Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2194/12.3TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
OMISSÃO DE INFORMAÇÕES
PREJUÍZO
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 243.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO)
Sumário: No âmbito do incidente de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, para se considerar verificado o prejuízo exigido pelo artigo 243.º, n.º 1, alínea a,) do CIRE, é suficiente a constatação de que a omissão das informações a prestar pelo devedor impediu a elaboração pelo fiduciário do relatório a que alude o artigo 240.º do mesmo diploma, prejudicando assim a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Decisão Texto Integral:








Acordam os Juízes, em conferência, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I - RELATÓRIO

Em 5-12-2012 foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formalizado por  A… e por B… , declarados insolventes por sentença proferida em 11 de Outubro de 2012, depois de pronúncia favorável do Administrador de Insolvência e desfavorável do credor Banco …., S.A., proferindo-se a seguinte decisão:

“a) Determino que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os Insolventes  B… e  A… auferem e venham a auferir seja entregue ao fiduciário infra nomeado;

b) Excluo do rendimento disponível dos devedores, para os efeitos previstos na alínea anterior, 2/3 do vencimento mensal líquido, num valor correspondente a um salário mínimo nacional para cada um dos Insolventes.

c) Nomeio, para desempenhar as funções de fiduciário: C…. , com domicílio profissional na Rua …., constante da lista oficial de administradores de insolvência.

d) Os Insolventes  B… e  A… ficam obrigados, durante o período da cessão, a:

- Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

- exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregada, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apta;

- entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;

- informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

- não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

e) Advirto os credores que não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens da Insolvente destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão.

f) Declaro que a exoneração do passivo restante será concedida desde que sejam observadas pelos devedores as condições previstas no artigo 239.º do CIRE durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.”

                                   *

Em 28.01.2020 foi declarado encerrado o processo de insolvência.

                                   *

Em 25 de Janeiro do corrente ano, 2021, foi proferida uma outra decisão do seguinte teor:

“As informações apresentadas pelo Sr. Fiduciário a 27-12-2018 e a 21-11-2019 alegam e concluem no sentido que  A… e por  B… não prestaram informações acerca dos seus respectivos paradeiros e rendimentos.

Notificado, inclusive nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243.º do Cire,  A… não se manifestou.

Entende o Sr. Fiduciário que deverá ser determinada a cessação antecipada do presente procedimento de exoneração do passivo restante.

Cumpre apreciar e decidir.

Do acima sintetizado resulta que  A… e por  B… não informaram os seus actuais paradeiros.

Perante o acima sintetizado, dos autos não consta factualidade que possa ser subsumida às diversas alíneas do n.º 4 do artigo 239.º do Cire, ou seja os devedores não cumpriram com o dever imposto e que consta plasmado na alínea d) do referido preceito legal.

Tais omissões dos devedores prejudicam a satisfação dos créditos sobre a insolvência como também não se encontra justificada.

Em face do exposto, determino a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante quanto a A…  e a  B… (artigos 243.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 – 2.ª parte - do Cire).

….

…. “

                                   *

Inconformado, o devedor interpôs o presente recurso que finalizou com as seguintes conclusões:

(…)

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o seu objeto – cfr., designadamente, as disposições conjugadas dos artºs 5º, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1, 2 e 3, e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do C. P. Civil – sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Face às conclusões da motivação do recurso, a questão a decidir, delimitada pelo apelante na 2ª conclusão, tem a ver com a verificação dos pressupostos para a cessação antecipada de exoneração do passivo restante do devedor, atento o disposto no artº 243º, nº 1, a) e nº 3, 2ª parte do CIRE, a norma enunciada na sentença do tribunal a quo e que tem o seguinte teor:

                    Artigo 243.º

                          Cessação antecipada do procedimento de exoneração

1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:

a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;

3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.

No entender dos apelantes a não verificação dos pressupostos enumerados apertis verbis pelo legislador decorre, por um lado, porque não estão reunidos os requisitos cumulativos indicados na alínea a), a verificação do dolo no incumprimento das obrigações que sobre eles impediam, e que todavia reconhecem, e que desse incumprimento tenha resultado um prejuízo para os credores, o que sequer foi alegado e, por outro lado, por não ter sido observado o procedimento previsto no nº 3, uma vez que não foram ouvidos ou chamados com a advertência de que seria recusado o benefício caso não cumprissem o que lhes era solicitado sem motivo razoável.

Iniciando então a nossa abordagem quanto à verificação e à caracterização do primeiro requisito apontado, a imputação da conduta dos apelantes a título de dolo ou negligência grave, há que atentar desde logo no compromisso assumido pelos próprios apelantes através do requerimento inicial (artº 71º da PI, refª 1030115), quanto ao cumprimento da obrigação de  informação dos rendimentos e do respectivo domicílio.

O despacho preliminar subsequente, proferido em 05.12.2012 (refª 359154499), impôs então a ambos, durante o período de cessão, a obrigação/dever de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufiram, por qualquer título, a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhes fosse requisitado, entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão e informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições.

Ora, percorrendo os autos, encontramos um comportamento que não só vai em sentido inverso, de incumprimento, o que aliás os próprios apelantes reconhecem, como é o reflexo claro e manifesto de uma vontade formada e dirigida nesse sentido e com tal objectivo, traduzida em atitudes e num comportamento mantido ao longo de um período de tempo considerável, pelo que não estamos perante a ocorrência de um acto esporádico e pontual. 

O fiduciário, no requerimento de 27.12.2018 (refª 31078881), veio dar conta de que os devedores não entregaram o imóvel apreendido, obrigando com isso à utilização da força pública e, para além disso, que deixaram de estabelecer contacto pelo que desconhecia em absoluto o paradeiro de ambos e a respectiva situação patrimonial e financeira do casal, circunstâncias que o impediam de elaborar o relatório a que elude o artº 240º do CIRE.

Esse imóvel mencionado pelo fiduciário havia sido adjudicado ao Novo Banco SA que, em 10.07.2018, pediu a entrega desse imóvel (refª 5033965), sobre o qual recaiu o despacho de 26.11.2018 (refª 89386889).

Seguiu-se o despacho de 13.02.2019, onde se ordenou a notificação dos devedores depois de fazer exarar a advertência de “.. que a persistência dos incumprimentos relatados determinará a final o indeferimento da exoneração”, e o fiduciário, em 21.11.2019 (refª 6350112), veio reiterar o pedido feito antes para a cessação antecipada do benefício concedido aos devedores por, mais uma vez, desconhecer em absoluto o paradeiro de ambos.

Foi proferido um despacho em 28.01.2020 (refª 6350112) onde, para além de declarar encerrado o processo de insolvência nos termos do artº 230º, n 1, do CIRE, se deixou exarado a seguinte ordem “face ao reiterado no requerimento que antecede do Sr. Fiduciário (R. de 21/11/2019), determino que os devedores insolventes sejam pessoalmente notificados, para esclarecerem porque não prestaram informação acerca dos seus actuais paradeiros e sobre os seus rendimentos ao Sr. Fiduciário (artigo 243.º do Cire)”.      

A carta registada com AR enviada foi devolvida (refª 6568706), seguindo-se um outro despacho em 08-05-2020, ordenando que se apurasse os actuais paradeiros dos devedores e, com base em tais elementos, foram então notificados do despacho acima mencionado, do presente despacho e do requerimento autuado a 21/11/2019 pelo Sr. Fiduciário, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243.º do Cire.

- Os devedores nada disseram.

Parece-nos pois evidente, face a todo o circunstancialismo que acabamos de descrever, que a imputação do comportamento dos devedores, no que diz respeito ao incumprimento da obrigação de informação dos rendimentos e do respectivo domicílio deve ser feita a título de dolo, não de mera negligência, pelo que se mostra preenchido esse primeiro requisito exigido pelo artº 243, nº 1, a) do CIRE.

Dizem os apelantes que falta o segundo dos requisitos, o prejuízo, que não foi alegado nem provado como deveria ser de acordo os artºs 342º, nº 1, e 343º, nº 2 do CC e, sequer foi mencionado na sentença.

É certo que a sentença não menciona ou indica qualquer prejuízo concreto ou determinado, não quantifica montantes nem valores, mas dela resulta que “os devedores não cumpriram com o dever imposto e que consta plasmado na alínea d) do referido preceito legal”, o artº 239º indicado um pouco atás, e que “tais omissões dos devedores prejudicam a satisfação dos créditos sobre a insolvência como também não se encontra justificada”[1]

Ora, mencionamos acima que o fiduciário, no requerimento de 27.12.2018, referiu desconhecer em absoluto o paradeiro dos devedores, bem como a respectiva situação patrimonial e financeira do casal, circunstâncias que o impediam de elaborar o relatório a que elude o artº 240º do CIRE, e isso basta  para dar conteúdo ao prejuízo que a alínea a), 2ª parte, do nº 1 do artº 343º do CIRE exige, porque está efectivamente demonstrada de que forma foi prejudicada a satisfação dos créditos sobre a insolvência, pois não cabe outra ilação, de outro modo estaríamos a considerar que essa falta de informação tinha um valor neutro, posto que ninguém defenderia certamente que a pudesse facilitar.

Ainda que assim não fosse, embora a quantificação do prejuízo, a sua concreta determinação, constitua um elemento relevante para dar uma visão mais precisa do resultado da acção ilícita no caso a dos devedores/apelantes, não cremos, porém, que fosse possível fazê-lo no momento, no âmbito deste incidente, sem as informações que deveriam prestar e não o fizeram, o que determinou a impossibilidade de prosseguir pela falta desses mesmos elementos e do relatório do fiduciário.

Seguindo os argumentos dos devedores/apelantes e acolhendo as suas razões, iriamos certamente beneficiar os infratores, permitir que não obstante a conduta apurada obtivessem a exoneração do passivo restante, um benefício que resulta de um desvio ao fim precípuo da insolvência, a satisfação dos credores que, manifestamente obstaculizaram, ou seja, tirariam partido da violação praticada, o que constituiria a forma de abuso de direito denominada tu quoq[2]

A boa fé surge como portadora de critérios de uma actuação honesta e honrada, como padrão de standard jurídico. Nessa perspectiv a questão já não se centra sobre o conhecimento ou desconhecimento , por partedo agente, de com a sua actuação lesar interesse de outrem, mas sim de aferir da conformidade ou desconformidade da sua acção com os padrões vigentes de decência de acção[3].

Referiu o STJ em acórdão de 19.06.2012 - retirado da base de dados da Colectânea de Jurisprudência mas disponível em www.dgsi.pt  - referiu que “a existência do elemento "prejuízo para os credores", não decorre, automaticamente, do teor literal da al. d), do nº 1, do art. 238º, do CIRE, não tem natureza objectiva, tratando-se de um pressuposto independente da tardia apresentação do pedido de insolvência, devendo antes ser, concretamente, apurado, em cada caso, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção de prejuízo, que carece sempre de demonstração efectiva”, sendo que aí, em sede de indeferimento liminar, o prejuízo considerado era apenas e tão só o resultante da demora na apresentação à insolvência, uma questão que foi colocada também neste processo mas sem as mesmas consequências.

Aqui, na situação em análise, o prejuízo é concreto, embora não quantificado pelas razões já aduzidas, sublinhe-se, pelo que se mostra igualmente verificado este segundo elemento.

Resta-nos, por último, a verificação do processado, se foi devidamente observado o rito imposto pela lei e respeitado o contraditório, indagações que têm a ver com o disposto no nº 3 artº 243º, do CIRE e artº 3º do CPC, indagação que nos merece uma resposta afirmativa sem margem para qualquer hesitação ou dúvida[4].

Com efeito, atentando ainda no circunstancialismo mencionado acima, concretamente do teor das decisões, da cominação expressa que se fez constar nos despachos de 13.02.2019, 29.11.2019 e 08.05.2020, bem como do requerimento do fiduciário de 21.11.2019, não só tiveram os devedores/apelantes o conhecimento de tudo isso, como ficaram cientes da expressa advertência quanto à cominação e às consequências do comportamento que lhes era imputado, a cessação antecipada do procedimento de exoneração, concedendo-lhe ainda, oportunidade para que se pronunciassem.

Não podem os apelantes alegar que não sabiam ou desconheciam o que estava em causa e as suas consequências, depois de árduas e inúmeras diligências até lograr a indispensável notificação para dar-lhes conta de tudo isso, bem sabendo eles já do compromisso assumido, do teor do despacho inicial e que tinham violado a obrigação de informação imposta a cada um deles.

Foi assim observado o processado previsto e satisfeitas as exigências de contraditório, não apenas quanto aos devedores, mas quanto a todos os intervenientes, fiduciário, credores e Mº Pº, conforme exigem o artº 3º, nº s 1, 2 e 3, do CPC e o mesmo artº 243, nº 3, 1ª parte, do CIRE.

Tudo visto, justificou-se portanto a pertinente cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante concedido liminarmente aos devedores mas que demonstraram não o merecer.

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III - DECISÃO

Pelo exposto, julgamos improcedente o presente recurso interposto pelos devedores/apelantes e, em consequência, mantemos integralmente a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

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Coimbra, 15 de Junho de 2021


 [1] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, 4ª ed., pgs 623/625; Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., pgs 914/915; Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., pg 382.
 [2] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 1999, pgs 208/209.
 [3] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Relatório, Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2000, pgs 64/65.
[4]  Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob e pg 915, ponto 6; Ana Pratas, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2013, pg 675, ponto 5.