus o entendido pela julgadora, apontam para a existência de prejuízo.

Na verdade, indicia-se suficientemente que a doadora e seu marido eram pessoas abastadas e de posses, com um avultado e valioso património, pelo que o direito cedido incluía  certamente acervo patrimonial e jurídico-económico de   elevado valor,  certamente de largas dezenas ou, até, quiçá, de algumas centenas de milhares de euros, ou, porventura, até mais.

Ora não se provaram factos que, de algum modo, compensassem ou justificassem  tal transferência de direito a futuro património de tal magnitude.

O acompanhamento, cuidados e apoio moral e afectivo das donatárias à doadora não justificavam tal relevante doação, até porque elas eram remuneradas pelos serviços prestados.

Note-se ainda que se provou ter a M (...) praticado atos que apontam para a necessidade de ela obter liquidez, ou, com eles, ou o produto deles, pagar serviços ou satisfazer responsabilidades.

É o caso da venda  pela M (...) da totalidade das peças de ouro que integravam o património do casal que formava com seu falecido marido – ponto 16.

Nesta conformidade, mal se compreende que perante tal necessidade, ainda fosse alienar gratuitamente,  e sem para tal se apurar cabal ou até suficiente justificação,  parte muito significativa do seu património.

Assim se concluindo, na perspectiva do homo prudens e numa exegese sagaz mas razoável e sensata, que o ato, mesmo que fosse oneroso, seria  prejudicial para a doadora.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, certo é que o ato assume o jaez de gratuito.

Ora aqui, como se viu, o prejuízo existe, ou, ao menos, tem de ser presumido; e, neste caso, competindo às interessadas donatárias, aqui rés B (…) e M (…), ilidir tal presunção; ónus que não lograram efectivar.

Procede o recurso.

 6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I. Apenas podem considerar-se na sentença factos que, mesmo que provados, sejam relevantes para a questão de direito atento o pedido e as várias soluções jurídicas plausíveis; assim, se se pede a prova de factos que não substanciam os fundamentos recursivos, eles, vg.,  atento o princípio do artº 130º do CPC, não podem ser considerados.

II - Provando-se apenas  que alguém cedeu gratuitamente o seu direito  a metade da meação e quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito de seu marido, tal não consubstancia pacto sucessório ou doação por morte do doador, proibidos pelos artºs 2028º e 946º do CC.

III - A substanciação do conceito de prejuízo como requisito do artº 149º do CC, necessário à anulação de atos praticados pelo interditando/inabilitando na pendência da acção, é a seguinte:

i) Se o ato for oneroso deve apreciar-se, sensata mas sagazmente, na perspectiva do homo prudens atentas as circunstâncias envolventes;

ii) Se o ato for gratuito o ato deve sempre ter-se como prejudicial, ou, ao menos, como tal ser presumido, e competindo ao beneficiado ilidir tal presunção.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença e declarar a anulação da escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que M (…) foi doadora e as RR. B (…) e M (…) donatárias.

Custas pelas rés.

Coimbra, 2019.10.08.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos